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ÁREA TEMÁTICA 8 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

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Academic year: 2021

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ÁREA TEMÁTICA 8 – PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

Minoritização e construção do povo: reflexões sobre o surgimento evangélico na

América do Sul

Joanildo Burity1

Resumo

Este artigo argumentará que a emergência dos evangélicos na vida pública nos países sul-americanos desde meados dos anos 1980 levanta questões sobre como as minorias religiosas podem forjar um lugar para si na identidade nacional bem como remoldar a própria conformação do povo. Os conceitos de minoritização (Connolly) e de povo (Laclau) podem contribuir para uma construção teórica que vai além das abordagens clássicas da secularização clássica e de inspiração liberal na ciência política. Essa construção está ciente das diferenças regionais significativas no perfil das minorias religiosas, suas formas de mobilização e capacidade de produzir integração e impacto nas formas institucionais sociais e políticas. O trabalho é baseado em casos do Brasil, Argentina e Peru, explorando a interação da auto-afirmação minoritária, pluralização social e religiosa e desdemocratização em curso na região.

Introdução

Este artigo se propõe a refletir sobre o processo de emergência evangélica na vida pública, com destaque para o Brasil, e sua configuração recente, que parece apontar para uma etapa nova: uma hegemonia evangélica na cultura intentando traduzir-se como hegemonia política. Como projeto de direção moral e política da sociedade. Entendendo a multidimensionalidade e contingência dessa experiência, proponho-me a focar a análise na oscilação semântica e política dos termos “povo”, “o povo”, e sua qualificação (“evangélica”?), o que remete a debates recentes sobre um momento populista (Mouffe 2018) da política internacional, fortemente associado a

protagonismos religiosos.

Embora o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, efetivamente marquem um salto qualitativo nesses desenvolvimentos, não precisaríamos de muito esforço para encontrar paralelos com outros países da América Latina. A eleição de Jimmy

Morales, na Guatemala, em 2015, ele mesmo evangélico, já assinalara, anos antes do Brasil, uma forte presença de militares da reserva na formação de governo, como também se deu com

1 Pesquisador titular do Centro de Estudos sobre Cultura, Identidade e Memória da Fundação Joaquim Nabuco.

Pro-fessor dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Email: joanildo.burity@fundaj.gov.br.

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Bolsonaro, capitão reformado do exército, com seu general vice-presidente, oito ministros de estado e centenas de militares de várias patentes em cargos menores (Althoff 2019, 304–6; Pereira 2020). Bolsonaro concorreu com Marina Silva e Cabo Daciolo – evangélicos – no primeiro turno da eleição. Morales também concorreu, em 2015, com pessoas evangélicas – Luís Fernando Pérez, Mario Estrada, e a filha do ex-ditador Efraín Ríos Montt, Zury Mayte Ríos Sosa (Althoff 2019, 307). Como no Brasil, também na Guatemala o voto da população evangélica não destoou da tendência geral da população. Embora a minoria evangélica tenha se alinhado maciçamente com Morales e Bolsonaro, não os teria elegido sozinha (Althoff 2019, 309; Fonseca 2018; Cunha 2017; Dary 2019). A tendência espraia-se na região: Bolívia, Colômbia, México, Nicarágua, Peru vêm sendo palco de semelhantes expressões do protagonismo político evangélico (Kourliandsky 2019; América Noticias 2019; Ortega Gómez et al. 2019; Lissardy 2018; Mariano y Gerardi 2019).

Essas sinalizações, na verdade, estão longe de expressar plenamente o impacto da atuação

evangélica. De um lado, a emergência política tem sido acompanhada de uma notável ocupação de espaços no âmbito da vida cotidiana, particularmente nas comunidades mais pobres e periféricas, e de uma vívida disputa por hegemonia cultural (shows, marchas, ofertas de cursos, mídia e redes sociais, formação universitária) (C. Machado 2018a; Gooren 2010).

“Os evangélicos” tornaram-se um movimento social, crescentemente apelando a setores mais amplos do conservadorismo social e político, religiosos ou seculares. Isto se deu em paralelo aos avanços de uma estratégia eleitoral de construção de uma autorrepresentação, em reforço mútuo. Um dos efeitos foi, em completo descompasso com a história das igrejas protestantes no Brasil e em outros países, uma intensa utilização dos templos e dos cultos para promover mobilizações de diversa natureza, inclusive político-eleitoral (os apoios explícitos aos “candidatos evangélicos”, via os “conselhos políticos” de igrejas pentecostais e neopentecostais).

De outro lado, seria precipitado, mesmo agora, inflacionar este poder de fogo, como se se tratasse de um juggernaut fundamentalista, destruindo liberdades e recriando uma “idade das trevas”. “Os evangélicos” são uma formação discursiva do campo protestante conservador, majoritariamente pentecostal, construída ao longo de mais de três décadas, com diferentes níveis de sucesso. Se o número de evangélicos varia muito na América Latina – de 9% da população no México, a 41%, em Guatemala e Honduras, o Brasil ficando a meio caminho, com 26% (Bell, Sahgal, y Cooperman 2014) – essa articulação se origina num setor altamente profissionalizado e ativista, uma elite. Além da heterogeneidade organizacional deste campo – denominações de grande porte, pequenas denominações, igrejas independentes, comunidades avulsas, organizações paraeclesiásticas, projetos, think tanks, etc. – a terminologia utilizada pelos censos e surveys não pode ser tomada como constativa. É de caráter agregativo, interpretativo. Se 65% dos evangélicos, em toda a região, são pentecostais, isso não caracteriza uma unidade de comando, identidade ou atuação. Se é fato que, nas duas últimas décadas, essa visibilidade e poder de mobilização evangélica galgou espaços de ponta na vida cultural e política, a agenda aparentemente comum dessas intervenções é contestada, se implementa em distintas proporções e com distintos graus de sucesso.

Em outras palavras, é hora de começar a juntar a inúmeras pesquisas e esforços de interpretação de conjunto desses fenômenos, no intento de produzir uma teorização de sua trajetória e

consolidação, sem perder de vista sua pluralidade e contestabilidade. Não creio que se trate de uma macroteoria, mas de protocolos de análise que combinem um olhar sobre os dados que os interrogue e relacione a uma multiplicidade de contextos. Este é um desafio para as ciências sociais da religião latino-americana, muito coladas a um empirismo localista e resistente a construir teoricamente.

A dupla visada que pretendo ensaiar aqui permite ver a emergência evangélica como construção de uma nova subjetividade política (Howarth 2006; Glynos y Stavrakakis 2008), ou seja, na

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construção de um novo povo. Ou ainda, na rehegemonização do povo. Não em sua origem, mas em seu destino. Primeiro, através da demanda de ser parte legítima do povo-nação (sendo aqui o anticatolicismo e a reivindicação do léxico dos direitos de cidadania os principais movimentos). Depois, especialmente nos últimos cinco a seis anos (escrevendo no começo de 2020), assumindo-se como sujeito político constituído, com a pretensão de redefinir o povo-nação como povo evangélico.

A modo sugestivo, como afirmou recentemente Pérez Guadalupe, comentando o livro “Plano de Poder”, de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus:

Ciertamente, no se trataba de un plan de gobierno o cosa parecida, sino de una relectura bíblica so-bre un supuesto ‘proyecto político de nación’ (la llamada ‘nación cristiana’) que Dios ha diseñado para ‘su pueblo’ (antes Israel, ahora el pueblo cristiano), y que debe culminar con la toma del poder por parte de los ‘cristianos evangélicos’. (Pérez Guadalupe 2019, 14)

O próprio Macedo, neste livro, parece sinalizar para um continuum entre a ativação de uma identidade política evangélica – para além das barreiras históricas, doutrinárias e ideológicas que separariam os agentes desta identidade – e sua tradução num projeto nacional: “En esa causa,

las cuestiones ideológicas y doctrinarias denominacionales deben quedar aparte; de lo contrario, dejaremos de cumplir algo que es común a todos nosotros, los cristianos: ejecutar el gran proyecto de nación ideado y buscado por Dios” (Macedo 2008, apud Pérez Guadalupe, 2019, 87).

É do ex-bispo da IURD e grande articulador do modelo (neo)pentecostal de fazer política, Carlos Rodrigues a seguinte afirmação:

O Senhor Jesus disse que se devia dar a César o que é de César, mas a Deus, o que é de Deus. É bom saber que o próprio lugar de César pertence a Deus. Os cristãos primitivos anunciavam isso dizendo que “Só Jesus é Senhor”. A IURD ostenta com alegria, em todos os seus templos, a inscrição Jesus Cristo é o Senhor, proclamando a todo mundo em quem deposita sua confiança. É tempo de pensar em eleições, o povo de Deus precisa mostrar que realmente deve estar no comando. (apud Santos 2009, 15)

Em outras palavras, creio ser possível analisar essa dupla dinâmica à luz da problemática do

populismo, tal como a entendeu Laclau (Laclau 2014; 2005), mas que é alvo de crescente produção e elaboração crítica internacional, particularmente na última década. Proponho suplementar essa abordagem caracterizando essa emergência como processo de minoritização (Burity 2017;

Connolly 2011). Se, de um lado, essa emergência começa com uma asserção coletiva de um novo ator, de outro, ela deve ser entendida não como simples aparecimento, mas como um evento que desloca o status quo ante, trazendo à visibilidade novos atores, novas demandas e novas formas de configuração do poder e do vínculo social. Em torno destas duas referências básicas, proponho uma gramática interpretativa para o fenômeno. Suspeito que não restrita ao caso brasileiro. Assim, começarei com uma apreciação de conjunto dessa emergência enquanto acontecimentos, passando a dialogar com a teoria do populismo como uma forma política, como propõem, com diferentes consequências analíticas, Laclau e outros autores recentes, e com a categoria

minoritização. Nas duas últimas seções, desenvolverei cada aspecto da visada proposta: uma luta por reconhecimento com objetivo inclusivo (evangélicos como povo nacional) e uma disputa hegemônica pelo povo nacional, para defini-lo como “evangélico”.

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O momento populista evangélico: de que(m) se trata?

A mobilização política dos evangélicos conservadores tem reforçado interpretações deterministas e negativas, seja em relação a este grupo, seja “à religião” em geral. São genericamente definidos como conservadores, reacionários, autoritários, fundamentalistas, etc. São vistos, ora como obtusos, ora como oportunistas, ora como ameaçadores. São vistos como índices de uma malaise democrática, quiçá anunciando uma reversão autoritária da democracia (via uma aliança

“fundamentalista-fascista”, termos usados frouxamente, para fins polêmicos, como se fossem descritivos).

A novidade, nos últimos anos, tem sido a emergência de um modelo de politização que parece atualizar em muitos países da América Latina um apelo geral ao povo, quer pelo chamado à construção de uma autorrepresentação legislativa e de blocos parlamentares, quer pela conivência com meios autoritários ou francamente golpistas de exercício do poder executivo, quer por um casamento canhestro entre neoliberalismo radical e moralismo de base religiosa. Mas do que se trata, essa trajetória de mais de três décadas? Quem são estes atores? Estamos de volta, nesta conjuntura, às interpretações mais céticas do passado, que viam em qualquer intercurso entre religião e política uma ameaça?

Este processo cujo aparente desfecho nos alarma e desconcerta, jamais foi regido por um telos. Os últimos lances não correspondem exatamente às expectativas ou previsões de todos os atores implicados (tomando a origem do processo no início dos anos 19802), para bem e para mal. Não é a história de uma conjuração premeditada. Seu desfecho (se é que isto já se deu – suposição não fundamentada de muitos intérpretes) não estava anunciado na origem, ou seja, na própria identidade ou “interesses” pré-definidos dos atores. Não tem havido uma condução desde um único lugar ou uma convergência estável deles. A voz triunfante dos atores atuais parece tecer uma narrativa linear e homogênea de como chegaram até aqui. Mas não podemos partir dessa petição de princípio.

Assim, é preciso dar conta desse processo de politização enquanto uma trama de iniciativas, projetos e reações de pessoas, grupos e instituições evangélicas, tendências macrossociais e contingências das políticas nacionais, sobrepondo-se, chocando-se e articulando-se, mas jamais plasmando-se num único discurso ou projeto e nunca definindo-se a partir dos evangélicos, isoladamente. O juízo sobre os conteúdos concretos desse processo, em distintas conjunturas, deve no mínimo considerar sua abertura e contingência (mudanças de atores-líderes, mudanças de rota, incidência de adversários e aliados sobre a identidade e agenda dos sujeitos constituídos, fracassos, sucessos inesperados, incertezas quanto ao futuro, crescente impossibilidade de manter-se refratário a fluxos e reações, recentes articulações transnacionais que mudam a pauta da politização evangélica latino-americana).

Os evangélicos foram arrastados cada vez mais para fora do (auto)isolamento em razão da aceleração do processo de abertura política e de uma crise econômica persistente (anos 1980 e 1990), que atingiu duramente os setores populares, que abriram novas perspectivas de

organização coletiva, conquista de direitos e ampliação de espaços de participação (na saída dos autoritarismos). Também contou a intensificação da dinâmica global/local desde os anos 1990, em termos culturais, econômicos e políticos (Freston 1993, 149–221; Burity 2017; Mallimaci 2015; Parker 2016; Carbonelli y Jones 2015; Barrera Rivera y Pérez 2013; Oro 2005; Pierucci 1989).

2 Inúmeros autores coincidem, corretamente, em datar a emergência evangélica na América Latina a partir dos

anos 1980. Isto não significa que falamos de um grau zero, mas de uma etapa em que alto crescimento demográfi-co, automobilização e um contexto expansivo de democratização coincidiram, criando um ponto de virada. Donde o termo emergência. Nosso foco, neste artigo, é no período acima indicado, consciente de que há outras referên-cias históricas que mereceriam entrar numa análise mais aprofundada e abrangente. Menções esparsas a esta tex-tura histórica serão feitas ao longo desta seção.

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“Os evangélicos” emergem desde um processo profundo de pluralização social e cultural, que mudou a face das sociedades latino-americanas. Sua configuração reacionária de hoje é mais o resultado de disputas no interior dessa ordem pluralizada do que o desdobramento de um plano. Fruto dessa mesma pluralização e da ampliação das vozes, demandas e agendas que ela gerou nas sociedades latino-americanas saindo de experiências ditatoriais ou autoritárias, a politização evangélica cedo achou-se dividida entre compartilhar ou reformular os espaços públicos e os marcos legais construídos para reconhecer e dar lugar às vozes subalternas reveladas pela pluralização (ou seja, minoritizadas). E foi necessário derrotar segmentos moderados

(“progressistas”) do campo evangélico, históricos e pentecostais, para que a face francamente reacionária de uma elite parlamentar e pastoral poderosa emergisse. Esta é uma história com dois grandes capítulos: a neutralização do evangelicalismo, no começo dos anos 1990; e a

“tea-partidização” da liderança pentecostal na última década3, conformando uma nova “máquina de ressonância evangélico-capitalista”, como a chamou Connolly para os Estados Unidos.4

Minha sugestão, no intento de compreender esses desenvolvimentos recentes, é partir da autopercepção de uma incongruência entre o crescimento demográfico dos evangélicos

(especialmente os pentecostais) e sua presença pública, desde fins dos anos de 1970. Esta leitura coincidiu com a abertura política do período, com relativa normalização do jogo partidário (pluripartidarismo) e eleitoral. Foi alvo de agenciamentos e articulações difíceis. Havia resistência maciça das igrejas ao envolvimento com a política, que durou até o final dos anos 1990. Ela foi sendo contornada por meio de iniciativas inicialmente modestas e de pouca visibilidade pública (Santos 2009, 14–63 esp. 48-51).

O esforço de construção de uma voz própria, por meio de uma estratégia de representação

política, internamente diferenciada e politicamente assimétrica, passou por afirmar, para dentro e para fora, o crescimento numérico dos pentecostais. A isto se somou uma disputa com o quase-monopólio da representação por parte dos protestantes históricos.5 Essa emergência evangélica contrastou com a politização dos anos 1950 e início dos 1960, que foi marcada por forte

engajamento em movimentos sociais urbanos e rurais, diálogo com a esquerda marxista, encontro das experiências ecumênicas locais de décadas anteriores com o ecumenismo global recém-institucionado (Conselho Mundial de Igrejas e o movimento de Igreja e Sociedade na América Latina) e acompanhada por efervescente debate teológico (Burity 2011; Bastián 2013; Longuini Neto 2002).

A nova politização se ancora num novo sujeito religioso, tem outra linguagem e agenda e é fortemente voluntarista e pragmática. Na verdade, outro protestantismo emergia no início dos anos 1980, após décadas à margem da vida pública, mas bastante integrado ao cotidiano popular rural e urbano. Diferentemente da leitura bastante binária proposta por intérpretes como Bastián

3 O Tea-Party é um movimento de extrema-direita no Partido Republicano dos Estados Unidos que procurou

articu-lar precisamente demandas por valores tradicionais, política externa intervencionista e agenda socioeconômica ul-traliberal. Sua confluência com setores da direita religiosa americana serve aqui como uma metáfora para proces-sos em andamento em outros contextos nacionais (Amadeo 2019; Formisano 2012).

4 Estas duas viradas que marcaram decisivamente a supremacia da política pentecostal sobre o campo evangélico

brasileiro têm capítulos escritos em outros contextos latino-americanos e internacionais, nos quais uma “esquerda evangélica” se constituiu (Kirkpatrick 2019; Clawson 2012; Escobar 2011). Esta esquerda, que construiu referências institucionais através do debate teológico e de agências paraeclesiásticas, presentes na América Latina, como Vi-são Mundial, Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos, e outras em cada país (Freston 1993, 122–34; Burity 2006; Offutt 2015, 109–30). Embora muito poucos pentecostais brasileiros tenham se aproximado dela, a realidade em outros países latino-americanos foi e é distinta (Alvarez 2014; Corvalán 2012).

5 Desde os anos 1950, os pentecostais representavam a maioria dos protestantes no Brasil e quase toda a América

Latina (Semán 2019; Lacerda y Brasiliense 2018). Mas no caso brasileiro, até 1982 nenhum deputado pentecostal havia sido eleito. E a primeira “bancada”, ainda dividindo espaço com o protestantismo histórico (conservadores, liberais e de esquerda), só veio em 1986 (Campos 2006; Freston 1993; M. das D. C. Machado 2015).

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e atores ligados ao campo ecumênico, em parte assumida recentemente por Pérez Guadalupe em sua leitura panorâmica da experiência evangélica na política latino-americana (Bastián 1993; Pérez Guadalupe 2019, 31–33), a disputa se deu em diferentes frentes, cruzadas de forma imprevisível e contingente. Teologicamente, além dos ecumênicos e dos fundamentalistas, surgiram com alguma força nos anos 1980, os evangelicais (“missão integral”). Ideologicamente, os debates sobre o socialismo, a democracia, o pluralismo democrático e o impacto das políticas de identidade não deixaram de penetrar esse campo. Politicamente, destacaram-se o embate com o comunismo, o catolicismo, as lutas por terra, justiça de gênero e afirmação da diversidade sexual, o acesso às políticas sociais, a reação às políticas de patrimonialização cultural e igualdade racial

(supostamente privilegiando a Igreja Católica e as religiões afro-brasileiras).

Não há uma linha contínua de conservadorismo em todas essas direções. Houve variações e oscilações ao longo do período. Houve reações e derrotas. A vigente é o produto de uma agência deliberada que não remonta a mais do que dez anos, pelo menos no caso brasileiro. O

anticomunismo e o anticatolicismo que marcaram a primeira década da chegada dos pentecostais à política, e os levaram a apoiar a candidatura de populista de direita Fernando Collor de Melo, não os impediram de aproximar-se do centro político (Fernando Henrique Cardoso) e chegar a apoiar duradouramente, por treze anos, a esquerda democrática (Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff). Nunca se tratou de apoio incondicional. As estratégias passaram por candidaturas de diferentes partidos. Os assembleianos tenderam a somente convergirem à esquerda depois de aliar-se a candidaturas de centro e direita no primeiro turno das eleições, desde 2002. Já os neopentecostais, capitaneados pela IURD, selaram uma aliança com o Partido dos Trabalhadores (PT), em 2002, que só se desfaria em 2016.

A despeito da tomada de controle do já existente Partido Social Cristão (PSC) pela Assembleia de Deus, e da criação do Partido Republicano Brasileiro (PRB), pela IURD, os pentecostais nunca conseguiram unificar sua militância (Valle 2018; Lacerda 2017). Tampouco tiveram sucesso eleitoral na maioria das candidaturas. Crescentemente, desenvolveram estratégias

inter-confessionais e mesmo interreligiosas para aprovação de pautas de seu interesse (Pérez Guadalupe 2019, 13). Neste sentido, a experiência de vários países latino-americanos, de criação de partidos evangélicos, nunca chegou a ter real paralelo no Brasil (Wynarczyk, Tadvald, y Meirelles 2016; Wynarczyk 2006; Freston 2017).

A candidatura do Pastor Everaldo (Assembleia de Deus), pelo PSC, à Presidência da República, em 2014, marcou uma fragorosa derrota para grupos que alimentaram, nas Assembleias de Deus, a ilusão de eleger um presidente pentecostal (Gonçalves 2015). Mas, de um ponto de vista simbólico, ela trouxe à luz a primeira articulação explícita de um discurso neoconservador, no sentido da política norte-americana pós-Bush (Connolly 2008; 2017). Articulação que já passava por uma aproximação com Bolsonaro (Portinari 2018). Em clara divergência com os rumos da política de alianças até então, Everaldo Dias apresentou-se com uma proposta radicalmente neoconservadora em termos econômicos, sociais e culturais. Esta articulação, ainda improvisada e inconsistente, avançou ao ponto de tornar-se a posição majoritária da Frente Parlamentar

Evangélica, às vésperas do segundo turno das eleições de 2018 (Frente Parlamentar Evangélica 2018; Almeida 2017; Burity 2018a).

A derrota eleitoral das principais forças político-partidárias do país, nas eleições seguintes à saída da presidenta Dilma Rousseff, em maio de 2016, deixou o terreno aberto para movimentações minoritárias de outro cariz. O visceral antipetismo instalado direcionou-se à esquerda como um todo, tornando plausível a articulação de forças buscando conciliar interesses neoliberais e pautas morais conservadoras. Abriram-se espaços para uma tentativa de protagonismo da direita

evangélica que, embora tenha colhido menos frutos do que ambicionou, lhe proporcionou grande visibilidade e voz.

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Após o golpe do impeachment, em 2016, parlamentares transformados em ministros ou altos gestores, profissionais assumindo a direção de órgãos públicos importantes, pastores na ribalta do poder (Pacheco 2017; Agência Brasil 2016; G1 Política 2016). Houve um desmonte de programas e políticas e uma intensa agenda de reformas legais e constitucionais aceleraram a tomada do poder pela direita. Tudo em nome de uma retórica religiosa de “religação” da sociedade brasileira, como expressou Michel Temer ao assumir a presidência (UOL 2016; Ruffato 2016).

Tal movimentação política de pastores e parlamentares configurou um momento inédito da ascensão dos evangélicos conservadores na política brasileira: a prerrogativa de formular e

executar políticas públicas nacionais e locais e de propor mudanças legislativas, em outro patamar de autoridade política. Mais do que isso, em deliberado intento de pautar o debate público. Este momento implica, portanto, na necessidade de a política evangélica transpor os limites de uma fé minoritária e apresentar-se como detentora ou fiadora de uma recomposição da sociedade tida como simultaneamente ameaçada por uma crise financeira, uma crise política e uma crise moral. Em suma, “os evangélicos” se apresentam como mediadores da tal “religação” social, moral e política. Unificação de uma sociedade de cuja polarização e fragmentação foram e continuaram sendo artífices destacados!

A campanha e eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República, em 2018, a despeito do alarme com que foi recebida, consagrou essa imagem da “religação” em sentido irônico: ele ampliou o desligamento da hierarquia católica, vinculando-se organicamente (por vezes de forma claramente instrumental) ao campo religioso conservador, especialmente a direita evangélica, bem como promovendo uma volta dos militares ao centro da política (Pereira 2020) e “convertendo-se” dogmaticamente ao ultraliberalismo. Empossado no início de 2019, Bolsonaro convidou cinco evangélicos para os ministérios (Cunha 2019). Muitos outros cargos na estrutura do governo têm sido ocupados por evangélicos. A religação bolsonarista, entretanto, não unificou os religiosos em geral, instituiu uma retórica agressiva e uma incitação à divisão social em todos os níveis, segundo a imagem da “guerra cultural” (Finguerut y Souza 2018). Os efeitos destrutivos das mudanças realizadas no primeiro ano e a inépcia governamental para reverter o quadro de recessão e

desemprego, têm levado muitos evangélicos nas bases a reverem seu apoio à coalizão bolsonarista (Fachin y Vital da Cunha 2019; Fachin y Cunha 2019).

Religião, o povo e as metamorfoses da democracia: fazendo senti-do de recentes debates sobre o populismo

A emergência de uma nova subjetividade política é um processo que de forma alguma se esgota numa autopoiese, na construção de uma vontade coletiva a partir de si mesma. A existência de grupos, identidades, organizações, movimentos não os caracteriza automaticamente como agentes autônomos, com um projeto previamente elaborado. Embora sociodemograficamente exista há quase dois séculos, a população protestante no subcontinente latino-americano não teve uma trajetória contínua, ascendente, social e politicamente ativa, nem se apresentou, nas últimas décadas, em pura continuidade com expressões do passado. Deu-se um processo jamais alcançado na atual escala, de constituição de uma agência autoassertiva, de uma emergência minoritária, que hoje se apresenta como uma das principais forças políticas na região.

Esta emergência correspondeu à ativação de outras identidades evangélicas, profundamente transformadas em relação a gerações anteriores, mas, crucialmente, também em relação a outros atores, religiosos e não-religiosos, e a macrotendências sociais. Não há identidade antes de uma experiência de antagonismo (ameaça, instabilidade, agressão, medo, incerteza radical) ou de

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deslocamento (acontecimentos imprevistos, ação de forças macrossociais, incongruência entre autopercepção e realidade). Toda identidade é dividida.

Não basta apontar a multiplicidade evangélica. É preciso admitir que não há um centro irradiador, seja de sentido, seja de direção, do que significa ser evangélico. Temos uma lógica (derridiana) da não-totalização. A “diversidade” não é tanto uma riqueza inesgotável ou irredutível de posições, mas a impossibilidade de fixação de um centro normativo, irradiador dos atributos de uma identidade comum. Há centro, mas está sujeito ao jogo, ou seja, se define em relação a um exterior constitutivo, é resistido desde as margens e as brechas que não consegue controlar, é disputado de dentro e de fora. A posição/identidade/cena evangélica é intotalizável e contingente (Derrida 1995, 229–34; Burity 2015a).

O processo de ativação de uma identidade coletiva constitui o que chamei de subjetividade política. De acordo com Glynos e Howarth,

em lugar de priorizar estruturas sociais totalizadas e determinantes, por um lado, ou sujeitos total-mente constituídos, por outro, começamos por aceitar que os agentes sociais sempre se encontram “jogados” num sistema de práticas significativas, uma imersão que dá forma a sua identidade e estru-tura suas práticas. No entanto, também agregamos a observação crítica de que estas estruestru-turas são ontologicamente incompletas. De fato, é no “espaço” ou “brecha” das estruturas sociais, quando se tornam visíveis em momentos de crise e deslocamento, que um sujeito político pode surgir através de “atos de identificação” particulares. Ademais, como se entende que estas identificações têm lugar numa gama de possíveis ideologias ou discursos, algumas das quais estão excluídas ou reprimidas, e dado que estas sempre são incompletas, qualquer forma de identificação está condenada a descum-prir suas promessas (Glynos y Howarth 2007, 79; v. tb. 127-132; Mouffe 2013, 5).

Portanto, a identidade evangélica não se define pela mera multiplicidade de grupos, comunidades e posicionamentos. Ela é internamente dividida e aberta. É também definida relacionalmente, ou seja, não possui um lugar fixo em alguma topografia social ou um núcleo identitário duro e imutável. Neste sentido, os evangélicos não “entraram na política” porque algo lhes faltava ou porque tinham um projeto pronto para realizar. Entraram porque algo lhes ameaçava, à sua integridade e “razão de ser”. E foram convencidos a entrar por argumentos que conectavam um cenário de ameaça a uma interpelação à ação obediente e responsável (diante de Deus).

Minha hipótese é que esta construção da identidade pentecostal como identidade geral dos protestantes brasileiros – “os evangélicos”, “o povo evangélico” – é um efeito agonístico de uma conjuntura de ativação de uma nova subjetividade política (a partir dos anos 1980), um novo povo brasileiro pós-ditadura. A disseminação do discurso da batalha espiritual, a difícil relação com a esquerda, a intransigência dogmática, o proselitismo irreprimível são indicativos dessa

característica agonística, no domínio das práticas religiosas pentecostais (M. das D. C. Machado 2015; C. Machado 2018b; Mariz 1999). A nomeação da crise de valores, da ameaça do domínio católico ou da legitimação das religiões afro-brasileiras, o enfrentamento da corrupção e do comunismo ateu, o reconhecimento dos evangélicos como cidadãos de pleno direito são elaborações no âmbito de uma nova formação discursiva dos evangélicos na política. Correspondem às demandas do termo coletivo “evangélicos”, a partir de 1986.

A constituição de uma identidade coletiva, de uma subjetividade política, pode ser vista como a construção de um povo. Laclau afirma no título de um de seus trabalhos que “construir um ‘povo’ é a principal tarefa da política radical” (Laclau 2014). O que define a unidade de um sujeito coletivo não são sua posição social ou atributos fixos compartilhados, mas uma articulação de demandas (Laclau 2005, 9, 97–99). Essas demandas não se originam num único lugar de enunciação, nem são iguais entre si, mas são articuladas à medida que “se reconhecem” como solidárias entre si, ou equivalentes, por serem todas insatisfeitas e poderem atribuir a fonte dessa insatisfação à ordem

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vigente, ao governo incumbente, a uma força externa superior. Segundo Laclau, como o que unifica essas demandas é muito mais um nome (uma delas que se alça à posição de representante geral das demais), “a necessidade de um cimento social que una os elementos heterogêneos ... outorga centralidade ao afeto na constituição social. Freud já tinha entendido isso claramente: o laço social é um laço libidinal” (Laclau 2005, 10).

Esse sujeito é chamado de “povo” não porque coincida com os limites da nação (a sociedade) ou do estado (a cidadania), mas porque se define como o conjunto dos “de baixo”, dos excluídos, da parcela dos sem-parcela (Rancière), em confronto com um poder instituído ou uma força

antagonística externa. Segundo Laclau, somente quando esses excluídos reivindicam representar o conjunto da ordem comunitária, passam da condição de plebs a populus, o povo do populismo. Quase o mesmo diz Rancière (Rancière 1996, 22–23).

Populismo não é uma ideologia, um movimento, ou qualquer coisa com conteúdos

especificamente definíveis (como em quase toda a história do conceito). Populismo é uma lógica política, uma lógica de construção do vínculo social a partir da demarcação de uma fronteira que dicotomiza o social entre os de baixo e os de cima, o povo e a elite/seus inimigos. O povo, como afirma Rancière, é uma parte que, só tendo o que os outros têm – a liberdade – e, portanto, não tendo parte própria, reivindica o lugar da comunidade em geral (como nos termos “descamisados”, “os 99%”, “somos todos X”). Como forma, o populismo e seu sujeito, o povo, assumirão os mais diferentes conteúdos concretos. Em outras palavras, afirma Laclau, “uma determinada demanda, que talvez no começo era apenas uma entre muitas, adquire, em certo momento, uma

centralidade inesperada, e se torna o nome de algo que a excede, de algo que não pode controlar por si mesma, e que não obstante se converte num ‘destino’ do qual não pode escapar” (Laclau 2005, 153).6

Este processo pelo qual uma demanda particular se transforma num nome (ou símbolo) de algo maior do que ela, e não por sua pura vontade e iniciativa, corresponde ao processo pelo qual uma parte que “encontrou seu lugar” no todo (que, naturalmente, não o era, definindo-se como tal precisamente por havê-la excluído), se torna o nome de uma nova ordem, um novo horizonte a alcançar, em meio às outras com que se juntara. A demanda deixa de ser particular e se torna hegemônica (Laclau 2005, 107). Esta passagem, em Laclau, não está predeterminada, nem assegurada. Uma demanda pode vir a dar conteúdo geral a um novo sujeito político, ou pode manter-se disputada por outra cadeia de equivalências. São as condições de vigência e “gestão” do antagonismo que definirão o destino possível de uma demanda (ou feixe de demandas).

Assim, de um lado, “ao conceber o ‘povo’ do populismo”, diz Laclau, “necessitamos de algo mais: necessitamos de uma plebs que reclame ser o único populus legítimo” (Laclau 2005, 108). De outro lado, algumas dessas demandas/diferenças podem estar (e frequentemente estão)

vinculadas a outras cadeias de equivalência existentes num dado momento na sociedade, e serem alvo de disputas por sua hegemonização (ou seja, a fixação parcial de sua identidade, de seu sentido). Podem ser “roubadas”, “atraídas”, “neutralizadas” por outros discursos. Outras podem simplesmente não encontrar nenhuma possibilidade de inclusão, serem consideradas

inassimiláveis, espúrias, perigosas, numa palavra, heterogêneas (Laclau 2005, 165–68, 175–77).

6 As múltiplas formulações desta fenomenologia da emergência do povo deixam uma certa ambiguidade que não

tenho como elaborar aqui: ora há quase um continuum em três estágios: solicitações feitas no interior da instituci-onalidade podem ser lançadas em questionamento às instituições e, em permanecendo insatisfeitas, se afirmarem contra a institucionalidade vigente (Laclau 2014, 149); ora, algo permanece em suspenso depois que um povo é constituído pela (1) demarcação da fronteira entre os de baixo e os de cima e (2) pelo reconhecimento de equiva-lências entre múltiplas demandas igualmente insatisfeitas, (3) “até que a mobilização tiver alcançado um nível mais alto”, no qual essas demandas se unifiquem num “sistema estável de significação”, uma formação hegemôni-ca (Laclau 2005, 99, 102).

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Como “a religião” ou identidades religiosas específicas podem ser relacionadas à lógica populista? Primeiramente, qualquer dessas formas de vinculação ao religioso pode articular demandas que sejam acatadas pela ordem vigente à qual são dirigidas – demandas por isenção fiscal, por acesso a recursos de leis de incentivo à cultura, por receberem recursos públicos para prover serviços comunitários, por dispensa de cumprimento da legislação contra discriminação no trabalho por motivos religiosos, por doação de terrenos públicos para construção de templos, por inclusão de festividades ou espaços religiosos em circuitos de turismo promovidos pelo estado, por atenuantes na caracterização legal de homofobia em espaços religiosos, etc. Pode acontecer que a linguagem religiosa se torne um recurso retórico no interior do discurso hegemônico ou mesmo na

articulação da mensagem de uma liderança populista. Quando assim logra, as demandas religiosas tornam-se diferenças dentro de um sistema, são inscritas simbolicamente e não mais oferecem – enquanto demandas satisfeitas – qualquer potencial de desafio à ordem.

Mas demandas religiosas podem também enfrentar várias formas de exclusão: ser atendidas parcialmente, ignoradas ou rechaçadas, em cujo caso se verão entre outras demandas em

condições semelhantes, compondo cadeias de equivalências com aquelas. Podem ser respondidas com desconfiança, desqualificadas como ameaça à ordem democrática. Podem ser antagonizadas. Pode ocorrer, a partir disso, que essas demandas se vejam parte de um conjunto de outras não satisfeitas pela ordem institucional, formando uma cadeia de equivalências com elas. Dependendo das circunstâncias, pode ser que uma dessas demandas religiosas (ou um conjunto limitado delas) assuma uma função de representação de alguma dessas cadeias, contestando a ordem vigente. Demandas podem, mais radicalmente, na discussão laclauiana, tornar-se inadmissível,

inassimilável, insatisfeitas, frente à configuração existente do povo. Isto as define como heterogêneas vis-à-vis o povo, quer em termos genéricos – “a religião”, num discurso

hegemonicamente secularista ou antirreligioso – quer em termos particulares – esta ou aquela prática religiosa fundamentalista ou reacionária, por exemplo.

Ao tomar posição em relação a essas formas de rechaço, os atores religiosos implicados podem recusar a classificação e localização definida pela ordem vigente desidentificando-se, como sugere Rancière. Isto pode se referir às ordens institucional e simbólica dominantes, ou às

correspondentes ao próprio campo religioso – sendo exemplos argumentos do tipo “não nos representam” ou a acusação de corrupção ou heresia da ordem majoritária ou da ortodoxia religiosa. Esta desidentificação é, na verdade, provocada por deslocamentos (Laclau) fora do controle desses atores religiosos dissidentes – crises internas, ataques externos ou efeitos subalternizantes de práticas dominantes. Conforme Rancière, “[t]oda subjetivação é uma

desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem de los incontados, de um relacionamento de uma parcela e una ausência de parcela” (Rancière 1996, 53). 7

Dos evangélicos como povo: a emergência minoritária

Baseado na discussão acima, proponho que a política evangélica latino-americana nas últimas décadas seja vista, em termos laclauianos, como uma construção do povo, expandindo meu argumento em publicações anteriores (Burity 2016; 2020; 2017; 2020). Construção discursiva do povo, no sentido teórico que lhe dá Laclau: configuração de um sistema de diferenças/identidades

7 Barros procura fazer uma aproximação das perspectivas laclauiana e rancièriana, tomando a segunda como

com-plemento da primeira, que permitiria especificar o que distingue uma articulação populista de uma não-populista. Outra formulação que combina as duas perspectivas, mas privilegia a rancièriana aparece em Arditi (Barros 2009; Arditi 2014).

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cujos elementos cobram seu sentido das relações que mantêm com outras no sistema; sistema aberto a interações com outros sistemas (portanto, não autodeterminado ou autorreferido). Como afirmei na introdução, “os evangélicos” são uma formação discursiva do campo protestante conservador, sob hegemonia pentecostal, construída ao longo de mais de três décadas, com diferentes níveis de sucesso. Como formação, é constitutivamente múltipla e cruzada por disputas dentro e fora. Há protestantes históricos conservadores, ecumênicos, evangelicais, pentecostais progressistas, desigrejados que continuam orbitando o campo, crendo sem pertencer (Davie 2015, 78–80). Há adversários de várias naturezas. E há todo um conjunto de processos deslocatórios que incluíram, entre outras, a gravíssima crise econômica desde meados dos anos 1970; a emergência de um movimento sindical aguerrido e de novos movimentos sociais em torno de demandas por vida digna, enfrentamento do racismo, bandeiras ecológicas, igualdade de gênero; etc.

Tenho chamado de minoritização, inspirado em William Connolly, esse processo de emergência de novos atores que questionam uma ordem excludente e fazem demandas por reconhecimento, inclusão e justiça. Neste processo, o que se abre para uns pode se abrir a outros, suscitando o medo de ser confrontados. A minoritização pentecostal não foi a única a emergir entre as religiões organizadas, cristãs e não-cristãs, e no crescimento de um amplo segmento dos sem-religião. Tampouco o processo se restringiu à religião, envolvendo mulheres, pessoas negras, indígenas, minorias sexuais, etc. No caso pentecostal, isso levou à articulação de um discurso de mobilização por via eleitoral que produziu um profundo impacto na política, no Brasil e em outros países latino-americanos (Burity 2016; 2017; 2015c; 2015b; Wynarczyk, Tadvald, y Meirelles 2016; Freston 2017).

Enquanto o avanço da democratização se manteve como horizonte geral dos grupos

historicamente excluídos e de igualdade política de cada um/a com quaisquer outros/as, tivemos a vigência de um momento “liberal-democrático” da politização evangélica. A demanda fundamental lançada à ordem democrática emergente foi a de serem “os evangélicos” reconhecidos como parte do povo democrático, parte da identidade “multicultural” ou “plural” do povo brasileiro. A

minoritização pentecostal corresponde em grande medida a esta dimensão da construção de um ator político pela afirmação de pertencimento ao povo e, por isso, a reivindicação dos direitos que animava o léxico da democratização. Neste sentido, minoritização corresponde a este primeiro momento da politização evangélica, seu momento a corporativo, pluralista e agonístico frente a outras demandas.

Uma dupla via foi assim articulada: (a) uma demanda de tomar parte na identidade nacional, naturalizada como católica – reclamando discriminações, perseguições e tentativas de

instrumentalização do apoio evangélico à política tradicional e invocando o crescimento exponencial em curso como trunfo (Alves et al. 2017); (b) uma reivindicação de tratamento equânime, como já disse, no ordenamento político-cultural emergente, o que abria o povo evangélico a inserir-se em cadeias de equivalência opondo os “de baixo”, que emergiam como “projeto democrático-popular”, ao autoritarismo, corrupção política, violência, desigualdades e discriminações vividas pela maioria do povo nacional.

Enquanto a primeira via foi acionada pelos conservadores apenas, a segunda via se dividia agonisticamente entre conservadores e “progressistas” evangélicos.8 A primeira via alimentou o 8 O termo conservador aqui recobre uma variedade de posições e respostas à conjuntura sociopolítica, no campo

protestante. Desde os que reagiam duramente a qualquer ideia de politização aos que iniciavam uma mobilização quase inédita entre os pentecostais. Mas é preciso destacar a emergência, ao longo dos anos 1970, de uma outra identidade evangélica, centrada na busca de uma dupla aproximação entre fé e cultura, evangelização e responsa-bilidade social (termo já anacrônico, oriundo de debates internacionais de décadas anteriores). Este movimento transnacional, identificado na América Latina pelo anglicismo “evangelical” ou pela expressão “missão integral (ou holística)”, teve desenvolvimento importante no Brasil, no período. Confrontando o “fundamentalismo”, de um

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aspecto particularmente simbólico de um reconhecimento do lugar e valor dos evangélicos na sociedade e o aspecto corporativista da politilização. A segunda via, foi mais contestada, dando à luz estratégias distintas: os conservadores apostaram numa via eleitoral de construção de

representação e influência política; os progressistas, num caminho desde a sociedade civil organizada ou a militância de base em partidos de esquerda, para construírem uma via da incidência pública (M. das D. C. Machado y Burity 2014).

A articulação entre as duas vias nunca produziu uma fusão, sendo objeto de disputas internas ao longo do processo, com crescente predomínio do bloco conservador (Burity 2018a; 2016; C. Machado 2018a, 61–63). Mas a interação com o mundo da política institucional e numerosas outras formas de agência política não-religiosas cada vez mais socializou o povo

pentecostal/evangélico no “idioma secular”, ensejando “traduções” da língua religiosa nativa na língua da política e do debate público. Com o tempo se deu uma incorporação de formas

pentecostais de enunciação nesses espaços, indicando o começo da expansão da autoridade evangélica, um indicativo da paulatina “pentecostalização da sociedade” em curso (Gooren 2010; Burity 2017), que explorarei nas próximas seções.

Reação conservadora, crise da democracia e o bloco populista de di-reita pós-impeachment: o povo como evangélico

O processo descrito na seção anterior foi atravessado por múltiplos outros. Não sendo a expressão de um projeto preconcebido, tampouco deixou de ser contestado por outros modelos de

politização religiosa (Burity 2018a, 34–39). A articulação produzida a partir da vitória de Lula para a presidência aproximou uma lógica multicultural liberal (reconhecimento via políticas de

identidade), uma lógica social-democrata (inclusão por meio de políticas distributivas) e uma lógica democrático-radical (construção da igualdade com “respeito às diferenças”), representando posições em disputa no interior da própria coalizão lulista. Em meio a estas lógicas, marcando discretamente uma distância em relação a elas e apostando no jogo convencional da

representação de interesses, a minoritização evangélica.

As disputas agonísticas entre essas lógicas foram aos poucos estreitando as margens para o jogo do povo evangélico no interior do povo do lulismo. Várias conquistas de outras minorias – e mesmo algumas de caráter majoritário (ecológicas, distributivas) – incidiram sobre elementos biopolíticos importantes da identidade evangélico-conservadora, particularmente em termos de gênero, sexualidade e reprodução, alarmando lideranças pentecostais, alienando as mais

intransigentes ou agressivas. Antagonismos surgiram no interior da coalizão e através de outros lugares de enunciação que reafirmavam posições antisseculares, antimovimentalistas e

antipopulares.

Naturalmente, estas foram disputas de parte a parte. Antagonismo é relação. Não se pode atribuir uma agência antagonística a um lado só (qualquer que seja). Mas nada previa que o tradicional anticomunismo dos anos 1980 retornaria com vingança a partir de 2016. Nada antecipava que as posições econômicas com alguma sensibilidade de justiça social que haviam animado políticos evangélicos desde então dariam lugar a uma incondicional rendição à retórica ultraliberal da direita neoconservadora americana e xenofóbica da direita europeia. Não se poderia antecipar que

lado, e a “teologia da libertação”/“ecumenismo”, de outro, em nome de uma via intermediária, o evangelicalismo tensionava com os conservadores quietistas e os de tendência corporativista, a direção moderada da minoritiza-ção. Esta aspiração hegemônica foi derrotada em meados dos anos de 1990, quando a supremacia pentecostal se consolidou. Isso transformou profundamente a identidade evangelical, teológica e politicamente, promovendo uma importante aproximação com o campo ecumênico (Clawson 2012; Offutt 2015; Lewis y Pierard 2014; Escobar 2011; Longuini Neto 2002).

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o “pânico” diante de feministas, LGBTQ+, negros e negras, indígenas ou “marxistas culturais” se transformaria em apoio irrestrito à militarização da sociedade, espetacularização da violência policial, cinismo diante do desemprego descontrolado e novo crescimento da pobreza, defesa da destruição sistemática dos mecanismos de proteção social construídos a duras penas desde a Constituição de 1988, desprezo pela proteção ambiental, etc. O script não é novo, mas teve requintes de desfiguração das instituições que fariam corar velhos coronéis da política e ditadores do século XX. Com a diferença de que os poderes do estado foram golpeados profundamente, enquanto eram apresentados como guardiães da legalidade e da imparcialidade jurídica e política. Uma nova frente contra-hegemônica se foi armando, lançando mão de fragmentos de discurso do neoliberalismo em processo de rearticulação após a crise de 2008, de uma crescente circulação e reinterpretação de discursos da nova direita americana e europeia e várias formas de revisionismo dos legados nazifascistas. Seria difícil listar as múltiplas linhas da trama. Até porque elas não se juntaram naturalmente, nem foram obra de um grande arquiteto do mal. O que Connolly chamara de “máquina de ressonância evangélico capitalista” (Connolly 2008, 38–67) foi se configurando em meio a um cenário em que se retroalimentaram da visibilidade, representação e disseminação cultural do ethos pentecostal, gerando um efeito de enraizamento popular da nova direita e articulando a direita política e a direita religiosa num só bloco.

“Os evangélicos” foram avançando com forte enraizamento no cotidiano, especialmente na periferia social e cultural do povo-nacional (onde o jogo derridiano se fazia mais intenso). No cotidiano das periferias (mas não só aí), a língua do pentecostalismo proveu um vocabulário moral para lidar com a violência, a pobreza, a perda de vínculos comunitários, a negação da dignidade e autoestima de pessoas vulneráveis. A sociabilidade jovem nas igrejas evangélicas articulou essa língua e todo o espectro da musicalidade disponível na cultura jovem brasileira, em pequenos e grandes eventos em estádios. As classes médias foram também bastante impactadas pela disseminação desta cultura pentecostal e dos modelos de mobilização social e política por ela promovidos. A ocupação intensa das mídias convencionais e redes sociais e uma persistente difusão de incontáveis articulações teológicas simplificadoras, além de uma rede de atividades de formação para o trabalho, o empreendedorismo e a autodependência ajudaram a popularizar valores do neoliberalismo ao lado de uma ética aparentemente impositiva, mas completamente contextual e pragmática (Vital da Cunha 2018; C. Machado 2018b; 2013; Burity 2018b).

Em outras palavras, no melhor estilo da guerra de posições gramsciana, os evangélicos

conservadores foram emprestando sua singularidade comunitária, ética e organizacional para nomear os problemas sociais e políticos do país em termos da adoção da “moral tradicional cristã”. Este processo, profundamente enraizado nas bases da sociedade e espraiando-se muito além do povo evangélico (apesar do contínuo crescimento demográfico deste), sofreu uma inflexão na conjuntura pós-eleições de 2014 no Brasil (mas, por distintas motivações, coincidente com transformações semelhantes em muitos países da região). Numa conjuntura de emergência de antagonismos em torno de uma crise política combinada a uma crise econômica, e ambas acirrando tensões entre demandas minoritárias por igualdade e justiça e construções morais do discurso evangélico/pentecostal.

Desenhou-se, enfim, uma fronteira entre o povo e seus inimigos, nos moldes laclauianos,

confrontando o projeto democrático-popular (antilulismo e antipetismo) e articulando demandas por reconformação ultraliberal da política e da economia e reconstrução moral das disputas identitárias (minoritárias). O povo que emerge desta disputa é nomeado como “família tradicional”, “cidadãos de bem”, “pessoas honestas e trabalhadoras”, a “gente comum”, os “empreendedores”. Estes significantes se articulam numa promessa de ordem que delineia claramente uma desdemocratização num cenário crescentemente passível de se chamar de

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pós-democracia. Dada sua capilaridade, os pentecostais proporcionaram uma nova base de massas para um povo pós-democrático e “os evangélicos” nomeiam sua agência política principal.

Trata-se de um processo não estabilizado. Não temos um regime consolidado. Os atores ainda não estão organicamente vinculados. Há forte contestação do “lado de lá” do novo povo. Diferentes cadeias de equivalência, que se cruzam, mas somente se sobrepõem parcialmente e em alguns casos, estão postas, disputando os resultados conseguidos até o momento pela nova coalizão dirigente (política e culturalmente). Os derrotados e demandas emergentes (desemprego ou fragmentação da própria experiência do trabalho, pobreza outra vez crescente, radical

desmontagem da legislação de proteção social e ao trabalho, agravamento crítico da devastação ambiental, recrudescimento da discriminação e da violência contra minorias étnicas, sexuais e contra as mulheres) caracterizam o cenário como de grande instabilidade e mesmo incerteza. Descolamentos parciais se verificam nessa construção do povo.

Crise orgânica, mas não esgotada na conjuntura. Desmoralização das elites governantes – de direita tradicional, centro e esquerda pós-1990. Desfiguração das instituições democráticas. Sólidos avanços de uma hegemonia cultural evangélica – relativamente independente do tamanho da população evangélica em cada país – em disputa por hegemonia política, na medida em que a desagregação da hegemonia de centro e centro-esquerda das décadas anteriores aumentava a proximidade (a equivalência) entre as demandas dos grupos evangélicos mais reacionários e as de outros grupos seculares que estiveram na oposição até então.

Este é o momento populista da emergência evangélica. Não se trata ainda de hegemonia política, uma vez que a conjuntura ainda é de forte disputa pela estabilização de um novo bloco de poder. Neste contexto, “os evangélicos” aparecem a muitos como parte capaz de galvanizar outras demandas numa frente conservadora. Sua linguagem nomeia e articula de modo a produzir identificações populares muito além da religião (Burity 2020). Ainda que seja improvável os

evangélicos emerjam dessa contestação como direção, sua visibilidade e força no interior do bloco dirigente são inegáveis. Do lado da elite parlamentar e pastoral evangélica, cada vez é mais

explícita, intensa e determinada a pretensão de transformar o povo brasileiro em povo evangélico. Como Connolly comenta, para o caso americano, ainda na era Bush:

A máquina de ressonância que resulta se infiltra na lógica da percepção e influi na compreensão dos interesses econômicos. Portanto, é importante haver-se com as afinidades espirituais que alimentam a máquina através de diferenças de crenças, afinidades que traduzem interesses econômicos em ter-mos de avidez corporativa e infundem outros com intensidade religiosa, afinidades que convertem artigos de fé religiosa em campanhas vingativas para opor-se aos que estão fora da fé e ab-rogam nossa responsabilidade coletiva pelo futuro. (Connolly 2008, 40)

Notas conclusivas

Neste ensaio, procurei retraçar caminhos de minha própria reflexão, evitando repetições e buscando incorporar numerosas outras intervenções que, lidando com a dimensão religiosa ou não, intentam compreender as transformações recentes. Apesar de ser indispensável dar contas de toda uma capilaridade de processos que expõe precisamente o caráter construtivo da emergência evangélica na política, a ênfase está nas disputas e definições que se dão. Não há como

compreender a textura da emergência evangélica sem uma referência à cultura, ao cotidiano e ao caráter contingente dos passos dados e dos arranjos constituídos. Mas aqui foi preciso, por razões de espaço, priorizar um nível de análise. E propus refletir sobre uma trajetória convoluta, de transformação de uma minoria invisível, mas crescente, no nome de uma figuração da própria ordem comunitária, ainda que contestada. A despeito do desprezo e ira com que se trata a

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categoria, estou convicto de que o que se chama de populismo esclarece muito o processo, mas não se o pensarmos no registro que persistentemente associa o termo a uma ideologia ou movimento. Donde Laclau e seus interlocutores.

Os marcos iniciais do processo – que nunca foi contínuo e ascendente, como aparece a tantos observadores – podem ser fixados nos anos 1980. Portanto, num período de grande efervescência em grande parte da América Latina em relação às possibilidades de avanços democráticos

profundos. Mas a tendência da observação é de tomar o desfecho como telos. Procurei sintética e não-sistematicamente apresentar uma interpretação que deixa em relevo precisamente a abertura desses processos – tanto para a identidade dos atores quanto para os desenhos

político-institucionais decorrentes, que se definem e redefinem a partir dos embates e das articulações em que se envolvem grupos nem sempre idênticos.

Desde as chamadas “jornadas de junho de 2013”, o trabalho incessante de certos grupos de militantes ultraconservadores teologicamente e ultrarreacionários politicamente fez multiplicarem os lugares de enunciação, usando as igrejas para treinar os empresários, as milícias e os gestores de um novo estado, dirigido oracularmente por um ungido de Deus, num governo dos justos. O caráter reativo da onda conservadora ainda prevalece. O antagonismo continua vívido, o que indica que ainda vivemos um momento de transição a uma nova hegemonia, e não está assegurado qual, exatamente, será seu conteúdo. Há claramente sinais de que a “destruição” proposta pela nova direita aponta para uma ordem pós-democrática.

Ainda estamos na crise orgânica (Mouffe 2018). O caráter disputado das tendências recentes é ainda muito vívido – apesar da aparência de resignação que às vezes assoma entre adversários dos novos governos pós-democráticos. A fronteira não se estabilizou. Há nomeação do povo, mas não há institucionalização de um regime que – quem sabe – juntaria neoliberalismo e

confessionalização da política. Em meio à nova centralidade da extrema-direita rearticulam-se setores da esquerda religiosa, reforçando laços com movimentos sociais e com ativistas religiosos de outras fés.

Assim, a despeito das muitas falas sobre o passado e o presente dessa crise, só posso concluir com perguntas. E são muitas. Tantas quantas nossa perplexidade, inconformismo, medo e incerteza provocam. Estamos nos albores de um novo fascismo, com participação direta da direita religiosa, capitaneada por pentecostais? Estamos, no contexto do cristianismo, observando mais uma onda conservadora, como nos anos do integralismo e das ditaduras militares, com a emergência de uma espécie de “cristianismo nacional”, de triste memória? Mas se trata de uma maioria? Não

passando os pentecostais de 65% de uma minoria de cerca de um terço da população brasileira (e composições variáveis em outros países da região), como conferir a eles a centralidade e o

protagonismo políticos tão contestados por liberais e esquerda, na mídia, na academia, nos movimentos sociais?

Por outro lado, nunca tendo havido e não havendo nenhum sinal de que venha a tornar-se

homogêneo e convergente, o sujeito evangélico – protestante histórico, carismático, pentecostal e os inúmeros híbridos existentes – pode construir maioria própria, pode “comandar” o mundo? Não há no seu interior elementos de dissidência igualmente organizados transnacionalmente e com modalidades de intervenção e articulação política? Não há, na contingência dessa articulação do povo como povo evangélico, uma falta – inconsistências, disputas internas, exclusões injustificadas, a ambivalência incontornável de um discurso religioso sobre o poder sobre a matriz de uma fé que se funda na história de um rei derrotado, morto e cujo modelo de “governo” era o serviço aos pobres e vulneráveis? Como uma fé proselitista e rigorista pode ser um canal para o

constantinismo ou a república dos santos, em sociedades pluralizadas e policêntricas? A hipervisibilidade da formação discursiva evangélica e as práticas antidemocráticas e de aberto

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antagonismo aos movimentos sociais, não levarão a um desgaste e deslegitimação desses atores? A institucionalização da nova ordem pós-democrática, se vier, não “domesticará” ou devorará a sede de poder dos pentecostais? To be seen...

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