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Guerra Soviético-Afegã (1979/1989): decisões políticas e seus reflexos no planejamento estratégico das forças Soviéticas

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GUERRA SOVIÉTICO-AFEGÃ (1979/1989)

DECISÕES POLÍTICAS E SEUS REFLEXOS NO PLANEJAMENTO

ESTRATÉGICO DAS FORÇAS SOVIÉTICAS1

Kenyo Hemerson Rossas2

Resumo

Este artigo trata do modo como as decisões políticas influenciaram na formulação da estratégia das forças soviéticas durante a Guerra Soviético-Afegã (1979/1989). Partindo de uma análise histórica, o estudo mostra como as conflituosas relações entre políticos civis e comandantes militares moldaram a cultura militar soviética, desde a Revolução Bolchevique. Após, é feita uma exposição de como quatro diferentes líderes soviéticos enfrentaram, ao longo de dez anos, a questão da ocupação do Afeganistão, sempre procurando afastar os militares da discussão, pautando suas decisões nos aspectos políticos e numa excessiva preocupação com o prestígio internacional do Comunismo. Finalmente, conclui-se que essa falta de entrosamento entre políticos e militares, aliada a constantes mudanças no governo soviético durante a guerra, foi a principal responsável pelo prolongamento exagerado da ocupação e pelo insucesso militar da União Soviética.

Palavras-chave: Afeganistão. Regime Comunista. União Soviética. Guerra assimétrica. Relações entre civis e militares. Guerra Fria.

1 INTRODUÇÃO

Em dezembro de 1979 a União Soviética (URSS) invadiu a República Democrática do Afeganistão, seu estado-cliente, com o objetivo declarado de estabilizar a grave crise política enfrentada pelo incipiente regime comunista daquele país. O governo que se instalara carecia de força e legitimidade para conter insatisfação de uma população de maioria islâmica, com valores e tradições totalmente incompatíveis com a doutrina comunista.

Naquela ocasião, a União Soviética estava convencida da inutilidade de se continuar enviado ajuda financeira e militar, tendo em vista a incapacidade do governo afegão para estabilizar o regime comunista e conter avanço do radicalismo islâmico no país, tal como ocorrera no vizinho Irã. Assim, decidiram os líderes soviéticos que somente uma intervenção

1 Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em História Militar, da

Universidade do Sul de Santa Catarina, sob orientação do Professor Luiz Augusto Rocha do Nascimento, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista.

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militar direta, com o envio de tropas de ocupação para o território afegão, seria capaz de conter os mujahedin e estabilizar o país, algo que, na visão soviética da época, poderia ser facilmente alcançado em alguns meses.

Logo no início, a invasão revelou-se um grave erro político. Os soviéticos haviam subestimado a capacidade do povo afegão em resistir ao invasor estrangeiro. Todavia, seguiram com a mesma estratégia ao longo de quase todo o conflito. Na tentativa de derrotar a resistência, principalmente no interior do país, os comandantes russos apenas aumentavam a frequência e o poder de fogo dos ataques, chegando, inclusive, a fazer uso indiscriminado de armas químicas, causando danos aos civis inocentes e aos meios de subsistência da população.

Essa aparente indiferença do Estado-Maior ante os insucessos em campo, considerando os fartos recursos militares de que dispunha a União Soviética à época do conflito, leva-nos a acreditar que a derrota final no Afeganistão, ao contrário do que dizem alguns autores que estudaram o conflito, pode ter tido outros complicadores, além de uma suposta incapacidade das tropas soviéticas para lutar nas condições extremas de clima e relevo daquele país, bem como para enfrentar uma guerra de contra insurgência contra os mujahedin.

O presente estudo tem início com uma breve descrição da geografia afegã, não com o objetivo de procurar atribuir a derrota soviética exclusivamente a tais condições geográficas extremas. Pretende-se com isso, apenas, reconhecer a sua relevância para o deslinde do conflito e ilustrar as dificuldades enfrentadas pelo Exército Vermelho com relação ao relevo, clima, infraestrutura precária e organização social do país.

O estudo prossegue com um resumo dos fatos que levaram ao surgimento do Partido Democrático do Povo Afegão, a deposição do Rei Zahir, ao fim da Monarquia Afegã e, por fim, à Revolução de Saur, em abril de 1978, que instalou o comunismo no país e pretendeu impor ao povo afegão a um regime ateísta, centralizador, brutal no enfrentamento de seus opositores e contrário aos princípios do Islã e aos costumes e tradições afegãs.

Feitas tais considerações, serão apresentadas as decisões políticas equivocadas da cúpula política soviética, em quatro gestões distintas, que, subestimando as peculiaridades geográficas e históricas do Afeganistão e, às vezes, insistindo nos mesmos erros, levaram a uma invasão precipitada, mal dimensionada e ao absurdo prolongamento do conflito por quase dez anos, relacionando-as, em seguida, ao fracasso estratégico militar da invasão.

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Nessa linha, pretende-se demonstrar, ainda, que tais decisões foram frutos da complicada relação entre os políticos civis e os comandantes militares, uma marca característica da cultura militar soviética, moldada desde os tempos da Revolução Bolchevique. Essa falta de entrosamento entre militares e civis foi, sem dúvida, a principal responsável pelo fato de os líderes soviéticos terem persistido com seus planos políticos para o Afeganistão, mesmo após a plena ciência de sua ineficácia e do enorme sacrifício impingido às forças militares em campo.

Com relação a Guerra Soviético-afegã, esse relacionamento conflituoso foi, ainda, agravado pelas mudanças no governo soviético. Entre 1979 e 1989, lapso temporal da invasão, a União Soviética teve quatro presidentes, que tinham como ponto comum a excessiva preocupação com o prestígio internacional do Comunismo e, por conta disso, cometeram o equívoco de associar a retirada das tropas do Afeganistão a um inaceitável reconhecimento explícito de fracasso, levando o conflito a um prolongamento exagerado.

Assim, o objetivo geral do trabalho consiste em demonstrar que a difícil relação entre políticos civis a cúpula das forças armadas soviéticas fez com que as decisões políticas fossem tomadas, muitas vezes, sem qualquer participação dos comandantes militares, e, por conta disso, tais decisões exerceram um papel decisivo nos rumos do conflito, dificultando sobremaneira a definição de uma estratégia consistente, apta a produzir os resultados militares esperados por Moscou.

2 AFEGANISTÃO – ASPECTOS GEOGRÁFICOS

Em conflitos assimétricos, as milícias locais não têm como enfrentar um exército regular, profissional, numericamente superior, organizado, bem armado e equipado. Como não podem não vencer, a estratégia é não se deixar derrotar. Os políticos soviéticos cometeram o grave erro de desconsiderar as intempéries do território afegão, sua peculiar organização social e sua infra-estrutura precária. Por sua vez, as forças populares de resistência aproveitaram-se do clima, do relevo, da vegetação, das doenças locais e tudo mais que pudesse minar as forças do poderoso Exército Vermelho, prolongando e tornando insustentável o conflito.

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2.1 ASPECTOS FÍSICOS

O Afeganistão, localizado no sudoeste da Ásia Central, abrange um território de seiscentos e cinquenta e cinco mil quilômetros quadrados, sem saídas para o mar, correspondendo a uma área equivalente à França, Bélgica, Holanda e Dinamarca juntas. Dos seus cinco mil quatrocentos e vinte um quilômetros de fronteiras, dois mil trezentos e quarenta e oito quilômetros eram com repúblicas soviéticas (Tajiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão), oitocentos e vinte quilômetros com o Irã, dois mil cento e oitenta quilômetros com o Paquistão e setenta e três quilômetros com a China.

Parte da fronteira soviético-afegã era demarcada pelos rios Amu Darya, o único curso d´água navegável do território afegão, e Panj. A fronteira com o Irã é formada por planícies, regiões montanhosas e desertos. Em seus limites com a China e Paquistão, predominam os maciços montanhosos. A menor distância entre a fronteira afegã e o Oceano Índico é de quinhentos quilômetros.

O povoamento do território afegão foi extremamente dificultado por conta de seu clima extremo e seu relevo montanhoso. A região central do país é praticamente inabitável. Em cerca de oitenta e cinco por cento do território afegão predomina uma paisagem desértico montanhosa. A cordilheira conhecida como Hindu Kush divide o país em duas regiões. Ao Norte, situam-se planícies que se estendem até a fronteira soviética. Ao Sul, um vasto deserto que atravessa o Paquistão, chegando ao Oceano Índico. O ponto mais elevado do território localiza-se no Monte Nowshak, com sete mil oitocentos e quarenta e cinco metros de altitude, próximo à fronteira com Paquistão.

Sete rios principais cortam o país. Com exceção do rio Amu Darya, que nasce nas montanhas Pamir, todos os outros se originam nas montanhas do Hindu Kush. Do ponto de vista estratégico, o Amu Darya se destacava por demarcar parte da fronteira com as repúblicas soviéticas do Tajiquistão, Uzbequistão e Turcomenistão. O rio Cabul corre para o leste em direção ao Paquistão, passando por Jalalabad. O rio Arghandab é um afluente do rio Helmand, que se desloca para oeste em direção ao Irã, assim como os rios Farah e Arirud. O rio Balhk corre para o norte em direção ao Uzbequistão.

No Norte, a vegetação típica é caracterizada pelas florestas de cedros e pinheiros, encontradas a grandes altitudes (entre os mil e oitocentos e os três mil e seiscentos metros), e

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pelos arbustos e outras árvores, como a aveleira, a médias altitudes (entre os novecentos e os mil e oitocentos metros). A baixas altitudes a vegetação é escassa. No geral, a vegetação não representa um obstáculo natural considerável.

O clima do Afeganistão apresenta temperaturas que vão de vinte e seis graus centígrados abaixo de zero, nas regiões montanhosas a quarenta e nove graus centígrados nas áreas desérticas. Nas planícies desérticas, a temperaturas elevada, combinada com o baixo índice pluviométrico, limita o desenvolvimento da agricultura e pecuária, favorecendo, porém, o cultivo ilícito da papoula do ópio, que conta com um mercado muito mais viável e rentável. Nas montanhas, o clima frio e a neve contribuem para o isolamento das aldeias, no período do inverno.

Figura 1 – Mapa Físico do Afeganistão

Fonte: Google

2.2 ASPECTOS POLÍTICOS E HUMANOS

Visacro (2009, p. 202) resume bem a geografia humana afegã ao comparar o país a uma “colcha de retalhos étnica, com uma tênue identidade nacional e uma organização social clânica

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estruturada segundo uma infinidade de tribos, muitas delas com longa tradição de rivalidade e antagonismo”. De fato, o Afeganistão é um estado multiétnico, com uma larga história de resistência à autoridade central e à interferência estrangeira.

À época da invasão soviética, segundo Hammond (1987, p.4), o país registrava uma população de 15,5 milhões de habitantes, étnica e culturalmente heterogênea, composta por cerca de 10 etnias distintas, também presentes nos países vizinhos, o que explica o pouco desenvolvido sentimento de identidade nacional do povo afegão. Os pashtuns eram o grupo mais numeroso, com cerca de 6,5 milhões de representantes, constituindo, também, a etnia de maior influência política. Em contraste com tamanha diversidade étnica, praticamente toda a população afegã era seguidora do Islã, sendo 90% de sunitas e 9% de sunitas. Assim, a religião islâmica funcionava como o principal, senão o único, traço de identidade nacional.

Em 1979, menos de 10% da população afegã era alfabetizada. O país era essencialmente rural, com 85% da população vivendo em aldeias, situadas nos vales entre as montanhas ou no deserto. Como observado anteriormente, o relevo montanhoso, aliado a ausência de infraestrutura, dificultavam sobremaneira o desenvolvimento da economia, bem como a atuação do governo no interior do país.

No interior do país, o território era organizado em tribos. Além dos laços de parentesco, era identidade tribal o principal vínculo e fator de identificação da sociedade afegã, muito mais importante até que identidade nacional, personificada no governante em Cabul. Por conta disso, Fenzel (2017) afirma, categoricamente, que a preservação das tradições tribais representava para o povo afegão a mais sagrada expressão de sua liberdade individual.

Da mesma forma que essas antigas tradições afegãs, por um lado, retardaram o progresso do país, por outro, moldaram um poder militar disseminado que proporcionou ao povo afegão um meio eficaz de enfrentar as forças invasoras, em todas as épocas. Sobre esse traço característico do povo afegão, que fez com que nenhuma força invasora tenha, até hoje, alcançado uma vantagem estratégica em território afegão, comenta Jalali:

Reação violenta ao invasor estrangeiro tornou-se a marca da história militar afegã. Tal reação não se limita às forças estatais, é uma reação universal, fragmentada em um mosaico de entidades tribais e comunitárias, cada uma lutando com suas próprias capacidades marciais. Historicamente, o colapso do exército nacional e do governo central nunca resultou na derrota da nação ou no controle pleno do território pelas forças invasoras. O povo afegão, sempre confiante, muitas vezes foi levado a assumir a luta contra os invasores. (JALALI, 2017, p.11)

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Assim, através dos tempos, em todas as ocasiões em que seu território foi invadido, o povo afegão nunca lutou por um Rei ou Presidente, nem tampouco por qualquer ideologia política ou forma de governo, mas simplesmente para defender sua tribo, sua família, sua religião e seus costumes de invasores estrangeiros que tentaram lhes impor regimes autoritários, uma outra fé, um governo central opressor ou ainda valores contrários as suas tradições milenares.

Figura 2 – Mapa Político do Afeganistão

Fonte: Google

2.3 INFRA-ESTRUTURA

A malha viária no Afeganistão era incipiente diante de sua extensão territorial. Em 1979, o país dispunha de apenas dezenove mil quilômetros de estradas. A principal era a Ring Road,

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que circundava a cordilheira do Hindu Kush, com saídas para várias rodovias vicinais. Mesmo assim, a Ring Road possuía uma baixa capacidade de tráfego, contando com apenas duas pistas de circulação. Havia, ainda, uma outra rodovia pavimentada, ligando as cidades de Jalalabad e Cabul ao Paquistão.

O acesso às regiões mais afastadas era feito por estradas de terra batida, por entre as montanhas e desfiladeiros. O trânsito por essas vias era muito afetado pelas condições meteorológicas. A maior dessas vias ligava Cabul a Herat, através do Hindu Kush, entretanto, era pouco utilizada, dado a dificuldade de transitar por ela. Em pior estado encontravam-se as ferrovias afegãs, que se estendiam por míseros vinte e cinco quilômetros, ligando o país as repúblicas soviéticas do Turcomenistão e Uzbequistão. Quanto ao tráfego fluvial, este se resumia aos quinhentos quilômetros navegáveis do rio Amu Darya, e aos seus três portos fluviais, localizados em Hairatan, Sher Khan e Keleft

Quanto a infraestrutura aeroportuária a situação era igualmente precária. Dos cinquenta aeroportos do país, apenas 14 contavam com pistas pavimentadas. Dentre esses, apenas os aeródromos de Cabul e Kandahar possuíam capacidade para operar com aviões de grande porte e receber voos internacionais. Todas as outras pistas eram de terra batida, com capacidade para pequenas aeronaves.

Figura 3 – Um trecho da Ring Road, a principal estrada afegã

Fonte: Google

3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO CONFLITO

Entre 1933 e 1973, o Afeganistão foi governado pelo Rei Mohamed Zahir, um governante fraco e indiferente, que preferia deixar o governo a cargo dos seus parentes mais próximos, principalmente do Príncipe Mohamed Daoud, seu primo e cunhado. Apesar disso, a

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figura do Rei Zahir e da Família Real Afegã, ao lado da religião islâmica, representava um símbolo de unidade nacional para o povo afegão.

Figura 4 – Rei Mohamed Zahir (esq.) e o Príncipe Mohamed Daoud (dir.)

Fonte: Google

Daoud governou como primeiro-ministro por mais ou menos uma década, entre os anos de 1953 e 1963. Homem culto, com formação ocidentalizada e ideias progressistas, foi responsável pelo crescimento econômico e pela expansão da educação no país, chegando a propor várias outras reformas ao Rei, como a elaboração de uma Carta Constitucional. No entanto, tais propostas eram invariavelmente ignoradas pelo Rei Zahir, que, intimamente, sentia-se ameaçado pela crescente popularidade de Daoud.

Tal desprestígio por parte do Rei levou o príncipe Daoud a abdicar do cargo. Com a sua saída, dissiparam-se os temores do Rei Zahir que, para a surpresa de todos, passou a adotar muitas das ideias de seu ex-primeiro-ministro, criando um programa de modernização para o país que previa, dentre outras medidas, a elaboração de uma constituição, a formação de um parlamento eleito democraticamente, liberdade de imprensa e pluripartidarismo.

Nesse contexto de abertura política surgiu o PDPA (Partido Democrático do Povo Afegão) de orientação comunista. Seu primeiro secretário-geral chamava-se Nur Mohamed Taraki, um jornalista e escritor, educado na Universidade de Cabul. Outros dois membros fundadores eram Hafizullah Amin, um pashtun educado nos EUA, professor da Universidade de Cabul e Babrak Karmal, filho de general, líder carismático, orador eloquente, e um comunista convicto.

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Figura 5 – Nur Mohamed Taraki, o fundador do PDPA

Fonte: Google

Em 1967 ocorreu uma cisão no partido, dando origem a duas facções. O Khalq (que significa “Povo”), formado, em sua maioria, por pashtuns de origem humilde, era liderado por Taraki, seguiam uma linha radical e defendiam a derrubada violenta e imediata da monarquia, com o estabelecimento de um regime comunista no modelo soviético; e o Parcham (que significa “Bandeira”), composto por membros da classe média urbana de Cabul e de outras grandes cidades, eram liderados por Babrak Karmal, representavam a ala mais moderada do socialismo afegão e acreditavam numa implantação gradual do regime socialista.

Figura 6 – Babrak Karmal ao lado de Leonid Brezhnev

Fonte: Google

O governo soviético procurava manter boas relações com as duas facções, mas não imaginava que qualquer uma delas fosse capaz de organizar e executar um golpe de estado e implantar o regime comunista em um país atrasado como o Afeganistão, tanto que Urban (1988)

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chama a atenção para o fato de que os líderes das duas vertentes sequer foram convidados para uma conferência internacional em Moscou, que reuniu líderes dos partidos comunistas de diversas nações.

Nas duas primeiras eleições diretas realizadas pelo Rei Zahir, apenas 10 % do eleitorado participou, e a terceira eleição, prevista para 1973 sequer se realizou. Nesse frágil regime que tentava se firmar no Afeganistão, os comunistas souberam explorar os ressentimentos da população com o governo, uma monarquia parlamentarista de fachada, em que a Constituição outorgada não limitava os poderes do Rei, na qual valores como a liberdade de imprensa e o pluripartidarismo eram meramente formais. Sob o governo de Zahir, os mecanismos de controle social eram severos e os partidos contrários a ele eram duramente perseguidos e postos na ilegalidade.

Assim, com o apoio dos militares e do Parcham de Babrak Karmal, ressurge, em meio à crise política, a figura do Príncipe Daoud que liderou um golpe de estado, aproveitando-se de uma viagem do Rei Zahir à Itália. Ao assumir o poder, em 17 de julho de 1973, Daoud anunciou que a monarquia seria substituída por um regime republicano, efetivamente democrático, com uma nova constituição para o país.

Em janeiro de 1977, uma nova carta constitucional foi apresentada ao povo. O texto previa a nomeação de um novo secretariado, escolhido pessoalmente por Daoud, o que contrariou profundamente as expectativas dos comunistas, que acabaram não sendo contemplados, como esperavam. A nova Carta Magna estabelecia o unipartidarismo, reconhecendo apenas o Partido Revolucionário, fundado e liderado pelo próprio Daoud, o que também frustrou as expectativas dos líderes Parcham.

Além de contrariar os comunistas afegãos, que o apoiaram no golpe, Daoud preocupava os dirigentes soviéticos, que o consideravam anticomunista e, por conta disso, temiam que ele se aproximasse do Ocidente, o que, consequentemente, levaria a um distanciamento do Afeganistão da influência soviética. Por essa razão, Moscou incentivou a reunificação do PDPA. A liderança do novo partido unificado coube a maioria Khalq e ao seu idealizador e primeiro dirigente, Nur Mohamed Taraki.

Hammond (1987) considera que a reunificação do partido foi importante passo nos planos que levariam, mais tarde, a revolução. Naquela altura, o país vivia, além da instabilidade política, uma grave crise econômica e, por conta disso, Daoud já havia alcançado um alto índice

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de rejeição, não apenas entre os comunistas, mas também entre os fundamentalistas islâmicos, os estudantes, os intelectuais, os militares e a classe média urbana em geral.

Com os índices de impopularidade crescentes do presidente Daoud, os líderes do PDPA, contando com o apoio dos militares, começaram a planejar a sua deposição do governo. Os eventos que culminaram no golpe tiveram início em 19 de abril de 1978, com manifestações populares que reuniram entre 10 e 15 mil pessoas nas ruas de Cabul. Na semana seguinte, tropas do Exército Afegão atacaram o palácio presidencial, matando vários homens da Guarda Republicana, leais a Daoud. Em 27 de abril de 1978, às 19 horas, a Rádio Nacional Afegã interrompeu sua programação para transmitir uma mensagem do Conselho Revolucionário das Forças Armadas Afegãs que dizia: “pela primeira vez no Afeganistão, todo o poder tinha sido entregue nas mãos do povo”

No dia seguinte, o Príncipe Daoud, seu irmão, sua esposa, e a maior parte dos seus filhos e netos foram mortos a tiros. O golpe estava completo. O governo afegão ficou nas mãos de Hafizullah Amin. Durante o seu mandato, aumentaram as divergências internas no PDPA, com a vitória final da facção Khalq, a qual pertencia Amin. Com isso, o dissidente parcham Babrak Karmal foi exilado. Meses depois, o próprio Taraki seria assassinado por ordem direta de aliado, Hafizullah Amin.

Naquele momento, sem dissidências em seu governo, Amin estava determinado a implantar um estado comunista no Afeganistão. Ele promoveu uma série de reformas impopulares e contrárias aos princípios do Islã e às tradições afegãs. Com apenas mil e oitocentos membros o PDPA esperava mudar um povo independente, obstinado e conservador. Como bem ressalta Urban (1988, p.203), “os políticos idealistas em Cabul pretendiam alienar a principal a principal força social do país. As lideranças tribais jamais iriam concordar com as ameaças a direitos impostas pelos comunistas”.

Não demorou para que grupos fundamentalistas islâmicos se insurgissem e pegassem em armas contra o governo em Cabul. Por todo o interior do país eclodiram núcleos de resistência anticomunista. A instabilidade do governo de Amin e a ameaça de uma revolução fundamentalista islâmica no país, nos moldes da que ocorrera no Irã meses antes, preocupavam o Kremlin, que temia perder definitivamente a sua influência sobre o território afegão.

Assim, em dezembro de 1979, um contingente de aproximadamente cento e quinze mil homens, comandados pelo marechal Sergei Sokolov desembarcou em Cabul com a missão de estabilizar o regime e ajudar o Exército Afegão a conter a resistência mujahedin no interior do

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país. Amin foi deposto e assassinado por forças especiais da KGB (Comité de Segurança do Estado) e o governo afegão foi entregue ao líder parcham exilado, Babrak Karmal.

4 A QUESTÃO AFEGÃ E A INTERFERÊNCIA POLÍTICA DO KREMLIN NOS ASSUNTOS MILITARES

Segundo Caren:

Em qualquer análise de uma tropa em conflito tende-se a analisar os fatores que são mais objetivos e facilmente visíveis (efetivo em combate, armamento, número de blindados, aviação). Fatores mais subjetivos (moral, coesão, disciplina) tendem a ser negligenciados. Dentre esses fatores, pode ser incluída a forma como se dá a relação entre políticos civis e comandantes militares no processo de tomada de decisões relacionadas à estratégia militar.(CAREN, 2014, p.98)

No caso específico da União Soviética esse relacionamento nunca foi bom, gerando, ao longo de décadas, problemas na cultura militar do país. Tais problemas foram acentuados durante a guerra soviético-afegã, por conta das constantes mudanças de poder no Kremlin. Entre 1979 e 1989 a União Soviética teve quatro presidentes, que, juntamente com o Politiburo, controlaram, segundo seus caprichos políticos, os rumos do conflito, mantendo os comandantes militares afastados das principais decisões estratégicas, situação que contribuiu, sobremaneira, para uma situação de indefinição política e militar e, consequentemente, para a derrota do Exército Vermelho.

4.1 A COMPLICADA RELAÇÃO ENTRE CIVIS E MILITARES NA UNIÃO SOVIÉTICA

Desde a Revolução Bolchevique, as relações entre a cúpula do Partido Comunista e os líderes militares sempre foram marcadas pela desconfiança mútua e por uma notória prevalência dos políticos do Kremlin sobre o Alto-comando militar. Tal situação afetou, em alguns momentos críticos da História, a formulação das políticas de defesa da União Soviética. Os militares, por sua vez, nunca aceitaram que seus objetivos, missões, organização, estratégia e

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até mesmo a sua doutrina operacional fossem moldados segundo a doutrina comunista e os interesses do Partido.

Logo após a formação da União Soviética, Lenin, que via o corpo de oficiais como membros da burguesia e, portanto, como uma ameaça ao regime, instituiu a figura dos comissários do partido, oficiais políticos com a missão de promover a doutrinação comunista das tropas, fiscalizar todas as ações dos militares e, principalmente, informar ao Partido qualquer dissidência política. Por conta de sua atuação, os comissários eram, ao mesmo tempo, temidos e odiados por seus colegas de caserna.

No governo de Stalin, a intervenção política nas Forças Armadas foi ainda pior. Ao se tornar o Secretário Geral do Partido, Stalin foi inflexível quanto a idéia de impor um controle rígidos sobre às atividades dos militares, afastando-os das atividades políticas e administrativas, deixando claro aos seus comandantes que eles deveriam se ocupar, exclusivamente, de seus assuntos e não se envolver nas decisões políticas.

Por conta de seu medo obsessivo de ser vítima de conspirações ou mesmo de ter sua autoridade desafiada, Stalin promoveu um expurgo que levou à execução de 45% dos oficiais superiores, dentre estes, 720 dos 835 detentores de patentes superiores a Coronel. Com essa medida, Stalin finalmente sentiu-se seguro, acreditando que detinha o controle sobre os militares, o que o levou, inclusive, a extinguir, temporariamente, a figura do comissário político. Essa política causou um dano de longo prazo na relação entre os políticos civis e os militares.

Após a Segunda Guerra, por conta da vitória do Exército Vermelho sobre a Alemanha nazista, e também por conta da morte de Stalin, o controle político sobre as Forças Armadas diminuiu e o militares passaram a gozar de algum prestígio, passando a ter voz ativa na formulação das políticas de defesa. No governo de Nikita Kruchev, os comandantes finalmente podiam expressar suas opiniões e até questionar a formulação da estratégia, sem medo de represálias ou de execução.

No entanto, Fenzel (2018) salienta que, embora Kruchev passasse essa imagem de ser mais moderado que seu antecessor, ele pretendia manter o mesmo controle exercido por Stalin sobre os militares, o que deixou bem claro com a exoneração do Marechal Giorgi Zukhov, do cargo de Ministro da Defesa, em 1957, devido a uma simples divergência quanto às promoções do comissários políticos. Tal ato de insubordinação foi o suficiente para a exoneração do velho Marechal.

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O afastamento de Zukhov, um respeitado herói de guerra com imenso prestígio perante as tropas, por conta de uma mera divergência de ordem administrativa, e a sua substituição por um general de carreira medíocre, serviu para reafirmar a primazia do Partido Comunista sobre os militares, mostrando que as Forças Armadas não deveriam desafiar o Kremlin em assuntos de ordem política.

4.2 BREZHNEV E A DECISÃO DE INVADIR O AFEGANISTÃO

A queda do Presidente Daoud, a tomada do poder pelos comunistas em 1978 e os acontecimentos que se seguiram, de certa forma, trouxeram uma preocupação para os soviéticos. Afinal, as relações entre Moscou e Cabul eram mais antigas que a própria União Soviética. Desde o século XIX, os russos sempre procuraram exercer alguma influência sobre o Afeganistão, atuando, principalmente, como fonte de ajuda econômica e militar.

Mas agora, com a instauração do regime comunista no país, exigia-se uma maior assistência por parte da União Soviética, uma vez que era de extrema importância ter em Cabul um governo que servisse aos seus interesses, o que seria útil para a manter os EUA afastados daquela região e, principalmente, das fronteiras soviéticas. Para o então Secretário-geral Leonid Brezhnev, a União Soviética não podia, em nenhuma hipótese, perder sua influência no Afeganistão e era preciso agir rápido para impedir que os americanos se aproximassem daquela região.

Além de uma eventual aproximação com os EUA, Brezhnev temia que uma revolução islâmica fundamentalista, nos moldes iranianos, viesse a eclodir no Afeganistão. O brutal assassinato do príncipe Daoud e de toda a família real havia provocado a revolta do povo afegão, principalmente na zona rural do país, que tinha a Monarquia como uma das poucas referências de identidade nacional e que considerava a doutrina comunista ofensiva aos princípios do Islã.

Nos anos de 1970, a União Soviética já havia obtido sucesso em intervenções que objetivavam dar apoio militar na consolidação de regimes comunistas locais, bem como na invasão de países do Leste Europeu. Para Brezhnev e para o Politiburo, era preciso tomar uma medida semelhante no Afeganistão, e, nesse exato ponto, cometeram o grave erro de desconsiderar a geografia inóspita, a organização social peculiar e história de resistência do povo afegão aos invasores estrangeiros.

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Naquela ocasião, uma maior discussão entre os políticos e os comandantes militares poderia ter ajudada a compreender as dificuldades tremendas associadas à invasão, a sua real necessidade e as eventuais consequências. Mas Brezhnev e seu grupo político não queriam ter que lidar com inconvenientes militares. Eles queriam, a qualquer custo, a rápida estabilização do novo governo e acreditavam firmemente que a simples presença do poderoso Exército Vermelho resolveria tudo. Na mente de Brezhnev, os soviéticos rapidamente deixariam o território afegão sem qualquer embate direto com os insurgentes.

Para os generais, ficou claro logo de início que a estratégia inicial soviética estava equivocada. O Estado-maior já antevia que, tanto pelo efetivo como pela falta de um plano estratégico, a força destacada pro Afeganistão não seria capaz de exercer o papel de força de ocupação. Mas na visão dos políticos em Moscou, um planejameto estratégico da invasão era algo totalmente dispensável. Para eles, a ordem era clara e bastante simples: os militares tinham como missão invadir o Afeganistão, conter os insurgentes e estabilizar a situação política, o que deveria ser alcançado a qualquer custo e o mais breve possível.

Entretanto, o desenrrolar dos fatos mostrou que o Afeganistão exigia uma abordagem diferente e mais flexível do ponto de vista estratégico. Logo as esperanças de Brezhnev de uma solução rápida para o conflito se dissiparam. Ao invés de estabilizar o governo revolucionário de Karmal, as forças soviéticas acirraram a revolta do povo afegão, levando ao aumento das ações dos diversos grupos mujahedin.

Mesmo diante dos primeiros fracassos militares, as poucas e incipientes mudanças na estratégia foram feitas de maneira similiar a decisão original de invadir, de forma rápida, sigilosa e sem qualquer participação dos comandantes militares em Moscou. A cúpula política não queria, em hipótese alguma, chamar a atenção para a questão afegã e, dessa forma, qualquer aumento do contingente poderia despertar a atenção do Estado-maior, do povo russo e da comunidade internacional, sinalizando um agravamento do conflito ou o fracasso das forças soviéticas.

Enquanto isso, no Afeganistão, os militares em campanha já haviam percebidos, da pior forma, que era impossível alcançar os objetivos idealizados por Moscou. Nenhuma das províncias afegãs era leal ao governo em Cabul e a inépcia do Exército Afegão para enfrentar os rebeldes era patente. O interior do país encontrava-se totalmente controlado pela resistência mujahedin.

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Brezhnev faleceu em 10 de novembro de 1982, sem obter qualquer avanço político ou militar no Afeganistão. Durante o período em que se discutia a sua sucessão, um pequeno grupo de generais conseguiu assumir o controle das operações, tentando estabelecer um plano estratégico sem intervenções políticas. Logo perceberam que seria uma tarefa inglória. Sem uma solução política ou diplomática mais ampla, a guerra seria prolongada e exigiria um grande esforço por parte do sucessor de Brezhnev.

4.3 A FALSA DIPLOMACIA DE ANDROPOV E CHERNENKO E O PROLONGAMENTO DO CONFLITO.

Uma das primeiras ações de Yuri Andropov, o sucessor de Brezhnev, foi receber o presidente do Paquistão, Mohamed Zia-ul-Haq, a quem garantiu que encontraria uma solução diplomática para o conflito no Afeganistão e que não tinha qualquer intenção de manter a ocupação ou anexar o Afeganistão à União Soviética. Ele encerrou o encontro afirmando que empenharia seus esforços na consolidação dessas promessas.

Todavia, a reunião entre Andropov e Zia não passou de mero teatro político. Naquela ocasião, Fenzel (2017) considera que Zia já estava comprometido com os americanos em franquear a passagem pela fronteira paquistanesa de armas e suprimentos para os mujahedin. Além disso, resistência afegã mantinha suas bases seguras no Paquistão. Já Andropov, membro do Politiburo desde a época da invasão, sempre se mostrou um ferrenho defensor da intervenção militar no país.

Mais tarde, discursando no Politiburo Andropov novamente defendeu uma solução diplomática, afirmando que solicitaria a intervenção diplomática da ONU para que o Paquistão e os EUA parassem de dar suporte aos mujahedin. Em seu discurso, ele deixou implícito que, em contrapartida, a União Soviética assumiria o compromisso de tratar a retirada das tropas com absoluta prioridade. Na verdade, como acredita Cordovez(1995), Andropov queria contar com a intervenção da ONU apenas para ganhar tempo e melhorar a imagem da União Soviética perante o Ocidente.

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Figura 7 –Yuri Andropov discursando no Politiburo

Fonte: Google

Em território afegão, Fenzel(2017) considera que até houve algum avanço diplomático junto a algumas facções mujahedin, como no caso em que Andropov conseguiu negociar um cessar fogo com o renomado líder da resistência afegã Ahmad Shah Massoud, conhecido como o “Leão de Panjshir”, visando a proteger os oleodutos do Norte contra a sabotagem, em troca da promessa de que os comboios de suprimentos para a população civil afegã teriam garantia de passagem segura pelas linhas soviéticas.

Entretanto, todo esse aparente esforço diplomático não foi acompanhado por uma mudança estratégica nas ações militares. Em 1983, a ordem que chegava aos comandantes militares em Cabul era para subjugar os insurgentes a qualquer custo, inflingido-lhes o maior dano possível, inclusive com o emprego de bombardeios aéreos e helicópteros de ataque nos vilarejos suspeitos de abrigar combatentes.

Em Moscou, a deterioração da saúde de Andropov era notória e indicava que seu governo seria curto. De forma velada, já se discutia no Politiburo sobre quem iria sucedê-lo. A escolha recaiu em Konstatin Chernenko, que logo assumiu o governo, em menos de um dia da morte de seu antecessor.

Ao ascender ao governo, Chernenko contava com o apoio de um grupo de militares, liderados pelo Marechal Ogarkov, que acreditavam que ele resolveria o impasse militar no Afeganistão. No entanto, assim como seu antecessor, ele permaneceu alinhado com o Politiburo

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e defendia publicamente que a questão deveria ser resolvida com diplomacia e paciência. Na prática, não foi feito qualquer esforço nesse sentido e tampouco foi pensada uma solução militar para o conflito. Segundo Volkogonov:

Os chefes do Kremlin ainda diziam acreditar ser possível estabilizar a situação no Afeganistão. Pensavam que bastava acertar as diferenças dentro do Partido Popular Democrático Afegão (PDPA) entre as facções khalq e parcham, ativar as operações militares soviéticas, criar orgãos nas províncias leais a Cabul, e tudo acabaria bem.(VOLKOGONOV, 2008, p. 268)

Assim, a passagem de Chernenko pelo Kremlin não significou muito com relação a questão do Afeganistão. O presidente já assumiu o cargo com a saúde debilitada. Volkogonov (2008) revela que em uma boa parte do seu curto mandato, Chernenko despachou secretamente de um hospital. As ordens dirigidas aos comandantes em Cabul continuaram as mesmas: intensificar os ataques, com o emprego de forças combinadas, causando, de forma indiscriminada, o maior dano possível à infraestrutura e às populações suspeitas de abrigar insurgentes.

Fenzel (2017) reconhece que, em seu íntimo, Chernenko gostaria de ter sido o responsável por aniquilar a resistência e pacificar o país, conquistando a glória que seus antecessores fracassaram em alcançar. Entretanto, limitado por sua saúde frágil e perdido em sua vaidade política, continuou incorrendo nos mesmos equívocos estratégicos, inclusive, ao não aceitar qualquer aumento do efetivo em combate, temendo que tal medida revelasse para a comunidade internacional a inveracidade de seu discurso diplomático.

Apesar dos pronunciamentos públicos em tom otimista, nem Chernenko, nem o Politiburo e nem mesmo os militares acreditam, de fato, na vitória militar soviética. A resistência afegã passara a lutar de forma mais organizada, já contava com mais de cem mil homens e continuava recebendo voluntários, oriundos de outros países islâmicos. Além disso, os guerreiros mujahedin passaram a dispor de armas melhores, vindas do Ocidente e de países do Oriente Médio, como Egito e Arábia Saudita. Naquele momento, tanto para o povo afegão como para os mulçumanos de todo o mundo, a luta passava a ser encarada como uma Jihad, uma Guerra Santa, contra um invasor inimigo do Islã.

Mesmo sem esperança de vitória, Chernenko e os políticos em Moscou em nenhum momento consideraram a possibilidade de retirada imediata das tropas. Alguns dos relatórios

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militares que chegavam de Cabul eram bem preocupantes, principalmente quanto ao números de baixas em combate, mesmo assim ninguém no Kremlin parecia acreditar que a União Soviética estava atolada em um conflito sem solução.

Nas sessões do Politiburo, apenas os relatórios que haviam passado pelo crivo dos comissários do partido no Afeganistão eram lidos. Esses relatórios eram, sabidamente, maquiados, todavia eram os únicos considerados. Por mais absurdo que possa parecer, os políticos em Moscou estavam cientes de que tomavam decisões sobre os rumos do conflito no Afeganistão a partir de verdades fabricadas.

Sobre a atuação do Politiburo durante todo o conflito do Afeganistão, autores como Fenzel (2017) e Grau (1996) concordam que houve pouco interesse na estratégia militar que seria empregada no Afeganistão, desde que os militares obtivessem a vitória. Quando a atuação das tropas mostrava-se ineficaz, o Politiburo permanecia inerte e simplesmente cobrava dos generais maior esforço e um melhor desempenho.

4.4 AS REFORMAS DE GORBACHOV E O PROCESSO DE RETIRADA DAS TROPAS

Em março de 1985, com a morte de Chernenko, Mikhail Gorbachev assumiu o cargo de Secretário-geral, com a difícil missão de recuperar a economia, reestabelecer o prestígio político da União Soviética e, além disso, resolver a situação do Afeganistão. O novo Secretário-Geral sempre fora contrário à invasão e, ao assumir o governo, mostrava-se ansioso para trazer de volta as tropas. Todavia, ele preferiu dar maior prioridade a questões menos controversas enquanto se firmava no poder. Nesse meio tempo, chegou a prometer aos militares que em um ano ele resolveria o problema.

Logo após a sua posse, Gorbachov esteve reunido com Babrak Karmal, a quem reafirmou o apoio político, econômico e militar da União Soviética para consolidação do governo comunista do PDPA e para a estabilização do país, ressalvando, porém, que as tropas soviéticas não ficariam para sempre no Afeganistão e que o governo afegão deveria estar preparado para isso.

Apesar do tom contudente que empregou em sua conversa com Karmal, Gorbachev, assim como seus antecessores, preocupava-se em demasia com a imagem da União Soviética na comunidade internacional. Por essa razão, uma rápida retirada das tropas, ou até mesmo uma

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retirada em etapas, não deixaria de parecer, para ele, o reconhecimento da derrota soviética. Seria preciso, portanto, alcançar alguma estabilidade política no Afeganistão antes de deixar o país.

Para Volkogonov(2008, p.413), Gorbachev deveria reconhecer “que o país caíra numa armadilha de onde só escaparia se admitisse francamente que toda a idéia de uma missão internacional ao Afeganistão fora um erro, e retirasse suas tropas”. Todavia, segundo o referido autor, Gorbachev não conseguia se opor aos conservadores do Politiburo e, por conta disso, adiava sua decisão na esperança de ainda obter algum progresso naquela “aventura inapelavelmente fracassada”.

Assim, com o objetivo de fazer um esforço final para alcançar algum avanço militar, Gorbachev formou uma comissão, composta pelo Marechal Sergei Sokolov, pelo chanceler Andrei Gromyko e pelo chefe da KGB, Viktor Tchebrikov, para rever a política em relação ao Afeganistão, bem como para apontar as consequências, pontos positivos e as desvantagens de uma eventual retirada. Para assumir o comando das tropas em campo foi designado o General Mikhail Zeitsev, um dos mais destacados comandantes soviéticos.

Nessa fase, os soviéticos já haviam aprimorado as táticas de combate em montanha e contavam com a presença de tropas de elite, como as Tropas Aerotransportadas (Vozdushno-Desantnye Vojska - VDV) e as Spetsnaz (Voyska spetsialnogo naznacheniya – Forças de Operações Especiais), especializadas em operações de contra-insurgência. Mesmo com tais avanços, a disciplina das forças soviéticas já estava deteriorada, havia muitas baixas em combates e também por conta de doenças. Além disso, a fadiga geral da tropa e a falta de determinação sobre os rumos do conflito preocupavam bastante os militares em campo.

Em outubro de 1985, Gorbachev convocou Babrak Karmal para uma nova reunião e, dessa vez, disse-lhe claramente que era imperioso reconhecer o fracasso da revolução comunista afegã, uma vez que o movimento não foi recebido pela população e, diante disso, os soviéticos precisavam adotar uma nova abordagem com relação ao seu apoio. Dito isso, o presidente soviético aconselhou Karmal a abandonar a idéia de impor o comunismo ao povo afegão e considerar a adoção de um regime democrático e capitalista, que respeitasse os valores islâmicos e as tradições do povo afegão. Barbrak Karmal ficou perplexo e indignado com as sugestões de Gorbachev.

No início de 1986, Gorbachev reconheceu, perante o Congresso do Partido Comunista, que uma vitória militar no Afeganistão era uma quimera e que ele iria optar por uma saída

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política. Disse ainda que a guerra era uma ferida, prejudicial ao moral do povo soviético, que as Forças Armadas haviam feito o possível, mas a resistência afegã, embora sitiada nas montanhas, havia resistido com determinação e, por conta disso, havia conquistado o apoio do povo afegão e da comunidade internacional. Ao final de seu pronunciamento, ele deixou claro que poria em prática um cronograma para a retirada e que o governo afegão deveria estar preparado para um futuro sem a assistência militar soviética.

Entretanto, apesar dos esforços do Exército Soviético, a tão esperada estabilização política do país, que Gorbachev colocava como condição para a retirada das tropas, não acontecia. Os soviéticos viram, então, que o seu maior obstáculo era o próprio Babrak Karmal. O presidente afegão era fraco e depedente e, ao longo do conflito, não havia tomado qualquer medida para para estruturar seu governo.

Mesmo depois de sua reunião com Gorbachev, Karmal seguia apostando que a retirada das tropas era um blefe e que os soviéticos não sairiam do país sem resolver tudo. O pior disso tudo é que Karmal estava certo, Gorbachev permanecia firme no propósito de de não retirar as tropas antes de alcançar algum avanço no conflito. Nesse impasse, os soviéticos passaram a considerar a hipótese de que o Afeganistão precisava de um novo presidente, para que o conflito chegasse ao fim.

No final de 1986, Gorbachov renovou, diante do Politiburo, seu compromisso de acabar com a guerra e trazer de volta as tropas. Dessa vez, ele expressou um profundo desgosto com o que chamou de sucessivos fracassos do Exército Soviético. O desdém com que Gorbachev falava sobre a incapacidade do Exército Vermelho para alcançar algum avanço no Afeganistão refletia, na verdade, um sentimento em relação a uma outra questão mais ampla. Ele não via as Forças Armadas como aliadas importantes para o seu esforço de renovação da União Soviética, mas como obstáculos aos seus planos.

Naquele momento, Gorbachev já havia desistido de estabilizar o regime comunista de Cabul, contentando-se em garantir que o Afeganistão assumisse uma posição de neutralidade em relação à União Soviética. Ele estava cada vez mais ansioso para encerrar um conflito que, há muito, tinha perdido sua finalidade original e, além disso, se tornado um entrave para o andamento de questões mais relevantes, como a grave crise econômica que a União Soviética enfrentava.

Todavia, ao culpar os militares pelo fracasso no Afeganistão, Gorbachov acentuava o declínio das relações entre políticos e militares, que aliás nunca foram boas. Os militares se

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sentiam desvalorizados e ameaçados pelas reformas. Para eles, a Perestroika representava uma intervenção civil nos assuntos militares, algo como nunca visto antes, nem mesmo nos tempos de Stalin. Por conta dessa crise entre civis e militares, Gorbachov afastou, definitivamente, os generais da coordenação da retirada, passando a seguir um curso que ele próprio achava correto.

Figura 8 – Gorbachev e o Presidente Najibullah

Fonte: Google

Em 1987, com a renúncia de Babrak Karmal, assume o governo Mohamed Najibullah, chefe do serviço secreto afegão. O Dr. Najib, como era conhecido, logo anunciou, com grande alarde, um amplo programa de reconciliação nacional, baseado em três pontos principais: um cessar fogo com a resistência, a criação de um fórum de diálogo com as lideranças tribais e a formação de um governo de coalização. Na prática, muito pouco desse programa foi concretizado. Assim como seu antecessor, o Dr. Najib queria apenas obstruir os esforços soviéticos para uma retirada ordenada das tropas.

Finalmente, em março de 1988, as negociações iniciadas, sem muito entusiamo, por Andropov resultaram na celebração dos Acordos de Genebra. Com a participação dos governos do Paquistão, Afeganistão, União Soviética e Estados Unidos, porém sem a presença dos líderes mujahedin, como salienta Cordovez (1995), foi firmado um compromisso para pacificar a região, ficando a Organização das Nações Unidas encarregada de supervisionar o processo de retirada das tropas soviéticas. Na verdade, a retirada já havia começado discretamente em 1987, mas com a celebração do acordo, o processo foi acelerado. Em fevereiro de 1989 já não havia tropas soviéticas no território afegão.

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Figura 9 – Blindados soviéticos em retirada

Fonte: Google

5 CONCLUSÃO

A Guerra Soviético-Afegã demonstrou que a União Soviética, por conta de decisões políticas equivocadas, embarcou em uma aventura militar com objetivos políticos e militares inalcançáveis. A invasão durou mais que a Segunda Guerra Mundial e custou a vida de cerca de quinze mil militares soviéticos. Do lado afegão, as perdas foram muito maiores, chegando a casa de um milhão de mortos e mais de cinco milhões de refugiados. O país, que antes da guerra já era um dos mais pobres e atrasados do mundo, ficou totalmente devastado.

Do ponto de vista político, o Kremlin fez um esforço desproporcional para auxiliar e defender um governo fraco, impopular e fadado ao fracasso. Com isso, longe de pacificar o país, a violação da soberania afegã pelos soviéticos, sob a justificativa de dar apoio ao governo de Babrak Karmal, acabou com todo e qualquer chance de conferir um mínimo de legitimidade a um regime que já não tinha nada em comum com a religião islâmica e, tampouco, com as tradições do povo afegão.

No cenário internacional, a excessiva preocupação da cúpula política em Moscou em preservar a imagem da União Soviética e do Comunismo resultou, na verdade, na desmoralização do regime. Além disso, o adiamento injustificado de uma solução diplomática e a brutalidade dos ataques inflingidos aos civis afegãos, fez com que a resistência conquistasse a simpatia dos países mulçumamos, e até mesmo dos EUA e de outros países ocidentais, que se mobilizaram para enviar armas, suprimentos e voluntários para auxiliar a causa dos mujahedin.

No aspecto militar, os soviéticos falharam ao afastar os comandantes militares do processo decisório relativo aos planos estratégicos para o Afeganistão. Por conta disso, Brezhnev e o Politiburo foram responsáveis por deflagrar uma invasão mal planejada e mal dimensionada, destacando um contigente pequeno, incapaz de exercer a função de força de ocupação. Além disso, ao se fiarem na experiência adquirida com as invasões em repúblicas da Europa Oriental, desprezaram as características geográficas do país, e incorreram em uma falha grave para um cenário de guerra irregular. Por fim, subestimaram a História Militar do país, que mostra como a estrutura tribal afegã, ao longo dos séculos,

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permitiu que o povo afegão resistisse aos invasores estrangeiros, mesmo após o colapso de seu governo central e a derrota de seu exército regular.

Além disso, as mudanças constantes no governo soviético fizeram com que o conflito se prolongasse exageradamente por dez anos sem avançoes estratégicos decisivos. A cada novo secretário-geral, renovava-se a esperança de que a retirada das tropas seria breve. Todavia, o governo terminava por incorrer nos mesmos erros de seus antecessores, criando um cenário de incerteza onde não havia qualquer integração entre os objetivos políticos e militares.

Diante do exposto, o principal ensinamento legado pelo conflito ora em análise é que a integração entre políticos civis e líderes militares, com uma clara definição das atribuições de cada segmento, assim como ocorre na maioria dos países de índole democrática, teria levado a um melhor planejamento estratégico, o que teria encurtado sobremaneira o conflito, ou até mesmo evitado a invasão, uma vez que o próprio Brezhnev após refletir sobre a sua decisão, chegou a questionar a real necessidade daquela intervenção militar.

Outra lição importante que se extrai do conflito é que, em cenários de guerra assimétrica, como o Afeganistão, as convicções ideológicas e religiosas de um povo podem funcionar como uma força formidável, capaz de resistir e derrotar até mesmo uma superpotência militar, como a União Soviética. Como mencionado ao longo desse estudo, o povo afegão lutou apenas para defender suas tribos, suas família, sua religião, suas tradições milenares e seu estilo de vida.

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REFERENCIAS

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VISACRO, Alessandro. Guerra Irregular: Terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história. São Paulo: Editora Contexto, 2009.

VOLKOGONOV, Dmitri. Os Sete Chefes do Império Soviético. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Referências

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