TOMADA DE TESTEMUNHO
(transcrição)
Anivaldo Pereira Padilha
22/9/2014 – Completo
DEPOENTE: ANIVALDO PEREIRA PADILHA Categoria do depoente: Vítima civil
Tipo de arquivo: Áudio e vídeo Duração: 03:40:36
Ocasião: Testemunho colhido por integrantes da CNV Data: 22/9/2014
Local: São Paulo Responsáveis pela tomada
de depoimento: Luci Buff, Magali do Nascimento Cunha e Maria Luiza Rodrigues NUP: 00092.002427/2014-74
Nomes citados:
Papa Pio XII, Fiúza, Dutra, brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora, repórter Esso, Getúlio Vargas, Juscelino Kubistchek, Francisco Julião, Dias Gomes, Suassuna, Edvaldo Viana Filho, José Celso Martinez, Augusto Boal, Nelson Rodrigues, Garrincha, Pelé, Henrique Lott, Ademar de Barros, Jânio Quadros, Che Guevara, Carvalho Pinto, João Goulart, Mauro de Moura Andrade, Tancredo Neves, Celso Furtado, Eleonor Mendes de Barros, Paul Singer, Gilberto Freire, senhora Clabin, Muniz de
Anivaldo Padilha – Eu pensei assim, tinha algumas anotações, na verdade eu tenho aqui um
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roteiro que eu tinha feito, que eu ia escrever um texto, não tive tempo. Porque eu preparei um
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roteiro, que eu ia escrever um texto curto, curto assim, relativamente curto. De repente, eu
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percebi que quando eu estava quase que chegando ao final, um roteiro para um livro, umas
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500 páginas. Então eu recuperei, isso aqui eu fiz há muito tempo, eu peguei só para refrescar a
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memória em algumas coisas. Como quase todos os depoimentos, tem sido um pouco da
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infância, situar a pessoa, me situar em termos da infância, família. Depois período já de
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juventude, igreja, e o período pré-golpe. Depois um outro período que é pós-golpe, toda
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atuação aqui. E depois o exílio. Agora eu quero a colaboração de vocês, porque eu tenho a
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mania de começar a falar, quer dizer, me envolvo às vezes emocionalmente inclusive. E posso
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me perder ou avançar, mas é importante vocês se sentirem totalmente à vontade para
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interromper, que aliás, eu acho que é importante que vocês façam isso.
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Interlocutora não identificada – Já tinha feito também um roteirinho que bate com o seu.
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Anivaldo Padilha – Você preparou perguntas ou coisa assim?
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Interlocutora não identificada – Não, só um roteirinho, tipo blocos assim. Mas bate com o
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seu.
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Anivaldo Padilha – Então, seria isso. Eu acho é bom, você fala aí para registrar a data, o dia
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que é.
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Souza, Assis Brasil, Paulo Wright, Betinho, Emílio Castro, doutor Darcy, Heber Ferrer, Isaías Fernandes Sucasas, José Sucasas Júnior, Benoni de Arruda Albernaz, capitão Homero, Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, Eliana Rollemberg, Celso Cardoso da Silva, Fernando Cardoso da Silva, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, capitão Coutinho, Frei Tito, Damaris Lucena, capitão Tomaz, Graciano, Evandro, Aldo Lins e Silva, doutor Virgílio, Nelson Guimarães, bispo Osvaldo Dias da Silva, bispo Almir dos Santos, João Paraíba da Silva, Amaral dos Santos, Valdir Coelho, Domingo Alves de Lima, Clara Amélia Evangelista, Léa Santos, Jovelino Ramos, Marcos Arruda, Adoraci Ruiz, Abdias do Nascimento, Manoel da Conceição, Fred Morrice, Brad Tayson, Ralph Della Cava, James Green, Warwick Estevan Kerr, Mário Japa, Madre Maurina, Elenir Guariba, Ana Maria, Ednaura, Jessé Barbosa, capitão Maurício Lopes Lima, Lourival Gaeta
Locais citados:
Minas Gerais, São Pedro Damião, Guaxupé, São Paulo, Vila Maria, Estados Unidos, Inglaterra, Brasília, China, Jacareacanga, Uruguai, Rio de Janeiro, Santos, Espírito Santo, Paraná, Londrina, Argentina, Rio Grande do Sul, Uruguai, Maringá, Rivera, Livramento, Itanhaém, Cananéia, Bahia, Ijuí, Tenente Portela, Piracicaba, Juiz de Fora, Bolívia, DOPS/SP,
Campinas, Peru, DOI-CODI/SP, travessa da Barão de Limeira (SP), Sergipe, Paris, Serra do Mar, São Bernardo, Canadá, rua Tutóia (SP), Presídio Tiradentes, Igreja Central da Liberdade (SP), Nova Iorque, Texas, Wisconsin, Los Angeles, Universidade de Berkeley, Ribeirão Preto
Organizações citadas:
Ligas Camponesas, Ação Popular, União Latino-Americana de Juventude Evangélica (ULAJE), Centro Evangélico de Informação (CEI), UNE, UEES, PISCOR, VPR
Lucy Guffy – Então, nós vamos colher o depoimento do seu Anivaldo Padilha. Presente está
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a professora Magali, eu Lucy Guffy como supervisora e a Maria Luiza Rodrigues. Então,
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podemos começar? No dia 22 de setembro de 2014, horário, as 9h35 no 10º andar aqui do
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Banco do Brasil em São Paulo.
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Anivaldo Padilha – Começando falando um pouco, situar minha vida. Eu nasci no interior de
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Minas Gerais numa cidade muito pequena chamada São Pedro da União, muito pequena
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mesmo, de uma família de agricultores, uma região que nunca foi caracterizada por grandes
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propriedades.
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Interlocutora não identificada – Que ano Anivaldo?
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Anivaldo Padilha – Nasci em 1940, 11 de junho de 1940. Como eu estava dizendo, família
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de agricultores que eram proprietários de terras, uma região caracterizada mais pela presença
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de médias e pequenas propriedades, uma região que nunca houve, pelo menos do meu
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conhecimento, não é uma região de latifúndios, de raras propriedades muito grandes. Entre
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esses grandes proprietários estavam meus avós, tanto do lado paterno, quanto materno. E
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eram considerados assim de uma família mais ou menos abastada na região. E centrada na
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produção de café e agropecuária. A crise de 1929 se abateu de forma muito forte na região,
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com a impossibilidade, as dificuldades de exportação do café, que realmente levou ao colapso
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desse setor da agricultura naquela época. E meus avós acabaram perdendo praticamente tudo
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que tinham, grande parte das propriedades e, principalmente, a produção. Antes... De uma
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situação relativamente abastada para uma situação de quase pobreza naquela época. Essas
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duas famílias, do meu pai e da minha mãe, tinham características muito interessantes. Do lado
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da minha mãe o catolicismo, aquele catolicismo popular e muito conservador, extremamente
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católica, ao ponto de ter duas primas freiras, um outro que foi bispo, um primo que foi bispo.
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E toda a igreja na localidade e parte da Diocese, que era sediada numa cidade perto chamada
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Guaxupé, durante muitos anos foram sustentadas pelo meu avô e bisavô materno. Então, era
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realmente muito católica. E já do lado do meu pai era uma família... Não diria católica, mas
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um forte anticlericalismo. Só muitos anos depois eu vim mais ou menos a descobrir alguns
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indícios de que meu avô era maçom. Então, isso explica esse anticlericalismo. Durante muitos
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anos, a gente não sabia disso. Era uma família muito estigmatizada na cidade, falava-se que
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meu avô tinha parte com o diabo, tudo isso, durante muitos anos eu pensava que era
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protestante, porque o nome dos irmãos dele são todos nomes bíblicos, que era uma coisa
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muito rara naquela época. Mas depois eu descobri que ele era maçom, podia ter alguma
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relação com protestantismo também porque ele tinha uma bíblia em casa. Também era um
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caso raríssimo na época, estou me referindo até os anos 30. Com a perda daquela situação
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econômica, com a perda de parte das terras, tiveram que vender terras para pagar dívidas. A
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gente ficou realmente numa situação muito difícil, meu pai e minha mãe tiveram que vender
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praticamente tudo, parte da herança, que meu avô morreu naquela época também, grande
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parte talvez consequência da situação do colapso econômico. E meu pai herdou as dívidas,
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herdou terras, mas herdou todas as dívidas, e teve que pagar. O resultado é que quando eu
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nasci, em 1940, meus pais já tinham perdido todas as terras, estavam trabalhando na cidade,
fazendo, o meu pai montou um açougue, mas mesmo assim as condições de sobrevivência
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eram muito grandes, aí decidiram vir para São Paulo em 1945. E em São Paulo foi um choque
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muito grande, porque vocês podem imaginar, uma família que 10 anos antes tinha vivido
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numa situação confortável economicamente, chega em São Paulo sem profissão, sem
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nenhuma qualificação e tinha que encontrar emprego nessas condições. Interessante que o
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meu pai e minha mãe, os dois tiveram, o meu pai teve, não teve mais do que quatro meses de
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escolaridade, minha mãe teve menos ainda. Meu pai, porque o pai dele se preocupava muito
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com a educação e tudo, mas ele tinha que estudar fora da cidade. Chegou a ir para a escola
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junto com uma irmã, num colégio interno de freiras, e a tia-irmã do meu pai morreu. Tudo
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indica que foi uma pneumonia, mas ela não teve nenhum cuidado por parte da escola e o meu
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pai só foi avisado, só tomou conhecimento que ela tinha morrido porque, por coincidência, no
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dia da morte dela ele foi a essa cidade, foi visitá-la. Chegou lá, teve a notícia que ela estava
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morta.
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Interlocutora não identificada – Quantos irmãos você tinha?
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Anivaldo Padilha – Meu avô?
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Interlocutora não identificada – Você?
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Anivaldo Padilha – Não foi a minha irmã, foi a irmã do meu pai que morreu.
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Interlocutora não identificada – E você?
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Anivaldo Padilha – Eu tive 10 irmãos. Quer dizer, nós éramos em 10, ou seja, tive nove
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irmãos. Oito desses morreram. O mais velho morreu com três anos e pouco, os outros
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nasceram bem assim, poucos meses depois do parto, exatamente devido às condições
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econômicas e sociais que a gente vivia. Então, tudo isso são coisas que se abatem sobre a
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família que têm um impacto muito grande. Então, eu estava falando do meu pai, quer dizer, o
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meu avô ficou tão revoltado que tirou meu pai da escola também. Então, ele não pôde
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continuar estudando. A minha mãe não estudou porque a minha avó, ela não deixava. Aquela
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mentalidade que mulher não podia estudar, não devia estudar, não precisava estudar. E a
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minha acabou tendo, foram três meses de escolaridade, três ou quatro meses, aprendeu
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pouquinho das primeiras letras e foi só isso. Mas chega em São Paulo sem nenhuma
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qualificação, é claro que numa época que São Paulo estava se expandindo, a industrialização,
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a cidade estava se expandindo muito rapidamente e o caminho natural do meu pai e da minha
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mãe foi meu pai trabalhar em construção civil, servente de pedreiro, e a minha mãe na
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indústria têxtil, que eram ocupações que não exigiam nenhuma formação especializada, não.
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Quer dizer, realmente não havia necessidade de mão de obra especializada. Então, os dois
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conseguiram emprego e foram trabalhar. Mas uma situação bastante difícil de moradia. A
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gente foi morar em Vila Maria que era além da periferia, muito além da periferia. E durante
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mais ou menos até 60, cinquenta e pouco, eu tinha 15, 16 anos, a gente realmente,
literalmente, morou num barraco, com muitas, realmente muitas dificuldades, financeiras,
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econômicas. Eu fui para a escola, eu e minha irmã. Quando nós viemos para São Paulo, dos
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irmãos, só restávamos eu e minha irmã. Minha irmã foi para a escola, como ela era mais velha
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que eu, e eu também. Terminei o curso primário e com dez anos e meio, 1950, e na época não
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havia praticamente colégios em São Paulo para você dar seguimento ao curso secundário. Isso
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aí só havia, somente, eu acho que quatro ou cinco colégios na cidade de São Paulo. E a escola
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para você entrar tinha um certo, um tipo de vestibular, que era chamado de exame de
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admissão, que fazia uma peneirada muito rígida. Porque, na verdade, quer dizer, a escola
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pública naquela época era para elite. Eu fui, talvez, a última geração que conseguiu ir para
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escola pública sem ser da elite. Isso porque estava em São Paulo, se fosse fora de São Paulo,
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dificilmente teria conseguido. Porque, realmente, a economia brasileira não exigia ainda mão
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de obra qualificada. E bom, eu terminei o curso primário. Para eu poder ir... Eu tinha direito,
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devido ao nível de aproveitamento no curso primário, eu podia entrar direto no ginásio. E os
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outros com aproveitamento mais baixo tinham que fazer o exame de admissão. Mas teve um
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problema, porque morava no alto da Vila Maria. Na parte alta do bairro não havia transporte,
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havia uma via de bonde que ia até a parte baixa, para chegar até o bonde eu tinha que andar
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mais ou menos uns três quilômetros. E tinha que tomar três conduções para ir, para dar
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seguimento aos estudos. Então, por falta de condições, meus pais não tinham condições de
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pagar, aí tinha um vizinho que era alfaiate, ele se ofereceu: “Fala para ele, se ele quiser vim
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para a alfaiataria para aprender, como aprendiz e tal, ele vai ter uma profissão razoável, uma
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profissão boa.” Inclusive, eu me lembro muito bem dele falando, vai ter uma profissão limpa,
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diferentemente do operário em construção e de um mecânico, que eram as duas atividades que
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o pobre tinha mais ou menos tinha acesso. Então, alfaiate era uma profissão limpa. E eu
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realmente fui lá, tinha dez anos e meio, comecei a trabalhar com ele, aprendi rapidinho. E
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trabalhei de alfaiate até os 18 anos. Isso lá na Vila Maria. E só voltei a estudar quando eu
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tinha 18 anos, que foi quando houve uma expansão nos colégios em São Paulo e, mesmo
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assim, eram cursos noturnos, que o estado aproveita as escolas que antes era escola do ensino
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fundamental, curso primário, e à noite tinha cursos, curso secundário. Então, só voltei a
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estudar mesmo quando tinha 18 anos. Nesse período, a gente teve um contato com a igreja
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metodista e meus pais começaram a frequentar, eu também, eu tinha sete anos quando a gente
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começou a frequentar a igreja. E, realmente, a igreja deu para a gente um senso de pertença,
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uma comunidade.
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Interlocutora não identificada – Era lá em Vila Maria?
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Anivaldo Padilha – Vila Maria. Na verdade, tinha a igreja anglicana lá também, episcopal
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anglicana, que um vizinho nosso que era farmacêutico, era o dono da farmácia, era a única
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farmácia no bairro, convidou meus pais para irem. Então, a gente foi algumas vezes. Meu pai,
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depois de ter ido três vezes, disse então: “Você não vai mais.” Falei: “Não, não vou.” “Mas
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por quê?” “Os pastores de vocês se vestem como padres.” Até hoje eu brinco com meus
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amigos anglicanos: eu quase fui anglicano, não fui por causa do clericalismo da igreja. Então,
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a igreja realmente deu esse apoio muito grande, no sentido comunitário mesmo. Quer dizer,
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quem chegava em São Paulo naquela época, vendo uma cidade como essa, sentia
absolutamente isolado. A igreja, realmente, deu esse sentido comunitário para a gente. Bom,
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nesse período também, eu queria mencionar uma outra característica da minha família, é a
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questão política. A política sempre foi um tema cotidiano lá em casa. Meu pai, minha mãe,
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eles conversavam muito, falavam sobre política, acompanhavam o que ocorria no Brasil e no
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mundo. Eu me lembro muito bem, eu tive uns quatro, acho que uma das memórias mais
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remotas que eu tenho ainda no interior de Minas, é meu pai quando passava perto, ia na casa
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de alguém, onde havia fotografia do papa Pio XII, ele às vezes soltava um palavrão, falava:
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“Esse papa é nazista.” Mas não sei como essa informação sobre o papa Pio XII chegou numa
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cidadezinha, realmente, que é o fim do mundo, no interior de Minas. Mas isso aí me marcou
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bastante, desde aquele momento. Quer dizer, nunca esqueci essa afirmação que meu pai fazia.
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E outra coisa, ele era getulista, ele tinha participado da revolução de 30, ele não chegou a
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participar, quase, mas depois na de 32, as forças mineiras no conflito com São Paulo. E,
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então, isso era muito comum na minha casa, a gente discutia. Eu me lembro que na eleição de
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46, que houve a eleição, o Getúlio caiu em 45, foi logo depois da queda dele, teve a eleição
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para presidente, depois para constituinte. Eu me lembro que o meu pai votou para o candidato
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do partido comunista, que eu estava com ele na votação, ele estava com o papel do Fiúza no
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bolso e alguém falou para ele: “Você vai votar num candidato comunista?” Ele falou: “Não,
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ele não é comunista.” “Mas é apoiado pelos comunistas.” “Não importa, eu não gosto do
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Dutra.” O outro candidato era o brigadeiro Eduardo Gomes, e o meu pai tinha conhecido o
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Dutra na revolução de 32, ele foi um dos comandantes dele, meu pai era para ser dispensado,
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o Dutra não permitiu, então meu pai não gostava dele. Também não gostava do Dutra, não
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tinha conhecido também, Juarez estava no Exército, os grandes líderes militares daquela
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época, e o brigadeiro Eduardo Gomes ele não conheceu pessoalmente. Também ele não
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gostava dos militares, porque os militares tinham forçado a queda de Getúlio. Então, uns
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temas recorrentes em casa, literalmente política, e eu acompanhei bastante isso desde criança.
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E quando, inclusive, toda a volta de Getúlio na campanha presidencial para o Getúlio, eu
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participei ativamente como criança, distribuía folhetos, panfletos, andava com distintivo do
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Getúlio na camisa. E acompanhei muito de perto pelo rádio toda a campanha contra o Getúlio
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quando ele tomou posse. Porque na alfaiataria tinha um rádio que ficava ligado o dia todo
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ouvindo rádio e trabalhando. Acompanhei, tanto é que no momento que chega a notícia, a
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gente estava ouvindo rádio, chega a notícia, eu me lembro muito bem, edição extraordinária
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daquele repórter Esso. E entra, a gente já percebeu a música, já indicava que era algo
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extraordinário, e então anuncia o suicídio do Getúlio. Na mesma hora foi reação imediata,
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instintiva, o vizinho fechou a alfaiataria. Eu tinha 14 anos, a gente fechou a alfaiataria.
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Imediatamente, fui para o centro de São Paulo, sem consultar ninguém, sem falar para
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ninguém, fui para o centro, para acompanhar o que estava acontecendo, assisti a depredação
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do Diários Associados, a tentativa de incendiar o edifício, a redação do Estadão, que em São
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Paulo os grandes jornais fizeram campanha cerrada contra o Getúlio. Então, essa foi a
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primeira manifestação política que eu participei. Mas tudo isso gerou, eu diria, em mim uma
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certa compreensão daquele momento político, e diria, contribuiu para eu ter uma visão um
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pouquinho melhor, ou pelo menos despertar em mim interesse para temas mais amplos,
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porque na igreja naquele momento se discutia algumas coisas. Mas tinha, sim, o chamado,
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que a gente chama escola dominical, que era um momento de estudo na igreja, onde sempre
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surgiam temas, mas entre os adultos. Eu via de longe, assistia de longe, entre as crianças
obviamente não havia esse tipo de discussão. Mas eu me envolvi bastante mesmo nessa
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atividade da igreja, já adolescente, me tornei um dos líderes do grupo local de adolescentes,
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depois da região de São Paulo e depois também na juventude. Já estou entrando, passando por
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uma outra fase que é acompanhando e vivendo aquele momento de tensão e de euforia que
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havia no Brasil. Você tinha tensão por causa da tentativa de golpe contra o Getúlio, que foi
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abortada, foi adiado, ou seja, pelo suicídio dele. E em seguida veio a eleição, a tentativa de
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um golpe também para impedir a eleição, a realização de eleições. Veio a eleição Juscelino
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Kubitscheck que era um candidato, digamos, das forças que tinham apoiado Getúlio, o PSD e
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o PTB, Partido Social Democrata e o Partido Trabalhista Brasileiro, a tentativa de golpe para
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impedir a posse do Juscelino. Primeiro, uma tentativa até questionando no Supremo o fato de
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Juscelino não ter sido eleito com maioria absoluta de votos, mas a Constituição não
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estabelecia que tinha que ter maioria absoluta. Então é mais, realmente, uma tentativa de
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golpe político. E o ministro da Guerra, ele... Houve também a tentativa de golpe militar, mas
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o ministro da Guerra, general Lott, conseguiu dominar e eliminar a possibilidade de golpe,
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garantiu a posse de Juscelino. Na verdade, ele deu um golpe para, digamos, garantir a
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democracia, que era meio contraditório. Foi um golpe para garantir a democracia, porque o
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presidente realmente estava ligado às tentativas golpistas. Então, depois o
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presidente. Entrou, então, o presidente do Supremo Tribunal Federal como presidente. O que
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garantiu a realização das eleições. Mas o período de Juscelino, nesse período do governo dele,
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ele teve duas revoltas militares, de Aragarças e Jacareacanga, os dois casos pela Aeronáutica,
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que foram focos assim debelados também pelo Lott. Mas ao mesmo tempo, quer dizer, o
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Juscelino era uma pessoa bastante, ele tinha o seu próprio carisma e inaugurou várias
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maneiras diferentes de fazer política, sempre sorridente, simpático. E decidiu, realmente, a
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construção de Brasília e ele tinha praticamente duas linhas no governo dele, que era expandir
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a infraestrutura e intensificar o processo de industrialização e de substituição de exportação,
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que já tinha sido inaugurado pelo Getúlio Vargas. Com isso, realmente começou a construção
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de Brasília e construção de estradas, começou realmente a gerar muitos empregos e a indústria
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se implantando em São Paulo, principalmente a indústria automobilística, que tinha uma rede
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enorme produtiva, uma cadeia produtiva muito grande. E a construção civil de São Paulo
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também se expandindo bastante, e várias outras indústrias se instalando em São Paulo. São
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Paulo se tornou realmente a partir dali, fortaleceu sua condição de polo industrial brasileiro. E
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tinha realmente um clima de euforia. Você olhar e ver Brasília crescendo, eu me lembro, eu
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participei desse clima, desse sentimento de ver o Brasil, digamos, cumprindo o que Juscelino
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dizia, cinco anos, 50 anos em cinco, esse era o slogan. E várias metas de desenvolvimento. Aí
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se produziu no Brasil várias contradições, uma delas que foi a emergência, realmente, o
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crescimento da classe operária. E essa classe operária começa a se organizar e a ter uma
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participação muito mais ativa na vida nacional. A construção de Brasília foi feita sem
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financiamento. Então, foi na base da emissão de moeda, papel-moeda grande parte, e gerou a
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inflação, gerou também depreciação dos salários, então havia um movimento reivindicatório
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muito forte dos operários. E ao mesmo tempo no campo também, as contradições se
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acirrando, os conflitos entre o latifúndio e os trabalhadores rurais, que na verdade em algumas
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regiões do Brasil era um regime, digamos, muito parecido com servidão ou escravidão em
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alguns casos. Porque grande parte das pessoas viviam nas terras latifundiárias, vivia preso à
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terra e ao dono, praticamente não recebia salário, ele tinha que comprar mantimentos na casa
do fazendeiro. E se ele era meeiro, aquele que cultiva a terra e divide a produção como
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pagamento pelo uso da terra, ele dividia a produção com o proprietário. Assalariados eram
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raríssimos, trabalhadores rurais assalariados. Quer dizer, o que acontecia é que esses
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trabalhadores quando chegavam, quando eles faziam a colheita, nunca era suficiente para
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pagar a antiga com o proprietário. Então, ele ficava sempre... Um regime quase que de
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servidão mesmo, sem poder sair da terra e sem ter recurso para sobreviver. Isso gerou... O que
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intensificou os conflitos que havia na terra. Aí começa a surgir as ligas camponesas, se
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fortalecendo e se espalhando, principalmente na região do Nordeste, sob a liderança do
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Francisco Julião que era um advogado que defendia trabalhadores rurais e ele acabou sendo
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um grande incentivador e organizador das Ligas Camponesas. Então, você tinha por um lado
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uma série de problemas econômicos e tal, e que a gente, e que havia pouco conhecimento
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sobre eles na época. Eu me lembro que só mais no final da década de 50 que nós aqui no
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Sudeste começamos a tomar conhecimento, de forma mais real, dessa grande desigualdade
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que havia no Brasil. Grande desigualdade regional e desigualdade econômica e social. E isso,
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geralmente, causava uma certa revolta e indignação, principalmente na juventude. E começou
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essa aliança política entre os operários aqui do Sudeste em apoio às Ligas Camponesas.
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Então, por um lado, você tinha uma série de problemas que tinham sido resolvidos, não
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pareciam que seriam resolvidos tão cedo, e ao mesmo tempo uma euforia que se manifestava,
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eu diria, em várias outras áreas. Mencionei a construção de Brasília, para a população ver uma
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cidade emergir do nada, e não só uma construção qualquer, era uma obra de arte que estava
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acontecendo lá, estava sendo construída. E por outro lado, acho que essas, não vou fazer aqui
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nenhuma análise sociológica, mas o fato é que começa a haver um maior diálogo entre uma
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classe média, média alta e a cultura popular. Até aquele momento, eu me lembro bem, quando
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era criança o sambista era considerado malandro, era meio bandido, era uma música bastante
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discriminada e desqualificada. Então, começa a haver esse diálogo, e surge uma nova música
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brasileira, que foi a bossa nova, que teve impacto no mundo. Até hoje você viaja para o
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exterior e você ainda ouve muita bossa nova, em rádios e em outros meios. Surge uma nova,
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uma juventude muito talentosa, muito talentosa, de compositores, poetas, músicos. O teatro
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também começa, você percebe aquela efervescência no meio teatral e surge um novo teatro
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brasileiro, com Dias Gomes, o Suassuna, vários outros, o Edvaldo Viana Filho, e depois um
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pouco mais tarde surge aqui em São Paulo, o Teatro Opinião, Teatro Oficina, José Celso
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Martinez, o Augusto Boal. Quer dizer, e o cinema também. Aí tem toda uma gama de jovens
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de 20, vinte e poucos anos fazendo um novo tipo de cinema. Tudo isso, realmente, dava para
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a gente a sensação de que a gente estava construindo um novo Brasil, sem dúvida, a gente
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percebia isso, porque as mudanças eram muito rápidas em todas as áreas de atividades, e
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inclusive no futebol. A gente estava na derrota da Copa de 50 que tinha criado aquela
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mentalidade de que o Brasil era incapaz de fazer qualquer coisa. Aquilo que o Nelson
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Rodrigues chamou de mentalidade de vira-latas, complexo de vira-latas. E o Brasil ganha a
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Copa do Mundo, também de uma maneira espetacular, com dois gênios do futebol, Garrincha
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e Pelé. Quer dizer, isso realmente ajudou muito a elevar a autoestima do brasileiro. Agora,
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nada disso foi feito sem conflitos, porque a elite brasileira, realmente, estava profundamente
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descontente, tentou derrubar, tentou o golpe de Estado contra o Getúlio, não conseguiu, tentou
265
impedir a posse do Juscelino, também não conseguiu. E a gente caminhava no final dos anos
266
60 para novas eleições presidenciais, com chances altíssimas do candidato das forças PSD e
PTB vencer as eleições, que era o general Henrique Lott, que era o ministro da Guerra e que
268
tinha garantido a posse de Juscelino. E era apoiado pelas forças de esquerda em geral,
269
inclusive pelo Partido Comunista. E a oposição também lançou um general, porque essa coisa
270
de general participar da política brasileira, isso é parte da nossa história, infelizmente. Mas o
271
general Juarez Távora. Teve outro candidato que era governador de São Paulo, Ademar de
272
Barros, que corria em raia própria, mas em terceiro lugar. Mas tudo indicava que o Lott seria
273
eleito. Aí surge um azarão, que foi Jânio Quadros, se candidatou por um partido minúsculo,
274
PNT – Partido Nacional Trabalhista, que é um partido praticamente insignificante, mas ele
275
veio com todo um discurso moralista de combate à corrupção e o símbolo, a vassoura, que ia
276
varrer, fazer a limpeza do Brasil, esse lance de passar o Brasil a limpo é bem antigo. E essas
277
forças da elite apoiadas pela mídia perceberam que, se ele fosse bastante alavancado, teria
278
condições de se eleger, porque o discurso dele era o moralismo contra a corrupção e se
279
colocando praticamente como não político, porque ele ia governar acima dos partidos, acima
280
dos políticos. Isso é um discurso recorrente no Brasil, às vezes. E ele realmente, quer dizer,
281
com apoio da mídia e o carisma dele, difícil entender como ele conseguiu realmente esse
282
apoio tão grande. Claro que respondeu em grande parte um certo descontentamento com a
283
situação econômica, e que a grande imprensa conseguiu explorar de forma muito esperta,
284
inteligente, e a elite abandonou a candidatura do Juarez Távora. Ele foi totalmente
285
abandonado, eles apostaram no Jânio Quadros. E Jânio Quadros, acho que ele teve um lado
286
positivo da candidatura dele, da eleição dele, que realmente foi eleito com uma grande
287
votação, quase 50% dos votos, coisa inédita até aquele momento. Ele foi eleito com essa
288
grande votação e ninguém esperava o que poderia acontecer, o que aconteceu depois, mas ele
289
tentou, realmente implementou uma série de medidas contraditórias que desagradava uns e
290
outros. Por exemplo, imediatamente uma das primeiras medidas que ele tomou foi eliminar,
291
quer dizer, cancelar uma discussão da chamada SUMOP, que controlava o câmbio, que
292
favorecia muito os importadores. E ele simplesmente acabou com essa portaria. E entrou em
293
conflito com os setores importadores, mas também com os exportadores, que a economia
294
brasileira era totalmente voltada para o comércio exterior. E com medidas puramente
295
demagógicas, proibindo brigas de galo, que era muito comum no Brasil, bem popular. Eu
296
também, eu acho que foi uma grande medida, e proibiu biquíni, uso de biquínis nas praias
297
brasileiras. Mas era uma atitude, gestos e comportamentos extremamente demagógicos. E ao
298
mesmo tempo que eles condecoram o Che Guevara, quando o Che vem ao Brasil em 61. E
299
estabelece também uma política externa independente dos Estados Unidos, ele era muito
300
ligado ao império britânico decadente bastante naquela época, na cabeça dele é toda voltada
301
para a Inglaterra. E aí, ele realmente encontra com vários setores da elite e ele tentou
302
realmente o que a gente percebe muito claramente na época, alguns, é que ele era... A
303
renúncia dele foi uma tentativa de golpe. Porque na época eu trabalhava, eu esqueci de dizer,
304
eu deixei de ser alfaiate aos 18 anos, fui estudar, e na época da renúncia do Jânio eu
305
trabalhava na Folha de S.Paulo, fazia revisão. E no dia da renúncia dele, toda reportagem foi
306
para Cumbica para esperá-lo, que ele estava voltando de Brasília, inclusive com o governador
307
de São Paulo, Carvalho Pinto. E dois jornalistas na volta contaram que o Jânio quis agredir
308
Carvalho Pinto, ele chamava Carvalho Pinto de traidor. Porque o que ocorreu naquela época é
309
que ele, o que estava combinado, quer dizer, enviou o Jango, João Goulart em missão oficial à
310
China, para que o Jango estivesse fora do Brasil. E ele, então, faria a carta de renúncia, e mais
ou menos combinado também com o presidente do Senado, Mauro de Moura Andrade – que
312
tinha sido eleito apoiado pelo Jango em São Paulo, era senador por São Paulo, representante
313
do que hoje você chamaria agronegócio paulista. Era um grande fazendeiro. E o que
314
transpirou na época, que estava combinado, era que o Mauro de Moura Andrade recusaria,
315
deveria recusar a carta, ou pelo menos não faria leitura dela imediatamente. E aí, haveria uma
316
tentativa de levantar o povo e o Jânio, então, voltaria ao poder com poderes ditatoriais e nos
317
braços do povo. Quer dizer, o Mauro de Moura Andrade recebeu a carta renúncia e
318
imediatamente fez a leitura, então, oficializando a renúncia. Aí foi gerada uma grande crise,
319
profunda crise institucional, que é conhecida da renúncia, a tentativa dos ministros, dos chefes
320
militares impedirem a posse de João Goulart. Nesse período, eu já estava bastante envolvido
321
politicamente, junto com os jovens, alguns jovens da igreja metodista, porque no final dos
322
anos 50 a gente começou a ter influência nas discussões, reflexões sobre o papel social, ou a
323
missão social da igreja. Havia a Confederação Evangélica do Brasil, com o departamento de
324
juventude que produzia material de estudo, material de reflexão, e também tinha a
325
confederação incentivando essa reflexão no Brasil. A gente tinha organizado uma grande
326
consulta em 55, se eu não me engano, sobre igreja e sociedade no Brasil, o papel. A igreja e
327
as rápidas transformações sociais no Brasil. Essa aí foi a segunda. A primeira foi
328
responsabilidade social, a igreja e as rápidas transformações no período de Juscelino. E que
329
produziu uma série de documentos, textos e encontros sobre esse tema. E eu fui bastante
330
influenciado, participei ativamente desses encontros.
331
Interlocutora não identificada – Nessa época você tinha alguma liderança?
332
Anivaldo Padilha – No meio da juventude em São Paulo. Da juventude metodista. E, então, a
333
gente foi trabalhar fora da igreja, quer dizer, a gente foi, jovens principalmente, a gente
334
assumiu de uma forma tão profunda aquelas reflexões, que a gente decidiu realmente romper
335
as paredes da igreja, os muros da igreja e ir para o mundo trabalhar. E foi trabalhado nas
336
favelas de São Paulo, fazendo alfabetização de adultos, mas inicialmente era um trabalho
337
grande parte assistencialista, de levar roupas, comida para as pessoas. Porque a gente ainda
338
tinha uma visão ingênua da sociedade, a gente já tinha rompido um pouco aquela ideia que
339
era muito comum nas igrejas, na sociedade geral, que só é pobre quem é vagabundo,
340
preguiçoso, que pobre não gosta de trabalhar. E, então, nosso trabalho era puramente
341
assistencialista, paternalista. Acontece que a gente foi desenvolver esses trabalhos, mas com
342
uma outra mentalidade e com outro espírito. Mais de solidariedade, e aí a gente começa a
343
fazer as grandes perguntas: por que é que há pobreza? No meu caso, o meu pai e minha mãe
344
saiam... Meu pai saía de madrugada, quase voltava depois das oito da noite. Minha mãe
345
trabalhava na indústria têxtil em três turnos, as fábricas funcionavam 24 horas sem parar.
346
Então, ela trabalhava no turno das 6h da manhã às duas das tarde. Outro turno na semana
347
seguinte das 2h às 10h, na outra semana das 10h da noite às 6h da manhã. Então, não dava
348
para pessoas como eu e outros aceitar essa ideia de que a pessoa é pobre porque é preguiçosa,
349
porque é vagabunda. Quer dizer, nossos pais trabalhavam muito e muito mais do que as outras
350
pessoas que a gente conhecia. Então, a gente começou realmente a fazer grandes perguntas e
351
essas reflexões da Confederação Evangélica nos ajudava a achar respostas. Aí a gente
começou a entender que pobreza era resultado de estruturas sociais injustiças, que era também
353
resultado de um modelo econômico, um tipo de desenvolvimento econômico que explorava o
354
máximo o trabalho humano. Que era resultado, e a pobreza é resultado da super exploração do
355
trabalho. Então, eu comecei a ter contato com o sindicato.
356
Interlocutora não identificada – O que é que Deus tinha a ver?
357
Anivaldo Padilha – Essa é uma pergunta que a gente não aceitava na resposta que eles
358
davam, é vontade de Deus, de jeito nenhum. E outra coisa, que as igrejas faziam uma leitura,
359
tanto católica, quanto protestante, a leitura bíblica que faziam era que você e toda teologia
360
baseada na ideia de que você está no mundo para passar provações, então, as privações de
361
toda natureza eram uma forma de Deus testar a tua fidelidade. E você tinha que realmente
362
passar por essas privações e provações para ganhar o céu. Então, eu me lembro daqueles
363
textos bíblicos que eram usados, quer dizer, na ajuntar tesouros na terra, porque o teu tesouro
364
está no céu. A questão de não acumular riqueza... Só que o discurso de Jesus em relação a
365
essas, na verdade, esse discurso Jesus pronunciou contra os ricos, não foi para manipular os
366
pobres. Isso a gente descobriu naqueles momentos daqueles dias, que realmente ajudou a
367
gente a ter uma outra visão teológica, uma outra visão de mundo, uma visão de religião,
368
entendendo que a religião ela tinha esse caráter de ajudar as pessoas a vencer as dificuldades e
369
não só individualmente, mas em termos comunitários, que a fé é comunitária, não é
370
individualista, não. Então, realmente, eu e vários outros jovens, a gente se envolveu bastante
371
nesses momentos todos, nesses tipos de atividades. Questionando por um lado e estudando
372
por outro. É interessante que uma igreja, as duas, na católica e na evangélica, mas naquele
373
momento era praticamente só nas igrejas evangélicas que estão nos ajudando a superar a
374
ideologia que essas igrejas tinham imposto a todos nós, que é a ideologia anticomunista e
375
antissocialista. Porque no momento que a gente questionava a pobreza, a existência da
376
pobreza, a gente era imediatamente de ser comunistas, e isso a elite brasileira fazia isso muito
377
bem, e dentro das igrejas você não podia levantar essas questões. A gente começou a levantar
378
essas questões. Então, quando chega, voltando à crise institucional em 61, quando chega
379
aquele momento, eu já tinha caminhado um bom pedaço da minha vida de realmente de
380
consciência, eu diria consciência cristã, uma consciência crítica e uma consciência política
381
também. Essa consciência política consequência da minha fé, da minha compreensão de fé.
382
Então, quando vem o veto militar contra a posse do João Goulart, eu me envolvi diretamente
383
na luta contra o golpe e exigindo a posse do Jango. Em São Paulo, a gente conseguiu grandes
384
manifestações e conflitos diretos, mais uma vez contra o Estadão e com o Diário Associados,
385
que eram os grandes baluartes propagadores da posição dos militares. Mas ali foram várias
386
semanas de manifestações diárias, eu parei praticamente de trabalhar naqueles dias, porque já
387
estava de saída da Folha, então aproveitei um período assim de desemprego para ficar direto,
388
envolvido direto na campanha da legalidade que foi chamada. E realmente a gente conseguiu
389
criar uma crise tão forte, e os militares golpistas perceberam que se não houvesse recuo
390
naquele momento, provavelmente, o país entraria realmente numa guerra civil.
391
Principalmente, a partir do momento em que o 3º Exército que era o mais equipado, mais
392
numeroso, mais poderoso, que é o do Rio Grande do Sul, aderiu à campanha contra o golpe.
Então, o Exército realmente rachou. Eles perceberam que não tinha condições, recuaram,
394
houve aquela consideração, Jango aceitou, consideração proposta e negociada pelo Tancredo
395
Neves, destituiu o regime parlamentarista e ele assumia como presidente do regime
396
parlamentarista, sem os poderes principais de um presidente da República. Os poderes de
397
governança do primeiro-ministro que foi Tancredo Neves. Naquele momento as grandes
398
discussões que a gente tinha, já havia começado antes, as necessidades de grandes mudanças
399
estruturais no Brasil, estava muito claro que o subdesenvolvimento no Brasil só poderia ser
400
superado a partir de profundas reformas nas estruturas sociais e econômicas no Brasil. E já se
401
discutia bastante, quando as necessidades das reformas, o Jango assume, mas a emenda
402
constitucional que criou o parlamentarismo já trazia a convocação de um plebiscito para o ano
403
seguinte, para definir o regime de governo que a gente teria, se era escolher entre
404
parlamentarismo ou presidencialismo. O plebiscito foi realizado no final 62 e foi aprovado
405
com a maioria, assim, esmagadora, não tenho os números assim, mas quase cerca de 90% da
406
população votou pelo presidencialismo. E então, quer dizer, como parte de toda campanha do
407
presidencialismo, as reformas começaram a ser definidas, pelo menos com temas e áreas que
408
deveriam se concentrar. E imediatamente após o plesbicito, aí o Jango já muda totalmente o
409
gabinete, o ministério, e chama o Celso Furtado para organizar toda discussão entorno das
410
reformas de base que foram chamadas. Aí realmente foram estabelecidas várias reformas,
411
reforma da educação, da saúde, reforma agrária, reforma bancária, reforma urbana. Uma
412
reforma, uma mudança da política de relações internacionais, relações exteriores,
413
independente. E outras reformas, quer dizer, todas elas visando realmente uma
414
democratização da economia da sociedade. É importante lembrar que em 1960 eu andei vendo
415
há pouco tempo esses dados, em 1960, 40% da população acima de 15 anos era analfabeta.
416
Sem contar o número de crianças abaixo de 15 anos que não tinha acesso à escola. Então,
417
acho que se computasse as crianças em idade escolar que estavam foram da escola, essa
418
porcentagem seria altíssima, muito mais alta que os 40%, seria provavelmente até muito
419
acima de 50%. E a reforma da educação e da reforma agrária foram as duas que eu
420
acompanhei mais de perto, por causa do envolvimento que eu tinha nos programas de
421
alfabetização que eu organizava em São Paulo, a juventude evangélica. Eu me lembro bem
422
que para aquele ano de 64 estavam previstos o treinamento de cerca de quase oito mil
423
professores para trabalhar nas zonas rurais e nos programas de alfabetização. E para 1965 já
424
havia, já inclusa no plano a construção de mais de 10 mil escolas. Seria realmente um avanço
425
enorme no Brasil, e também elevar, acho que era cerca de 3% do PIB do orçamento, que era
426
aplicado na educação naquela época, elevar para 10% no prazo de três anos ou até o final do
427
mandato, alguma coisa assim. Então, me envolvi... Quer dizer, como todos nós da minha
428
geração, jovens que se envolveram de forma muito forte mesmo na luta pelas reformas de
429
base.
430
Interlocutora não identificada – Como é que a igreja reagiu a essas reformas, a esse
431
momento que você falou?
432
Anivaldo Padilha – Eu ia mencionar isso. Nesse período as igrejas estavam divididas,
433
bastante divididas. Porque a gente sabe que até, pelo menos na década de 50, quer dizer, você
tinha a igreja católica totalmente aliada aos poderes. Era muito difícil, às vezes em alguns
435
lugares, você diferenciar quem mandava mais, se era o padre, o prefeito ou o delegado.
436
Geralmente, o padre ou, então, o bispo. As igrejas protestantes eram minúsculas, pequenas,
437
aquela mentalidade de minoria, e não tinha o mesmo poder, mas tinha, ideologicamente
438
estavam aliadas ao status quo, pela questão do anticomunismo e também pela própria
439
ideologia de classe média, média alta, que foi trazida para cá pelos missionários protestantes.
440
Acontece que havia um setor, alguns missionários que trouxeram outro tipo de compreensão
441
da fé, influenciados principalmente pelo evangélico social. Então, quando chega nesse
442
período as igrejas estavam bastante divididas, como a sociedade estava, porque polarização
443
ideológica era muito forte na sociedade, portanto refletia também nas igrejas. No caso da
444
igreja metodista, por exemplo, é quando em 61, se não me engano a data, acho que 62,
445
quando a igreja estabelece o credo social dela. Pela primeira vez, por exemplo, ela
446
oficialmente aprovou e apoiou direito de greve, que até aquele momento a mentalidade dos
447
membros da igreja era absolutamente contrária ao direito de greve, a reinvindicações
448
trabalhistas. Eu até falava para eles, vocês por coerência deviam recusar qualquer reajuste
449
salarial, porque não é resultado da luta de vocês, vocês são contra essa luta, portanto não
450
deviam... Por coerência, deviam recusar. Mas as igrejas estavam bem rachadas, um setor
451
apoiava as reformas de base, eu diria por dois motivos. É interessante que a gente conseguiu
452
como aumento uma aliança meio esdrúxula, porque por um lado tinha pessoas, um grupo do
453
qual, ao qual eu pertencia, que a gente via as reformas de base como forma realmente de
454
combater as injustiças sociais no Brasil, de superar as desigualdades, como forma de avançar
455
na melhoria mesmo das condições de vida do povo. O outro setor era movido pelo
456
anticomunismo, mas só que era um anticomunismo um pouco mais, digamos, inteligente. Eles
457
achavam que por meio das reformas, você poderia diminuir, o que eles falavam, as causas de
458
comunismo. Comunismo avançava porque havia pobreza. Portanto, se você combatesse a
459
pobreza, uma visão muito ingênua, eles falavam: a partir de uma visão cristã, é a única
460
maneira talvez de conter o comunismo. Isso várias pessoas pensavam. Se você olhar, ler
461
alguns textos, por exemplo, João Dias, você vai ver que ele tinha essa posição, motivação.
462
Mas o fato é que houve essa aliança, que continuou. Agora, tinha um outro setor que era
463
bastante conservador mesmo e totalmente dominado pela ideologia anticomunista. E via
464
qualquer possibilidade de reforma ou qualquer defesa de reforma social como uma estratégia
465
comunista. E isso é o que predominava também entre a elite brasileira e entre a imprensa.
466
Então, ocorre também nessa época, 1962, que era aquela grande conferência da Confederação
467
Evangélica no Brasil, que foi a última realizada, realizada no Nordeste, se chamou “Cristo e o
468
Processo Revolucionário Brasileiro”, que ali também... Aquela conferência teve um impacto
469
muito grande em todos nós, porque se discutiram ali vários temas, houve um aprofundamento
470
da compreensão dos problemas brasileiros, um aprofundamento teológico sobre a
471
responsabilidade das igrejas. E também acho que foi, não tenho certeza, mas acredito que foi
472
a primeira vez que houve um encontro entre cristãos e marxistas no Brasil, um encontro
473
formal de diálogo e de cooperação. Um diálogo, as discussões entre essas duas formas de
474
pensar. Naquela conferência houve uma certa coincidência, porque as igrejas estavam
475
analisando ali a situação brasileira. E nessa análise da situação brasileira houve muita
476
coincidência entre os marxistas e outros, o pessoal das igrejas. E eu confesso que teve
477
presença de gente importantíssima como o Gilberto Freire na época, o Celso Furtado, Paul
Singer. Aquela conferência, ela teve esse papel de ter um impacto muito grande na juventude,
479
de jovens pastores e vários outros setores, mas ela também teve o papel de acirrar o conflito
480
ideológico nas igrejas, porque, não digo que ela tenha acirrado, acontece que o acontecimento,
481
aquele acontecimento gerou por parte desses setores conservadores uma posição de
482
agressividade muito grande. Isso eu percebia, por exemplo, na igreja presbiteriana, já em 62
483
as perseguições internas da igreja contra os setores progressistas. A igreja metodista não,
484
demorou mais tempo, ali ainda havia gente que estava bastante envolvida, houve conflitos
485
assim, concílios e tal, mas repressão não, na presbiteriana sim. Bom, como eu falei, me
486
envolvi diretamente nesses movimentos das reformas e tal e havia realmente uma euforia de
487
continuar, um entusiasmo muito grande, uma compreensão de que a gente realmente estava
488
construindo um novo Brasil, que havia finalmente, que a gente havia finalmente chegado num
489
momento que a gente poderia avançar com as reformas. Havia uma certa ilusão de que
490
quando é rota, as várias tentativas de golpe de Estado contra o Juscelino, contra a posse do
491
Juscelino, depois as duas revoltas, depois a tentativa de impedir a posse de Jango, pudesse ter
492
levado os militares a não mais intervir na vida pública ou pelo menos na política. Essa ideia,
493
essa compreensão ela é difundida, é muito difundida pelo Partido Comunista. O partido
494
realmente acreditava que os militares não voltariam a tentar um golpe de Estado, que eles
495
respeitariam o processo democrático. E muitos de nós acreditávamos nisso. Até que chega,
496
vem o golpe, e realmente não foi só um golpe de Estado, foi um golpe em todos nós, nível
497
pessoal, ideológico. Inclusive, você, de repente, principalmente os jovens, você perceber tudo
498
aquilo com que você estava sonhando, e de repente vem abaixo. Houve naqueles dias
499
imediatamente anteriores ao golpe muita mobilização, eu fazia parte da frente de mobilização
500
popular, que é uma frente que reunia sindicatos e várias organizações no Brasil inteiro, que
501
era contra tentar, quer dizer, contra a possibilidade de golpe. E a gente percebia, por exemplo,
502
que a efervescência política era muito grande em todas as áreas. Que quando houve, a gente
503
percebeu, por exemplo, a efervescência interna nas Forças Armadas, que suboficiais faziam
504
reivindicações que eram legítimas, pelo menos eu e todos nós achávamos que era um absurdo,
505
por exemplo, um sargento ou um cabo para se casar ter que pedir permissão para o
506
comandante. Infringia assim a... Interferência absurda nos direitos individuais, inclusive. E
507
também não podiam votar, proibiram, não tinham direito ao voto, não tinha direito nenhum. A
508
gente viu aquelas manifestações internas, a efervescência interna das Forças Armadas, e para
509
alguns de nós parecia uma garantia de que não haveria golpe, porque quem tem o contato
510
direto com a tropa são os suboficiais, é o sargento ou o cabo. E a gente pensava, já tinha vindo
511
coisa semelhante, no caso de Jacareacanga, quando houve a tentativa de golpe lá, um levante
512
na base aérea, os sargentos foram os que no chão impediram a decolagem de aviões. Então,
513
havia sinais, a gente pensava que realmente, quer dizer, aquele movimento de sargentos e
514
cabos era tão grande nas Forças Armadas que eles teriam condições de controlar a tentativa de
515
golpe. Bom, naquele período ou antes do golpe, foi quando as igrejas tiveram papel
516
fundamental na mobilização, e criar o clima político para o golpe. Eu vim em São Paulo,
517
acompanhei de perto e fui ver a grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em que
518
era muito claro para quem tinha uma outra visão, você via as grandes madames de São Paulo,
519
você via ali a nata da elite paulista, da aristocracia cafeeira e industrial. Estava ali naquela
520
marcha, porque as mulheres é que organizaram, a começar pela esposa do governador,
521
Eleonor Mendes de Barros. Todos eles você identificava, Klabin, senhora Klabin, tinha Muniz
de Souza, quer dizer, todos os grandes sobrenomes de São Paulo estavam ali com as suas
523
empregadas, que foram obrigadas a ir. E padres manipularam os setores bem conservadores
524
mesmo da igreja católica, que eram congregações marianas e as filhas de Maria. Uma
525
organização feminina e a outra masculina. E todos vieram com seus uniformes e tal, a
526
manifestação passou, eu trabalhava na época na Xavier Toledo aqui no centro, e eu fui lá na
527
esquina para ver quando eles passaram em frente ao Teatro Municipal ali, mas a maioria
528
mulher. E você percebia, pela forma de vestir, pela cor da pele, que muita gente estava ali
529
porque tinha realmente sido trazida pelos patrões. E, outra coisa, fábricas... Eu soube, eles
530
queriam dar o caráter feminino para a marcha, apesar de ter uma grande quantidade de
531
homens. Então, uma das fábricas do Matarazzo fechou aquele dia, que a maioria esmagadora
532
de trabalhadores da indústria têxtil eram de mulheres, formada por mulheres, então elas
533
também foram levadas. Bom, com esse clima todo, realmente há o golpe e a gente foi para a
534
rua também para reagir, resistir. São Paulo teve, eu participei das manifestações todas aqui,
535
teve mais uma vez as tentativas que a gente chamava na época, empastelamento, que era
536
incendiar o edifício do Diários Associados e do Estadão. Mas a gente percebeu que não havia
537
mais condições, porque apesar da tentativa de reação por parte de alguns setores militares, o
538
Jango realmente decidiu não resistir, percebendo que poderia causar uma guerra civil sem
539
perspectiva muito grande de ganhar a guerra. Bem depois, foi em 71, eu participei quando eu
540
saí do Brasil, que passei pelo Uruguai, lá participei de uma reunião com os exilados e o Jango.
541
E alguns de nós estávamos saindo do Brasil naqueles dias, uma das perguntas que a gente fez
542
foi exatamente, por que é que você não resistiu, já que o 3º Exército estava disposto a apoiar,
543
dava cobertura, e havia vários locais no Brasil, regiões do Brasil em que estavam dispostos a
544
reagir? Ele falou que tomou conhecimento naqueles dias e que a frota americana estava bem
545
nas costas do Brasil, e que a intenção, não me lembro quem ele falou que passou informação
546
para ele, não me lembro agora, não sei se foi Assis Brasil, general, não me lembro quem foi.
547
Falou que a ideia deles era realmente se houvesse reação, a frota americana invadiria o Brasil,
548
estavam com navios, com munições, armas, navio-hospital, inclusive, e que tinha uma parte
549
que eles estavam já na costa brasileira e ia se dividir, uma parte invadindo pelo Rio, outra por
550
Santos e outra parte pelo Espírito Santo. E que o Jânio chegou à conclusão, ele falou: “A
551
gente não tinha condições de lutar contra as tropas americanas.” E ia provocar uma divisão no
552
Brasil, porque provavelmente a partir de Minas para baixo, Espírito Santo, Minas, seria um
553
outro país, Nordeste e Norte seria outro. Não sei, mas foi o que me alegou na época. Então,
554
quer dizer, não houve reação, porque o que a maioria das pessoas teve que fazer foi se
555
esconder, todo mundo se escondendo, muitos indo para as embaixadas e consulados pedindo
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asilo político. E foi o que aconteceu, quer dizer, naquele momento eu participava, tinha
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participação grande no movimento ecumênico e tinha contato com a Ação Popular, não era
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militante ainda, mas conhecia várias pessoas desde a época da fundação da Ação Popular em
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62, Tinha amizade assim com algumas pessoas da AP. Mas não estava ligado a nenhuma
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organização clandestina. O que a gente teve que fazer foi mesmo no movimento ecumênico,
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alguns de nós teve que ir para a clandestinidade, eu não fui, porque eu não estava visado
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assim diretamente, eu tinha uma atuação, digamos política propriamente dita, era mais no
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meio do povo, eu não tinha nenhuma função específica, então não aparecia muito. O meu
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trabalho principal era com a juventude, no meio ecumênico junto à União Cristã de
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Estudantes do Brasil, que era organização de estudantes protestantes. E organizando esses
programas que eu fazia aqui em São Paulo de alfabetização. Agora, outros líderes tiveram que
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se exilar, o Paulo Wright, por exemplo, teve imediatamente que ir para o exílio, que era da
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UCB também na época, mas ele era deputado estadual também por Santa Catarina nessa
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época. O Betinho também que tinha relação de amizade com ele, Betinho também teve que ir.
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E outras pessoas das organizações ecumênicas que a gente teve que esconder, e foi um
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período de total dispersão. Todo mundo se dispersou e a gente teve alguns encontros para
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definir o que a gente poderia fazer naquele momento. E a gente percebeu que a gente tinha
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pelo menos duas tarefas: uma de tentar reaglutinar as pessoas que estavam dispersas, muitas
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escondidas, e muita gente procurando não se comunicar. Então, a gente tentou se atarefar, se
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reaglutinar e criar as condições de apoio aos presos políticos e àquelas pessoas que tinham
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que deixar o Brasil, o país. Quer dizer, o apoio aos presos políticos era um apoio político
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mesmo propriamente dito, mas também buscar advogados que pudessem dar apoio a eles e
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também apoio às famílias. Isso houve, a gente não chamou de apoio pastoral, mas no fundo
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era isso, de dar apoio às famílias, porque no período que as mulheres em geral não
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trabalhavam fora. Então, quem estava preso geralmente era o marido, o chamado chefe da
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família. E então havia muitas necessidades, e muita gente teve que fazer esse tipo de trabalho,
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de apoio às famílias. Apoio financeiro, apoio para sobrevivência das famílias, dos filhos e das
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esposas e tal.
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Interlocutora não identificada – Podemos fazer um intervalo, respirar um pouquinho, tomar
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um café?
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Anivaldo Padilha – Podemos, podemos sim.
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Anivaldo 02
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Tempo: 02:22:33
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Anivaldo Padilha – O golpe foi, realmente forçou a dispersão de todo mundo, e a gente, uns
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foram para o exílio como eu disse. Nós tivemos então um trabalho de aglutinação das pessoas
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e promover ações de apoio às pessoas que tinham que sair do Brasil e também os que estavam
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presos, as famílias deles. Uma das coisas que a gente fez naquele momento foi criar o que se
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chamou depois de rede de solidariedade. Redes, eu consegui organizar três redes, que eram de
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pessoas, basicamente pessoas, não havia instituição envolvida em geral, mas eram pessoas
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conhecidas, ligadas às igrejas, e algumas não. Saíam daqui da região do centro-sul e o sudeste
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de São Paulo, Rio, Minas, e se ligavam descendo pela região oeste do Paraná, o ponto
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primeiro de entrada que é Londrina e depois ia pela região oeste até as fronteiras com a
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Argentina, depois mais duas redes cortando o Paraná. As outras duas redes iam também pelo
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Paraná, pela região central e outra mais pelo litoral a Santa Catarina até o Rio Grande do Sul
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– essas duas iam para o Uruguai. E também os contatos, tivemos que fazer contatos com os
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grupos ecumênicos que a gente conhecia no Uruguai, na Argentina e no Chile.
Interlocutora não identificada – Quando você fala a gente, quem são essas pessoas que
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estavam com você?
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Anivaldo Padilha – Aí é uma coisa clandestina, então, você tinha que fazer, não havia
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nenhuma organização. O trabalho que eu fiz foi em função, foi a partir do trabalho que eu
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fazia antes com a juventude metodista que é o trabalho de ULAJE que é União
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Americana de Juventude Evangélica. Então, eram contatos pessoais, não havia instituição.
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Depois posteriormente sim, o CEI foi organizado em 65, o CEI – Centro Evangélico de
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Informação, que aí juntou o pessoal de igreja e sociedade, que já não era mais jovens, mas
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eram profissionais e intelectuais que aí foi dado um caráter um pouquinho mais oficial, mas
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não excepcional, porque era clandestino mesmo. Mas eu fui de uma rede organizada a partir
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da confiança absoluta que a gente tinha entre nós. Então, eram pessoas que obviamente estão
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ligadas à família, algumas outras instituições. Mas, por exemplo, a igreja metodista tinha um
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colégio lá em Maringá, eu acho que era Maringá. Então, tinha um missionário lá que ele
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servia de apoio, então ele recebia as pessoas como se fossem amigas e tal, ficavam escondidos
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na casa dela, aí até a fronteira. Mas logicamente não havia envolvimento institucional. Do
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outro lado sim, do outro lado da fronteira já era mais institucionalizado. Por exemplo, no
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Uruguai, a gente teve apoio grande da igreja metodista, principalmente da igreja metodista,
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porque das protestantes era a maior que existia no Uruguai e era muito mais atuante. E
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também na Argentina também pessoas, mas também com apoio institucional, que era na
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época Faculdade de Teologia em Buenos Aires, que depois se transformou ISEDET, mas era
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uma faculdade de teologia ecumênica. E no Chile também, no Chile também ele era mais
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institucional, tinha apoio principalmente de um escritório da igreja presbiteriana no Chile.
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Mas a gente mandava, tinha uma senha que a gente usava para comunicar que ia chegar uma
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encomenda para a pessoa, e também no Uruguai e Argentina a gente fazia isso. Tanto é que,
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por exemplo, quando eu saí, eu atravessei por Rivera no Livramento, do outro lado no
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Uruguai é Rivera, o Emílio Castro, se você conhece ele, ele estava esperando do outro lado da
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fronteira. Mas isso foi algo que a gente teve que fazer, e foi eu acho que uma contribuição das
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igrejas nesse momento da ditadura. E também o papel do CEI – Centro Evangélico de
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Informação – que foi organizado nesse período para disseminar informação do que estava
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ocorrendo no meio ecumênico e na sociedade, porque a censura era muito forte, a censura da
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imprensa, e o boletim ele era semiartesanal, semiclandestino, não era oficial, e era enviado
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para uma rede grande. E no começo foi quase que, eu não participei diretamente, naquele
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momento que era discutido, mas era um boletim para dizer para todo mundo: continuamos
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aqui, ainda estamos aqui, tinha que dar essa informação, tinha que passar essa notícia. E o
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boletim trazia informações sobre o que ocorria no meio ecumênico e era de uma forma
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inteligente, porque às vezes você trazia informações, notícias, informações sobre o que estava
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ocorrendo em outros países, mas que tinha a leitura te levava, remetia à situação brasileira, foi
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uma forma de romper realmente a censura. E a partir daí também começou essa reaglutinação
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das pessoas e a tentativa de se organizar, reconstruir uma série de atividades ou movimentos
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que tinham sido basicamente desmantelados antes do golpe. Nessa época, eu já estava na
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USP, fazia Ciências Sociais, então me envolvi mais diretamente ao movimento estudantil, aí é
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o momento que a gente teve de reorganizar a UNE, que tinha sido colocada na
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clandestinidade, tínhamos que reconstituir a UNE. E, realmente, ela foi organizada, a gente