A construção do discurso na aula
José Artur B. Fernandes
Vygotsky e a Perspectiva Sócio-cultural
•
Aprender é um fenômeno social.•
A origem social dos signos usados na. comunicação.
• Internalização
• Referencialidade
• A construção das narrativas
• O controle do discurso
• Multimodalidade
“O conhecimento e a comunicação são dois processos inseparáveis com um
funcionamento interdependente e, portanto, conhecer é construir significados
compartilhados”
Ignasi Vila
"As
crianças
não
escolhem
o
significado de uma palavra, já lhes vem
dado no processo de interação verbal
com os adultos. As crianças não
constroem seus próprios complexos
livremente.“
(VYGOTSKY, 1934: 133 apud WERTSCH, 1988) Aprender é um fenômeno social.
“Os significados são construídos. É um
engano dizer, como as pessoas
freqüentemente dizem, que alguma coisa
tem
significado
, como se significado fosse
uma coisa inerente. Uma palavra, um
diagrama, um gesto,
não
têm significado.
Um significado tem que ser construído
para isso, por alguém, de acordo com um
conjunto de convenções para dar sentido a
palavras, diagramas ou gestos"
(LEMKE, 1990: 186)
E o que isso tem a ver com educação?
"Na perspectiva sócio-cultural, a educação em sala de aula é um processo discursivo sócio-histórico no qual os resultados, do ponto de vista da aprendizagem, são
determinados conjuntamente pelos esforços de professores e alunos.
A contextualização contínua e cumulativa de eventos e a criação de um conhecimento comum através do discurso são, portanto, a própria essência da educação como
processo psicológico e cultural.”
Mercer, 1998:14
“A aprendizagem escolar pode ser
interpretada como um
processo de
construção progressiva de sistemas
de significados compartilhados
em
relação a tarefas, situações ou
conteúdos em torno dos quais se
organiza a atividade conjunta dos
participantes”
Coll et al.(1992: 196)
Vygotsky usa um exemplo para a origem dos gestos:
Uma criança pequena vê um copo de água ao lado do berço e estende a mão para tentar
alcançá-lo.
Um adulto, ao seu lado, pega a água para a criança, ao perceber o gesto.
A reação do adulto transforma a tentativa de alcançar a água, feita pela criança, em um gesto que será utilizado nas próximas
ocasiões.
LEI GENÉTICA GERAL DE DESENVOLVIMENTO CULTURAL
"Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes, ou em dois planos.
Primeiro ela aparece no plano social, e depois no plano psicológico. Primeiro ela aparece entre pessoas como uma categoria interpsicológica, e depois dentro da criança como uma categoria intrapsicológica.
Isto é igualmente verdadeiro para a atenção voluntária, memória lógica, a formação de conceitos e o desenvolvimento da vontade"
interpsicológico = social
A origem social dos signos usados na comunicação.
No exemplo, o significado comunicativo do comportamento não existe até que seja criado na interação adulto-criança.
A combinação do comportamento da criança com a resposta do adulto transforma um comportamento não comunicativo em um signo do plano interpsicológico.
A forma do signo se transforma de um movimento que consistia em uma tentativa de alcançar um objeto em um gesto de indicação.
Mais adiante, a criança irá adquirir controle voluntário no plano intrapsicológico sobre o que anteriormente só havia existido na interação social.
Vygotsky
Internalização:
Como ocorre a passagem das funções psicológicas desde o plano da interação social (interpsicológico) para o plano individual, interno da criança (intrapsicológico)?
Internalização:
Processo em que certos aspectos da estrutura da atividade que se realiza no plano externo passam a ser executados em um plano interno
Vygotsky afirmava que as estruturas da atividade interna não seriam simples cópias da atividade externa, mas
defendia
"uma relação inerente entre a atividade externa e interna,
em forma de uma relação genética na qual o ponto principal seria como são criados os processos psicológicos internos como resultado da exposição da criança ao que ele chamava 'formas culturais maduras de comportamento„”
Internalização
é um processo implicado na
transformação dos fenômenos sociais em
fenômenos psicológicos.
Portanto, Vygotsky concebia a realidade
social como determinante fundamental da
natureza do funcionamento
intrapsicológico"
(WERTSCH, 1998: 80)
(1) as funções psicológicas externas não são simplesmente copiadas transformando-se em processos internos, mas re-trabalhadas pela criança que irá adquirir controle sobre estes;
(2) tal controle depende da capacidade da criança de manejar as formas de comunicação que estão envolvidas na interação social.
A Construção do
Discurso
• Referencialidade
• Explicação: A narrativa científica
Referencialidade
:
"
Educação é melhor entendida como um
processo comunicativo que consiste
largamente no desenvolvimento de
contextos mentais e termos de referência
compartilhados, por meio dos quais os
vários discursos da educação (os vários
'conteúdos' e suas habilidades acadêmicas
associadas) se tornam inteligíveis para
aqueles que deles se utilizam"
(EDWARDS; MERCER, 1993: 63).
Como criamos esses contextos referenciais?
Na sala de aula, o professor terá que criar uma contextualização entre signos que só
existem no plano abstrato, conectando os sentidos que ele atribui a uma palavra,
por exemplo, aos sentidos que sua audiência poderá atribuir-lhe.
Para criar essa intersubjetividade, poderá utilizar diferentes formas de
referencialidade:
Para criar tais contextos, precisamos criar relações entre os signos que
utilizamos e outros signos cujo
significado seja compartilhado com as pessoas com quem dialogamos.
Podemos, também, criar relações entre um signo novo que lançamos no diálogo
e outros signos que já foram utilizados anteriormente.
O marco referencial específico inclui
referências a conteúdos que o professor dá por suposto que seus interlocutores já os compartilham porque foram
trabalhados em momentos anteriores
COLL et al., 1992
O marco de referência específico se refere a intersubjetividades que já foram construídas em momentos anteriores, se refere a itens
temáticos da interação que já têm seus significados compartilhados.
O marco referencial social inclui referências ao mundo extra-escolar. A hipótese aqui é de que professor e alunos compartilham
vivências e aprendizagens prévias não por terem passado por elas juntos, mas por
viverem em um mesmo grupo social e que, por isso, devem ter referências parecidas. COLL et al., 1992
O marco de referência social diz respeito aos
significados compartilhados porque os caras são do mesmo grupo social; não se refere diretamente a um conteúdo já presente na atividade conjunta (item temático) mas atua como ferramenta para criar intersubjetividades.
A narrativa científica
Uma característica fundamental da
maneira como o professor desenvolve
a narrativa científica é que ela tem que
ser de caráter
„persuasivo‟ na medida
em que o professor tenta convencer
os alunos de que a narrativa científica
que está sendo representada no plano
social da classe é razoável"
Coll e Onrubia caracterizam os
processos escolares de ensino e de
aprendizagem como “processos
interativos e comunicativos nos quais
um dos participantes o professor
-ajuda de maneira sistemática e
planejada os outros - os alunos - a
elaborar uma série de conhecimentos
relativos a determinadas parcelas da
realidade física e social, ...
... envolvendo-se para isso em um
processo de construção de sistemas
de significados progressivamente
compartilhados cada vez mais ricos,
complexos e adequados sobre a
realidade em questão“
(COLL; ONRUBIA, 1998: 80)
"... ficamos surpresos com a extensão
em que as relativamente
'progressivas' formas de ensino que
estudamos são caracterizadas pela
avassaladora dominância do professor
sobre tudo que é feito, dito e
considerado correto"
(EDWARDS; MERCER, 1993: 2).
A explicação científica é muito próxima
de um relato. características do relato:
• tem um elenco em que cada um dos
atores tem suas aptidões que o definem
• os membros desse elenco interpretam
as numerosas séries de acontecimentos
para os quais estão capacitados
• esses
acontecimentos
têm
uma
conseqüência, que deriva da natureza
dos protagonistas e dos fenômenos que
têm a casualidade de representar.
OGBORN J., KRESS, G., MARTINS, I. & McGILLICUDDY, K. (1996).
Explicações
científicas
diferem
de
histórias porque precisam ter uma
coerência com o mundo externo ao relato,
não são fechadas em si mesmas como as
histórias ficcionais.
OGBORN J., KRESS, G., MARTINS, I. & McGILLICUDDY, K. (1996).
Um relato nos mostra o modo como os acontecimentos ocorrem de forma que os resultados não sejam arbitrários; de maneira que faça sentido, visto que o que acontece aparece porque as coisas fazem o que fazem por sua própria natureza.
A “natureza das coisas”, seus significados, para nós consistem simplesmente no que fazem, para que servem e de que são feitos.
OGBORN J., KRESS, G., MARTINS, I. & McGILLICUDDY, K. (1996).
KRESS et al (2001), apesar de destacar o
papel central do professor nesse processo,
ressaltam
o papel ativo que têm os alunos
tanto no processo de aprendizagem como
no de ensino: na condição de audiência
para o professor eles têm seu impacto na
atividade de ensino enquanto retórica, além
de terem um papel transformador na
construção de conhecimento.
Vale lembrar que na perspectiva
sócio-cultural o conhecimento construído no
discurso público não é especular ao
conhecimento que será construído no plano
intrapsicológico: ele se modifica ao ser
internalizado.
Para exercer um controle em estabelecer a
pauta, determinar com antecedência que
conhecimentos serão resultantes da
atividade e, em geral, expressar o papel
social de autoridade o professor lança mão
de uma série de estratégias, as táticas
temáticas (LEMKE, 1990) ou regras
básicas1 (Edwards; Mercer, 1993).
Marcar a relevância
ou a irrelevância de
contribuições dos alunos, por exemplo, é
uma dessas estratégias:
usar entonação
especial, dar importância e
chamar a
atenção
para que todos ouçam a
contribuição,
criar chavões
ou alertar que o
assunto em andamento é
especialmente
importante
são exemplos de como o
professor pode marcar a relevância de
temas ou contribuições.
Já a
irrelevância de um tema
é mais
freqüentemente marcada pelo simples ato
de
ignorar a contribuição do aluno
, ou por
rotular a resposta do aluno como “
isso não
é uma resposta
”.
Parafrasear
a contribuição dos alunos, ou
reformular a pergunta que o aluno lançou,
modificando-a para adequá-la ao tópico
,
juntamente com as
recapitulações
em que
se reconstróem os diálogos, são algumas
das estratégias para
dirigir o tema da
interação
e criar a sensação de
consensualidade em relação ao tema
discutido.
Da mesma forma, dar “deixas”
para
estimular a contribuição dos alunos, fazer
perguntas
diretas ou controlar o tempo
de
espera necessário para as respostas, são
estratégias para regular a participação dos
alunos na construção do discurso.
A estrutura de atividade conjunta de diálogo
mais comum nas aulas de ciências,
segundo Lemke (1990) é o
Diálogo Triádico
,
também chamado de
padrão IRF
.
Esse padrão funciona como uma poderosa
ferramenta para a construção da retórica da
aula, como apontam Edward e Mercer:
. "Pelo fato das pessoas suporem que o
professor sabe a resposta para a maioria
das questões que faz, o status de qualquer
resposta oferecida por um aluno é também
afetado pela natureza da relação.
O professor é visto como em posição de
avaliar qualquer resposta (a parte feedback
da IRF), e, portanto, o próximo ato do
professor vai ser tomado por avaliativo...
... Então, se o professor coloca a mesma
questão novamente, fica implícito que qualquer
que tenha sido a resposta, esta foi recebida
como incorreta, e uma resposta alternativa está
sendo agora requisitada.
Silêncio por parte do
professor implica na mesma coisa; a questão
anterior continua em aberto.
Se o professor
ignora uma questão colocada por um aluno,
podemos esperar a interpretação contrária - a
questão não foi colocada na pauta...
a. Interativo/dialógico:
professor e estudantes exploram idéias, formularam perguntas autênticas e oferecem, consideram e trabalham diferentes pontos de vista .
b. Não-interativo/dialógico:
professor reconsidera, na sua fala, vários pontos de vista, destacando similaridades e diferenças.
c. Interativo/de autoridade:
professor geralmente conduz os estudantes por meio de uma seqüência de perguntas e respostas, com o objetivo de chegar a um ponto de vista específico.
d. Não-interativo/ de autoridade:
professor apresenta um ponto de vista específico.
O controle do discurso
. Mortimer e Scott apontam questões institucionais que, no nosso entender,
contribuem para que o modelo de construção de discurso baseado na orquestração retórica pelo professor acabe sendo privilegiado:
O controle do discurso
"O fato de que um determinado programa curricular
tem que ser ensinado, ou, pelo menos, de que um
conjunto de conceitos e atividades tem que ser
cumprido, leva a um tipo de „dilema do professor‟
(...): como fazer com que o aluno aprenda por si
próprio o que já está planejado para ele com
antecedência.
.
Esses dilemas e essas possibilidades restritas
podem ter um efeito destrutivo na educação, por
colocar a perder a razão essencial do processo
Vygotskyano: ou seja, o processo fica, com
freqüência, incompleto, sem a transmissão final do
controle e do conhecimento para os alunos. Os
alunos ficam, freqüentemente, presos em rituais e
procedimentos, falhando em alcançar o objetivo
principal do que estiveram fazendo, incluindo os
conceitos gerais e princípios que a atividade havia
sido planejada para ensinar"
(MORTIMER; SCOTT, 2003: 130 tradução nossa).
Multimodalidade:
abordagem em que é
igualmente dada séria atenção a uma
multiplicidade de modos de
comunicação que atuam em classe.
Como consequência, a linguagem
-tanto falada como escrita - torna-se
simplesmente um dos vários modos por
meio dos quais alunos e professores
trabalham a ciência."
"Várias questões surgem a partir destas premissas (de multimodalidade): se há um número de distintos modos em operação ao mesmo tempo (em nossa descrição e
análise focamos fala, imagem, gestos, ação com modelos, escrita, etc.), então a primeira questão é:
'Será que eles oferecem distintas possibilidades de representação?'
Para nós, tal questão se coloca da seguinte forma:
'Quais são as possibilidades de cada modo utilizado em uma aula de ciências; quais são os potenciais e as
limitações de cada modo em relação à representação?' e, 'Serão as modalidades especializadas para certas
funções em particular? A fala é, vamos dizer, melhor para isso e a imagem é melhor para aquilo?'."
O uso da linguagem visual, na sala de aula, está concentrado no espaço semiótico temático, em que três modos agem em uma relação de especialização: a palavra introduz ou identifica as entidades da natureza; o gesto as localiza, lhes dá sentido e as dinamiza; e a linguagem visual apresenta um cenário em que é possível mostrar espacialmente aquelas entidades e as relações que entre elas se formam (MÁRQUEZ, 2002).
A grande diferença entre a sala de aula e a aula de campo está no cenário: enquanto na sala ele é construído com o uso da linguagem visual, no campo ele é recortado do próprio mundo material, a partir da experiência empírica da observação.