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Miguel Esteves Cardoso - A Causa Das Coisas

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Academic year: 2021

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A CAUSA DAS

COISAS MIGUEL

ESTEVES

CARDOSO

A CAUSA DAS COISAS CÍRCULO DE LEITORES Capa de: JORGE

COLOMBO

1 Licença editorial por cortesia de Assírio & Alvim Impresso e encadernado por Resopal

no mês de Dezembro de 1987

Número de edição: 2221 Depósito legal número 17 461/87 PREFÁCIO

É costume, quando se publicam colectâneas de artigos de jornal, dizer que se "hesitou muito", que os textos pouco valem e que "o tempo dirá" se há ou não desculpa para o que se fez. Tecem-se depois elevadas considerações sobre a relação entre o Efémero e o Eterno, entre o Jornalismo e a Literatura e outras coisas igualmente despropositadas para prefácios. Estas manobras são, o mais das vezes, defesas modestas, destinadas a precaver o autor contra as consequências críticas (e comerciais) da iniciativa. Parece-me óbvio que, quem publica um livro acha que vale a pena publicá-lo e é por isso que me dispenso de todas as humilhações rituais. Dentre mais de duzentos artigos escritos para o Expresso, escolhi e revi cerca de cem, porque acho que ainda se aguentam mais uns tempos.

Dito isto, é necessário recordar que os artigos agora reunidos foram redigidos para serem lidos um de cada vez, com descanso intervalar de seis dias. Lê-los de corrida é, sinceramente, insuportável. Não é por modéstia, mas para me defender do cansaço alheio, que recomendo que sejam lidos levemente.

E claro, também, que os propósitos iniciais de uma coluna nunca correspondem ao destino que acaba por ter. Quer-se ser sério e há pessoas que só querem rir.

Quer-se escrever sobre causas e há pessoas que só querem ler sobre coisas. É por isso que nada se deve dizer sobre intenções a liberdade da leitura é sagrada, mas a da escrita também. Basta-me dizer que muitas vezes escrevi só por escrever, inventando coisas que tapassem os buracos que abrem as semanas nos espaços "regulares" de um jornal. com uma ou outra excepção, porém, os artigos que agora publico foram escritos porque eu sinceramente achei que tinha qualquer coisa para dizer.

Finalmente, a natureza de uma coluna semanal leva o autor

a contar com a colaboração de muitas pessoas. Â autoria dilui-se assim entre todos aqueles que me ajudaram a escrever A Causa das Coisas. Não é um agradecimento vão. No Expresso e fora do Expresso

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recebi mais do que alguma vez poderei retribuir. É por serem tantas as pessoas a quem deveria dedicar este livroe por ser pretensioso dedicá-lo a todos que eu não o dedico a ninguém. . MIGUEL ESTEVES

CARDOSO CAUSAS ALCATIFAS

Um dos grandes equívocos da segunda metade do século XX foi, sem dúvida alguma, a alcatifa.

As alcatifas são, sinteticamente, expansões lanudas de grande monotonia, e vulgaridade. Privam os pés de contactar directamente com a dura realidade do soalho, habituando o Homem a uma falsa impressão de onde pisa, criando nele o culto fútil e amaricado do "fofinho". Fomentam toda a espécie de mitos irrisórios ("a cinza faz bem às alcatifas", "uma alcatifa é uma forma de poupar

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energia", etc.) e conduzem a certas práticas que nos hão-de envergonhar diante das gerações vindouras. (Você, caro leitor, a olhar compenetrado para o chão e a dizer sentenciosamente "Esta alcatifa está a precisar de um champooing"...*)

"Champooing"! Como todos os gerúndios anglo-saxónicos, cobre-se de ridículo na boca de um português. Outro gerúndio semelhantemente inane é aquele do brushing que se pronuncia em salões de coiffure como se se tratasse de um termo altamente técnico, aprendido durante um seminário restrito com Dusty Fleming: "Vamos avançar com um bocado de brushing, está bem?" (Tradução: "Vamos avançar com um bocado de escovando, está bem?") E a analogia capilar não acaba aqui.

As alcatifas, uma vez que começam a ratar e a agonizar, transformam qualquer mulher ou homem bem pensante num histérico estagiário de cabeleireiro. Existem até "pentes" de alcatifa, para catar migalhas de bolo, desembaraçar pêlos difíceis, fazer o risco ao meio, e, de um modo geral, uma escusadíssima figura de parvo. Tal como as pessoas, tendem para a calvície precoce e trazem consigo panóplias de produtos especiais, parecidos com Pantènes, destinados a aliviar o sofrimento do bicho e a angústia nervosa do senhor.

As alcatifas são quase sempre "ideias" de que as pessoas, mais tarde, amargamente se arrependem. Ao contrário do que acontece com os tapetes, não existe qualquer mercado interessante de alcatifas em segunda mão.

Hoje, felizmente, tem-se vindo a esboçar um movimento de reacção ao dogma da alcatifa. O regresso à clareza do tapete e do chão encerado é um dos mais encorajadores sinais de saúde mental dos últimos tempos. Pouco a pouco, as salas portuguesas irão deixando de parecer quartos de hotel. Têm-se

arrancado do soalho já bastantes daquelas peles carcomidas e desbotadas que "absorvem as gorduras e os derrames" (entre outras práticas inigiénicas e discutíveis) com uma violência e um vigor que dão gosto ver. Posto o chão a claro, como Deus entendeu, que havia de ser, abre-se uma lata de Encerite,

arregaçam-se as calças ou as saias, e vai de aplicar uma boa camada de cera sobre a madeira sequiosa e honesta que grita porosamente, desesperadamente, por ela.

Desaparece imediatamente aquele cheiro um pouco podre de sala de conferências às sete da manhã, causa de tantas alergias e ligeiras náuseas inexplicáveis da nossa contemporaneidade. com grande espanto, aprende-se que um soalho encerado e não a "milagrosa" alcatifex é ainda a melhor defesa contra as nódoas e a maldade inata das crianças que gostam de empurrar plasticina e esparguete para dentro das fibras.

Põe-se-lhe um tapete em cima. Um tapete é uma coisa que se pode enrolar e pendurar e bater e vender e transportar. Tem sempre um formato sensato. Tem sempre a sua personalidade. Envelhece com elegância. Daqui a quinhentos anos, quantas alcatifas (mesmo persas) se hão-de ver nos antiquários especializados no século XX?

Por baixo da cada alcatifa convençamo-nos há um soalho sufocado que, com a maior das dignidades, grunhe e geme, implorando pela sua liberdade. A madeira não se fez para assim tão

rudemente se tapar e asfixiar. Consente quando muito a dança deslizante de um tapete, porque consegue respirar cutaneamente, pelos cantos da sala. Que diferente é esta terna interacção da ganância

dominadora das alcatifas, causadoras de histeria nas donas de casa se acaso fica "um bocadinho de fora", no "cantinho", onde estão os "preguinhos" que "até

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nem ficam mal, porque dão com a cor da alcatifa, não achas querido?"

A reacção contra as alcatifas tem sido acompanhada por uma maior disposição, de parte da juventude, em não estar com problemas e complexos cada vez que urge um indivíduo ajoelhar-se com um pano na mão e pôr-se a dar cera como se não houvesse Amanhã. Aprendem o que este rito, de comunhão com o chão que se pisa, tem de telúrico e de animicamente satisfatório. Encostam o ouvido ao soalho encerado, só pelo prazer de ouvi-lo zunir.

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As alcatifas têm os dias contados nos lares sérios de Portugal. Ainda estaremos certamente todos vivos no dia, não muito distante, em que a mera menção da palavra "alcatifa" será suficiente para despoletar um rude alarde de troça e gargalhada. Estamos a sair da longa noite fascista do regime do matte, das

fotografias baças, dos filmes com demasiado grão, dos sapatos inengraxáveis e dos móveis sem verniz. O brilho e a cintilância ameaçam regressar. A Encerite aí está para os saudar.

ALMANAQUE

Não há em Portugal mais de dez poetas, dentre os dez milhões semanalmente recenseados e encorajados, capazes de escrever coisas tão bonitas como aquelas que se lêem no Verdadeiro Almanaque Borda D'Agua. Em Dezembro, por exemplo, encontra-se este parágrafo:

"Voam em direcção ao Sul a galinhola, o pato-real e o pato-bravo. Terminam as migrações. A natureza adormece. Dezembro recebe e não restitui. Em Santa Luzia o dia cresce tão depressa como o salto de uma pulga."

O estilo Borda d'Agua nada perdia em inaugurar uma nova] escola literária, no jeito retro-neo-realista que hoje prevalece, Se por vezes se cai no prosaico, como é o caso da peça 11.° Mês,

não deixa de se sugerir a secura descritiva de um poeta como

António Osório. Atente-se: "Passam as cotovias, vão-se embora os palmípedes, a narceja, o marugem e o pato-real. O morcego adormece. Desfolham-se a bétula, o pilriteiro, o amieiro, o freixo e\ o plátano. No fim de Novembro as árvores despem-se. Em Santa

Catarina todas as árvores criam raízes."

Na acumulação estonteante de sinais, na obsessão com as grandes viagens e ainda na sistemática insistência no adormecimento, existe aqui, por assim dizer, uma sensibilidade tranquilamente transmigrante, senão mesmo transformadora. Às vezes as referências podem ser elípticas e obscuras ("Vacina gado", ou "Enxerta de escudo citrinas"), outras vezes de uma comovente transparência ("bom tempo", "Lua cheia às 12 horas e 12 minutos"). Contudo, falam sempre de um tempo incerto, o que está evidentemente certo.

A obsessão central é a dos patos. Em quase todos os textos do Borda d'Agua um ou outro pato acaba sempre por insinuar-se. Por alguma razão se chega ao ponto de citar a data do

nasci-12 !

mento de Dr. Bulhão Pato. Em "Março", o primeiro período induz-nos propositadamente em erro, levando-nos para contemplações diversas, só para levando-nos remeter mais tarde, com certa frieza aliás, aos patos. Veja-se: "Desperta o morcego e também a rã. Vão para o Norte o pisco (e, quando estamos menos à

espera...), o pato-marreco, a gralha e o tordo-cantador. Acasalam-se as perdizes. (...) Pó de Março, pó de ouro."

Os movimentos são, epicamente, de despedida e de regresso. Às vezes regressam seres de cuja partida nunca nos tínhamos dado conta. É o caso de "Setembro", onde se nos diz, enigmaticamente "Volta o carricinho", sem que tenhamos tido consciência de ele se ter ido embora. Regra geral, isto sucede nos textos de carácter mais místico. Não fosse em Setembro que uma única vírgula separa o emblema erótico ("acasalam-se as galinholas") do emblema escatológico ("morrem os insectos") para ambos se resolverem na violência lírica do período final: "Em

S. Miguel o calor sobe ao céu."

Em contrapartida, há quem parta sem mais tarde regressar. É o caso, não pouco trágico, do verdelhão-amarelo, da abetarda, da toutinegra-de-cauda-russa, do papa-moscas e do tentilhão. Em Outubro eles "vão em direcção ao Sul" e depois mais não se ouve falar deles, nunca.

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No texto "Fevereiro" assinala-se a frágil marginalidade daqueles seres menos ortodoxos que, em vez de seguirem os caminhos de massas, invertem-lhes arriscadamente o sentido. É o que acontece com uma cotovia-fulu, com um litorne, com um tordo-branco, até mesmo com uma cerceia, enfim. Todos estes "passam do Sul ao Norte". Isto numa altura em que, não menos significativamente, "caem as pontas aos veados e aparecem as primeiras borboletas". Como resistir a ler, nas entrelinhas deste passo do Borda d'Água, um irónico "Está tudo dito...""?

Só numa instância encontramos no Borda d'Agua um obscurantismo acintoso, sintomaticamente

reforçada pela substituição perversa do habitual pato pela (inesperada) galinhola. E no texto "Maio: Passa a sachola, volta a galinhola, vêm os besouros. Floresce o citiso, o pilriteiro, o trevo-dos-prados, a giesteira e a grande margarida. Orvalho de Maio vale carro de rei. Favas semeadas com ladainhas ficam

fraquinhas."

Não é simples desvendar a intenção destes trechos. Porque é 13

que alguém há-de querer semear favas com ladainhas? Quanto! vale, hoje em dia, um carro de rei? Porquê a insistência na vinda repentina dos besouros? Alguns críticos têm apontado a

necessidade de ler "Maio" na presença daquela célebre frase do texto seguinte, "Junho", para se poder esclarecer este problema. Os leitores estarão decerto lembrados:"Se chove em Santo Médard, chove quarenta dias mais tarde, a não ser que Santo Barnabé corrija o que está estragado." Pessoalmente, achamos que só] confunde mais as coisas.

A força enigmática do Borda d'Água é tradicionalmente contrariada pela mensagem do "Velhote da Cartola" que aparecei na última página. Para 1986, no dominante espírito Figueira dal Foz, preparam-se alguns sábios conselhos em matéria de economia: "Atenção para não exportarmos o melhor que tivermos ei produzirmos, para em troca nos limitarmos a receber (ou importar) artigos de inferior qualidade... Não seríamos nós, decerto, os principais beneficiários."

"Não seríamos nós, decerto, os principais beneficiários!" É ou não é admirável a contenção desta subtilíssima ironia? Falta,] contudo, seguir o raciocínio até às últimas consequências. Continuemos: "Isto da exportação tem muito que se lhe diga e todo o cuidado é pouco. Para nós o melhor que há no nosso país é o elemento feminino..."

Estão a ver o que dizia? Claro que, logo de seguida, se acrescenta "(o elemento feminino) não é

propriamente um artigo para exportar, mas, sim, um regalo para a vista de nacionais e estrangeiros... Que lindas mulheres tem Portugal!"

O último parágrafo é um clássico: "Sim, é preciso muita paciência. Mas sejamos optimistas. O futuro está na juventude. (...)\ Confiamos neles, na sua inteligência, na sua boa vontade, trabalhismo, empenho, diligência, aplicação e ESPERANÇA. Vamos melhorar na Saúde, no Trabalho e na Educação. Está bem ?" Está. No seu equilíbrio pós-moderno, entre a aventura poética dos "12 meses" e o diligente trabalhismo dos anos 80, o Borda d'Água é um marco assinalável de todos os registos mais! espantosos e notáveis da nossa contemporaneidade. Nem tão-pouco faltam indicações rigorosas acerca dos homens e mulheres nascidos nos vários meses. As mulheres mais interessantes! serão as de Março: "As mulheres nascidas em Março são lindas,

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têm a pele morena e formas arredondadas: são curiosas, glutonas; gostam dos prazeres e homenagens. O seu cérebro trabalha muito, tem tendência para exagerar as coisas. São caprichosas, mas não são desagradáveis." O homens mais recomendados são os de Maio: "Inteligentes e inventivos, amam as artes e a literatura. Ardentes e presunçosos, mas prudentes, sabem levar a água ao seu moinho com uma certa habilidade."

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Enfim, um Feliz 1986! E não nos esqueçamos que, já para o mês que vem "Indo para Norte passam os bicos-cruzados e os estorninhos. Floresce a maónia e o heléboro negro. Em Santo António os dias crescem a passo de monge. Dia de Santo Mauro gelado, metade do Inverno está passado". ALMOÇC

Em Portugal o caso mais sério e a cerimónia mais solene! é o almoço. Serão muito poucos os países em que se almoçai tão bem e tão compenetradamente como cá. É à mesa, e na] cozinha, que os Portugueses realmente empreendem o épico da raça. Na preparação e no despacho da comida,

trabalham mais depressa e bem do que em qualquer outro ramo de actividade. Na História Portuguesa, os grandes acontecimentos assinalam-se através do sufixo

-ada: a Abrilada, a Setembrada, e a mais empolgante de todas, a Jantarada. Tal como qualquer! cruzada, ela serve para absorver a agressividade, a sexualidade! e a afectividade. A agressividade com que dantes se partia para cascar em mouros e castelhanos é hoje substituída pela violên- cia com que os Portugueses se batem com umas lulas ou atacam uma chanfana de cabrito. Ao conseguir empachar uma travessa! grotescamente cheia, ou dar cabo de um panelão inteiro, alcança-se entre nós uma sensação cristã de vitória.

Em matéria de afectividade, os Portugueses guardam aos víveres uma ternura igual àquela que outros povos destinam ao! Bambi. O português não chora tanto ao ver morrer a mãe do! Bambi como choraria se ela estivesse estufada em vinho tinto! com batatinhas a murro. Por muito estranho que pareça, ai utilização dos diminutivos não goza de qualquer correspondência com as dimensões do prato.

Assim, "um belo peixinho" não é uma sardinha é pelo menos um tamboril com três quilos. Um "arrozinho" deixa de ser um "mero arroz" só quando ai capacidade da panela, e o corpo de baile de lagostins, ultrapassa a lotação média do São Luís. A própria etimologia de "Almoço" indica a raiz deste paradoxo. Segundo José Pedro Machado, deriva de admordiu, significando "bocado". Daí talvez,! também, a mania portuguesa de usar as palavras "bocado" e]

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"bocadinho" para dar a ideia de "granel", como é o caso na frase: "Ó Dona Alzira, ponha também um bocadinho de brócolos." Dizer que os Portugueses, quando almoçam, comem somente "um bocado" não é muito diferente de quem descreve a Etiópia como um país a sofrer de larica.

Outra autoridade, o Dr. António Gerardo da Cunha, dá a origem verbal admordere significando "começar a morder". E depois de começar a morder... vem o resto. Na sua forma mais pura, a sequência alimentícia portuguesa é altamente complexa, confundindo tanto os estrangeiros como os accionistas da Diese. Começa com um aperitivo, para aguçar um dente que já está perfeitamente vampiresco desde o meio-dia. O aperitivo serve para camuflar a lendária bulimia nacional: como um veterinário que se desse ao cuidado de servir um martini a um rafeiro já escanzelado da fome mais canina que há. Depois do aperitivo, como "a comidinha demora", pedem-se "umas coisinhas para petiscar". Os Portugueses não petiscam em vez de almoçar: petiscam porque vão almoçar. Chegam então aquelas partes do porco que servem para a locomoção, para o olfacto e para a audição, todas elas recicladas num molhinho com pesados pêsames de alho e de coentrada. Juntamente com uns queijinhos para "fazer boca", e umas azeitoninhas para fazer companhia, servem para "ir comendo". "Ir comendo", como já sabemos, não conta como comer. A quantidade colossal de pão que se consome ao mesmo tempo as chamadas "buchas" também não conta, porque se destina a um fim essencialmente humanitário, que é "fazer a cama ao vinho". A função da bucha é clara. Come-se uma bucha para fazer a cama ao vinho. Fica-se embuchado. Para desembuchar, bebem-se uns copos. Depois como se beberam muitos copos, para não ficar embriagado, comem-se mais umas lecas para "ensopar" aquele vinho todo. E fica-se empastelado, criando novamente a imperiosa necessidade do vinho. É o que se chama entre nós um círculo delicioso.

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Tecnicamente, os petiscos terminam quando principia a refeição propriamente dita (o "conduto"). Relembrando as lendárias palavras do português a quem perguntaram se era capaz de comer um cabrito inteiro "só se for com muito pão".

sempre. Seja com o "pratinho" (equivalente a uma dose indi- 17

vidual CEE), seja o "prato" (2 CEE), seja a "meia dose"! (3 CEE), seja a "dose" (o suficiente para alimentar, durante um fim-de-semana, a população inteira do Liechenstein), é sempre com muito pão. Em português, um "bom garfo" não é um garfo comprado no] Braz & Braz, nem um "bom copo" se refere à Atlantis Cristal, Quem se alaparda à mesa é um herói, nesta terra onde a gordura é formosura e um gordo não é gordo, mas "forte". A estai força contrapõe-se a "fraqueza" de quem não come e toda ai série de nomes que se chamam a quem é frugal na paparoca:! debiqueiro, furão, lambisqueiro, languinhento, penisqueiro. Aqui, os que não respeitam os compromissos rácicos de demolição agro-pecuária, são vistos como estranhos são "esquisitos". Quem come pouco "passa por baixo da mesa" ou sofre de um vergonhoso tédio denominado "fastio". Voltando à mesa, onde os convivas já entoiriram até aos colarinhos, não se julgue que o almoço

terminou. Impõe-se agora precisamente uma sopinha (talvez de grão, certamente com massa). Para quê? poder-se-á perguntar. Para "assentar". Os Portugueses nunca comem ou bebem porque são hiperfagicamente gulosos é sempre para qualquer coisa. É como se estivessem abnegadamente a servir os interesses! e preceitos de uma antiquíssima e lusíssima "alimentação racional" assim chamada porque recomenda que se coma à razãom de dez carcaças de pão por cada carcaça animal. As batatas e ai salada são, evidentemente, "à parte".

Depois dos petiscos para abrir o apetite, do conduto paca dar! força, do pão para fazer a cama, do arrozinho para ensopar e dal sopa para assentar, vem a sobremesa para "tirar o gosto dal sopa", a fruta para "desenjoar" e o bagacinho para "fazer a digestão". A comida em Portugal só não é para brincar. Para os Franceses, é uma arte. Para nós é canja.

E uma canjinha não ia agora? Então isso é coisa que se pergunte? AMOR

"Dyz m'a mim meu coraçon porque m'a isto nam calo, poys vês nam chegua payxom deste cuydado que falo." CANCIONEIRO DE RESENDE, TOMO

Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal.

Basta pensar no incómodo fonético de dizer "Eu amo-o" ou "Eu amo-a". Em Portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras: " love you" ou "Je t'aime". As perguntas "Amas-me?" ou "Será que me amas?" estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes "Gostas mesmo de mim?", o que também não é a mesma coisa.

O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de "aquele que ama, ou é amado". Diz-se que não sei quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca-vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbrio galináceo das reuniões de tupperwares e de costura.

Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático,

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pior ainda, "o meu amado" arrisca-se a não chegar ao fim da frase, tal o intenso e genuíno gáudio das massas auditoras em alvoroço. Amável nunca quer dizer "capaz de ser amado", e, para cúmulo, utiliza-se quautiliza-se utiliza-sempre no pretérito ("Você fin muito amável em ter-me convidado para a inauguração da sua Croissanterie"). Finalmente um amor é constantemente aviltado na linguagem coloquial, podendo dizer-se indistintamente de escovas de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigran-19

tes. (O que está a acontecer com o adjectivo querido constitui igualmente, uma das grandes tragédias da nossa idade.)

Talvez a prática mais lastimavelmente absurda, muito usada! na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os Portugueses, raça danada para os eufemismós, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. ] Quando as apresentam a terceiros, nunca dizem "Esta é a Suzy, a minha namorada"

dizem sempre "Esta é uma amiga minhaÀ a Suzy", transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, tam- bem assim, como se não lhes bastasse dar cabo do Amor, vão] contribuindo para o ajavardamento semântico da Amizade.

Isto tudo em público claro porque, em particular, ai sós, funciona a síndrome plurissecular do "só-nós-dois-é-que-sabemos" e os Portugueses tornam-se pinga- amores ao ponto] de se lhes aconselhar vivamente a utilização de coleiras de esponja muito grossa. Nisto, o sexo forte é bastante mais vira-casacas que o fraco. Em público, são as amigas, o Guincho, osl drinques e as apreciações estritamente boçais do sexo oposto, Dêem-lhes, porém, cinco minutos a sós com a suposta "amiga"! e depressa verão todos os índices aceitáveis de pieguice,

chora-,] minguice e love-and-peace babosa e radicalmente ultrapassados;] ao ponto de fazer confundir a Condessa de Segur com Joseph | Conrad. As infelizes "amigas" reprimem com louvável estoi-| cismo o enjoo, e aconselham-lhes a moderação. As mais estúpi- das não compreendem e vão depois dizer às amigas que os na- morados têm feitios muito complexos, porque quando "estão

acompanhados, são uns brutos do bilhar grande, e quando es- tão sozinhos transformam-se em donzelas delico-doces, inex- plicavelmente ainda mais nauseabundas do que elas.

A retracção épica a que os Portugueses se forçam no uso] próprio das palavras do amor, quando o contexto é minima- mente público, parece atirá-los ilogicamente, para uma confrangedora catarse de lamechices cada vez que se encontram sós com quem amam. Dizer "Eu amo-te" é dizer algo que se faz. Dizer "Eu tenho uma grande paixão por ti" é bastante menos do que isso é apenas algo que se tem, mais exterior e provisório. Os Portugueses, aliás, sempre preferiram a passividade fácil do "ter" à actividade, bastante mais trabalhosa, do "fazer".

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A confusão do amar com o gostar, do amor com a paixão, e do afecto, tornam muito difícil a condição do amante em Portugal. Impõe-se rapidamente o esclarecimento de todos estes imbróglios. Que bom que seria poder dizer "Estou apaixonado por ela, mas não a amo", ou "Já não gosto de ti, embora continue apaixonado" ou "Apresento-te a minha namorada", ou "Ele é tão amável que não se consegue deixar de amá-lo". Estas distinções fazem parte dos divertimentos sérios das outras culturas e, para podermos divertirmo-nos e fazê-las também, é urgente repor o verbo "amar" em circulação, deixarmo-nos de tretas, e assim aliviar dramaticamente o peso oneroso que hoje recai sobre a desgraçada e malfadada paixão. ANTENA!

Se um marciano aterrasse amanhã em Portugal e se pusesse a] ver televisão, é provável que a sua inteligência superior o ajudasse a compreender tudo, à excepção de uma única coisa. Essa] única coisa é de facto uma coisa única neste planeta e conhece-! -se entre nós como o "direito de antena".

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direito de um marciano ter antenas na cabeça. Logo a seguir ao telejornal, aparece um indicativo musical interplanetário e, sem mais nem menos, surge-nos em casal um indivíduo sobremaneira exaltado que aproveita os seis se-] gundos que a Lei Barra-Não-Sei-Quantos lhe concede para nos] dizer "Camarada Ajudante de Cabeleireiro da Região Sul! Preásamos do teu apoio! Juntos conseguiremos! diz 'Não' aos champôsl anticaspa de aplicação instantânea". Depois disto, volta a apare-] cer o mesmo indicativo e aquela alma exortatória desaparece] das nossas vidas (oxalá) para sempre. Não há, porém, qualquer] azar, porque logo a seguir é a vez de um porta-voz do sindicato ] de trabalhadores da indústria das conservas de atum (secção] encarregada de juntar as chaves de abertura às ditas latas) que nos vem novamente incitar, de faces ruborecidas e voz prestes a ] rachar, a "Votar na Lista B, para um futuro melhor" ou a "com- \ parecer à Assembleia Geral do dia 17!" E os que podem votam e ] comparecem quanto podem. ]

São sempre breves estes momentos de glória. Constituem, ] mesmo assim, uma violência para todos aqueles cidadãos que, ] por questões de Natureza ou de Destino, não são pequenos ] retalhistas de retrosaria em Leiria ou soldadores desemprega- ] dos actualmente a trabalhar no ramo clandestino de eléctrodo- ] mestiços. ]

Calha a vez a todos. Daqui a uns quarenta anos, serão poucos ] 22

os Portugueses que não tenham tido oportunidade de se apresentarem à população com umas poucas palavras bem escolhidas, de cuja importância ninguém ousará pensar ser menos que absolutamente transcendente. O marciano, esse, coitado, continua na mesma.

O conceito profundo é democrático, mas mesquinho. Se decidirmos que as mulheres- a-dias ou os empregados de balcão de uma dada região têm o direito inalienável de se dirigirem aos colegas e

compatriotas no horário nobre da televisão, porque é que só se lhes concedem três ou quatro segundos de emissão? Não seria mais generoso (e mais divertido para os pobres espectadores) dar-lhes uma hora inteira para organizar um excelente espectáculo de variedades ou alguns momentos bem seleccionados do melhor teatro amador? Porque é que a RTP, com todos os meios de que dispõe, não se encarrega de encenar estas pequenas mensagens, de modo a torná-las mais atraentes ao público? Aquelas miseráveis cortinas que põem atrás do desgraçado orador serão o melhor que por lá se arranja?

Os partidos políticos, ao menos, sempre se esforçam por oferecer um programa mais variado e

interessante, geralmente dedicado ao tema "A Verdade Que Esconde a RTP". Há uma banda sonora. Há umas imagens de bairros da lata ou de hotéis. Há caras conhecidas que nos falam ao coração,

calmamente, recordando-nos as duras realidades e as óbvias soluções. Às vezes há bandeirinhas, jovens serenos, em diálogo permanente com a Terceira Idade, entrevistas cândidas em que os dirigentes respondem aos anseios da população, piqueniques, ou momentos inesquecíveis de uma qualquer importante manifestação.

Nada disto acontece com por exemplo os pequenos proprietários de lagares da Margem Sul, que se limitam ao histérico laconismo de um "Colega! Os interesses da classe estão em jogo! Vota Não à integração europeia da azeitona grega!" e desaparecem sem deixar mais que uma mensagem subliminal de incompreensível ansiedade profissional.

O marciano também associa o direito de antena às listas de cinemas e teatros que surgem diariamente nos écrans com cuidado aspecto gráfico e valioso pormenor.

Verifica que um dos filmes que mais aparecem em reposições é o popular Encerrado 23

para Obras, e toma nota que no Cine-Almada oferece-se mail uma oportunidade de rever Rabos

Escaldantes em Delírio. Sabá que em mais nenhum país do mundo a televisão é democrática ao ponto de informar os espectadores de que há melhores mai neiras de passar um bom serão. Se acaso for a um desses tine] mas ou

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teatros, é capaz de se surpreender quando repara que] antes de começar o filme, não aparece nenhum útil diapositivj com a programação daquela noite da rádio- televisão.

O direito de antena, finalmente, estende-se à própria televil são. E aí que o marciano, já tendo desistido

de compreender que se passa no maior meio de comunicação

de Portugal, voltl agradecidamente a Marte, e ao mundo que se deixa mais facill mente perceber. ARRANJAR

Em Portugal, como todos os Português sabem, é muito raro conseguir seja o que for. Em contrapartida, tudo se arranja. O arranjar é hoje a versão portuguesa do conseguir. É verdade que "Quem espera, sempre alcança", mas, como ninguém está para esperar, em vez de alcançar o que se quer, arranja-se outra coisa qualquer.

No fundo, é talvez, por não se terem as coisas que elas se têm de arranjar. Não se tem tempo, mas arranja-se. Já não há bilhetes, mas conhece-se alguém que os arranja. Ninguém tem dinheiro, mas vai-se arranjando para o tabaco.

O próprio sistema, político, económico, cultural, social estimula uma atitude para com o cidadão que se traduz pela expressão "arranjem-se como puderem". E o cidadão lá se vai arranjando. O mais das vezes, este apelo constante ao improviso, à cunha e ao desenrascanço leva aos piores resultados. A continuar assim, o país está bem arranjado.

Os cartazes que anunciavam a adesão à CEE não foram bem recebidos pela população, precisamente por terem empregado o verbo épico, mas arcaico, Conseguimos. Se tivessem dito antes,

portuguesmente, Arranjámos!, a reacção teria sido muito mais anuente.

Do mesmo modo, erram os políticos que se empenham no processo de arranjar um Presidente da República quando dizem publicamente que "obtiveram" 46 ou 26 por cento. Seria muito mais natural dizerem "Olhem! Arranjámos 46 por cento!" ou "Pronto, lá arranjámos os votos de que precisávamos para pasw à segunda volta!"

Os cidadãos já têm sérias dificuldades em arranjar convicção suficiente para acreditar que os partidos sejam capazes de arranjar o mínimo indispensável (isto só para arranjar coragem

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para votar neles). Por conseguinte, tudo o que ultrapasse essa mesquinha meta, está condenado ao insucesso. Mas ouvir dizea que se hão-de arranjar empregos e casas, ainda vai que não vaij O cidadão pergunta ao candidato, aproveitando-se abusiva- mente do facto deste desgraçado ter de se passear por entre o] povo nos mercados e nas feiras: "Ouça lá ó doutor Fulano, m gente não tem casa, não tempão..." E o candidato responde, emj torn sussurrante e só-nós-dois-é-que- sabemos: "Deixe lá minhat senhora, que isso há-de se arranjar, isso há-de se arranjar..." Já quase ninguém diz, em privado, que se vai "conseguir" ou| "obter" ou "alcançar" ou "garantir". Já não colhe. Nos países! estrangeiros ainda se acredita que se criem postos de trabalho.1 Em Portugal, arranjam-se empregos. Noutros países, é

possívelj que se desenvolva a construção de habitações sociais. Aqui arranjam-se casas. Ou melhor: vê-se vê-se vê-se arranja, na fravê-se clássica "Vê lá vê-se me arranjas um convite; um namorado; um quilo de gambás; uma garrafinha de uísque; o gira-discos que está avariado^ etcetera, etcetera..." <

Em vez de fazer reparações propriamente ditas, arranjam-sa as coisas até avariarem passado pouco tempo e precisarem outra vez de arranjo. Isto porque, em vez de se comprarem as coisas nas lojas autorizadas, arranjam-se mais baratas e frequentemente menos fidedignas.

Também em vez de arrumar e organizar as coisas que preci^ sam de ser devidamente arrumadas e organizadas, dá-se-lhes, simplesmente, "um arranjo". Depois, são

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mais difíceis de encontrar porque "não estão arranjadas como eu queria". Até nas relações humanas, o

círculo vicioso se verifica: em vez de viver plenamente as

paixões, prefere-se ter "um arranjinho". Os arranjinhos são paixõezecas clandestinas, arranjadas para não fazer ondas.

Até as ideias se arranjam, em vez de se terem e de se pensarem é como se os Portugueses, em vez de se darem ao tra*baIho de usar a cabeça, se limitassem a arranjar o cabelo.

A vitamina A portuguesa, cura temporária para todos os males, é o Arranjismo Nacional. Arranja-se uma receita para arranjar o remédio para quem arranjou uma constipação. Ou então pede-se simplesmente a alguém "Arranja-me uma aspirina?

Olhe e já agora, arranjava-me também um copo de água?" 26

Embora não haja verbo mais saliente em Portugal, mais mulúvalente e conveniente, existe um bom argumento para disputar essa nacionalidade. O verbo Arranjar, vitamina A de todas as conversas, pedidos de cunhas e preguiças linguísticas, é talvez o galicismo mais bem sucedido e implantado dos nossos dias. No sentido que lhe dão os Franceses ("arranger", de "rang"} é tipicamente pouco usado, mas é abusado em todos os outros sentidos que os Franceses nunca lhe deram. O Dicionário de Vieira garante-nos, também, que os clássicos nunca usaram a palavra.

De qualquer modo, uma boa maneira de se distinguir entre "arranjar" e "conseguir" qualquer coisa, é ver até que ponto o primeiro pode ser substituído pelo segundo. Quando ficar ridículo ("Alcancei dois bilhetes para a estreia!" ou "Não me obténs qualquer cmsmha para comer?") é porque se trata de puro arranjismo. E nunca, nunca se cometa a tropelia de associar o verbo mau ("Arranjar") que é preciso combater, ao verbo bom ("Conseguir") que é preciso defender. Quem diz "Consegui arranjar" seja o que for, está a vangloriar-se do que é tão vão que não chega a ser glória vã.

Enquanto tudo se continuar a arranjar nada se há-de conseguir em Portugal. O mercado dos arranjos, dominado por uma multidão imensa de arranjistas e arranjões, é maior e está mais bem implantado que qualquer mercado negro. Para sair da mentalidade viciosa do arranjismo nacional, é preciso que cada português comece a distinguir entre arranjar e conseguir. Arranjar é obter algo por razões alheias ao mérito próprio e à justiça das circunstâncias e logo representa tudo o que o Conseguir, leal e esforçado, não é. O arranjismo pode ser um reflexo do subdesenvolvimento, mas também é ao mesmo tempo, o principal motor dele. Assim como não se arranjou chegar à índia, ou acabar com a pena de morte, ou escrever Os Lusíadas ou a Mensagem, ou qualquer das outras coisas boas que os Portugueses conseguiram fazer, sem truques ou manigâncias ou espertezas saloias, também não se há-de arranjar sair deste poço cultural em que caímos. Arranjar é próPno de um país miseravelmente possível ("Desculpem, mas não foi possível arranjar mais...") É preciso começar a conseguir as coisas, seja com que dificuldade for. Senão, Portugal chegará a um ponto ern que nem arranjo há-de ter. 27

ASSI

Há trinta e cinco anos, no dia 28 de Maio de 1951, Teixeira! de Pascoaes escrevia a frase portuguesa mais optimista do século. Nunca tão boas esperanças se aliaram a tão pobres poderes de previsão: "Creio bem que o chamado futurismo, a, ateísmo, o tiro aos pombos, a reforma ortográfica, o futebol, etc. todas as forças dissolventes da nossa alma, são de carácter transitório."

Em pleno Campeonato do Mundo, a braços com uma nova reforma ortográfica, e cercados por um novo chamado fu^ turismo em versão anos 80, é difícil acreditar que mesmo o ateísmo e o tiro aos pombos não

estejam neste momento num auge da

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são: são autênticas enzimas, tal qual os "glutões" do anúncio dos detergentes.

No que toca à briosa selecção portuguesa e à maneira que escolheu para representar o nosso país sobretudo o país real ocorre pensar que talvez tivesse sido melhor mandar a segunda equipa do Cova da Piedade, ou quaisquer outros onze rapagões com um mínimo de habilitações. Nomeadamente, uma certa vontade de jogar à bola.

Os futebolistas da selecção, que alguma alma tão bem-intencionada como a de Pascoaes em má hora decidiu chamar "infantes", facilmente se poderiam reconverter a um desporto que desse menos nas vistas do mundo. Caso insistissem em praticar uma modalidade que fosse à mesma dissolvente da nossa alma, porque não o acima citado tiro aos pombos?

Para mais, os futebolistas portugueses têm uma maneira de falar muito especializada e dissolvente. Era bom, por exemplo, que as câmaras de televisão com que se filmam as entrevistas a jogadores, viessem sempre equipadas com um simples sistema

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de roldanas, que fizesse accionar um martelo pesado cada vez que alguém dissesse "O futebol é mesmo assim".

Deste modo, os telespectadores teriam a consolação (e, por que não dizê-lo?, a satisfação) de ver descer uma boa martelada na cabeça de qualquer infractor.

Para certas práticas linguísticas mais graves, como sejam os comboios de "poises" com atrelados de "efectivamentes", a contrapartida poderia ser mais sensacional: duas marteladas firmes com uma bavaroise de cimento e um duche de alcatrão quente, por exemplo. O que é que os futebolistas dizem, geralmente?

Geralmente dizem "Pois o futebol é mesmo assim, e efectivamente quem ganhou, pois, foi o futebol, e o futebol, pois, efectivamente, é acima de tudo, espectáculo". Os entre vis tadores, a quem cabe a culpa nada ligeira de lhes dirigir perguntas, também poderiam com proveito ser penalizados cada vez que os encorajassem com interrogações do tipo "Então Dâni, contente com este triunfo?"

Os entrevistadores desportivos nunca usam verbos, se calhar porque isto dá um ar másculo às frases. "Esperanças para domingo, Tóni, muitas ou poucas?" e "Quanto à decisão do árbitro, Juju, controversa ou pacífica?" são verbalizações frequentes. Os jogadores, que aprenderam a falar através da pedagogia subterrânea dos relatos desportivos, procuram imitar os comentadores e respondem no mesmo estilo: "Pois, Tavares Moreira, efectivamente, o futebol é mesmo assim, o esférico é que manda."

Os futebolistas portugueses, ao contrário dos estrangeiros, tendem a chamar-se infantilmente pelos primeiros nomes: Zé Manei, Diamantino, Carlitos, Hipólito, etc. Os comentadores, para se cobrirem de maior dignidade relativa, abarbatam-se com os apelidos. Os tempos em que os futebolistas portugueses eram conhecidos por sólidos apelidos (Travassos, Morais) já vão desaparecendo, preferindo-se hoje o intimismo exótico da onomástica brasileira.

Muito recentemente, um futebolista de renome, respondendo a uma pergunta acerca da qualidade do futebol húngaro, divulgou o seguinte conceito aos telespectadores: "Pois, efectivamente o futebol húngaro é de alto gabarito, pois, um futebol de força... também não é por acaso que ficou conhecido pelo futebol magiar'." É essa, precisamente, a magia do futebol.

No passado domingo, no intervalo do jogo Brasil-Espanha, o 29

comentador, meditando sobre o tédio doloroso da primeira parte, dizia: "Até aqui, foi um jogo monótono, mas a alta competi* cão é mesmo assim." A síndrome do "mesmo assim" é deíinitivaJ mente a

contribuição principal do futebol à língua portuguesaj Porque é que os críticos literários não começam, também, H dizer: "Este romance é incompreensível, mas a literatura é mesma assim." Ou os

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gastronomes: "O bacalhau espiritual sabia a peú\ gos de nylon, embebidos em gasolina mas, em última análise, quem ganha é a gastronomia, porque a alta culinária é mesmo assim." Os políticos já há muito aprenderam esta lição. Cada vez que há eleições, disfarçando a perplexidade que lhes causam os resul" tados, dizem todos, com aquele ar grave de futuro chefe de Estado, que "mais uma vez quem ganhou foi a Democracia"* Quando se lhes pergunta o que é que o povo português quis demonstrar com a sua votação, coçam o queixo, levantam as sobrancelhas e dizem imortais frases de espírito, do tipo: "Mais uma vez o povo português demonstrou o seu elevado espírito cívico." (Também este parágrafo está excessivamente comprido, e a sintaxe deixa muito a desejar, mas quem ganha é o jornalismo, porque o jornalismo é mesmo assim.)

Como se há-de resolver o problema? Â solução mais lógica seria conceder aos jogadores de futebol os serviços permanentes de um intérprete. Assim, quando o jogador abria a boca para balbuciar as inanidades habituais, com quatro ou cinco palavras compridas à mistura, surgiria nos écrans um intérprete profissional de fato completo e gravata, que explicaria: "Aquilo que o Necas está a tentar dizer é que promete esforçar-se para jogar o melhor que puder, etc."

O mesmo assim divulgado pelos futebolistas prolifera na vida portuguesa e traduz uma atitude de

indiferença perante as coisas do mundo. Entra-se numa loja para comprar um gira-discos e repara-se que falta a agulha. Diz-se ao empregado "Falta a agulha..." O empregado, retardando a resposta, examina o aparelho, certificando-se absolutamente da referida ausência, e só depois conclui, com ar ofendido: "Não... não... esta aparelhagem é mesmo assim."

O vício encontra-se tão divulgado que os desgraçados clientes já se vêem forçados a perguntar "Desculpe, mas esta boneca só tem um braço e um olho

é defeito de fabrico ou é mesmo 30

assim?" Ouve-se um disco português de vanguarda, vai-se examinar o amplificador para ver se rebentou alguma válvula, puxa-se de uma "cotonete" para aclarar os auriculares e só quando nenhuma destas operações surte efeito é que se conclui que "é mesmo assim". Aliás, estes discos deveriam ter obrigatoriamente uma etiqueta adesiva que dissesse "NÃO, NÃO... ISTO É MESMO ASSIM".

A atitude do português contemporâneo exprime-se, em considerável proporção, cada vez que ouve, lê ou vê qualquer coisa, na interrogação "Estão a gozar comigo ou é mesmo assim?" Quando a selecção portuguesa alcança as primeiras páginas da Imprensa internacional com as suas reivindicações pelo pagamento dos salários de miséria em atraso (ou lá o que é), espera-se já dos adeptos que concluam "Está certo o futebol é mesmo assim". Quando se lêem artigos protometafísicos nos jornais que são indesvendáveis até pelo computador da Interpol, parecendo que a tipografia deixou cair uma oração em cada três, misturando o texto com excertos do Boletim Burundi de Psicanálise, já nem se coloca a hipótese de ser um artigo mal escrito. Não, a crítica é mesmo assim.

Quando o novo Acordo Ortográfico leva os Portugueses a congratularem-se com a abolição do trema que já tinha sido absolutamente abolido em 1945, apesar dos Brasileiros não terem ligado nenhuma, não devemos fazer perguntas. Porque a cooperação luso-brasileira é mesmo assim. Se ainda hoje é necessário papel selado para certos documentos, apesar do papel selado ter sido abolido, e ser já quase impossível de encontrar, não nos compete chamar a atenção para qualquer contradição, porque não há contradição nenhuma. Em Portugal, é mesmo assim.

Entra-se num supermercado para comprar uísque e, diante do panorama altamente encorajador de novos preços, nota-se que algumas marcas portuguesas de reconhecido efeito deletério, são hoje muito mais caras que uísques escoceses de excelente qualidade. Entre um Mac-Brutos a 1500$00 e o .B. a

1250$00, a escolha do consumidor nunca na História Universal foi tão facilitada. Indaga-se porquê. Será que o Chernobyl Clan não custa 1300$00, mas sim 130$00?

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A regra geral, no futebol e noutras coisas é a seguintd quando vir qualquer coisa que pareça gravemente errada] avariada, mal acabada ou mal pensada,

inaceitável ou incríved é escusado pôr-se com dúvidas porque aquilo é mesmo assim.

Portugal é mesmo assim. O mundo é mesmo assim. Até

vida é mesmo assim. Neste fatalismo já tão famoso se comprei ende a atitude portuguesa de aceitar as coisas tal qual nos chej gam às mãos. "É o que se vê." "É o que se sabe." "O que é qua quer?" "Do que é que estava à espera?" É mesmo assim. "M

pegar ou largar."

O "mesmo assim" é, ele sim, uma das forças dissolventes dai nossa alma. Esperamos que a selecção portuguesa se redima nos relvados mexicanos. £ que ninguém tenha de perguntar]

"Estão a jogar mal de propósito ou é mesmo assim que jogam?"\ ASSUMIR

Um bom amigo nosso chamou-nos recentemente a atenção para o aparecimento em Portugal de uma nova categoria moral, que terá escapado à atenção dos grandes filósofos morais deste século. Talvez pelo infortúnio de terem nascido longe do epicentro de Odivelas, nem Moore nem Stevenson nem Hare puderam estudar o fenómeno que entre nós é conhecido pela categoria do assumido.

Antigamente, quando as coisas pareciam funcionar, e havia por isso funções para as pessoas, o que elas faziam era assumi-las. Hoje em dia, sabendo que as coisas nunca funcionaram (simplesmente deixaram de parecer funcionar), as pessoas já não assumem funções: arranjam empregos, expedientes, biscates ou então sacrificam-se pela Pátria.

E, entretanto, assumir passou a ser um exercício inteiramente diferente. Dantes havia mau gosto e bom gosto. Hoje já não há mau gosto: há o mau gosto assumido (muito) e o bom gosto (quando há). O kitsch nada mais é que o piroso assumido, e por muito "piroso" que seja, está na moda. Havia homens-bons e bandidos. Agora há homens-bons e bandidos assumidos. A frase "Ele é um (pulha, molestador de crianças, corrupto, asno, etc.) mas assume" tornou-se um lugar-comum. Assumido.

Desde que se assuma, nenhuma barbaridade ou atoarda pode ser condenada, porque o responsável, de mão no peito perante a sociedade contemporânea, assume tudo aquilo que quiserem que assuma. Os maus escritores assumem que não seriam capazes de escrever um bilhete para deixar à mulher-a-dias, os maus pintores assumem que são daltónicos desde criança, os maus cineastas assumem não saber distinguir o lado da Mitchell que se vira para o sujeito, daquela que se supõe ficar à vista e desde que todos assumam, ficam livres para a atribuição

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, ig^gu-^,^^-^ t í

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suma: no assumir é que está o ganho.

Não pode haver dúvida de estarmos na presença de um nov" tipo de método de absolvição, em que a confissão consiste enj dizer, em vez de "Eu arrependo-me", "Eu assumo". Repare-se que só funciona em casos de mediocridade visível, e que não se pode aplicar às eventualidades positivas. Não se diz, por exemplo "Ele é um excelente escultor e assume". Não. Para esses, a nova compleição moral não tem qualquer paciência.

Num país onde basta ser-se bom para se ser revolucionário, não admira que haja lugar para as inúmeras brigadas de desgraçados assumidos, todos a lutarem entre eles para se assumirem como piores que a totalidade dos restantes. Como diz Vasco Pulido Valente, quem se assume está a dizer "Sou um filho da puta mas não me importo".

E, caso surja um posterior desejo, porque não, também, ter a coragem de assumi- lo? Porque não assumir também o desejo (c a saudade) do conceito que o assumir veio substituir nomeadamente aquela velha qualidade, hoje muito pouco citada, que é a vergonha? Lembram-se da vergonha? Era quando quem não sabia, em vez de assumir a ignorância e logo de seguida dar à estampa um compêndio liceal, tinha vergonha de falar. Era quando havia aquele instinto ruborizador de não assumir fosse o que fosse de medíocre. Os que hoje se assumiriam publicamente, calavam- se, disfarçavam e fingiam que estavam a tentar destrinçar a velocidade exacta a que estava a soprar o vento.

Entre o assumidor e o disfarçador, entre quem não tem e quem tem alguma vergonha, será sempre de preferir o segundo, porque ele, ao menos, finge que não tem defeitos, enquanto que o primeiro quer fazer do seu pior defeito a maior das suas qualidades.

BALDAS

A forma de administração mais peculiarmente portuguesa, que a nação há séculos elegeu e praticou é a balda.

 balda não é como muitas vezes se pensa, a ausência de um sistema. Pelo contrário, é um sistema por direito próprio, especificamente construído, e aplicado para a solução ilusória de problemas complexos. Fazer uma coisa, ou desempenhar uma tarefa, à balda, é à mesma fazer, é à mesma desempenhar. Do mesmo modo uma balda é um estado de coisas em que se deixou imperar um saudável (e moderno) domínio de "aleatoriedade", que o povo conhece por "destino" e o resto por "contingência".

De tudo em Portugal, hão-de reparar, se pode perguntar "Qual é o critério que presidiu a essa

escolha/decisão/medida concreta?", sem que se possa razoavelmente receber qualquer resposta. Mas não é pergunta que façam pessoas bem-educadas no mundo ad hoc em que vivemos. O critério dominante é à balda. Tudo o que vem à rede neste país pode não ser peixe, mas podem ter a certeza que acabará por fazer parte integrante da caldeirada.

O problema português resume-se à degeneração da balda, e não à existência alegre dela. Todo o esforço real que se faça pela Pátria não é mais do que tentar impedir que a balda, tradicional e boa, se transforme na nova e revolucionária bandalheira.

Do saudavelmente insano ad hoc aos desmandos tã-tãs, tin-tms e capitães "Haddock" vai apenas um pulinho epistemológico e empírico. A balda é apenas o estado de natureza habitual ao nosso convívio secular, estimulador da espontaneidade, amiga do génio instantâneo e eterna mola real da antiquíssima arte do desenrasca que, como se sabe, e entre outras coisas, por ocaso, deu novos mundos ao mundo. 35

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A balda é também um sinal de respeito por Deus Nosso Sd nhor e a Sua Divina Misericórdia: permite que Ele intervenha a Seu bel-prazer e bom saber, em cada uma das nossas acçõej Tudo pode acontecer quando nada se preparou. E, em Portu gal, evidente e invariavelmente, acontece. A acção do homen e o que é o homem senão um humilde punhado de pó? -* jamais constrange ou condiciona o fatídico desenrolar do Logo -se-vê, do Há-de-de-Ser-O-Que-Deus-Quiser e do Vai-ao-Calhtu

-Que-Tanto-Faz.

A balda tem antecedentes filosóficos respeitáveis e propici coisas excitantes como a surpresa. Não há nesta terra portuguá algum, seja qual for a eternidade da sua circulação entre nósj que se possa queixar de falta de surpresas. Não. O pasmo conta nua a ser uma das prendas mais ricas que Portugal tem para oferecer aos seus filhos.

A bandalheira, pelo contrário, é um perigo real. O balda" mais porreiraço e bebe-mais-um-copo-e-que-se-lixe-a-reunião*

-do-conselho-de-ministros, o baldas mais decente e pai de fm mflia, pode facilmente sofrer o processo lusitano do Jekyll-andd

-Hyde, e ver-se repentinamente transformado em bandalhom Como é que isto acontece? Paradoxalmente, acontece quandoj

alguém perde o respeito à balda e pensa "Se é tudo à balda, main vale abandalhar..." Abandalhar é um processo sem inocência, que visa objectivo"! claros. A balda, em contrapartida, não visa coisíssima nenhu*|

ma senão a safa. A safa é um agradável estado mental, terrífica"] mente temporário, que produz nos safados a impressão de quej

por ora, podem acender um cigarrinho sem por isso deitar fogo] ao país inteiro. Eles, os supostos nadadores-salvadores, sabem! que não salvaram a Pátria, nós

sabemos que eles não salvaram ai Pátria, e a Pátria, por sua vez, sabe que, pelo sim e pelo não, mais vale continuar agarrada à bóia.

A bandalheira não tem nenhuma destas virtudes. Interfere no estado de natureza; tende a ser irreversível até às próximas invasões estrangeiras; e, pior que tudo o mais, faz levantar na população a suspeita de que afinal não é a Senhora do Monte que controla os acontecimentos nacionais. Ou seja: a bandalhei-E rã está para a balda como a bomba atómica está para a explosão! fortuita de um esquentador.

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O sistema fiscal português é uma balda, mas a "taxa dos mil" é a bandalheira.

A actividade editorial é uma balda mas certas traduções são uma bandalheira. A medicina privada é uma balda, mas certas Caixas são uma bandalheira. O turismo é uma balda, mas certos aldeamentos

clandestinos são uma bandalheira. E assim por aí fora, no Cinema, no Jornalismo, na Política, na Hotelaria, na Poesia, na Administração Pública... cada vez mais o Diabrete do Abandalhamento colhe vítimas ao Diachinho das Baldas.

É escusado tentar voos superiores e estrangeirados (descritos por palavras romenas como eficácia, organização e espírito prático), porque isso em Portugal só deu ditaduras gratuitas precisamente porque são sempre de borla num povo de baldas. O que é preciso é manter fielmente a balda permanente

inaugurada por Afonso Henriques. E seja o que Deus quiser. O que Ele quer não há-de ser tão mau como o que querem os bandaIhistas. E não nos esqueçamos da frase portuguesa mais antiga e verdadeira que existe: "Não há-de ser nada." É que nunca é...

BANANAS

O amor livre dos anos 60, o Maio de 1968, o movimento^ feminista e a libertação do 25 de Abril tiveram todos a sua in-' fluência sobre os homens portugueses. Em última instância, o que aconteceu foi isto: os machistas ficaram ainda mais machistas, os machos normais não ligaram nenhuma e, entre os hesitantes, surgiu uma nova classe. Muito esponjosa e altamente consciente, esta nova classe absorveu por inteiro todas essas lições e refez-se à imagem que lhe era pedida. E assim nasceu, entre nós, o Homem-Banana. O Homem-Banana, ou Bananaman, é o equivalente masculino da Mulher-Galinha. É facilmente

reconhecido pelo calçado, que tende para a camurça, pela camisola, que é sem mangas e se estende para os joelhos, e pela personalidade timorata e compreensiva, que se estende geralmente ao comprido. Mais feminista que as feministas, é mais do que um mero traidor de classe: é uma nova classe. A sua forma de luta, que procura alcançar a paz na guerra entre os sexos, é o diálogo. Para eles a paz de alma, a

pachorrice, a chatice do cessar-fogo são essenciais. Por isso dialoga por tudo e por nada. Para os marialvas, ele é apenas uma versão mais à la page do velho "como manso". Contudo,

Bananaman recusa esses velhos estereótipos e preconceitos acerca da infidelidade e do orgulho. Para ele, a infidelidade é somente a expressão de um problema mais profundo que ambos têm de resolver juntos. jSe um dos parceiros se está a divertir alegremente na cama de alguém mais interessante, o diagnóstico do Bananaman é seguro: existe uma falta de comunicação. O único remédio é o diálogo, sem falsos orgulhos, sem ciúmes. Enfim, sem qualquer espécie de interesse.

Para Bananaman o ciúme é um sentimento que vem da noção 38

absolutamente errada da posse e da propriedade. Por isso ele "dialoga na base do respeito mútuo pela liberdade dos dois companheiros". Assim como ainda há mulheres-galinhas que vão nessas histórias e que perdoam os pobres maridinhos traidores, cada vez há mais Bananamen a irem em conversas ou melhor em diálogos.

O Bananaman, que é mais homenzinho que homem, e o Machista, que é mais lobisomem que outra coisa, cometem ambos um erro semelhante. O primeiro pensa que é errado querer possuir uma mulher que se ame. O segundo pensa que é natural possuí-la simplesmente, quer se ame ou não. Resultado: o primeiro não possui ninguém porque tem vergonha, e o segundo não possui ninguém porque não tem. Um e outro são ignorados caridosamente pelas mulheres.

É preciso lembrar, nesta idade, que não só se deve querer possuir quem se ama, seja-se homem ou mulher, como se deve dar tudo por tudo para possuir, desde que não se consiga. Num casal saudável, ambos querem possuir e ser possuídos, dominar e ser dominados, e nem um nem outro consegue, para que o desejo e o amor

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continuem. E a luta continua! Nem o Bananaman nem o Machista dão luta, porque o primeiro acha mal e o segundo acha natural. O primeiro pensa que, por muito que se esforce, nenhuma mulher lhe há-de cair nos braços. O segundo pensa que as mulheres lhe deviam cair nos braços sem que ele faça o mínimo esforço. O Banana julga que é infame pedir a uma mulher que seja dele, que o ame e que o sirva. O Machista julga que é essa a obrigação dela. E só o homem decente sabe que elas não têm essa obrigação. É precisamente por isso que ele tenta, por todos os meios obrigá-la. E ela a ele. E ele não consegue. E ela também não. E se qualquer deles conseguir, deixa de gostar do outro, porque deixou de dar luta, e prazer.

E preciso enfrentar esta realidade. Â Paixão segundo São Banana não vale a pena. A Paixão segundo as lendas do Lobisomem é uma lenda. E a verdadeira paixão é uma guerra constante, cheia de sangue, suor e lágrimas, uma luta entre amantes, em que cada um se quer assenhorear do outro, conquistar, arrumar,

vencer e é por

estarem tão embrulhados um no outro, com cabelos e unhas a saltar, que não reparam em mais ninguém e se fazem apaixonados.

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Essa paixão vale a pena. Mas há uma pena que essa paixãj vale. Hoje em dia, toda a gente deseja estupidamente que <f amor traga a felicidade, quando o amor nem sequer se rxxH

pensar nesses termos. E incerteza, delírio, sobressalto, angúsj tia, maldade e abdicação, delícia, miséria, êxtase, exaltação ( mas nada tem a ver com a

felicidade. Querer o amor sem sofri mento é como querer comer um pêssego sem caroço: quanck

muito vai-se roendo devagarinho à volta, e no fim morre-s< sempre à fome. Há uma pena que se cumpre com cada paixão^ e para merecer essa pena é preciso amar-se criminosamente*

O Bananaman, estando inocente à partida, não leva nada. O Man chista, que apenas culpa a mulher, também não. A paixão é sempre sim, ou não. Ou tudo ou nada. E mais não, e main

nada.

Outra enormidade actual é a ideia de que dois seres apaixo- nados podem ser "amigos". Isto é como querer que um vulcãos também sirva para aquecer um tacho de sopa. Ofende tanto &1 amizade ou o fogão como o amor e o vulcão. Ser amigo]

é querer o bem de alguém. Amar é querer alguém, e acabou. Sei for a bem, melhor. Se for a mal, é porque teve de ser.

Um vulcão só irrompe de quando em quando, e às vezes uma única vez. Como o amor. E um fogão dura quase toda a vida, como a amizade. Não haja confusão. Hoje em dia fala-se do

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amor, e pratica-se o amor com uma timidez, um respeitinho, uma esmerada educação e serviço de bar, que consola mas não assola, que entretém mas não aquece nem arrefece. As pessoas falam, falam, falam buscando

atabalhoadamente a verdade, e a

análise e a psicanálise e o diabo a sete. Analisam-se e entorpe- cem-se e dialogam-se e adormecem-dialogam-se e depois admiram-dialogam-se que \ não haja faísca para os acordar. Nenhum homem quer uma mulher-galhinha. Cada homem

deseja uma fera para tentar domar e não conseguir, para dar a máxima luta e resistir, para lhe dar a volta e o dente e a razão de ser. Nenhuma mulher quer um homem-banana, que

compre-ende e que aceite, que esteja sempre disposto a tentar ver o ponto de vista dela. As mulheres gostam tanto de desafios como os homens. Querem alguém que lhes crie a vontade de

mudá-los. E para querer mudá-los, algo tem de estar deliciosa- mente errado à partida. É aquilo que está errado nas pessoas 40

por quem nos apaixonamos o orgulho, o egoísmo, a personalidade, a teimosia, a mania que manda e tudo o mais que nos faz apaixonarmo-nos por elas. Quem quer apenas um "companheiro" torna-se sócio de um Clube de Campismo ou de Brídege.

O ciúme, a culpa, o pecado e todo o "Anda cá, que és meu" e "Anda cá, que és minha" que é o fundamento indispensável do amor, são a naturalidade repreensível, mas irresistível, das boas-péssimas relações entre os sexos. A igualdade entre os sexos não significa que um homem tenha de ser igual a uma mulher é isto que parecem pensar muitos homens-bananas que mais parecem "amigas" das mulheres que insistem em aborrer.

No fundo, as atitudes modernas dos Bananamen constituem um machismo às avessas. Julga-se que as mulheres são seres tão frágeis e debilzinhas, tão vulneráveis a tornarem-se propriedade do primeiro mânfio que lhes aparecer, que precisam dos homens para proteger a liberdade e o auto-respeito delas. Qual quê! Não se preocupem, que elas safam-se muito bem sozinhas, muito obrigadas. O homem-banana que se recusa a ser "um opressor" é um pouco como o pseudo ditadorzeco que decide amnistiar o réu. Em primeiro lugar, no amor um pouco de opressão nunca fez mal a ninguém. E em segundo, elas deixam ou não deixam, e, por sua vez, oprimem ou não oprimem, como muito bem lhes apetecer.

fosse um alcoólico em Beja sentir-me-ia um bocado sozinhoj condenado a procurar

os outros ,4 de convivas alcoólicos entw uma

quase centena de "caretas". Imigrava imediatamente pan Vila Real, Viseu, Guarda ou Leiria. \

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diferença entre a vida e a morte". Qualquer alcoólico concert daria. Sem álcool, a vida parecer-se-ia tragicamente com a morte. Por alguma razão se diz "Estou a morrer de sede por um gin-tónico". O álcool dá vida à vida. Ou, como diz a Martini, "convida a viver". Recusar um copo é parecido com dizer "Em tão está bem" à morte. O álcool é decididamente a diferença entre este mundo e o outro.

Que seria dos Portugueses sem os seus 80 litros de vinho e 43 litros de cerveja por ano? Que valeria a vida deles sem aquele consolo? Pouco mais que o preço de depósito do vasilhame. (A 20$00 por cada garrafa de vinho e 7$50 por cada garrafinha ; de cerveja, isto daria pouco mais que dois contos de réis.) í Estas estatísticas de consumo (à parte a percentagem de ai-coólicos, que é realmente preocupante, porque irrealmente baixa) impressionam os estrangeiros. Os cento e tais países que

bebem menos do que nós põem-se logo com uma insuportável cara-de-caso e tiram conclusões desagradáveis, do tipo "os Por- } tugueses são os terceiros maiores bêbados do mundo". Ora, nenhum \ português deve aceitar este insulto. Imagine-se um finlandês, um irlandês ou um soviético a achar-se bastante menos borracho do que nós. Não pode ser. As estatísticas ocultam um dado

essencial, que é a quantidade que se bebe durante e fora das ': refeições. Os

Portugueses bebem quase todo o vinho, e boa ! parte da cerveja como parte integrante das suas refeições, É uma forma de estar à mesa, um complemento líquido indispensavel, um alimento nutritivo como qualquer outro. !

As nações espertalhonas, que "ficam bem" nas estatísticas, bebem água, leite, ou algum refrigerante infecto às refeições e depois, na sexta-feira à noite apanham pielas de paralisar os

f neurónios. São mais "bêbadas" do que nós. Para um portu- guês, engrossar-se é sempre um pouco vergonhoso. Para certos outros cidadãos, de países que me dispenso de mencionar, a | bebedeira pode até constituir o objectivo principal da noite, Engatam as estatísticas todas. O portuguesinho lá vai bebendo

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os seus três decilitres por dia, regradamente, para molhar os carapaus ou o entrecosto, e ao fim do ano lá vem chapado na lista negra da OMS, com um per capita assustador de 80 litros. Os estrangeiros só bebem quando o rei faz anos, mas é aos três e quatro litros, em jejum, de cada vez. Safam-se nos cômputos anuais, mas embebedam-se muito mais.

Esta observação leva a outro dado vital que as estatísticas ocultam. É a taxa de aguentanço. O português "aguenta" bem o álcool. Bebe uma garrafa de vinho branco ao almoço e fica como novo. O estrangeiro bebe dois copos e estatela-se inerte no chão. Comparem-se as figuras que fazem. Mas quem se lixa nas estatísticas?

Quem é? É o pobre português. Não está certo.

Levando em conta o factor-refeições e o factor-aguentanço, Portugal ocuparia um lugar mais justo nas tabelas internacionais de copos. Só um alcoólico o negaria. BEIJINHO!

Foi logo depois do 25 de Abril de 1974 que algumas organizações subversivas começaram a conspirar contra os bons costumes portugueses. Dentre todas elas, a mais ardilosa e extremista foi a Brigada do Beijinho. Trata-se de uma precursora das FP-25, e é muito activa no ramo da Desestabilização do

Cumprimento. Tornou- se conhecida durante o consulado de Marcello Caetano, por ter conseguido infligir graves perdas e danos sobre a ancestral prática do beija-mão. À altura da Revolução, eram já poucas as mãos que condignamente se beijavam.

Referências

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