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Padrões de alinhamento e voz em kaiowá

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Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, v. 15, n. 31, p. 141-151, set./dez. 2019.

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Padrões de alinhamento e voz em

kaiowá

Alignment patterns and the voice in kaiowá

Valéria Faria CARDOSO1

RESUMO: Neste artigo, propomos apresentar uma análise dos padrões de alinhamento de caso e da categoria de voz em kaiowá. As análises são amparadas teoricamente numa abordagem funcional-tipológica, baseadas nos trabalhos de Dixon (1979, 1994), Comrie (1981), Andrews (1985), Givon (1994) e Payne (1994). A análise dos padrões de alinhamento em kaiowá exigiu que se levasse em conta a Hierarquia de Pessoa (1>2>3), traço característico de línguas da família tupi-guarani, para além dos usuais mecanismos de codificação de caso. O estudo de tais mecanismos aponta para distintos alinhamentos na língua que vão, quase num contínuum, do nominativo/acusativo ao ergativo/absolutivo, passando por um tipo de caso “incaracterístico”.

PALAVRAS-CHAVE: Ergatividade. Acusatividade. Caso incaracterístico. Voz inversa.

ABSTRACT. In this paper, we propose to present an analysis of case alignment patterns and the voice category in

kaiowá. The analyzes are theoretically supported by a functional-typological approach based on the works of Dixon (1979, 1994), Comrie (1981), Andrews (1985), Givon (1994) and Payne (1994). The analysis of alignment patterns in kaiowá required taking into account the Person Hierarchy (1> 2> 3), a characteristic feature of Tupi-Guarani family languages, in addition to the usual case coding mechanisms. The study of such mechanisms points to distinct alignments in the language that go, almost in a continuum, from the nominative / accusative to the ergative / absolutive, going through a kind of “uncharacteristic” case.

KEYWORDS: Ergativity. Accusativity. Uncharacteristic case. Inverse voice.

Considerações iniciais

Neste volume temático da Revista Guavira, intitulado Diferentes incursões pela

linguagem, no qual prestamos uma homenagem a Dercir Pedro de Oliveira2 (in memoriam), um

linguista magnífico, lépido e de importância decisiva em minhas escolhas acadêmicas, proponho revisitar o artigo “Gramática kaiowá: estratégias de marcação de caso” publicado no livro

Estudos Linguísticos: gramática e variação, organizado por ele (OLIVEIRA, 2011) com propósito

1 Universidade do Estado de Mato Grosso/Campus de Alto Araguaia/Núcleo de Rondonópolis. UNEMAT.

Docente do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística da UNEMAT. Cáceres – MT – Brasil. CEP:78780-000. E-mail: valeria.cardoso@unemat.br

2 Pretendo, aqui, dar vazão ao sentimento de profundo afeto e admiração que nutro por Dercir Pedro de Oliveira,

quem me inseriu na pesquisa linguística e, para além do campo teórico e metodológico, nos idos de 1990, orientou-me num trabalho de iniciação científica (bolsista CNPq/UFMS), propiciando o acesso à pesquisa de campo e aos eventos científicos e culturais (os memoráveis e tradicionais: GEL e SBPC). Esse tipo de investimento intelectual e pessoal praticado por Dercir, de modo brilhante e singular como sempre doou seus conhecimentos, fez desse professor, orientador e pesquisador, um linguista admirável. Sua atuação trilhou para muitos ex-alunos e colegas da UFMS, Campus de Três Lagoas, um caminho acadêmico, hoje, percorrido em distintas universidades brasileiras como a UNESP, UFGD e UNEMAT.

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142 de, entre outros, “evitar que os resultados das pesquisas científicas fiquem empoeiradas nas

prateleiras das bibliotecas universitárias”.

Neste sentido, retomo a temática do artigo, impulsionando-a a obter outras nuances e perspectivas de análise. Ao mesmo tempo, prossigo com a pesquisa linguística iniciada em 1998, momento no qual o professor Dercir aceita o desafio de orientar o primeiro trabalho acadêmico na área de Línguas Indígenas a ser defendido no Programa de Mestrado em Letras da UFMS. Tenho dito que, nessa ocasião, o gosto do mestre pela Sociolinguística cedeu ao desafio de desvendar uma nova trilha na Linguística.

A língua guarani é classificada como pertence ao subgrupo I da família tupi-guarani, tronco tupi, com três dialetos falados no território nacional: kaiowá, nhandewa e mbyá.3 Consideramos o kaiowá, ponto central de nossa pesquisa, uma variedade do guarani falado atualmente por aproximadamente 40 mil pessoas, que, em sua maioria, vivem no Estado de Mato Grosso do Sul.

No presente artigo, propomos apresentar uma análise dos mecanismos de codificação de caso e voz em kaiowá amparada teoricamente numa abordagem funcional-tipológica, baseada nos trabalhos de Dixon (1979, 1994) e Comrie (1981), que tratam especificamente das tipologias de padrões alinhamento de caso, além dos estudos de Andrews (1985), Givón (1994), Payne (1994) e Dixon (1994), que analisam a codificação de voz (inversa e direta) na língua.

Além dessa introdução, esse artigo é sequenciado do seguinte modo: na segunda seção, reportamo-nos a conceitos fundamentais sobre padrões de alinhamento, como ergatividade, acusatividade e cisões intransitivas. Na terceira seção, retomamos, de modo sucinto, a análise da cisão intransitiva em kaiowá (CARDOSO, 2011), para, na seção seguinte, tratar dos padrões de alinhamento intraclausal nessa língua, tomando por base os sistemas referenciais de pessoa e número, a concordância verbal, a marcação de caso e a ordem de constituintes, todos com base em construções declarativas e independentes com um e dois lugares argumentais. Por fim, considerando que é a análise dessas diferentes configurações nos padrões de alinhamento da língua que conduz à análise da categoria de voz (direta e inversa), reportamo-nos a ela, na quinta seção, à qual se seguem as considerações finais e as referências.

Padrões de Alinhamento: conceitos fundamentais

Muitas pesquisas linguísticas referentes aos sistemas de marcação de caso e seus

respectivos alinhamentos têm-se desenvolvido desde a década de 1970 (ZÚÑIGA, 2006). Os

termos ergatividade e acusatividade têm sido usados como padrão de alinhamento (ou padrão gramatical) para distinguir as funções A (argumento controlador/iniciador de sentença transitiva) e O (rótulo derivado do objeto direto de sentença transitiva) transitivas. Em síntese, as línguas naturais incluem em suas gramáticas uma marcação contrastiva entre A e O transitivos, e também a função de S (argumento único de sentença intransitiva). Tal marcação é o objeto primeiro dos estudos referentes aos diferentes sistemas de marcação de caso nas línguas do mundo.

3 Segundo Mori (2016, p. 201), são reconhecidas quatro subdivisões do povo guarani atual: os Nhandewa, os

Mbyá, os Kaiowá e os Chiriguano. Falantes guaranis das três primeiras subdivisões citadas são encontrados no território brasileiro. Os Mbyá também se encontram em território argentino, na província de Missões e em várias regiões do Paraguai. Os Chiriguanos estão dispostos em Isoso, na região do Chaco Boliviano.

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143 Segundo Dixon (1994), os termos ergativo/ergatividade e acusativo/acusatividade podem

ser usados para descreverem o caminho em que funções sintáticas dos argumentos predicativos são marcadas em sentenças transitivas e intransitivas, isto é, se S é marcado num mesmo caminho que O e diferentemente de A (num arranjo ergativo), ou se S é marcado no mesmo caminho que A e diferentemente de O (num arranjo acusativo). Dixon trata este tipo de descrição como

ergatividade/acusatividade morfológica ou intraclausal.

Comrie (1981), tomando como base os tipos de agrupamentos possíveis de serem estabelecidos entre S, A e P (onde P = paciente, por meio do modelo SAP), chega a cinco tipos logicamente possíveis de padrão de alinhamento. São eles:

A. Neutro: mesma marca morfológica - que pode ser nula - é atribuída a S, A e P.

B. Nominativo-acusativo: mesma marca morfológica - caso nominativo - para S e A, e uma marca diferente - caso acusativo - para P.

C. Ergativo-absolutivo: mesma marca morfológica para S e P – caso absolutivo - e uma marca morfológica diferente para A – caso ergativo.

D. Tripartido: marcas morfológicas distintas para S, A e P.

E. Tipo ainda não atestado como um sistema consistentemente atuante na marcação de caso, uma vez que teria que ocorrer uma mesma marca morfológica para A e P, e uma marca morfológica distinta para S. Tomamos esse tipo, aqui, como um caso do tipo Incaracterístico.

Comrie expõe os porquês de, entre os tipos de agrupamentos logicamente possíveis, dois deles (B e C) serem encontrados em quase todas as línguas do mundo. Segundo o autor, isso se deve ao fato de existir somente um SN em sentenças monoargumentais, logo, não sendo necessário, sob o ponto de vista funcional, marcar esse SN de alguma forma que o distinga de outros SNs, como em (A, D e E). Assim, não sendo necessária a distinção entre S e A ou entre S e P, uma vez que eles não ocorrem em uma mesma sentença, o caso atribuído a S pode ser usado para um dos dois argumentos de uma sentença transitiva. A partir disso, têm-se os dois sistemas de marcação de caso predominantes nas línguas do mundo (B e C), em que S pode ser identificado com A (num arranjo nominativo) ou com P (num arranjo ergativo).

Para Dixon (1994), a marcação contrastiva de caso entre A e O pode ser identificada, também, junto ao SN em função de S, do seguinte modo: aquele S semanticamente semelhante a A é marcado como Sa, isto é, no mesmo caminho que A, e aquele S semanticamente

semelhante a O é marcado como So, isto é, no mesmo caminho que O. Assim se comportam as

línguas de sistema intransitivo cindido, nos termos de Dixon: línguas de sistema de cisão-S (split-S) ou, ainda, línguas de sistema fluido-S (fluid-S) (cf. CARDOSO, 2012).

De acordo com Mithum (1991), o sistema intransitivo cindido tem recebido várias designações, dentre essas estão: ativa (ou de tipologia ativa); neutro; inativo;

ativo-estativo ou ativo-estativo-ativo; agentivo ou agente-paciente; cisão-S e cisão intransitiva. O kaiowá

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Cisão intransitiva em kaiowá

Em Cardoso (2011), reconhecemos que o kaiowá, de modo semelhante a outras línguas da família tupi-guarani, possui um sistema de marcação de caso com intransitivo cindido. Sumariamente, pudemos observar que o kaiowá, num nível intraclausal, atende a um sistema de cisão-S, ou seja, S é identificado no mesmo caminho que A, exercendo controle sobre a atividade – identificado por Sa, e também se comportando como O, sendo afetado pela atividade

– identificado por So.

Importa considerar que a padronização por afixos pronominais em palavras verbais ocorre como mecanismo de referência cruzada (de concordância), ou seja, quando um verbo principal ou um auxiliar contém afixos que indicam informações sobre pessoa e/ou número ou gênero vinculadas a um determinado SN. Se um conjunto de afixos correfere-se a um SN de função de S ou A, com outro conjunto de afixos diferente para correferir-se ao SN em função de O, esta língua pode ser caracterizada como nominativa-acusativa no nível intraclausal. A característica de língua ergativa dá-se quando um conjunto de afixos correfere-se a S ou a O, e outro conjunto de afixo refere-se a A.

Em kaiowá, língua de cisão intransitiva, os afixos pronominais das séries I e II são marcadores de pessoa e número em verbos independentes, num arranjo entre os participantes A, O, Sa e So. Observemos, no quadro 1, as séries de afixos pronominais marcadores de pessoa

na língua, seguidos de dados linguísticos descritos para análise.

Quadro 1 – Séries afixos pronominais marcadores de pessoa/número.

Pessoa e número Série I

(A=Sa)

Série II

(O=So)

1sg a- ʃe-

1pl (excl) ro- ore-

1pl (incl) ja- nhande

2sg re- nde-

2pl pe- pende-

3 o- i- ~ h-

Fonte: Elaboração própria.

(1) prefixo da série I – marcando (A)

ʃe ainũpã iʃupe

ʃe a- i-nũpã i-ʃupe eu 1sg(A)-dir-bater 3-Acus4

‘eu bato [n](ele)’

(2) prefixo da série I – marcando (Sa)

ʃe agwahẽmã

ʃe a- gwahẽ-mã eu 1sg(Sa)-chegar-Pont

‘eu já cheguei’

4 ABREVIATURAS: 1 = primeira pessoa, 2 = segunda pessoa, 3 = terceira pessoa; A = sujeito transitivo, Abs =

absolutivo, Acus = acusativo, dir = direta, Erg = ergativo, excl. = exclusiva, fut = futuro, incl. = inclusiva, intens = intensivo, inv. = inversa, Nom = nominativo, O = objeto transitivo, Part = partícula, Pl = plural, n/pd = não-possuído, Sa = sujeito intransitivo ativo, Sg = singular, So = sujeito intransitivo inativo.

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145 (3) prefixo da série II – marcando (O)

nde ʃereʃa ave

nde ʃe= r-eʃa ave você 1sg(O)=inv.-ver Ptc ‘você me vê também’

(4) prefixo da série II – marcando (So)

ʃe ʃekyra eterei

ʃe ʃe= kyra eterei eu 1sg(So)=gordo intes

‘eu engordei muito mesmo’

Ao atentarmos aos dados acima e observarmos que Sa

,

de verbos intransitivos marcados

com a série I {a-} (em 2), possui correferência no mesmo caminho que A (em 1), e que So, de

verbos intransitivos marcados com a série II{ʃe-} (em 4), correfere-se a O de verbos transitivos (em 3), podemos constatar que o mecanismos de correferência cruzada em kaiowá opera sobre o sistema de cisão intransitiva do tipo cisão-S (split-S), em que Sa é marcado num mesmo

caminho que A, e So num mesmo caminho que O.

Enfim, no que se refere à marcação de caso entre predicados bi e monoargumentais, reconhecemos que o kaiowá, assim como o kamaiurá (SEKI, 2000), é uma língua de Sistema Ativo/Inativo, ou ainda, de Cisão Intransitiva (CARDOSO, 2008).

Padrões de alinhamento intraclausal em kaiowá

Conforme Dixon (1994), a função de um SN (S, A ou O) numa sentença pode ser marcada por um mecanismo ou pela combinação destes: i) flexões de caso: as formas em que o caso é marcado num SN podem variar; ii) partículas separadas ou pre/posposições marcam função sintática; e iii) o verbo ou um auxiliar pode incluir alguma indicação de pessoa, número, gênero, etc., em concordância com SNs em certas funções sintáticas.

Para além dos mecanismos de identificação das funções dos SNs descritos acima, a análise dos padrões de alinhamento intraclausal em kaiowá requer que levemos em conta a Hierarquia de Pessoa (1>2>3), traço característico de línguas da família tupi-guarani, bem como a manifestação de outra série de afixos pronominais marcadores de pessoa e número em kaiowá, a Série III, que, em geral, ocorrem somente em construções transitiva, nunca em intransitivas.

No quadro 2, apresentamos as séries de afixos pronominais marcadores de pessoa/número e caso, em construções independentes da língua kaiowá. E, a partir desse quadro, propomos uma síntese de análise em (i), (ii) e (iii).

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Quadro 2 – Série de afixos pronominais marcadores de pessoa e caso.

Pessoa/ Número

Série I

NOMINATIVO

Série II

ABSOLUTIVO INCARACTERÍSTICO Série III

1 sg [a-] [ʃe-] -

2 sg [ɾe-] [nde- ~ nẽ-] [oɾo- ~ ɾo] (1sg/2sgA/O)

1 pl (incl) [dʒa-] [ɲãnde-] -

1 pl (excl) [ɾo-] [oɾe-] -

2 pl [pe-] [pẽnde-] [opo- ~ po-]

(1sg/2plA/O)

3 [o-] [i- ~ h-] -

Fonte: Elaboração própria.

i) Acusatividade: num alinhamento nominativo-acusativo, os mecanismos de codificação de caso usados em kaiowá dão-se por meio da concordância nominativa entre o SN (em função de A ou Sa) e os afixos pessoais da série I (cf. {ro-}, em (5)) codificados junto ao predicado transitivo; por meio da adposição que marca a função de O acusativo, a posposição {pe ~ -ʃupe}; por meio da ordem dos constituintes, sendo a preferencial SV/AVO, manifestando, também, o padrão de alinhamento nominativo-acusativo, podendo, ainda, ser de ordem livre, caso haja o preenchimento do SN em função de O por um nominal/pronominal marcado pela adposição acusativa; e, por fim, por meio da hierarquia de pessoa, que ocorre quando (A) é hierarquicamente maior que (O). Notemos que, em (5), A=1pl > O=3, sendo este uma não-pessoa do discurso.

(5) marcação do nominativo – série I (A > O)

ore roinupã iʃupe kwera

ore ro- i- nupã i -ʃu -pe kwera nós 1pl(excl)(A)-dir-bater n/pd-posp-Acus pl

‘nós batemos neles’

ii) Ergatividade: o alinhamento ergativo-absolutivo em kaiowá é codificado a partir da

concordância ergativa não-marcada com a marcação de O absolutivo codificado pelos clíticos

pronominais pessoais da série II (cf. {ore-}, em (6)), afixados ao predicado transitivo, bem como pela não ocorrência de um SN (O) pleno, regendo, assim, a ordem SOV. Quanto à hierarquia de pessoa, tem-se que a ergatividade em kaiowá ocorre quando: (A) é hierarquicamente menor que (O), sendo este um paciente mais tópico. Observemos que, em (6), sendo A=2pl < O=1pl, a hierarquia de pessoa (1>2>3) fica invertida.

(6) marcação do absolutivo – série II (A < O)

pẽẽ orereʃa

pẽẽ ore= r- eʃa vocês 1pl (excl)(O)= inv- ver ‘vocês nos veem’

iii) Incaracterístico: caso do tipo E (COMRIE, 1981), aqui, proposto como sendo o tipo de caso que ocorre – se e somente se – as funções de A e O forem preenchidas pelas pessoas do

discurso (1ª. e 2ª.), sendo essas codificadas simultaneamente por meio dos afixos pessoais da

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O), ocorre somente com predicados transitivos, não havendo marca morfológica distinta para

a função de S (seja Sa ou So), portanto, ocorre a mesma marca para A e O e uma distinta para S.

(7) caso do tipo E - Incaracterístico - série III (A / O)

ʃe poinupãta

ʃe po- i- nupã -ta eu 1sg/2pl-dir- bater -Fut ‘eu baterei [em] vocês’

Em suma, esse indistinto tipo de caso, o tipo E (COMRIE, 1981), é aqui considerado um tipo de caso “incaracterístico”, que ocorre, em kaiowá, quando (A) e (O) são pessoas do discurso e codificadas, na morfologia verbal transitiva, por meio dos afixos pessoais da Série III: (1A/2sgO) = {oro- ~ ro-} e (1A/2plO) = {opo- ~ po-}(cf. quadro 2), de modo distinto da codificação dada para (1sgA) = {a-} da Série I, nominativa, bem como para (2sgO) = {nde- ~ nẽ-} ou para a (2plO) = {pẽnde-}, ambas absolutivas, da Série II. Do mesmo modo que também não há congruência entre caminhos de (A e O) e S (seja Sa ou So). Assim, propomos que o tipo de caso E, ou ainda, o caso incaracterístico, é discretamente atestado em kaiowá, mesmo que não ainda como um sistema de alinhamento consistentemente atuante. Por fim, como já mencionamos, o estudo dos distintos padrões de alinhamento em kaiowá é que conduz para a análise da categoria de voz, aqui em específico, a voz direta e a voz inversa. Segue a análise. Voz Inversa em Kaiowá

Payne (1994), em seu texto intitulado “The Tupí-Guaraní Inverse”, propõe que as línguas tupi-guarani que apresentam construções com pronomes marcadores de pessoa da série II, seguidos do prefixo relacional {r-}, ou nos termos da autora, construção Conjunto 2/r-, são línguas que possuem um Sistema Inverso. Nessas línguas, a mudança de uma construção direta para uma construção inversa é completamente gramaticalizada em termos da Hierarquia de Pessoa (1>2>3), e, quando estão envolvidas duas 3as. pessoas, a construção é gramaticalizada como direta, sendo marcada invariavelmente com o conjunto 1 e não marcada com o morfema indicador de inverso {r-}.

Para o kaiowá, em específico, Cardoso (2008) propõe que seja uma língua de Sistema Inverso, uma vez que a codificação de (A) ocorre quando este é hierarquicamente mais alto que (O), sendo marcado com a série I ou III, seguido do morfema indicador de voz direta { i-}, como em (b), (c) e (d) do quadro 3. Sendo (O) hierarquicamente mais alto, marca-se o (O) com a série II, seguido do morfema marcador de voz inversa {r-}, como em (e), (f) e (g) do mesmo quadro.

Quadro 3 – Codificação de (A) e (O).

A O Marcação

(a) 1ª 2ª Série III (portmanteau)/ i-

(b) 1ª 3ª Série I/ i-

(c) 2ª 3ª Série I/ i-

(d) 3ª 3ª Série I/ i-

(e) 2ª 1ª Série II/ r-

(f) 3ª 1ª Série II/ r-

(g) 3ª 2ª Série II/ r-

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148 Os dados abaixo evidenciam que o kaiowá codifica (A) junto a verbos transitivos de

sentenças independentes, por meio dos prefixos da série I, seguido do morfema {i- ~ h-} marcador de voz direta ((8) e (9)), sendo (A) hierarquicamente mais alto que o argumento interno (O). De outro modo, codifica o argumento interno (O), por meio dos clíticos pronominais da série II, seguido do marcador de voz inversa {r-} (10), quando (O) é hierarquicamente mais alto que (A).

(8) marca-se caso nominativo/acusativo e voz direta com { i- ~ h- })

a) 1 A 3 O

ore roinupã iʃupe kwera

ore ro- i- nupã i-ʃupe kwera nós 1pl(excl)(A)-dir-bater 3-Acus Pl ‘nós batemos [n]eles’

b) 2 A 3 O

pẽẽ peheʃa iʃupe kwera

pẽẽ pe- h- eʃa i- ʃupe kwera Vocês 2pl(A)-dir-ver 3-Acus Pl ‘vocês vêem eles’

c) 3 A 3 O

ɲaɲgwa oisuʔu kunũmĩpe

ɲaɲgwa o- i-suʔu kunũmĩ-pe cachorro 3ª.(A)-dir-morder menino-Acus ‘o cachorro mordeu o menino’

(9) marca-se caso do tipo E - incaracterístico e voz direta com { i- ~ h- })

a) 1 A 2sg O ʃe rohaihu ʃe ro- h- aihu eu 1sg/2sg(A/O)-dir-amar ‘eu te amo’ b) 1 A 2 pl O ʃe poinupãta

ʃe po- i- nupã-ta eu 1sg/2pl(A/O)-dir-bater-Fut ‘eu baterei [em] vocês’

(10) marca-se caso ergativo/absolutivo e voz inversa com { r- ~ Ø- }) a) 2 A 1 O

ndetɨpo ʃereʃa woi

nde-tɨpo ʃe- ɾ- eʃa woi você-inter 1sg(O)-inv-ver mesmo ‘você me viu mesmo?’

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149 b) 3 A 1 O

haʔe ʃeraihu haʔe ʃe- ɾ-aihu ele 1sg(O)-inv-amar ‘ele/a me ama’ c) 3 A 2 O

haʔe ndenupã

haʔe nde- Ø- nupã ele 2sg(O)- inv-bater ‘ele te bate’

Em kaiowá, quando estão envolvidas duas 3as. pessoas, como em (11), propomos que o

prefixo {o-} marque (A) e o afixo {i-} identifique a voz direta e não o pronome inativo codificador de (O), uma vez que, esse mesmo afixo {i-} coocorre junto aos afixos pessoais

portmanteau (série III), que codificam A e O simultaneamente, como visto em (9).

(11) 3 A 3 O

ɲaɲgwa oisuʔu kunũmĩpe

ɲaɲgwa o- i-suʔu kunũmĩ-pe cachorro 3ª.(A)-dir-morder menino-Acus ‘o cachorro mordeu o menino’

Finalmente, apresentamos o quadro (4), que sintetiza a presente proposta de análise da marcação de caso e de voz para a língua kaiowá:

Quadro 4 – Síntese da marcação de caso e de voz em kaiowá.

A O Hierarquia Caso Voz

1 - 3 2 - 3 3 - 3

A > O ACUSATIVO DIRETA

1 - 2 A/O INCARACTERÍSTICO DIRETA

2 - 1 3 - 1 3 - 2

A < O ERGATIVO INVERSA Fonte: Elaboração própria.

Em suma, em kaiowá, quando as construções são marcadas com a série II/r-, são consideradas construções inversas, tendo o morfema {r-} como marcador de voz inversa, como propôs Payne (1994), e quando as construções são marcadas com a série I/i- ou com a série III/i, propomos que sejam construções diretas-ativas, tendo o morfema { i-} como marcador de voz direta.

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Considerações finais

Tendo identificado aspectos gramaticais próprios da marcação de caso e voz na língua kaiowá, consideramos, finalmente, que a marcação gramatical é entendida como traço essencial para o estabelecimento das relações gramaticais – de sujeito e objeto – numa língua. No entanto, advertirmos para o fato de que a identificação das funções gramaticais de cada argumento deve ser considerada primeiro e, que é um erro classificar uma língua como sendo ergativa ou não, sem antes se perguntar em que extensão ou em quais construções particulares esta língua é ergativa ou é acusativa. Antes, vale considerar que os dois sistemas de marcação de caso predominantes nas línguas do mundo – o ergativo e o acusativo – mostram que S pode ser identificado tanto com A quanto com O, o que nos leva a concluir que a relação de S com A ou com O não pode ser entendida como um reflexo direto das relações gramaticais de sujeito e de

objeto.

REFERÊNCIAS

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Language typology and syntactic description. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.

v. 1.

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CARDOSO, Valéria Faria. Gramática kaiowá: estratégias de marcação de caso. In: OLIVEIRA, Dercir Pedro de. (org.). Estudos linguísticos: gramática e variação. Campo Grande: Ed. UFMS, 2011.

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COMRIE, Bernard. Language universals and linguistic typology: syntax and morphology. Chicago: Chicago University Press, 1981.

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Recebido em 04/11/2019. Aprovado em 25/11/2019. Publicado em 31/12/2019.

Referências

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