• Nenhum resultado encontrado

A MORADA DA DIVERSIDADE ÉTICA E SEXUAL: a atualidade do pensamento de Frei Bernardino Leers

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A MORADA DA DIVERSIDADE ÉTICA E SEXUAL: a atualidade do pensamento de Frei Bernardino Leers"

Copied!
22
0
0

Texto

(1)

A MORADA DA DIVERSIDADE ÉTICA E SEXUAL:

a atualidade do pensamento de Frei Bernardino Leers

THE ADDRESS OF ETHICAL AND SEXUAL DIVERSITY:

the actuality of Frei Bernardino Leers' thinking

Amauri Carlos Ferreira1

Resumo: O pensamento de Frei Bernardino Leers nos convoca a refletir sobre a relação com o mundo e o outro. A obra do autor indaga a configuração do campo religioso tradicional, propondo discussões intrigantes e polêmicas, principalmente no que se refere à ética e à moral. Este artigo discute, no campo da ética e da diversidade sexual, a centralidade da pessoa. O objetivo é apresentar e discutir, em alguns dos escritos do Frei, o caráter ambíguo da ética e da sexualidade compreendidas em sua ambivalência humana e religiosa no que se refere ao outro. O outro entendido como próximo em sua abstração independente do gênero, da cor, das preferências sexuais e que assume uma concretude e um dever ser que, segundo o autor, conduz a um processo de libertação em consonância com a proposta do Concílio Vaticano II.

Palavras-chave: Ética. Diversidade. Sexualidade. Libertação.

Abstract: The thought of Frei Bernardino Leers calls us to reflect on the relationship with the world and the other. The author's work inquires the configuration of the traditional religious field by proposing intriguing and controversial discussions, especially about ethics and morality. This article discusses in the field of ethics and sexual diversity the centrality of the person. The objective is to present and to discuss, in some of the friar's writings, the ambiguous character of ethics and sexuality comprehended in his human and religious ambivalence about the other. The other understood as close in its independent abstraction of gender, color, sexual preferences and which assumes a concreteness and a duty to be that, according to the author, leads to a process of liberation in accordance with the proposal of the Second Vatican Council. Keywords: Ethics. Diversity. Sexuality. Release.

INTRODUÇÃO

A dupla face do deus romano Janus representa, em poucas palavras, a trajetória de Frei Bernardino Leers no que se refere ao seu caminho frente às discussões de cunho ético e moral. O deus romano, um dos mais antigos do panteão, possui

1 Graduado em Filosofia, Mestre (PUC-SP), Doutor (UMESP) em Ciências da Religião,

Pós-doutor (UFMG) em Educação. Professor de Filosofia da PUC Minas e do ISTA. Belo Horizonte - MG. mitolog@pucminas.br

(2)

duas faces contrapostas: uma que olha para o passado e outra para o futuro, indicando um deus de passagem.2

Figura 1- Deus Janus

Fonte: Arquivo pessoal de Ruth Schmitz de Castro (Museu do Vaticano)

A representação alegórica e emblemática do deus romano conduz a reflexões que permitem entender a mudança de comportamentos frente ao instituído. Uma face de Janus nos é apresentada com um rosto de barbas e a outra sem, o que poderia nos fazer pensar sobre o vendaval da mudança na rocha da tradição. Uma construção no campo da história, em que o presente se coloca como iluminação do passado, mas nunca uma vida no passado. Bernardino retoma a dupla face do deus romano para discutir a ambiguidade da vida moderna.

Para ele, a antiga imagem romana de Janus com duas faces continua viva na sociedade atual que, de um lado, uniformiza e reduz o homem à unidimensionalidade (Marcuse), doutro lado suporta opiniões e atitudes morais bem antagonistas (LEERS, 2009, p. 398). Há no passado da Igreja a configuração da tradição que coteja o futuro e este se ancora em seu conservadorismo.

2Janus, um deus dos começos – a ele é consagrado o mês de janeiro. Representado por duas

cabeças, determina o término e prenuncia o começo. Uma cabeça está voltada para o passado e a outra para o futuro. No museu do Vaticano é possível contemplá-lo em sua opulência divina (FERREIRA & PEREIRA, p. 2012, p.111).

(3)

A tradição no campo das instituições religiosas nunca foi um problema, tendo em vista o foco de manter princípios ordenadores de ação. Ferreira e Pereira (2012), em seu artigo sobre Frei Bernardino3, comentam: “não é que a

tradição seja um problema. O ethos tradicional conserva unidades de referência valorativa que permitem agir no mundo trazendo de volta experiências que ficaram perdidas no tempo” (FERREIRA; PEREIRA, 2012, p. 106). Bernardino não propaga o fim da tradição; seu pensamento coaduna com o pensamento de Hannah Arendt (1992):

O fim da tradição não significa necessariamente que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre a mente dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que esse poder das noções e categorias cediças e puídas torna-se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva e se distancia da memória de seu início, ela pode mesmo revelar toda a sua força coercitiva somente depois de seu fim, quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela (ARENDT,1992, p. 53).

No campo da ação moral, é necessário acompanhar a mudança de valores ao configurar novos contextos. O olhar da tradição em seu aspecto conservador não permite os ares da mudança, no qual se torna fundamental estar atento ao passado, abrindo-lhe uma fresta, mas não se justificando nele.

O que Bernardino faz é estar atento aos princípios da tradição cristã para não perdê-los em sua ação pastoral, de tal maneira que sua crítica ao conservadorismo da Igreja se solidifica. Os conservadores tendem a tratar os valores morais como se fossem universais. De forma clara, o autor se posiciona em torno das propostas do Concílio Vaticano II, em que a conversão se transforma em anúncio. Antes, a conversão se utilizava do exercício da violência, seja física ou simbólica, transformando as pessoas em objetos, em seres servis e submissos. Hoje, o anúncio da palavra sagrada tem na pessoa do próximo a autonomia de suas escolhas e preferências, sejam elas políticas, sexuais, entre outras. Convoca ao exercício da liberdade, pois transforma o outro em um próximo concreto.

3 A Morada da Moral no pensamento de Frei Bernardino Leers: a pessoa. Nesse artigo, publicado

em 2012, é discutida a importância do pensamento de Frei Bernardino para a virada pragmática da moral. Os autores revisitam suas obras, em que a pessoa tem sua centralidade, e colocam o autor como crucial na reconstrução do ethos moral.

(4)

Ao dar centralidade à pessoa, Bernardino anuncia a partir de sua vivência a palavra sagrada como portadora de libertação e assume em sua prática pastoral o compromisso cristão de acolhimento do outro como próximo, abrindo uma mudança significativa no campo da Teologia Moral. Para entender o campo do dever ser de uma ética que tem como centralidade o outro como próximo, essa reflexão se ancora em duas vertentes: a morada do próximo e a configuração da diversidade sexual.

1 MORADA DA ÉTICA: a pessoa como o próximo

A reflexão ética nos convoca a pensar o outro na construção e reconstrução de sua morada, entendida como costumes, comportamentos adquiridos ao longo do tempo. Em sua configuração humana, essa morada é a liberdade. Toda construção e reconstrução do ethos tem se ancorado na reflexão sobre ela ou em sua prática, tornando-a um verdadeiro princípio de ação, caminho para a autonomia. Bernardino chama a atenção no início da década de 1980 para refletir sobre o ethos ou os ethos trazendo para a morada do ser a coextensão da cultura. Henrique de Lima Vaz4, no fim dos anos 1980 é levado

a dar uma contribuição dessa coextensão do ethos, demonstrando seu caráter de particularidade e singularidade, o que aponta para a não universalidade dos costumes. Bernardino, ao tratar esse assunto sobre a ética, afirma:

Ética é um fenômeno tão tradicional e ambíguo como um dos seus mitos mais antigos, a árvore da ciência do bem e do mal... Para os outros funciona, muitas vezes, para impor-lhes exigências e disciplina ou acusar-lhes de erros e injustiças, enquanto fornece, para a pessoa mesma, argumentos para defender sua liberdade e sua maneira de agir e escutar suas falhas e defeitos. Mas ninguém vive sem ética, sem relacionamento com um sistema de normas e costumes(LEERS, 2011, p. 109).

Nessa esfera de pensar o ethos ou os ethos, em um processo ambíguo, Bernardino trata a questão do presente e busca no passado da tradição ocidental

4 Para melhor compreensão dessa problemática, ler as obras de Henrique de Lima Vaz em seus

(5)

a homogeneidade do pensar a partir da ética helenístico-cristã que oferecia “um fundamento bastante instável e seguro à reflexão ética...” (LEERS, 2011, p. 109).

Vale lembrar que o ocidente dos tempos modernos, o avanço do progresso da ciência, o contato com outras culturas trouxeram para o campo dos valores um processo que conferiu novas abordagens para a reflexão ética e para filosofia prática. Tendo sua vinculação a uma vida religiosa, Bernardino pensou os fenômenos ético e moral para além do campo teológico. Para ele, há duas dimensões fundamentais: a pessoal e a social.

Com sua consciência moral, observando e agindo em seu lugar e seu tempo, a pessoa vive, julga o que é bom e o que é mau, justo ou injusto, direito ou errado, honesto ou seu contrário, humano ou desumano, honra ou vergonha, eventualmente experimenta a consciência de culpa pelos seus atos e omissões. Por ela e em redor dela, pela acumulação de experiências, progressos e fracassos a sociedade chega a formular de maneira mais ao menos estável, e em seu próprio contexto, normas, leis e princípios de ação que regulam, orientam, delimitam e controlam a conduta humana no convívio social (LEERS, 2011, p.110).

Com essa reflexão sobre o fenômeno moral e ético nessas duas dimensões, Bernardino define o que é ética. Para ele, ética é a reflexão sistemática e o conjunto dos resultados dessa reflexão, que tentam entender, explicar e esclarecer o fenômeno ético em sua razão de ser e seu significado, a fim de que as pessoas, as sociedades, suas normas e liberdades se tornem mais humanas (LEERS, 2011, p.110).

Com essa definição e configuração da ética, Bernardino tentou compreender e empreender o conceito de pessoa e foi estabelecendo reflexões em torno da ação moral, o que pode ser percebido em vários escritos, apontando para o passado, vivendo o presente e redesenhando o futuro. Uma de suas reflexões em torno da crise no campo da moral reflete essa virada na compreensão do comportamento humano. A ideia de crise5 instaurada no campo

da moral, no que se refere ao sistema de valores, trouxe para o pensamento de Bernardino Leers um projeto de renovação da moral religiosa e teológica. A distância do ideário de virtudes proposto para uma ação do bem não condiz com uma prática de libertação do ser humano.

5 A palavra crise nos remete ao verbo grego Krinô, que quer dizer, mudar transformar. Krisis, no

grego clássico, é o substantivo ligado ao verbo krinô, cujas três acepções principais são: a) separar, escolher, comparar; b) julgar, decidir, condenar; c) estimar, crer. Em ligação com o segundo significado, temos kritês, juiz, e kritêrion, aquilo em razão do qual se julga. Na concepção de Arendt (1992): Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. A crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos (ARENDT, 1992, p. 223 in FERREIRA, 2014, p. 24).

(6)

O apego ao ethos moral e legal apresentado pela religião transforma o outro em um ser destituído de valores e sentimentos. Mudar essa concepção inscrita no dever ser da Igreja Católica implica um processo de longa duração que se torna possível mediante uma prática de libertação do antigo, rumo à singularidade do outro em sua plenitude.

É nessa busca de se ter uma atitude numa práxis que conduza o ser humano em sua realização plena que Bernardino, em seu anúncio e prática da palavra demonstra, de forma clara, insurgente e crítica, a história da moral cristã em seus deslizes frente ao próximo. Sem se esquecer das transformações e não uniformidade no campo da moral, o autor declara que:

[...] A própria concepção homogênea de moral que, ao menos em aparência, existiu secularmente na consciência do ocidente, não continua mais a existir. Não só os costumes próprios de certas maiorias éticas ou as diferenças entre um povo e outro começaram a penetrar mais no conhecimento comum; mas principalmente há dentro da moral tradicional dominante da maioria uma clara cisão entre a conservação do passado e a criação nova e diferente de normas e mesmo de anarquismo, as quais, de forma alguma, se deixam enquadrar nos esquemas mentais secularmente conhecidos na cultura ocidental (LEERS, 2009, p. 396-397).

Essa compreensão de crise dentro de um sistema de valores religiosos, ao entender a crise como um processo de transformação e mudança, conduziu Bernardino a pensar o outro em sua singularidade, considerando o lugar hermenêutico em que ele se encontra. Tal escolha remete a um pensamento que coteja o campo da ética em sua morada filosófica.

A reflexão ética tem sua centralidade no outro. Tal centralidade implica refletir sobre a construção e reconstrução do ethos na tradição ocidental na qual o outro se universaliza. De tal maneira que a tradição ocidental é herdeira do pensamento judaico-cristão e greco-romano, que tem na tradição cristã uma centralidade do outro como próximo. Essas concepções, por mais articuladas e ideológicas que sejam, não desenvolveram ou despertaram uma sensibilidade para pensar e acolher o outro em sua diversidade.

A concepção judaico-cristã, ao se tornar hegemônica, transformou o próximo em um outro universal e abstrato que permitiu uma única concepção sobre o outro. O ethos religioso se tornou fixo e, ao se ancorar na tradição cristã,

(7)

formou “moralistas de plantão” 6, conselheiros pregadores do medo. Contra essa

concepção abstrata de outro e a favor de pensar o próximo é que Bernardino se opõe e se posiciona a favor de um sujeito concreto, no qual a pessoa com sua história e memória tem uma centralidade.

Entender essa configuração é fundamental para a ideia de renovação proposta por Bernardino, no que se refere à crítica realizada por ele para comentar a ambiguidade da ética geradora de conflitos e dilemas vivenciados pelo sujeito. Uma vez que a ética está ancorada na reflexão permanente em relação ao outro, a liberdade é o princípio ordenador da ação.

O fundamento para essa ambiguidade possui duas perspectivas: por um lado, a do campo religioso, e a outra, na esteira dos direitos humanos. Esse modo encontrado na tradição ocidental de tentar conciliar razão e crença constrói para a consciência do sujeito situações dilemáticas que podem ser melhor resolvidas quando se tem no princípio ordenador o eixo da pessoa.

Esse princípio de centrar na pessoa faz com que Bernardino apresente e mostre a homogeneidade vista no passado quando o domínio da tradição helenístico-cristã se ordenou em torno de orientações no campo metafísico e teológico, oferecendo estabilidade para a reflexão ética. No entanto, é preciso refletir de que maneira essa estabilidade levou ao exercício de uma violência religiosa que não se justifica frente a contextos diversos.

O autor chama a atenção para a contribuição de outras áreas do saber como a psicologia e a sociologia, ao apresentar povos colonizados em culturas diversificadas cuja homogeneidade do pensar ocidentalizado violou ao fundar uma “pecadofobia” para os povos do sul.7

A legitimação de uma sociedade em pecado transforma os povos colonizados em pecadores a priori, uma ação que não acolhe o outro em sua

6 Expressão utilizada por Bernardino para fazer a crítica à moral tradicional e aos especialistas

em pecados.

7 Povos do sul na abordagem de Boaventura Santos são aqueles que foram colonizados de tal

maneira que foi cunhada a expressão epistemologias do sul “que se referem à produção e validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, opressão e destruição causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado” (SANTOS, 2018, p.19).

(8)

humanidade e se apresenta de forma ambígua quando a liberdade se torna um princípio ordenador de direitos humanos. Uma contradição geradora e abissal em relação aos povos colonizados e opressora em todas as direções se objetiva. A norma moral posta pelos colonizadores religiosos impõe uma única forma de viver, estabelecendo sua imutabilidade. Tal situação é trazida por Bernardino, ao apresentar em forma de indagação a rigidez dos moralistas ao apontar como pecado situações vividas pela pessoa, refugiando-se na lei moral e no esquecimento de atrocidades vividas. O autor indaga, na década de 1970, a posição dos moralistas:

Será que problemas atuais de limitação de filhos, aborto provocado, objeção de consciência, divórcio, encontram interpretações tradicionais base suficiente para afirmar que nunca serão aceitos em função da perenidade imutável da doutrina moral até então conhecida e transferida pelas gerações passadas? (LEERS, 2009, p. 412). Essa indagação, presente na metade dos anos 1970 do século XX, apontava para uma direção no pensamento do autor que se torna crucial para compreendermos sua atualidade nos estudos de Bioética e da ética aplicada8

(considerada na organização dos Escritos Bernardinianos – realizada por Corgozinho e Pereira, como ética especial). A reflexão do autor para essa pergunta pode ser compreendida nessa ambiguidade da compreensão do ethos católico:

O respeito pela vida humana é eterno, quando se trata da problemática da eutanásia, mas classicamente não é eterno em caso de autodefesa, guerra “justa”, cruzadas, judeus, bruxas, hereges e criminosos. Liberdade é um valor central da existência do homem, mas séculos de cristianismos toleraram e até defenderam a escravidão (LEERS, 2009, p. 412).

No campo da bioética, ao pensarmos o outro em situação de vulnerabilidade e eutanásia, utilizam-se dois princípios ordenadores de ação: o da sacralidade e o da liberdade do ser humano que constituem ainda o centro de dilemas enfrentados pelos profissionais de diversas áreas. A formação

8 O termo ética aplicado presta-se a discussões teóricas que caminham em perspectivas

diferentes. Diz respeito a problemas em torno da ética normativa, na tentativa de resolução de problemas do dia a dia. A ética aplicada busca, a partir das microrrelações, estabelecer bases de justificação racional para os atos dos sujeitos. Dessa forma, é que a relação entre meios e fins se justifica, advinda de juízos fundamentados em parâmetros que possam trazer o ideal de uma vida feliz e justa. Idealmente, a proposta faz-se atrativa, no sentido de se poder contar com o sujeito comprometido com suas ações, repercutindo na humanidade no plano do dever (FERREIRA, 2010, p. 26).

(9)

religiosa e o princípio de liberdade estão presentes no agir moral que, na maior parte das vezes, não trazem a centralidade da pessoa, pois há uma inadequação “diante do humanum, por definição inacabado”.

De forma lapidar, Bernardino reflete com a pessoa numa escuta sensível, proporcionando decisões que aliam o princípio da sacralidade e da autonomia, compreendendo que a perspectiva moralista assumida na tradição ocidental julga, acusa e condena, ao invés de acolher. O cristianismo oferece princípios que transformam a pessoa em um ser humano com dignidade. Esse apelo está presente na obra de Bernardino Leers, ao salientar os equívocos da moral tradicional.

É nessa mescla de contradições da moral tradicional que Bernardino ressalta, de um lado, o agir unilateral da posição da Igreja que tem um outro como próximo/abstrato e, de outro, um agir da pessoa que compreende o outro/próximo concreto. Nessa configuração, o problema do pecado aparece de forma contraditória, e Bernardino, com um jeito próprio de colocar a questão, dentro do contexto latino, afirma:

Na esfera vaga da religiosidade cristã, há impressões dispersas de uma contradição curiosa. De um lado, está algo de “inocência” dos brancos sintetizada na frase: abaixo do Equador não há pecado. O senso tropical de amoralidade é composto de vários fatores: o quase extermínio dos índios, as crueldades desumanas contra escravos africanos, as arbitrariedades e abusos do poder, a dupla, melhor tripla moral sexual. A justiça com as próprias mãos e as roubalheiras (LEERS, 2011, p. 189).

Essas contradições no campo da ética geral apontam para um outro e um próximo abstratos na tradição ocidental colonizadora. Segundo Ferreira e Pereira (2012):

A grande virada no pensamento de Frei Bernardino Leers, em relação à tradição, é pensar a pessoa para além dos manuais e dos especialistas em pecados. O autor conduz a uma reflexão para a pessoa em sua singularidade em uma ação ética. A tradição cristã com ideário do pecado é geradora de violências que Bernardino tenta compreender e desconstruir ao eleger o próximo em um contexto de injustiças sociais e ignorâncias(FERREIRA; PEREIRA, 2012, p. 111).

O pensamento de Bernardino conduz a pensar o próximo como sujeito de suas ações. Ele utiliza a palavra sujeito para designar todos os seres humanos:

(10)

[...] Desde sua concepção, são sujeitos dependentes dos outros no contexto cultural e ambiental em que crescem, amadurecem, tornam-se mais sujeitos ativos e centros criativos e responsáveis de sua autorrealização e da realização da sociedade e da terra de que fazem parte (LEERS, 2010, p. 63).

Nessa configuração dada pelo autor, é importante destacar que não ocorre a diferenciação para crianças e adolescentes, cuja dependência está circunscrita no dever ser de um adulto. Também não faz diferenciação para a problemática do diverso na relação sujeito/outro que demanda em sua compreensão no campo político e ético a construção e a exigência de direitos novos. Essa ideia de igualdade das pessoas está na raiz de seu pensamento, cuja unidade de referência valorativa é católica e, ao mesmo tempo, faz da pessoa um ser de reflexão e ação, que vê mediante a palavra sagrada de Cristo o acolhimento do outro enquanto outro, tornando-se o próximo e por ele sendo convocado a um dever fazer. Segundo Ferreira e Pereira (2010B):

O dever fazer da ética encontra na relação a demanda do outro dentro de um quadro universal do ser pessoa e, ao mesmo tempo, trazendo para o campo da ação moral a possibilidade de uma autonomia que permite ao indivíduo fazer suas escolhas e, por outro lado, convocar filósofos e teólogos moralistas a uma reflexão que perpasse pela autonomia. Autonomia do sujeito que estabelece sua relação com o mundo, ele mesmo e o outro (FERREIRA; PEREIRA, 2010b, p. 1703).

Bernardino nos faz refletir sobre a importância do passado sem contudo ficar nele, trazendo para os teólogos moralistas as diversas demandas da atualidade que vão desde as questões ambientais, passando por questões sobre a sexualidade humana, e apontando para a importância de se fazer teologia com o povo em ares já apontados pela renovação do Vaticano II rumo à libertação. Assim seu pensamento vai ao encontro da abordagem da diversidade que, para Ferreira, Gomes e Grossi (2011):

[...] inclui a construção social, histórica e cultural das diferenças, a diversidade é muito mais do que a apologia ao diferente.Ela implica construções históricas, culturais nos contextos e nas relações de poder... Daí que o diverso, mesmo sem consciência de sua razão de ser, é evidenciado e classificado em grupos coletivos que o representam. Os coletivos nesse campo da diversidade são: mulheres, negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) entre outros que reivindicam

(11)

reconhecimento e lutam por direitos novos (FERREIRA; GOMES; GROSSI, 2011, p. 74).

Essa ideia de um outro configurado no campo religioso do próximo é, na tradição cristã, em sua vertente católica, pura abstração. Mas que próximo é esse que Bernardino Leers acolhe em seu pensamento e ação? Para ele, o próximo é aquele que sofre injustiças, o destituído de direitos, o próprio povo.

Em consonância com a ética aplicada e com os ideais do Vaticano II, ocorre um processo de adaptação dessa aplicabilidade da reflexão ética ao próximo, aliando a fé católica a uma reflexão de valores em que o próximo tem centralidade. Essa discussão leva-nos a pensar: se no dizer de Umberto Eco (1999), “quando o outro entra em cena nasce a ética”, no dizer de Bernardino, quando o outro, como próximo concreto, entra em cena, nasce a ética da libertação.

Para compreender essa ética dentro de um campo de valores de uma doutrina que se perde no tempo, torna-se necessário ter uma escuta sensível desse próximo. O Concílio Vaticano II se propôs a essa renovação no que se refere à Teologia Moral que o autor assinala. “A árvore de tantos séculos de Teologia Moral começou a ser podada, e a seiva viva da prática cristã fez crescer novos ramos e folhas no velho tronco” (PEREIRA; TOSTA, 2000, p. 171). Essa imagem vinda da área da botânica, para o autor, confere que o desenvolvimento para a área da ética cristã estabelece uma nova sensibilidade para uma reflexão sobre o próximo, uma vez que “os novos traços em desenvolvimento não são rupturas radicais com o passado, porque a Bíblia permanece inspiração fundante e as pessoas humanas continuam humanas de geração em geração” (PEREIRA; TOSTA, 2000, p. 171).

Essa reflexão de Bernardino Leers, dando centralidade para a pessoa em uma ação singular para o próximo concreto e não abstrato, faz de seu pensamento uma aproximação com o movimento dentro da ética filosófica de reconstrução do ethos, o que nos permite pensar no campo da diversidade o amor ao próximo em sua vivência da sexualidade.

(12)

2 MORADA DA SEXUALIDADE: o desejo como acolhimento

Não nos parece estranho discutir para a morada da sexualidade o desejo, uma vez que é uma categoria que atravessa o tempo filosófico e convoca a uma reflexão unida à ideia de corpo e pessoa no movimento que é peculiar de se fazer pertencer ao mundo. O desejo em suas várias definições: falta, carência, necessidade, entre outros atributos, é movimento em direção ao objeto vazio de pura insaciabilidade. Como a ética nos convoca a refletir sobre o outro em sua abstração e concretude, a morada da sexualidade demanda esse movimento.

A morada da sexualidade em Lévinas traz para o corpo o desejo do infinito, uma situação de insaciável compaixão. É pura bondade e justiça. “O desejo e a bondade supõem concretamente uma relação como presença, em face de um rosto” (NUNES, 1993, p. 30). É a morada da sexualidade em Bernardino pensar o desejo como movimento e ação em direção ao outro como próximo. Isso configura o desejo de acolhimento da pessoa.

O domínio e o controle sobre o corpo fizeram da pessoa escrava da religião que determina o dever ser para o outro. A cega obediência à Igreja exigida pela moral religiosa transformou a pessoa em um ser pecaminoso. A “pecadofobia” instaurada no povo fez com que a relação com o próximo se distanciasse. Entender, na obra de Frei Bernardino, esse distanciamento do próximo e enfrentar o emblemático tema da sexualidade levam a assumir uma margem. A margem dos destituídos de fala.

A sexualidade continua sendo um tabu tanto para a Igreja como para outras instituições sociais. Bernardino, ao tocar nesse tabu, configura sua centralidade na pessoa e percebe que “as manifestações da sexualidade se evidenciam sob diversas formas e diversos entendimentos e considerações, pois se trata de algo intrinsecamente humano e que emerge em distintos contextos, realidades e condições (FERREIRA et al. ,2018, p.106).

O corpo, ao trazer suas inscrições culturais no campo religioso cristão em seu processo formativo, transforma-o em pecado. Essa problemática sobre o corpo não é novidade na história ocidental quando a remontamos na vida dos

(13)

católicos e na vida eclesiástica. Percebe-se a força da tradição cristã que prioriza o sofrimento do corpo em detrimento do prazer. Basta remontarmos ao Papa Sirício para compreendermos muitas violências ao corpo como fonte de movimento e prazer. Ranke-Heinemann (1996) cita em seus estudos tal constatação:

No caso de Sirício, já encontramos reunidas muitas características católicas: a hostilidade ao prazer, que leva à hostilidade ao casamento, que leva ao celibato, e, em harmonia com tudo isso, a doutrina da concepção virginal e a virgindade biológica perpétua de Maria. O Papa Sirício só deixou sete cartas, sendo que quase todas sem exceção revelam seu pessimismo sexual (RANKE-HEINEMANN 1996, p.18).

O corpo, como morada do prazer e do símbolo, é indicativo de uma cultura que a religião o transforma em um conjunto simbólico. “A religião usa o corpo e exprime-se de modo corporal... O corpo é forçado a expressar um símbolo” (COMBLIN, 2005, p. 9). A religião cristã utiliza os símbolos para expressar seu poder. Se pensarmos na vida de Cristo, “Jesus não usa nenhum aparelho simbólico que teria sentido religioso: não usa roupas especiais, não se pinta, não tem tatuagens, não tem gestos hieráticos, não propõe posições corporais, nem gestos simbólicos” (COMBLIN, 2005, p. 11).

A simbolização realizada e imposta pela tradição católica expressa o simbólico como um mecanismo de adaptação do corpo a um sistema religioso. Essa simbolização afeta o corpo eclesiástico na invenção de rituais. Tal abordagem levou à constatação de que “a simbolização é tão forte que é fácil reconhecer um padre ou uma religiosa na rua mesmo que não traga nenhum distintivo. O corpo já se adaptou a suas funções simbólicas” (COMBLIN, 2005, p.11).

A questão levantada por Bernardino, nesse campo, refere-se a esse lidar com o corpo numa esperança de que o campo religioso pudesse se abrir para novas formas de afetividade dentro da própria Igreja Católica. “Não temos na Igreja Católica nenhuma cultura do corpo, senão para condenar o corpo. O corpo deve ser escondido” (PEREIRA; TOSTA, 2000, p.155). Ter um corpo liberto é um bom motivo para se ter a esperança de mudança. A afetividade controlada

(14)

pela formação moral da própria Igreja indica o domínio sobre o corpo de tal maneira que há uma dificuldade de lidar com a sexualidade.

Bernardino explicita tal dificuldade quando relata a primeira vez que um homem o beijou na Itália. “O Guardião do Convento me beijou e eu fiquei com a face vermelha como um tomate maduro. Já no outro ano, me preparei para essa cerimônia e respondi com dois beijos fantásticos na face dele” (PEREIRA; TOSTA, 2000, p. 155). Tal atitude de Bernardino frente a essa situação de constrangimento à primeira vista levou-o a pensar sobre o corpo e o modo como o tratamos no que se refere ao seu disciplinamento. Se há uma dificuldade em lidar com gestos de afetividade tão espontâneos e comuns, então pensar nos corpos que se atraem ou que têm prazer na solidão é uma situação problemática para os celibatários ou para os “Eunucos pelo Reino Deus”, lembrando a Teóloga Uta Rank, que teve sua cátedra cassada na Universidade de Heideiberg em 1988, ao publicar o livro com esse título. Ela afirma: “um problema que não tem nome: a sexualidade” (RANK-HEINEMANN,1996, p. 384).

Uma das grandes dificuldades da Igreja e das religiões do livro é com o corpo. Na década de 1950, quando Frei Bernardino chega ao Brasil, ele já considerava estranha a relação que o povo católico tinha com o corpo. “Não se movimentava, só ajoelhar, se sentar e no fim se levantar de novo para ir para casa...” (PEREIRA; TOSTA, 2000, p. 171). Pensar o corpo em seu sentido material que come, veste, bebe, trabalha, entre outras ações, parece ser uma dinâmica na ação formativa. No entanto, esse corpo carregado de sentido é simbólico.

O corpo é a pessoa e tem na tradição de Cristo um instrumento do amor. No entanto, nessa configuração, a Igreja, o amor de Cristo é em abstrato que “o corpo está encarregado de expressar a ajuda, a reconciliação, a atenção às necessidades do outro. O corpo está aí para servir. Ele está aí para agir no sentido de agir pelo bem do outro” (COMBLIN, 2005, p.19). O chamado amor universal que responde a necessidades que são universais. Essa perspectiva tem se alastrado, negando os impulsos de um outro que sofre em silêncio por amar um corpo cuja proibição já está dada como pecado.

(15)

Nos Manuais de Teologia Moral, ocorria um processo de excesso à obediência, à norma. O pecado era mortal, venial, certo, provável. “Os mandamentos eram uma selva de entradas proibidas, mais aprendizagens e pecados do que estímulo à vida cristã. O tratado sobre a vida sexual era uma lista só de pecados mortais de vida solteira e vida casada” (LEERS, 1986, p.122). Nessa constatação de Bernardino em relação à Teologia Moral, não se tinha espaço para pensar outra vida sexual fora desses mandamentos da Igreja. É uma vida que priorizava o pecador, de tal maneira que não se pensava outra forma de viver a sexualidade. Então, refletir sobre a relação dos corpos entre iguais ou no espaço da solidão como forma de se ter prazer não constava no projeto de ser Igreja. O amor por corpos iguais, ou o amor que não ousa dizer o nome, estava fora dos manuais. Essa problemática foi anunciada no pensamento de Bernardino, o que abre discussões em torno da diversidade sexual. Essa diversidade sexual estabelece, no pensamento de Frei Bernardino um conflito para com seus iguais no campo da Teologia Moral.

Antônio Moser, um moralista católico, tratou a sexualidade no que se refere ao corpo do outro como uma abstração de tal maneira que levou a denominar como um corpo espiritual mesmo tendo desejos. Ele trata-o numa configuração de assexualidade. O autor cita Jesus no toque com os corpos como um processo de cura dos corpos ou um corpo sagrado. “O corpo é mais que biologia e que nos corpos humanos estão implantadas sementes da eternidade, que lhes dão condição de serem templos de Deus e abrirem-se para perspectiva de uma ressurreição futura” (MOSER, 2005, p.156).

Não há fundamentação no campo da ética moralista. Para esse religioso, não há lugar para se pensar o prazer dos iguais. Um silêncio atravessando corpos domados e domesticados. A reflexão dele, ao que tudo indica, não vai além de pensar o prazer dentro de um ethos canônico legal.

Embora, em alguns momentos, Moser pareça avançar numa discussão teórica de cunho ético, aponta para certos textos bíblicos em São Paulo e São João ou para Manuais de Teologia Moral da década de 1950, cotejando reflexões que vão numa direção de que:

(16)

ter prazer faz parte da vida e que sua missão é torná-la mais agradável e menos penosa possível. Assim, nossa vida seria bem insípida sem o prazer de comer, o prazer de satisfazer as necessidades fisiológicas, o prazer de dormir etc. Na mesma linha encontra-se o prazer sexual, em toda a sua profundidade e amplitude. Acontece que uma coisa é o prazer como componente da vida, outra coisa é o prazer isolado, como se tivesse razão de ser em si mesmo... (MOSER, 2005, p.158).

Apesar de esse moralista católico tratar o campo do prazer sexual como um componente da vida, chama a atenção para o prazer que escraviza o próprio sujeito. No entanto, não se vê um fundamento em outros estudos marcados pelo prazer dos corpos iguais ou fundamentando-o como uma possibilidade legítima.

Bernardino se posiciona de uma forma diferente, contestadora, nesse modo de agir moral, o que lhe causou conflitos com seus colegas teólogos e com confessores, por ele considerados os guardiões da moral. Ao dar uma virada na compreensão da Teologia Moral, acopla o amor dos iguais atentando para essa diversidade. É esse amor entre os iguais que nos leva a pensar uma diversidade ancorada no prazer sexual, no prazer do encontro, no prazer da partilha, no prazer de se viver bem sem pecados.

Talvez seja o que há de mais emblemático compreender, na tradição cristã, um amor sublime, como aquele rapaz apontado no Evangelho de Marcos (14, 51-52), aqui transcrito: “Um certo jovem seguia-o envolto apenas num lençol por cima da nudez. Prenderam-no, mas ele, deixando o lençol, fugiu nu”. A nota explicativa de Frederico Lourenço (2017), nessa nova tradução da Bíblia escrita em grego, afirma que:

já muitas pessoas se perguntaram se esse jovem que foge, nu, do local onde Jesus é preso não será como que a assinatura cifrada do autor do Evangelho. O jovem (neanískos) será Marcos? Claro que a própria estranheza desta insólita ocorrência tem provocado todo o tipo de leitura simbólica (pensando uns que se trata de uma alegoria da ressurreição; outros, do batismo e por aí afora) (LOURENÇO, 2017, p. 207).

A passagem com essa nota ficaria numa dessas interpretações dos exegetas cristãos, compreendendo-a como trivial em todo o Evangelho de Marcos. No entanto, Cornelli e Chevitarese (2007) trazem uma interpretação curiosa e provocadora, o que abre novamente o tabu da sexualidade a partir do

(17)

Evangelho de Marcos nessa passagem. Para os autores, deve-se ter sempre em mente a pergunta inicial: Quem é este jovem nu que acompanha Jesus? O que ele está fazendo aqui no meio dos relatos da paixão de Nosso Senhor? Com essas perguntas, uma reflexão emblemática nos convoca:

Analisando atentamente o texto, é possível notar umas repetições e uns paralelismos significativos. Do jovem, sabe-se que ele acompanha (sunakolouthéo) Jesus. Nada mais além disso, a não ser que ele veste um lençol sobre o corpo nu. Este mesmo jovem, ameaçado, deixa o lençol (Kataleípho) para poder fugir (phéugo). (CORNELLI; CHEVITARESE, 2007, p.152).

Nesse tipo de constatação, os autores explicam o paralelismo:

Um primeiro paralelismo por contraste: acompanhar com/deixar sem. Sem o quê? O termo lençol (sindón) aparece duas vezes. É aquilo que cobre antes, e desvela depois: a nudez do jovem. O ritmo semântico do texto é binário: com/sem, cobre/revela, acompanha/foge. Duas vezes também aparece o termo nu (gymnós). A nudez do jovem parece algo decisivo para entender o texto. (CORNELLI; CHEVITARESE, 2007,p.152).

Essa correlação do jovem nu, no Evangelho de Marcos, é importante para se pensar a sexualidade do amor entre os iguais, uma vez que a utilização e a precisão dos termos gregos conduzem o leitor a interpretações que abrem possibilidades para se pensar a diversidade sexual na perspectiva religiosa. Assim, os exegetas continuam a nos provocar e a nos informar, tendo em vista a utilização do verbo para se referir ao jovem com Jesus, causando certa estranheza.

Ele não usa akolouthéo (seguir), verbo comumente aplicado aos que seguem, aos seguidores de Jesus. Isso teria colocado este jovem no mesmo nível dos demais discípulos de Jesus. Marcos opta pelo verbo sunakolouthéo, o qual constituiria uma variante composta do mesmo verbo com partícula Sun, que pode ser traduzida por junto, com. Neste sentido a palavra seria então seguir sim, mas seguir junto, seguir de perto, acompanhar. O verbo sugere uma companhia toda especial

(CORNELLI; CHEVITARESE, 2007,p.153).

Enfim, essa interpretação dos exegetas sobre essa passagem de Marcos sugere que a ideia do verbo é então de uma companhia especial, íntima, diríamos. O jovem não é um seguidor qualquer. Ele é alguém íntimo de Jesus. E os exegetas continuam com a provocação. Qual o sentido dessa companhia especial?

Não é necessário avançar nessa discussão, tendo em vista que a nudez nesse tempo estava relacionada ao batismo com essas vestes para uma união

(18)

em Cristo. Por outro lado, as versões sobre o corpo nu apontam para, no dizer desses exegetas, algo que chama a atenção aos moralistas de plantão ao se depararem com essa imagem posta no Evangelho de Marcos. “Essa imagem pode servir como uma pequena lição de história para as atuais atitudes machistas e homofóbicas dentro e fora das igrejas cristãs” (CORNELLI; CHEVITARESE, 2007, p. 162).

Pensar a diversidade sexual a partir dessa configuração íntima do corpo sagrado de Cristo com um jovem configuraria quase um problema. Um amor de iguais na vida de Jesus? Essa não é uma discussão que Bernardino enfrentou no campo hermenêutico. Ele faz referência ao amor entre os iguais na forma de amizade:

A amizade cresce, cria maior aproximação, afetividade, intimidade e acerto mútuo de interesses, ocupações e ideais. Se a sociedade impede esta evolução de um homossexual, condiciona fortemente a promiscuidade de encontros passageiros, obstruindo qualquer estabilização de relação de amizade verdadeira... Entre dois homossexuais, um amor de amizade, como diz a fórmula clássica, leva necessariamente consigo o fato de os dois serem pessoas sexuadas com desejos de satisfação sexual (LEERS, 2011, p.221).

Tal abordagem encontra-se no reconhecimento da pessoa homossexual em sua inclinação para o mesmo sexo. A esse respeito, Bernardino discute sobre a abertura de consciência no campo cultural, assinalando duas tendências: “De um lado, a que quer chegar a uma vida celibatária que marginaliza e tenta explicar tal tipo de prazer, e outra, que aceita e cultiva a amizade até em suas expressões sexuais” (LEERS, 2011, p. 221).

Essa aproximação para o campo da amizade e o reconhecimento de desejos sexuais conduziram Bernardino a uma reflexão sobre o rosto como próximo, não apontando o prazer com a “pecadofobia” peculiar da tradição. Tentar compreender o modo como se vive a sexualidade e estabelecer uma escuta sensível, acolhendo o outro como uma pessoa mostraram que o acolhimento só é possível quando se abre uma fresta na tradição religiosa e se tenta compreendê-la. Talvez esse seja um dos pontos cruciais e delicados na obra de Bernardino Leers quando chama a atenção para o acolhimento do

(19)

homossexual, tendo em vista que só é possível uma relação com esse próximo quando a relação é o ir para além do rosto.

O rosto já nos é conhecido no campo da ética pelo pensamento judeu de E. Levinas que, ao transformar a ética em uma filosofia primeira, pensa na liberdade e se volta ao próximo, uma vez que “o homem livre está voltado ao próximo”. Mas o que dizer sobre a sexualidade quando a diversidade sexual indaga a moral? Na concepção de muitos, seria silenciar. No entanto, Bernardino, ao pensar o próximo como homossexual, volta o seu pensamento na centralidade da pessoa e chama a atenção para o outro cristão.

Na história de um homossexual, a religião pode desempenhar o papel de apoio e animação ou provocar afastamento e ódio. Os maus tratos, o desespero, a zombaria sofridos nas mãos de cristãos, podem criar tanta desilusão e fortalecer tanto senso de isolamento e exílio, que a pessoa se sente rejeitada em sua Igreja e fixa em seu coração a imagem de um deus cruel que castiga e abandona no deserto social a ovelha perdida (LEERS; TRASFERETTI, 2002, p.170).

Esse chamado para a pessoa homossexual que Bernardino Leers assume no campo da ética cristã e no processo de discriminação sexual abre abordagens dentro da Igreja para se pensar o modo como vive uma pessoa homossexual em seus conflitos e dilemas em relação à família e à religião. E, ao mesmo tempo, apontar para uma situação de preconceito dentro da própria Igreja, entre seus próprios membros.

Bernardino afirma que abordar o tema da homossexualidade é abrir uma caixa de Pandora, semear vento e colher tempestade. O que Pandora guardava em sua caixa? Que tempestade se colhe ao falar do tabu da sexualidade? Ou falar do amor entre os iguais? Que males são esses na concepção de Bernardino Leers: condenação, desprezo, marginalização, insegurança, preconceitos. Mas o que restou na caixa de Pandora? Uma esperança que reverberou com “fenômenos importantes como o movimento organizado de emancipação dos gays em muitos países e novas formas de tolerância social” (LEERS, 2011, p. 323).

Bernardino aponta para o campo da diversidade sexual dentro do reconhecimento da pessoa como um próximo em sua concretude, e convoca a ter uma escuta sensível aos dramas causados pelas escolhas sexuais. Toca em

(20)

uma chaga que é a do preconceito. No que se refere à discussão do amor entre iguais em sua obra há um silêncio, como era de se esperar. O conservadorismo eclesiástico tem sua morada no ethos fixo e indagá-lo já é um começo. Bernardino o fez e, para dar continuidade a essa insurgência, é preciso enfrentar esse tabu dentro da própria instituição religiosa.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se transformar em um ícone para compreender a crise que se instaurou no campo da moral, Bernardino estabelece, no campo da palavra sagrada, a ação transformadora de uma práxis que conduz à libertação do ser humano com um olhar atento para o futuro e instaurando conflitos com valores apregoados pelos “moralistas de plantão”. Como toda crise retorna à sua origem, o autor se posiciona frente ao mundo de forma crítica e de vanguarda.

A obra de Bernardino Leers ao tratar do tema da ética e da diversidade sexual, colocou em cena o outro como próximo: o próximo em sua concretude que conduz a suas escolhas morais em sua diversidade e preferências sexuais. Ao dar centralidade na ideia de pessoa, abriu um caminho de libertação. O ir além do rosto e do próximo em suas configurações abstratas para a pessoa em sua concretude, instaura uma demanda, uma vivência em forma de acolhimento.

O acolhimento da pessoa em seu registro cristão implica saber da atuação da guardiã da palavra, a Igreja. No entanto, a crítica a essa instituição e aos moralistas se objetiva e, de forma crítica e lúcida, configurou para o autor uma “pecadofobia de um triste cristianismo” que não vê o outro como um ser em construção de si mesmo. Pensar o próximo na relação entre os iguais não configura um tipo de amor contra a natureza divina, mas um tipo de amor possível. A ideia de acolhimento e respeito às escolhas do próximo permite perceber que existe um outro, um outro marginalizado socialmente que é meu próximo e que demanda uma escuta cuidadosa e acolhedora.

Bernardino convoca a pensar os valores em mudança no campo da moral sem perder os princípios ordenadores da tradição cristã que, de forma contundente, faz sua crítica aos moralistas católicos. Ao tratar do tema da sexualidade, que ainda é um tabu para a tradição religiosa de matriz cristã,

(21)

permite pensar os corpos. Corpos livres que necessitam viver sua sexualidade e, para isso, uma ética da libertação é possível e necessária. Para tal, tem como morada a pessoa em sua ação de desejo de acolhimento e prazer.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A tradição e a época moderna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

COMBLIN, J. Cristianismo e corporeidade. Corporeidade e teologia. São Paulo: Paulinas-Soter, 2005.

CORNELLI, G.; CHEVITARESE, André L. Judaísmo, Cristianismo e Helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007.

ECO, Umberto. Em que creem os que não creem ? Rio de Janeiro: Record,1999.

FERREIRA, Amauri. C. Da construção de valores. Revista Pedagogia em Ação. Belo Horizonte: PUC Minas, v.6, n.1, 2014.

FERREIRA, Amauri C. A Morada da Ética Aplicada. Cadernos da Escola do Legislativo: Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. 12, n. 19, p. 17-35, jul./dez. 2010.

FERREIRA, Amauri C.; PEREIRA, Leonardo, L. A Morada da Moral no pensamento de Frei Bernardino Leers: a pessoa. Revista Perspectiva Teológica, Belo Horizonte: FAJE, v.44, n.122, p. 101-124, jan./abr. 2012. FERREIRA, Amauri. C; PEREIRA, Leonardo.L. Vagas para Teólogos moralistas que têm coragem: a morada da ética no pensamento de Bernardino Leers. Revista de Teologia e Cultura, São Paulo: Soter, v.6, n. 31, 2010b.

FERREIRA, Amauri, C.; GOMES, Nilma de Lino; GROSSI, Y. Morada Docente nas Trilhas da Diversidade. In: PASSOS, Mauro (org.). A Mística da Identidade Docente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.

LEERS, B & TRASFERETTI, J. Homossexuais e moral cristã. Campinas: Átomo, 2002.

LEERS, B. Uma Introdução à Ética. In: CORGOZINHO, Batistina Maria de Sousa; PEREIRA, Leonardo Lucas (org.). Escritos Bernardinianos. Belo Horizonte: O Lutador, 2011.

(22)

LEERS, B. A crise da moral tradicional. Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o cristão hoje. Belo Horizonte: O Lutador, v.39, n.340-341, p. 389-413, set./dez. 2009. . (A primeira publicação Atualização n.6, ano 1975). LOURENÇO, Frederico. Trad. da Bíblia- Novo Testamento. São Paulo, 2017. MOSER, Antônio. Corpo e sexualidade: do biológico ao virtual. In: SOCIEDADE DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIAO (org.). Corporeidade e teologia. São Paulo: Paulinas, 2005. p.142-176

NUNES, Etelvina Pires L. O Outro e o rosto. Problemas da alteridade em Emanuel Lévinas. Bragal: Faculdade de Filosofia da UCP,1993.

RANK-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos,1996. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES José M. Demodiversidade. Imaginar novas possibilidades democráticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

Referências

Documentos relacionados

Por isso, o trabalho é uma categoria fundante do ser social, que viabiliza as transformações nas relações materiais de produção e reprodução humana, tendo no

Era de conhecimento de todos e as observações etnográficas dos viajantes, nas mais diversas regiões brasileiras, demonstraram largamente os cuidados e o apreço

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Excluindo as operações de Santos, os demais terminais da Ultracargo apresentaram EBITDA de R$ 15 milhões, redução de 30% e 40% em relação ao 4T14 e ao 3T15,

O termo extrusão do núcleo pulposo aguda e não compressiva (Enpanc) é usado aqui, pois descreve as principais características da doença e ajuda a

Fita 1 Lado A - O entrevistado faz um resumo sobre o histórico da relação entre sua família e a região na qual está localizada a Fazenda Santo Inácio; diz que a Fazenda

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

EDITORIAL Em Montes Claros, segundo a secretária municipal de Saúde, já não há mais kits do exame para detectar o novo coronavírus reportagem@colunaesplanada.com.br