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O tratamento em bilhetes amorosos no início do século XX: do condicionamento estrutural ao sociopragmático

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Academic year: 2021

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O tratamento em bilhetes amorosos

no início do século XX: do condicionamento

estrutural ao sociopragmático

Célia Regina dos Santos Lopes

Letras Vernáculas, UFRJ/CNPq/FAPERJ, Brasil

Márcia Cristina de Brito Rumeu

Letras Vernáculas, UFMG, Brasil

Leonardo Lennertz Marcotulio

Doutorando Letras Vernáculas/UFRJ, Brasil

Apresentação

É inegável que haja uma relação direta entre formas linguísticas e papéis sociais. Em qualquer sociedade, o papel desempenhado por um indivíduo lhe permite utilizar determinadas estratégias linguísticas que seriam esperadas e adequadas ao seu “cargo” social. De acordo com Robinson (1972, p. 69), no quadro das formas de tratamento, essa questão se mostra mais claramente, já que “relações particulares de parentesco, familiaridade e poder são marcadas pelos direitos e obrigações de usar formas especiais de tratamento e referência”. Ora, levando-se em conta a sociedade do Brasil Colônia, causaria espanto se fosse encontrado al-gum registro de tu sendo endereçado ao rei de Portugal. Da mesma sor-te, hoje chamaria a atenção escutar uma criança sendo tratada de vossa excelência.

Para Robinson (1972, p. 116), “se as formas de tratamento são um com-ponente de um sistema de comunicação cuja eficiência depende da con-venção, é necessário que as convenções sejam geralmente conhecidas na cultura”. Em outras palavras, existiria um sistema de regras de interação social que condiciona o uso das formas de tratamento de acordo com o papel social dos interlocutores envolvidos na cena comunicativa que pode ser mais ou menos consciente por parte do falante. Além disso, há de se considerar que as convenções sociais, principalmente as relacionadas ao tratamento, se configuram linguisticamente de maneira integrativa, uma vez que normas sociais se consubstancializam em normas linguísticas. Isso quer dizer que não só se levam em consideração as regras sociais que determinam os usos tratamentais, mas também devem ser observados os fatores linguísticos que podem condicionar o emprego de uma ou outra

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hile forma de tratamento. Os dois caminhos precisam convergir na

explica-ção do processo de mudança no sistema de tratamento do português. Neste trabalho, pretende-se discutir de maneira exaustiva a cor-relação entre os fatores linguísticos e extralinguísticos. Por um lado, descrevem-se os contextos morfossintáticos que favorecem a presença de formas relacionadas a tu e você. Por outro lado, discute-se a rela-ção existente entre formas de tratamento e papéis sociais. A motivarela-ção para a realização desta pesquisa se deu após identificarem-se pistas da existência de bilhetes amorosos, escritos por uma mulher, em 1908, que estariam disponíveis juntos a um processo judicial no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.1 Um material como esse não poderia ficar fora dos estudos sobre o mapeamento das formas de tratamento por três motivos: a) por se tratar de textos informais escritos no início do século XX; b) por ter sido escrito por uma mulher que não correspon-dia aos padrões esperados para o comportamento feminino da época e c) pela coexistência em um mesmo bilhete de formas de tu e de você (mescla tratamental).

Para dar conta dos aspectos levantados, parte-se, em um primei-ro momento, do referencial teórico da sociolinguística de inspiração laboviana (LABOV, 1994) e, posteriormente, envereda-se pela inter-face Sociolinguística/Pragmática, fazendo uso do modelo de polidez idealizado por Brown e Levinson (1987). Da teoria variacionista, vê--se a língua como um sistema heterogêneo de regras variáveis que se apresenta de forma ordenada, em virtude dos condicionamentos estruturais e sociais, em constante mudança. Da Sociopragmática, a língua é concebida como interação e através dos usos pode-se dizer mais do que as formas linguísticas aparentemente mostram, de acordo com o propósito comunicativo dos interlocutores e a negociação dos significados.

1. O corpus

Para alcançar o objetivo proposto, será utilizada uma amostra específica constituída por 13 bilhetes amorosos, escritos no Rio de Janeiro, em 1908, por Robertina de Souza, que assinava seus bilhetes como Chininha. Esses bilhetes se encontram anexados a um processo

1 Agradecemos a colaboração de Mário Bastos por essas pistas tão valiosas. Deixamos registra-do aqui, também, a contribuição de Paula Silva, que nos ajuregistra-dou a transcrevê-los, editá-los e analisá-los.

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judicial2 que investigou o assassinato do amante de Robertina, Álvaro da Silva Mattos, cometido por Arthur Frederico de Noronha, com quem era amasiada há seis anos. Do total de bilhetes, 11 foram escritos para o amante e dois, ao companheiro.

Segundo Engel (2001, p. 117), em “Cultura popular, crimes pas-sionais e relações de gêneros – Rio de Janeiro, 1890-1930”, Arthur Frederico de Noronha era brasileiro, capitão-tenente da Armada, ti-nha 29 anos, sabia ler e escrever, e teve dois filhos com Robertina. A jovem, no entanto, teria se envolvido afetivamente com Álvaro da Silva Mattos, descrito por Engel como “branco, desempregado, solteiro, 20 anos, brasileiro, sabendo ler e escrever”. Este último havia sido aco-lhido por Arthur, em sua casa, por encontrar-se desempregado e por não ter onde morar. Três meses depois, Arthur começou a desconfiar de um caso entre seu amigo e Robertina. De acordo com o seu depoi-mento, mandou a companheira viajar, deixou seus filhos na casa dos avós paternos e expulsou Álvaro de sua casa, depois de ter confirmado a relação com Robertina. No dia seguinte, os dois se encontraram, dis-cutiram e Arthur deu três tiros em Álvaro, matando-o. Foi absolvido por privação de sentidos e da inteligência.

2. As opções teórico-metodológicas: justificativa

Ao abordar a diferenciação entre os estudos de natureza sociolin-guística e pragmática, Levinson (1989) discute as fronteiras e os limites escopados por esses dois referenciais teóricos. Para o autor, a sociolin-guística se preocupa com o valor que a forma de tratamento carrega, tendo em vista as características do falante (sua idade, sexo, escolari-dade, grupo social etc.) na sua relação com o destinatário, observando os fatores linguísticos e extralinguísticos que determinam usos variá-veis. A pragmática, por sua vez, se interessa pela justificativa de uma forma ter sido empregada e que efeito essa escolha pode ter para o destinatário da interação.

Dessa forma, de acordo com Levinson (1989), os estudos pragmá-ticos e sociolinguíspragmá-ticos são exclusivos, mas podem ser complementa-res. A sociolinguística se preocupa em entender por quem e para quem uma determinada forma de tratamento é utilizada. A pragmática dis-cute, mais especificamente, o porquê de uma forma ter sido utilizada

2 Processo Arthur Frederico de Noronha, Arquivo Nacional - Rio de Janeiro, no 717, M. 883, gal. A, 8º PC, 1908.

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hile em uma determinada cena interativa. Essa é a razão pela qual se

op-tou, neste trabalho, por uma abordagem de cunho sóciopragmático. Vale destacar ainda que a adoção da perspectiva sóciopragmática pode encontrar alguns embates teóricos no tocante à sua aplicação a textos escritos de sincronias passadas. Autores como Goffman (1973) (apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2003), por exemplo, excluem do fenômeno da interação os contatos interativos à distância. Para esse autor, deve-se entender por interação a comunicação face a face e a influência recíproca que os participantes exercem sobre suas ações respectivas quando estão em presença física imediata uns dos outros. De acordo com esse ponto de vista, não seria possível adotar tal pers-pectiva em um estudo feito com base em bilhetes.

Embora se reconheça que as teorias pragmáticas tenham sido ela-boradas para interações cara a cara, alguns autores defendem a ideia de que podem ser utilizadas em documentos escritos. Consoante Bravo (2005), a polidez pode ser estudada em textos escritos e essa mo-dalidade de pesquisa linguística deve e precisa ser estimulada. Para a autora, nem sempre haverá uma interação no seu sentido stricto sensu, mas sim uma interlocução, tal qual as ideias backtinianas, que acre-ditam que o enunciado começa no plano do pensamento que leva à expressão do mesmo. Ou seja, existiria um nível prévio à emissão com fins comunicativos e neste nível se delinearia o futuro intercâmbio so-cial e a figura do “interlocutor virtual”.

No que se refere às etapas de realização deste estudo, em um pri-meiro momento, tenta-se desenhar um quadro com alguns resultados de análises mais recentes sobre o quadro pronominal do português do Brasil (doravante PB) entre os séculos XIX e XX. A seguir, apresenta--se um panorama geral do emprego das formas tratamentais no corpus a partir dos percentuais de frequência de uso. O intuito é descrever todas as formas de tratamento utilizadas nos bilhetes tendo em vis-ta as diferentes funções morfossintáticas assumidas. Nessa análise de cunho estrutural, leva-se em conta a presença ou não de mescla de tratamento em um mesmo bilhete, tentando observar os contextos em que mais se empregam, o que se denominou formas relacionadas a tu3 (tu/-s, imp. P2, teu/tua, te, contigo, por/a/de/para ti) e a você (você/Æ P3, imp. P3, seu/sua, o/a/lhe, com/por/a/de/para você). Busca-se ain-da obter indícios que possibilitem delinear os papéis assumidos por

3 O imperativo de terceira pessoa (presente do subjuntivo) fica indicado como imp. P3, do mes-mo mes-modo que o imperativo de Tu aparece comes-mo imp. P2. O símbolo -Æ (P3) indica que se trata de uma forma verbal sem o sujeito preenchido e –s refere-se à desinência verbal de segunda pessoa do singular (sujeito nulo).

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Chininha nos bilhetes escritos ao amante e ao marido. No primeiro caso, Chininha assume-se como protagonista de uma paixão intensa, ao passo que, no cenário da traição revelada, se torna uma vítima em busca de seu perdão.

Com base nessas generalizações descritivas, investe-se, na segunda parte deste estudo, em uma análise qualitativa de natureza pragmáti-ca, observando os atos que poderiam causar algum tipo de ameaça às faces dos interlocutores. O objetivo é verificar como as estratégias de atenuação, em especial as formas de tratamento, poderiam ser utiliza-das para mitigar a imposição do ato, garantindo (ou não) a harmonia do processo interativo (MARCOTULIO, 2008).

Por fim, pretende-se responder às seguintes questões: Qual era o re-pertório de tratamentos disponível no alvorecer no século XX? Como ocorria o condicionamento estrutural e sóciopragmático das formas de tratamento? Que pesos tinham o papel social e a manutenção da intenção comunicativa do falante, ao pronunciar uma forma em detri-mento de outra?

3. O resgate de estudos sobre a alternância tu e você no português do Brasil

Expõem-se, nesta seção, os resultados de alguns dos estudos lin-guísticos acerca das estratégias de referência ao interlocutor com base em corpora diversificados desde o século XIX até o século XX. Busca-se apresentar uma breve síntese do que já foi discutido sobre a variação dos pronomes de referência à segunda pessoa do discurso tu e você, a fim de tentar vislumbrar os aspectos já observados em relação à rees-truturação do quadro pronominal do PB.

• Os pronomes tu e você no português brasileiro escrito: o estado da questão

Redirecionando o foco desta revisão histórico-descritiva especifi-camente para análise das formas tu e você, passa-se à exposição dos resultados dos trabalhos que versam sobre o português dos séculos XIX e XX, em diferentes amostras de língua escrita.

Lopes e Machado (2005), com base em uma amostra de 41 cartas pessoais redigidas no contexto sócio-histórico de fins do século XIX, por um casal de brasileiros cultos (Christiano Benedicto Ottoni e Barbara Balbina de Araújo Maia Ottoni) e direcionadas aos seus netos

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hile (Mizael e Christiano), observam as distintas preferências dos avós ao

fazerem referência aos sujeitos de segunda pessoa do discurso com as estratégias pronominais tu e você. O avô Christiano prefere o tu combi-nando-o com formas de segunda pessoa do discurso (P2), o que era de se esperar de um avô-professor sempre voltado para a ‘correta’ expres-são da norma gramatical do português. Já a avó Barbara evidencia um maior nível de desprendimento em relação aos preceitos gramaticais, uma vez que apresenta maior variação na combinação entre tu e você com formas de segunda e terceira pessoas.

As autoras discutem, à luz dos princípios de gramaticalização per-sistência e decategorização, conforme Hopper (1991), a combinação das formas pronominais tu e você com os pronomes complementos e possessivos de segunda e terceira pessoas. Na forma você, constataram que ainda persiste a especificação formal original de terceira pessoa (P3), ainda que a interpretação semântica seja de segunda pessoa do discurso (P2). Na produção escrita da avó Barbara, Lopes e Machado averiguaram que a forma você assume uma interpretação semântica de segunda pessoa [- EU], embora possa estar combinada com formas de P2 (te manda) – evidência de decategorização, isto é, da adoção de traços da categoria-destino (pronome) – ou de P3 (sua cartinha) – ex-pressão de persistência de resquícios formais da categoria-fonte (a forma nominal de tratamento Vossa Mercê). Tal comportamento lin-guístico levou as autoras a detectarem, na escrita de brasileiros cultos, a tão condenada “mistura ou mescla de pronomes”, evidenciando a concorrência entre tu e você, nas relações interpessoais íntimas e soli-dárias, no PB de fins do século XIX.

Lopes et al. (2009) pretende analisar as novas possibilidades combi-natórias produtivas a partir da inserção de você no quadro pronominal do PB (você com te~lhe~você, teu/tua~seu/sua, vocês com lhes~vocês, seus~teus) e examinar a questão da reorganização do sistema de trata-mento da língua portuguesa com a implementação de formas grama-ticalizadas. Para detectar as motivações da variação entre as formas de referência à segunda pessoa do discurso tu e você no PB, embasa o seu estudo em uma amostra de cartas escritas por nove brasileiros ao ilustre brasileiro Rui Barbosa, em fins do século XIX.

Na produção escrita de um dos remetentes ilustres, Carlos Nunes de Aguiar, a autora identifica a presença marcante da mescla de tratamen-to (formas de tu ao lado de você). Na análise dos tipos de pronomes re-lacionados às formas de P2 (tu) e de P3 (você), verifica que a forma você apresenta maior produtividade como pronome-sujeito, imperativo e

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pronome complemento preposicionado (para/com você), enquanto o tu é favorecido pelos pronomes possessivos (teu/tua), formas verbais não imperativas e pronome complemento não preposicionado (te). Segundo Lopes, esses resultados corroboram a hipótese de que a im-plementação da forma você no quadro pronominal do PB não se deu de modo idêntico em todos os subtipos pronominais.

Com base nas cartas de Aguiar, Lopes (2009) observou a variação tu e você na posição de sujeito. Apesar de o tu íntimo como sujeito nulo ser a preferência do informante oitocentista em análise, a forma você como pronome sujeito pleno se deu preferencialmente na indicação do discurso indireto em que o falante se reporta ao discurso de outrem. A autora busca motivações pragmáticas para as ocorrências de você no discurso reportado. Dessa forma, com base nos conceitos de face po-sitiva (face) e face negativa (território) – Teoria da polidez – pensados por Brown e Levinson (1987), Lopes admite o você como uma estraté-gia de tratamento a Rui Barbosa utilizada para suavizar a imposição dos atos de linguagem à face negativa (território) do interlocutor, evi-denciando, através do discurso reportado, um maior distanciamento social entre remetente e destinatário da missiva.

Barcia (2006) se propõe a descrever e a analisar a produtividade das estratégias nominais e pronominais de tratamento de referência à se-gunda pessoa do discurso em cartas de leitores publicadas em jornais brasileiros oitocentistas. A autora pretende ainda detectar o estágio do processo de pronominalização assumido por Vossa Mercê a originar você nessa amostra.

Nos jornais oitocentistas analisados por Barcia (2006), a legítima forma pronominal tu assumiu uma maior frequência de uso nas am-biências de menor grau de formalidade. A forma você, ao se desgastar fonética e semanticamente, passou a concorrer com o pronome tu nas cartas em que se verificam relações interpessoais e nas relações sociais mais solidárias. No entanto, Barcia (2006) observou o comportamento híbrido da forma você uma vez que também se apresentava em cartas não pessoais ao lado de Vossa Mercê. Assim sendo, a autora chegou à conclusão de que, na produção jornalística de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, a forma você apresentava-se em um estágio in-termediário do seu processo de gramaticalização (nome > pronome ® Vossa Mercê > você).

A investigação linguística das cartas brasileiras novecentistas con-duziu Soto (2001) a constatar que o século XX representa o momento de ruptura com um quadro pronominal que previa o tu como forma

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hile licenciada, em conformidade com a norma padrão, para fazer

referên-cia à segunda pessoa do discurso. Além disso, comprova que o sécu-lo XX se apresenta como o período em que se dá a configuração do você como forma de referência ao interlocutor totalmente desligada do sentido de polidez atribuído à sua forma nominal de tratamento originária, vossa mercê. A forma você se apresenta completamente desvinculada da semântica do Poder, compartilhando o seu campo de manifestação no domínio da informalidade em concorrência com a forma pronominal – tu.

Brito (2001) investiga, a partir de peças de teatro e de cartas pessoais dos séculos XIX e XX, a mudança na uniformidade de tratamento, tra-zendo à tona os aspectos morfossintáticos que motivaram o falante do PB a se utilizar, não uniformemente, dos pronomes de segunda pessoa na função de objeto mais especificamente nos contextos em que o te está relacionado à forma você (Faça o mundo te ouvir). A autora com-bina as teorias gerativista (Teoria de Princípios e Parâmetros) e varia-cionista (Sociolinguística Quantitativa), concebendo que a mudança linguística ocorre no processo de aquisição da linguagem (Teoria da Mudança Diacrônica).

Os resultados de Brito (2001, p. 167) permitem admitir que o em-prego do te com a forma de tratamento você é uma mudança paramé-trica, encaixando-se em outras mudanças de parâmetros tais como: a) o não preenchimento da posição de objeto – conforme Cyrino (1997), o PB se direciona para uma nova marcação paramétrica que privilegia a posição de objeto nula; b) a mudança na forma de tratamento e na direção da cliticização (que é da esquerda para a direita, diferindo-se do português clássico e do PE moderno); c) a queda do uso do clítico (o onset da sílaba do clítico acusativo ‘o/a’ deixa de ser licenciado) e d) o enfraquecimento da concordância no PB.

Machado (2006) envereda pelo estudo da implementação de você no quadro pronominal do PB no desenrolar do século XX. Além da análise da variação de formas nominais e pronominais de referência à segunda pessoa do discurso, em peças teatrais ambientadas no Rio de Janeiro, entre os anos de 1908 e 1996, a autora também pretende entender a dinâmica das relações sociais que embasam o uso de es-tratégias nominais e pronominais com base na discussão tecida por Brown e Gilman (1960) e por Brown e Levinson (1987).

Em seu estudo, detecta persistências formais e semânticas (HOPPER, 1991) relacionadas à história de formação do Vossa Mercê como forma nominal de tratamento a originar você no português.

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Como evidências de persistência formal de Vossa Mercê na forma você, encontra os seguintes traços: a conservação da flexão verbal de tercei-ra pessoa do discurso, a manutenção da flexão de número, a produti-vidade de você em diferentes funções sintáticas, a tendência de você fixar-se na posição sintática de sujeito como um traço pronominal adquirido na sua história de formação, a combinação formal do você com formas de P3, ainda que se combine semanticamente com formas de P2 (decategorização). Como um traço de persistência semântica, tem-se o uso do você de referência indeterminadora que, por sua vez, pode evocar a sua história de formação como a forma nominal de tra-tamento Vossa Mercê cuja referência estaria fora do eixo comunicativo.

No que se refere às estratégias de referência ao interlocutor e às re-lações sociais que as embasam, Machado observa que, de modo geral, as formas nominais de tratamento são preferidas nas relações assimé-tricas ascendentes (inferior para superior). A estratégia pronominal você passa a assumir, a partir de 1918, com base na análise da peça O simpático Jeremias, o espaço do tu nas relações sociais simétricas (en-tre membros de um mesmo grupo social) e assimétricas descendentes (superior para inferior).

Considerando, por sua vez, os resultados dos estudos referentes aos séculos XIX e XX no PB escrito, é possível conjecturar as seguintes hi-póteses a serem investigadas neste trabalho:

(1) Em termos estritamente morfossintáticos, a implementação de você ocasionou um rearranjo no quadro de pronomes, uma vez que sua inserção não se deu da mesma maneira em todos os contextos morfossintáticos: pronome-sujeito, pronome complemento preposicionado e formas verbais imperativas consti-tuem contextos implementadores de formas de P3 (você), ao passo que prono-mes possessivos, formas verbais não imperativas e pronoprono-mes complemento não

preposicionados apresentam-se como contextos de resistência do tu (LOPES 2008;

LOPES et al, 2009);

(2) A produtividade da combinação de você com te, rotulada de “mistura de trata-mento” tradição gramatical e esboçada nas cartas oitocentistas e novecentistas de mãos brasileiras, constitui um reflexo da reorganização do sistema pronomi-nal do PB a partir da inserção da forma inovadora você (BRITO, 2001; LOPES; MACHADO, 2005; SOTO, 2001 etc.).

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hile 4. Resultados quantitativos

4.1. Análise de regras variáveis: fatores selecionados

Como discutido em diversos estudos sobre o tema feitos com base em cartas produzidas no Brasil entre os séculos XIX e XX (SOTO, 2001; BRITO, 2001; LOPES; MACHADO, 2005; BARCIA, 2006; LOPES et al, 2009; RUMEU, 2008), a implementação da nova forma gramaticali-zada ocorreu em alguns contextos morfossintáticos mais do que em outros, criando-se um paradigma pronominal supletivo. Os resulta-dos mostram que os ambientes morfossintáticos que se firmarão mais tarde para você já aparecem delineados nos séculos XIX-XX. Você se instaura no quadro de pronomes como pronome sujeito preenchido (principalmente) e complemento preposicionado, além das formas do imperativo-subjuntivo. As formas relacionadas a tu não se perderam. O paradigma pronominal parece ter mantido o te complemento (acu-sativo “eu te vi” e dativo “eu te dei X”) ao lado de outras possibilidades relacionadas a você que já eram pouquíssimo frequentes. A proposta de análise prevê a descrição mais minuciosa dos contextos de imple-mentação de você, observando, por outro lado, os contextos de resis-tência das formas relacionadas a tu.

Na leitura inicial dos bilhetes de Chininha escritos na primeira dé-cada do século XX, observou-se a presença expressiva de mescla de tratamento: o paradigma do pronome tu (-s, imperativo indicativo ou imperativo P2, teu, te, contigo/para ti) correlacionado no mesmo bilhe-te com você e formas correspondenbilhe-tes (Æ, imperativo subjuntivo ou imperativo P3, seu, lhe/o/você, a/para/com você).

Em termos do levantamento geral nos bilhetes, foram identifi-cados 113 dados no total: 87 ocorrências relacionadas a tu (77%) e apenas 26 formas verbo-pronominais do paradigma de você (23%). O tu íntimo é predominante na produção escrita de Chininha, o que confere ao seu texto grande informalidade, típico do gênero bilhete. Os exemplos a seguir ilustram a forte presença do discurso amoro-so que é a tônica central dos bilhetes que circulavam nesse triângulo Chininha-amante-marido:

(1) eu te adoro te amo até a morte sou tua só tu é meu só o meu coracao e teu e o teu coracao é m™™™eu. a Chininha e todinha tua ate a morte” (Bilhete 1 – destinado a Álvaro)

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(2) eu rezo pedind-o a Deus para você me perdo-ar, mas creio que voce não tem co-ragem de ver morrer um filho o filha” (Bilhete 1 – destinado a Arthur)

Na tentativa de identificar o que favorecia o emprego das duas for-mas variantes nessa amostra em que tu é majoritário, realizou-se uma análise de regra variável com todos os dados de tu e você levantados. Foram selecionados dois grupos de fatores, um de natureza estrutural (o contexto morfossintático) e um extralinguístico (o destinatário do bilhete). Para uma análise minuciosa dos contextos de implementa-ção de você e de resistência de tu, além da apresentaimplementa-ção dos resultados obtidos na Tabela 1, serão discutidos cada um desses contextos.

Tabela 1 – Utilização das formas de tratamento em função do contexto morfossintático de ocorrência: valor de aplicação tu

Categoria gramatical N/T % P.R.

Pronome complemento (sem preposição) 12/14 86 .68

Imperativo 8/11 73 .59

Formas verbais não imperativas 16/22 73 .56

Pronome reto 11/18 61 .38

Pronome complemento (com preposição) 9/17 53 .32

De acordo com a tabela apresentada, observa-se que os contextos favoráveis ao pronome tu são pronomes-complemento sem

preposi-ção – te – (.68), verbo imperativo-indicativo (.59) e formais verbais não imperativas (.56), ou seja, sujeito nulo com marca desinencial de se-gunda pessoa. Vale dizer que os dados correspondentes aos pronomes possessivos não se encontram na tabela apresentada, uma vez que os 31 dados, que totalizam 100% das ocorrências, foram de formas de P2 (teu/tua), como no exemplo 3.

(3) Da tua sempre tua e toda tua do teu coração (Bilhete 10 – destinado a Álvaro)

Os contextos morfossintáticos mais favoráveis à implementação de você nesses bilhetes do alvorecer do século XX, em contrapartida, são: a presença do pronome reto e o pronome complemento com preposi-ção, como ilustram os exemplos 4 e 5, a seguir.

(4) manda-me dizer se recebeu uma carta registrada que eu mandei para você, eu quero ir de corpo e alma paro inferno se o que aquelle miseravel disse é verdade (Bilhete 1 – destinado a Arthur)

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(5) des que sofre com um inocente, que esta arrependido você já sabe. responda-me por favor, pelo amor de Deus. (Bilhete 02 – destinado a Arthur)

Tendo em vista os resultados quantitativos, será feita, em seguida, uma análise minuciosa que leva em conta cada um dos contextos fa-vorecedores de tu ou de você. Inicia-se com a discussão do pronome complemento (acusativo ou dativo) e, na sequência, discute-se a ques-tão das formas imperativas e do preenchimento do sujeito.

4.2. A forma te como acusativo e dativo: o contexto de maior resistência à entrada de você

A inserção da forma gramaticalizada você no quadro de pronomes criou uma série de repercussões gramaticais em diferentes níveis da língua. Advinda de uma expressão nominal de tratamento (vossa mer-cê) que leva o verbo para a terceira pessoa do singular, a forma você manteve algumas propriedades morfossintáticas que acarretaram o rearranjo do sistema pronominal. Persistiu a especificação original de 3a pessoa, embora a interpretação semântico-discursiva passasse a ser de 2a pessoa. Algumas alterações afetaram em cadeia as subclasses dos oblíquos átonos e tônicos (pronomes-complemento diretos e indire-tos), além dos possessivos. Diferentemente dos pronomes originais de 1ª e 2ª pessoa, as novas formas gramaticalizadas (você e a gente) po-dem figurar em todas as posições sintáticas sem flexão, além de ocor-rerem combinando-se às formas oblíquas como ilustram os exemplos a seguir:

1. Vocêi disse que eu lhe/tei acharia (você) na faculdade para pegar o seu/

teui livro.

2. A gentei precisa resolver o nossoi problema (da gentei). Vamosi tomar uma decisão logo.

As combinações são bastante variáveis. Com a migração do posses-sivo de terceira seu (e variantes) para o paradigma de segunda pessoa, ocasionada também pela inserção de você no sistema, a forma dele tem sido utilizada como estratégia “possessiva” de 3ª pessoa para evitar a ambiguidade do possessivo seu, que atende às duas pessoas (segunda e terceira). O clítico dativo de 3ª pessoa lhe também perdeu espaço

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para sintagmas preposicionados introduzidos pelas preposições a ou para (esta mais produtiva do que aquela no português brasileiro fa-lado, como demonstram diversos estudos). Tal desuso poderia estar correlacionado ao fato de a forma lhe figurar, em algumas regiões do Brasil, em referência à segunda pessoa, principalmente, na função de objeto direto (GOMES, 2003; FREIRE, 2000), podendo ainda marcar formalidade (RAMOS, 1998). Os clíticos acusativos de 3ª (o/a/os/as) também apresentam baixa frequência no português falado (DUARTE, 1986). Para Gomes (2003, p. 87) “o PB caracteriza-se pela ausência de formas pronominais exclusivas para referência à terceira pessoa na ex-pressão do acusativo e do dativo”. A autora revela que só identificou, na amostra de fala do Rio de Janeiro, a presença de clíticos na primeira e segunda pessoas do singular. Nas demais pessoas, contudo, ocorrem apenas as formas retas dos pronomes. Para a segunda pessoa do sin-gular, o paradigma das formas pronominais estaria assim configurado no dialeto carioca: nominativo (você/tu), acusativo (te/lhe/você), dati-vo (te,lhe/a~para dati-você).

Como discuto anteriormente, estudos feitos com base em cartas produzidas nos séculos XIX-XX têm demonstrado que o clítico te é produtivo, correlacionando-se tanto no sistema tratamental em que predomina tu quanto no que prevalece você. Falta-nos descrever, en-tretanto, se tal uso se generaliza como acusativo ou dativo ao lado das alternativas apresentadas.

Como descrito na Tabela 1, o emprego de te é majoritário (12 ocor-rências) seja como dativo (seis casos) seja como acusativo (seis ca-sos). A forma você nas duas funções sintáticas ocorre mais raramente. Foram cinco casos: três como objeto indireto e dois como direto. Não houve exemplos de lhe em referência à segunda pessoa.

Em relação ao dativo (ou objeto indireto), dos seis dados de te iden-tificados, a maioria era constituída por “verbos benefativos” que im-plicam transferência de algo a alguém (transferência material) e se-riam considerados como de estrutura dativa por excelência, como é o caso de dar, em (6), mandar, exemplo (7), e pedir (8). Nesse último caso, não se tem tão claramente um caso de “transferência material”,4 já que perdão não se refere a algo concreto. Talvez seja mais coeren-te considerar como um verbo leve que forma com o seu objeto direto uma lexia complexa já cristalizada (pedir perdão):

(6) o que fizeste cabello que te dei (Bilhete dois – destinado a Álvaro)

(14)

Form as de tr at am ien to: lo s v oc ativ os en el len gu aj e j uv en il de M adr id, B ueno s A ir es y S an ti ag o de C hile

(7) por que quebraste aquelle lápis que eu te mandei amarrado com uma foto encar-nada (Bilhete 10 – destinado a Álvaro)

(8) para ate a hora da morte te pedir perdão (Bilhete dois – destinado a Arthur)

As duas ocorrências com o verbo fazer (9) e (10) não constituem típicos exemplos de “transferência material”, uma vez que tal verbo não foi empregado com o sentido original de criação ou de ação feita para alguém. No exemplo (11), te não funciona como um dos argu-mentos internos do verbo, mas sim do predicado agradável (predica-dor adjetival):

(9) Perdoa-me tudo quanto te fis hoje de estar beijando aquelle retrato (Bilhete seis – destinado a Álvaro)

(10) Perdoa-me tudo quanto te fiz sim! (Bilhete sete – destinado a Álvaro) (11) mas quis te ser agradavel mais uma vez (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

Os três casos de dativo com preposição + você figuram com os ver-bos dizer (transferência verbal/perceptual) e mandar (transferência material). O exemplo (14) é o único caso da amostra em que ocorreu a preposição para:

(12) não disse a voce que eu emgommei 3 collarinhos muito mal mas quis te ser agra-davel mais uma vez (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

(13) mande dizer a você que estou abandonada (Bilhete um – destinado a Arthur) (14) se recebeu uma carta registrada que eu mandei para você (Bilhete um –

destina-do a Arthur)

Também como acusativo, o clítico te foi mais recorrente. Foram identificados seis dados de te como objeto direto e apenas dois com o pronome você nessa função (21) e (22):

(15) Eu te adoro (Bilhete um – destinado a Álvaro)

(16) te adoro como nunca amei ninguém (Bilhete um – destinado a Álvaro) (17) eu te adoro (Bilhete um – destinado a Álvaro)

(18) te amo até a morte (Bilhete um – destinado a Álvaro) (19) não gosto de te ver triste (Bilhete dois – destinado a Álvaro) (20) não te zangues com migo (Bilhete quatro – destinado a Álvaro)

(21) porque eu sofro mais ainda vendo voce triste (Bilhete sete – destinado a Álvaro) (22) não posso ver voce triste (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

(15)

A n net te M yr e J ør gen sen

Em suma, na amostra de bilhetes de início do século XX, a forma oblíqua te é predominante seja como acusativo seja como dativo, prin-cipalmente, nos casos canônicos. Um único exemplo de você com a preposição para dá indícios do que será produtivo mais tarde (o uso de para no lugar de a como estrutura dativa alternativa). Interessante ressaltar que todos os dados de te ocorreram proclíticos ao verbo. Tais resultados, mesmo que levantados a partir de uma amostra reduzida, evidenciam que Chininha apresentava um comportamento típico do português brasileiro em oposição à norma europeia.

4.3. Formas variantes do imperativo: manda-me ou mande-me?

Um outro ambiente morfossintático que favoreceu o emprego de formas relacionadas a tu é o emprego do imperativo indicativo. Os di-versos estudos feitos por Scherre (2005, p. 125), com base em amostras distintas,5 evidenciaram alguns contextos que propiciam o emprego do que a autora denomina de imperativo indicativo (referente a tu) e o imperativo subjuntivo (referente a você). Os ambientes morfossintáti-cos em que predominam o primeiro seriam:

1. Pronome do caso reto depois do verbo: Leva eu!

2. Pronome átono antes do verbo, em particular o pronome me: Me diz

uma coisa!

3. Verbo de conjugação irregular com oposição “menos saliente”: dá/dê;

vai/vá)

4. Verbo de 1ª conjugação regular (mais geral e menos marcada) com vo-gal precedente mais aberta: Fala logo!

Por seu turno, o favorecimento do imperativo relacionado a você ocorreria nos seguintes contextos,6 segundo a autora:

1. Pronome átono depois do verbo, em especial o se: Levante-se! 2. Presença da negação: Não fale alto.

3. Verbos de conjugação irregular com oposição “mais saliente/marca-da”: diz/diGA; faz/faÇA.

5 No estudo de 2004, Scherre analisa, por exemplo, histórias em quadrinhos escritas a partir da década de 1970 do século passado.

(16)

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hile 4. Verbo da 2ª e 3ª conjugações regulares, ou seja, as duas conjugações menos gerais: comer, responder, exigir, partir.

5. Verbo de 1ª conjugação regular com vogal precedente menos aberta:

usar(Use); procurar (procUre).

Em termos gerais, a autora tem demonstrado que, no paradigma regular da primeira conjugação, o menor número de sílabas e a vo-gal precedente mais aberta favoreceriam o imperativo-indicativo e o maior número de sílabas e vogal precedente menos aberta, o impera-tivo-subjuntivo. Vejamos o que ocorria no início do século XX.

Nos bilhetes produzidos por Chininha, foram detectadas 11 ocor-rências de formas imperativas, prevalecendo a forma indicativa (tu) com oito dados e apenas três dados do subjuntivo (você). Em termos mais amplos, confirmam-se algumas hipóteses de Scherre. Dos oito dados do imperativo indicativo, houve seis casos com o pronome áto-no me posposto a verbos de primeira conjugação com oposição entre indicativo e subjuntivo menos saliente. Um único aspecto observado nos exemplos de (23) a (28), que contraria parcialmente o que foi pos-tulado por Scherre, é o fato de o pronome me aparecer posposto e não anteposto ao verbo. Nessas seis ocorrências, tem-se o predomínio de verbos de primeira conjugação que é considerada a conjugação mais geral e, por isso, menos marcada. Em mandar (quatro ocorrências) e perdoar (duas ocorrências) a distinção entre as duas formas de impe-rativo se dá apenas na vogal final (não há alteração na vogal preceden-te): manda/mande e perdoa/perdoe.

(23) Manda-me que eu guardo como tu guardou o meu (Bilhete três – destinado a Álvaro)

(24) Manda-me o cabelo sim (Bilhete quatro – destinado a Álvaro)

(25) Manda-me que eu tenho muito prazer em concertar (Bilhete cinco – destinado a Álvaro)

(26) Manda-me dizer se recebeu uma carta (Bilhete um – destinado a Arthur) (27) Perdoa-me tudo quanto te fis hoje de estar beijando aquelle retrato (Bilhete seis

– destinado a Álvaro)

(28) Perdoa-me tudo quanto te fiz sim (Bilhete oito – destinado a Álvaro)

As três ocorrências de imperativo-subjuntivo (você) confirmam as hipóteses de Scherre (2005) e estão ilustradas a seguir.

(29) nunca mais escreva aquellas palavras (Bilhete um – destinado a Álvaro) (30) tenha Penna de mim que sofro tanto (Bilhete um – destinado a Arthur)

(17)

A n net te M yr e J ør gen sen

(31) Responda-me por favor, pelo amor de Deus (Bilhete dois – destinado a Arthur)

Nos três casos têm-se verbos de 2ª conjugação. O verbo escrever, apesar de regular, apresenta maior saliência fônica, pois a vogal prece-dente é aberta no imperativo-indicativo (escrÉve) e fechada no impe-rativo-subjuntivo (escrÊva). O verbo ter também apresenta [+ saliência fônica], além de ter conjugação irregular (tem/tenha). O terceiro caso (responder) não apresenta alteração na vogal precedente, mas seria considerado de conjugação mais marcada (2ª conjugação, três síla-bas). Nesse último exemplo, o pronome me aparece também posposto.

Nos bilhetes de 1908, como se viu, predominaram as formas indica-tivas em verbos de 1ª conjugação regular com menor saliência fônica ou [- marcados]. O imperativo subjuntivo (você) prevaleceu nos verbos de 2ª conjugação regulares, ou não, com maior oposição fônica entre as duas realizações do imperativo, confirmando-se parcialmente as hi-póteses apontados em Scherre (2004, 2005).

4.4. Preenchendo o sujeito com você e tu

Com relação à questão do preenchimento do sujeito, os estudos diacrônicos feitos evidenciam que o português, no início do século XX, ainda era uma língua na qual havia uma grande ocorrência de sujeito nulo. No estudo realizado por Duarte (1993) a partir de peças teatrais brasileiras, verificou-se que os índices percentuais de sujeito nulo são significativos até pelo menos os anos 1950: 77% em 1882, 75% em 1918, 54% em 1937, 50% em 1955, 33% em 1975, 28% em 1992. Duarte desta-ca que, a partir da dédesta-cada de 1930, há a primeira redução percentual correspondendo ao momento em que você tornou-se mais produtivo que tu. A segunda redução drástica deu-se na década de 1970, época da generalização de a gente no lugar de nós. Nos estudos parciais feitos com base em cartas, o predomínio de tu sobre você mantém-se alto até pelo menos os anos 40 do século passado. O pronome tu apresen-ta, aproximadamente, 70% de frequência sobre você e a sua realização como sujeito nulo atinge patamares próximos de 100% no início do século XX. Em contrapartida, o emprego de você é preferencialmen-te pleno (média de 60% nas cartas familiares produzidas por pessoas ilustres da sociedade carioca)7.

Como mostra a tabela a seguir, os resultados identificados nos bilhetes de Chininha confirmam o que foi observado em outros

(18)

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hile trabalhos, ao mesmo tempo em que se verificam aspectos peculiares.

Por um lado ratifica-se o maior emprego de tu na posição de sujeito (73%), preferencialmente nulo (60%). O emprego de você ocorre majo-ritariamente preenchido (70%):

Tabela 2 – Preenchimento do sujeito

Tipos de sujeito Tu Você

Pleno 11/27 – 40% 7/10 – 70%

Nulo 16/27 – 60% 3/10 – 30%

Total 27/37 – 73% 10/37 – 27%

Essa distribuição quase complementar (tu-nulo x você-pleno) dá in-dícios das mudanças que vão operar no português brasileiro quanto às alterações do quadro pronominal na posição de sujeito. A morfologia verbal marcada e o traço [+ animado] intrínseco à segunda pessoa do singular direta ainda favorecem, como mostram os exemplos a seguir, a realização não plena do sujeito nas orações relativas (32), interroga-tivas (33, 34, 39-40a), adverbiais (35 b,c,d, 36, 37), completivas (38, 39-40b, 41), iniciais/matrizes8 (35

a,e). Isso se deve ao fato de “quanto mais acessível o referente, mais facilmente se licencia e se identifica o sujei-to nulo” (DUARTE, 1993):

(32) P.S. Muito obrigada pelo lindo livrinho que me ___ mandaste . (Bilhete nove – destinado a Álvaro)

(33) não gosto de te ver triste. O que __ fizeste do cabelho que te dei ___ guardaste no coração como eu dise que noite eu vou passar . (Bilhete dois – destinado a Álvaro) (34) por que ___ quebraste aquelle lápis que eu te mandei amarrado com uma foto

encarnada (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

(35) se tu tens coragem de separar-se de mim (a)[__ vaes], mas eu sofro muito (b) [se __

fores], eu morro de saudades (c) [se ___ fores] (d) [quando ___ voltares] não me (e) ___

encontrarás com vida (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

(36) [por que se ___ não me perdoares] eu viva não fico, não posso me separar de você e do meu filho (Bilhete um – destinado a Arthur)

(37) pesso a Deus e a todos o santos para ___ saias dahi quanto mas cedo possível (Bilhete um – destinado a Arthur)

(38) sei que ___ quebraste por que encontrei um pedaço no bolço do collete branco que estava em cima da cama, eu li as cartas (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

8 Um aspecto relacionado diretamente à análise do tipo sintático de oração é o controle da pre-sença/ausência de elementos antes do sujeito pronominal que será comentado em seguida.

(19)

A n net te M yr e J ør gen sen

(39) para que ___ diseste hoge (a) [que ___ querias morrer] (b) (Bilhete 11 – destinado a Álvaro)

(40) para __ disseste(a) [que __era disgraçado] (b) (Bilhete 11 – destinado a Álvaro) (41) não quero quero que ___ digas mais (Bilhete 11 – destinado a Álvaro)

Nos dados de preenchimento do sujeito com o pronome tu, per-cebe-se um emprego funcionalmente motivado. É possível interpretar que, em alguns casos, o pronome pode indicar referência disjunta ao pronome anterior (LUJÁN, 1999 apud SILVA, 2007, p. 50), marcando contraste ou individualização como em (42-43). No primeiro caso, opõe-se a primeira e a segunda pessoa (__ sou tua x tu é meu). No se-gundo caso, o sujeito da oração anterior também é o eu (__ fis) e o pre-enchimento com tu (tu sabes) marca contraste (= tu e não outra pessoa sabe que tudo isso é brincadeira):

(42) sou tua só e tu é meu (Bilhete um – destinado a Álvaro)

(43) Perdoa-me tudo quanto te fis hoje de estar beijando aquelle retrato tu sabes que tudo isso é brincadeira (Bilhete seis – destinado a Álvaro)

Em (44-45) também se mantém o jogo opositivo da relação amorosa estabelecido entre o eu e o tu. Tal uso é recorrente nos bilhetes de Chininha e singulariza as cartas de amor:

(44) eu sou tua e tu é meu (Bilhete três – destinado a Álvaro) (45) tu és meu me eu sou tua (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

Nos exemplos (46-47) ainda se nota a disjunção estabelecida entre tu e eu. Em (46) o sujeito da matriz (eu) e o sujeito da subordinada adverbial (tu) aparecem ambos preenchidos, individualizando-os en-faticamente (eu guardo x tu guardou). Em (38) _sei que __ quebraste, tem-se uma estrutura aparentemente semelhante ao exemplo (46): sujeito da matriz (__ sei) distinto do sujeito da subordinada comple-tiva (__quebraste). Acontece que em (38) foram empregados sujeitos nulos, ao passo que em (46) os dois sujeitos são plenos. A diferença básica desses dois exemplos é o fato de se ter a presença da desinência verbal em quebraste que está ausente em tu guardou.

Em (47), a oração matriz (vaes) vem posposta à subordinada adver-bial. Diferentemente do exemplo (46), o sujeito das duas é o mesmo, o que poderia justificar o apagamento do sujeito na segunda oração. O contraste entre tu e eu se estabelece, entretanto, com a oração seguinte (mas eu sofro muito) que tem também o sujeito preenchido.

(20)

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hile (46) manda-me que eu guardo [como tu guardou o meu] (Bilhete três – destinado a Álvaro)

(47) se tu tens coragem de separar-se de mim __ vaes, mas eu sofro muito (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

É preciso considerar ainda outros indícios nesse conjunto de bilhe-tes que não são identificados em materiais do mesmo período. Dos 11 dados de tu pleno, houve seis ocorrências de tu sem a presença da desinência verbal como pode ser visto nos exemplos (42, 44, 46, 48, 49, 51) e cinco casos de tu acompanhado de verbo com marca flexional (35, 43, 45, 47, 52):

(48) porque tu é a minha vida (Bilhete nove – destinado a Álvaro)

(49) que tu é meu coração que eu sou tua... (Bilhete seis – destinado a Álvaro) (50) ...e tu é meu (Bilhete seis – destinado a Álvaro)

(51) tu é a minha vida, minh’alma (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

(52) não posso ver você triste. tu és meu só (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

Outro aspecto interessante nesses dados de tu pleno x tu nulo é o fato de o preenchimento do pronome ocorrer principalmente com tempos verbais menos salientes como é o caso do presente do indica-tivo, ao passo que formas verbais mais salientes favoreceriam o sujeito nulo. Dos 11 dados de sujeito pleno, houve dez exemplos de verbo no presente do indicativo (és~é, sabes, tens) e apenas um caso no pretérito perfeito (guardou). Observando os 17 exemplos de tu-nulo, verificou--se o predomínio de tempos verbais [+marcados] 9 e apenas um caso no presente do indicativo (vaes).

No caso do emprego de você, foram localizadas três ocorrências de sujeito nulo e sete do pronome plenamente realizado. Em (53) o sujeito da oração relativa tem como antecedente a forma verbal im-perativa subjuntiva (escreva). Embora ambas sejam nulas, o referen-te é sintaticamenreferen-te acessível. Em (56), o anreferen-tecedenreferen-te também é uma forma imperativa (manda-me) e a oração subordinada está em ótimas condições de referência, como afirma Duarte (2003, p.123). Em (54), tem-se uma oração interrogativa direta. No exemplo (55), tem-se um sujeito nulo na oração completiva (que __ era disgraçado) antecedido por outro sujeito nulo na oração matriz (__ disseste). Trata-se de um

9 Foram sete exemplos de pretérito perfeito (fizeste, guardaste, mandaste, quebraste [2], disseste [2]), quatro de futuro do subjuntivo (fores [2], voltares, perdoares), dois no presente do subjun-tivo (digas, saias), um no futuro do indicasubjun-tivo (encontrarás) e dois de imperfeito do indicasubjun-tivo (era, querias).

(21)

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caso curioso, pois evidencia o emprego de tu e você como variantes empregadas no mesmo domínio funcional. Na sequência discursiva, há o uso de você numa função diferente da de sujeito em (quem man-da em você sou eu), em seguiman-da há duas orações com sujeito não pre-enchido: a primeira delas com um verbo na segunda pessoa do singu-lar e a outra com verbo na terceira pessoa do singusingu-lar. Como Chininha também utiliza tu seguido de verbo sem concordância não é possível saber se o sujeito da segunda oração é tu ou você:

(53) nunca mais ___ escreva aquellas palavras [que ___ escreveu no bilhete] (Bilhete um – destinado a Álvaro)

(54) __ não me mandou o cabello dessa linda cabessinha por que ? (Bilhete três – des-tinado a Álvaro)

(55) só quem manda em voce sou eu não e assim? meu coração para ___ disseste [que ___era disgracado] (Bilhete 11 – destinado a Álvaro)

(56) manda-me dizer se ___ recebeu uma carta registrada que eu mandei para você (Bilhete um – destinado a Arthur)

Os seis dados de você como sujeito expresso aparecem em orações independentes como em (57-59) e também em orações subordina-das com elementos QU- à esquerda da oração como (60b) e (61b). Em (60), têm-se duas orações (uma matriz e outra subordinada) com su-jeito nulo e verbo na segunda pessoa do singular (disseste, querias). Chininha, em seguida, não muda de referente, mas preenche o sujeito com você enfatizando que seu amante (e não outra pessoa) não pode dizer que “queria morrer”. Em (61), o preenchimento é favorecido pela presença de dois possíveis candidatos no contexto imediato: Deus e você:

(57) eu vivo para voce e voce ___ para mim e mesmo depois (Bilhete seis – destinado a Álvaro)

(58) voce é meu todinho desd a cabessa até os pés (Bilhete nove – destinado a Álvaro) (59) você já sabe . (Bilhete dois – destinado a Arthur)

(60) para que diseste hoge que querias morrer, (a) voce não pode dizer isso (b) [por que

voce é meu] só quem manda em voce sou eu não é assim? (Bilhete 11 – destinado

a Álvaro)

(61) todas as noites eu rezo pedindo a Deus (a) [para você me perdoar], mas creio (b) [que voce não tem coragem] de ver morrer um filho o filha por que se não me ___ perdoares eu viva não fico (Bilhete um – destinado a Arthur)

(22)

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hile Diferentemente do observado em cartas de pessoas ilustres, os

bilhetes de Chininha dão prenúncios da configuração do português do Brasil. Apesar de o pronome tu ocorrer preferencialmente nulo, tal emprego não é categórico nessa amostra. Nota-se a presença de tu como sujeito preenchido coexistindo ao lado de você nos mesmos contextos funcionais. Percebe-se ainda que a metade das ocorrências de tu pleno foi empregada com verbos na terceira pessoa (sem concor-dância verbal). Embora sejam poucos dados, observou-se que a falta da desinência verbal de segunda pessoa ocorria mais no presente do indicativo e com o verbo ser. Sem a marca desinencial, o pronome é funcionalmente relevante para indicar pessoa.

5. Os destinatários: um olhar sociopragmático

Como mencionado anteriormente, Robertina/Chininha enviou bi-lhetes a dois destinatários: Arthur, com quem era amasiada, e Álvaro, seu amante. Esse fator extralinguístico foi levado em consideração para a análise da variação entre tu e você e foi selecionado na análise de regra variável, como se pode ver na tabela abaixo. O valor de apli-cação é tu:

Tabela 3 – Utilização das formas de tratamento em função dos destinatários dos bilhetes

Destinatário N/T % P.R.

Álvaro 79/94 84 .58

Arthur 8/19 42 .16

Nos bilhetes escritos para o amante, 84% das formas pronominais utilizadas eram relacionadas a tu (P2), ao passo que nos bilhetes envia-dos ao companheiro, elas representam 42% do total das ocorrências. É preciso tentar compreender em que contextos a remetente utilizava formas de você para o amante e de tu para o companheiro.

Os bilhetes que foram destinados ao companheiro tinham um maior grau de formalidade e envolviam assuntos como a preocupa-ção com os filhos, desculpas e pedido de perdão pela traipreocupa-ção cometida (como em 62), enquanto os bilhetes enviados ao amante eram mais pessoais e tratavam de assuntos de cunho estritamente afetivo, como se pode verificar em (63):

(62) não posso me separar de voce e do meu filho a não ser com a morte (Bilhete um – destinado a Arthur)

(23)

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(63) morro por ti. tu é e a min-ha vida, minh’alma eu sem ti não vivo Da tua sempre

tua e toda tua do teu coração. (Bilhete dez – destinado a Álvaro)

Ao analisar a mescla tratamental, deve-se levar em conta não só os exemplos isoladamente, mas também a unidade textual como um todo. Em outras palavras, uma maneira de olhar para esses casos de variação você e tu se dá através da observação do bilhete em si, de modo a verificar se em uma mesma correspondência há ou não o sin-cretismo entre formas de tratamento.

Defende-se que nos bilhetes analisados, o comportamento da mescla de tratamento é diferenciado. De um lado, postula-se um uso inovador [+ inovador; - marcado] quando não se percebe a presença de qualquer tipo de motivação pragmática. De outro, considera-se a existência um comportamento conservador [- inovador; + marcado] nos contextos em que a variação das formas de tratamento apresen-ta motivação e intencionalidade comunicativa embutida na forma escolhida.

Parte-se do pressuposto que os contextos mais inovadores são aqueles em que a remetente das cartas utiliza tanto uma forma quanto outra, no mesmo domínio funcional, sem que haja um propósito co-municativo para essa variação, como se pode ver a seguir:

(64) eu dou a vida por ti eu por voce sou capaz de todos os sacrifícios da vida . (Bilhete sete – destinado a Álvaro)

Esses casos menos marcados podem evidenciar alto grau de in-tercambialidade entre você e tu, pois não são motivados por fatores pragmáticos e configuram a fusão dos dois paradigmas a partir, por exemplo, da combinação de pronomes de P2 com verbos em P3, como se pode ver no exemplo a seguir:

(65) não te zangues com migo minha vida tu sab- es que tu é meu cora- cão, que eu sou tua e tu é meu, eu vivo para voce e voce para mim (Bilhete 06 – destinado a Álvaro)

Ocorrências dessa natureza não aparecem nos bilhetes destinados ao companheiro Arthur, o que pode confirmar que tal tipo de mescla tende a ocorrer em contextos mais informais e de maior solidariedade.

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hile É necessário analisar, ainda, os contextos nos quais existe algum tipo

de motivação pragmática, como será discutido adiante.

No primeiro bilhete destinado ao amante Álvaro, pode-se observar que o tratamento predominante é de formas relacionadas a tu (te, tua, teu) com o emprego mais raro de você e formas relacionantes (escreva, Ø):

(66) Meu Queridinho nunca mais escreva aquellas palavras que Ø escreveu no bilhete que mandei pelo Bernardino inint. o disse e muito triste Eu te adoro te adoro como nunca amei ninguém, como são felizes essas? nao, essa sorte eu não tenho a Chininha sem o Alvaro morre eu te adoro te amo até a morte sou tua só e tu é meu só o meu coracao e teu e o teu coracao é meu. a Chininha e todinha tua ate a morte (Bilhete um – destinado a Álvaro)

O que teria determinado a variação dessas formas de tratamento nos bilhetes de Chininha? Percebe-se que, de modo geral, o tom do bilhete é afetuoso e informal, em que é declarado o amor de Robertina (Chininha) ao amante Álvaro com predomínio do íntimo tu e formas correlatas. Nota-se, entretanto, que as duas únicas ocorrências de for-mas de P3 aparecem no começo do bilhete como forfor-mas alternantes e motivadas sociopragmaticamente.

À luz da Teoria da Polidez, idealizada por Brown e Levinson (1987), é possível analisar tal emprego através dos conceitos de face positiva (face) e face negativa (território). A face positiva consiste na própria imagem (personalidade) desejada pelos interactantes, isto é, a ma-neira pela qual os indivíduos esperam ser vistos pela sociedade. Já a face negativa está relacionada ao território, à preservação pessoal, ao direito de não sofrer perturbação, o que em outras palavras remete à liberdade de ação e liberdade para não sofrer imposição por parte dos outros.

Qualquer ato de fala em si é considerado um ato de ameaça à face (doravante AAF) ao interlocutor. Como se viabiliza a comunicação se tais atos ameaçam a face do outro? Utilizando-se as estratégias de po-lidez, como formas mitigadoras, pode-se garantir a harmonia do pro-cesso interativo. Quando há uma estratégia suavizadora da imposição de um ato que ameace a face positiva do interlocutor, tem-se um caso de polidez positiva, e quando esse ato ameaçar a face negativa, a estra-tégia utilizada será de polidez negativa.

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No caso citado, a remetente já inicia a carta através de um ato com força ilocucionária de pedido/ordem/reclamação, como se pode ver a seguir:

(67) Meu Queridinho nunca mais escreva aquellas palavras que Æ escreveu no bilhete que mandei pelo Bernardino (Bilhete um – destinado a Álvaro)

Em (67), nota-se que o pedido/ordem é um ato que ameaça a face negativa do destinatário, já que, ao proferi-lo, a remetente acaba en-trando no território do destinatário. Por outro lado, a reclamação feita pode ser vista também como um ato que ameaça a face positiva de Álvaro, uma vez que desaprova a autoimagem construída pelo pró-prio interlocutor. Assim, têm-se dois atos ameaçadores à face (AAFs) e devem-se buscar, consequentemente, duas estratégias de mitigação para tais atos, que seriam exemplos de polidez negativa e positiva, respectivamente.

Dessa forma, como polidez negativa, têm-se os exemplos de estra-tégias que visam a não coagir o interlocutor, minimizando, assim, a ameaça feita. De acordo com Brown e Levinson (1987) seriam as es-tratégias do tipo: “Minimize a imposição” e “Faça deferência / Mostre respeito”. Para suavizar o AAF realizado, a remetente utiliza como es-tratégia mitigadora a forma relacionada a você, uma vez que ela ainda carregava, no período histórico em questão, uma carga semântica de respeito e cortesia.

O emprego de formas verbais também pode ser visto como um tipo de estratégia em que os dois interlocutores envolvidos no processo interativo são impessoalizados, evitando as formas plenas eu e você. Em (67) tem-se a elipse da forma você e, uma vez que o imperativo é o maior AAF que existe, essa omissão, como descrita na estratégia “Impessoalize o falante e o ouvinte / Evite os pronomes eu e você” de polidez negativa, ajuda a mitigar a imposição.

Já o ato de ameaça à face positiva – a reclamação – é suavizado, no exemplo, pela utilização da estratégia “Use marcas de identidade de grupo”, em que há a reivindicação de coisas em comum e o pertenci-mento ao mesmo grupo do destinatário. Assim, o ato é suavizado pela utilização de “Meu Queridinho” no início do bilhete. Dessa forma, através das estratégias de polidez positiva e negativa, anteriormente descritas, o equilíbrio da interação é mantido.

(26)

Form as de tr at am ien to: lo s v oc ativ os en el len gu aj e j uv en il de M adr id, B ueno s A ir es y S an ti ag o de C

hile O terceiro bilhete do corpus analisado se assemelha ao primeiro,

no tocante à utilização das estratégias de polidez. Observe-se a corres-pondência na íntegra:

(68) não me mandou o cabello dessa linda cabessinha por que? manda-me que eu guardo como tu guardou o meu, O Bernardino hontem tirou o dia para mentir tudo que elle disse é mentira. Da tua até a morte Chininha do teu lindo Coração de Ouro (Bilhete três – destinado a Álvaro)

Como dito anteriormente, no que se refere ao tratamento, predo-minam as formas de tu (tu, tua, teu), ao passo que as formas alter-nantes estariam relacionadas a você (mandou, manda). Assim sendo, verifica-se que o emprego do imperativo de você é um ato que invade o território do destinatário pelo tom de cobrança/advertência/ordem. Para resolver esse “problema” e atenuar a ameaça, estratégias de polidez negativa devem ser empregadas. No caso, empregam-se as seguintes: “Minimize a imposição” e “Faça deferência/Mostre respei-“Minimize a imposição” e “Faça deferência/Mostre respei-to”. Também há, nesse caso, outro tipo de estratégia: “Impessoalize o falante e o ouvinte/Evite os pronomes eu e você”, dado que o sujeito é nulo.

No exemplo a seguir o tratamento predominante também é P2 (tu) e o emprego das formas relacionadas a você é pragmaticamente motivado:

(69) Perdoa-me tudo quanto te fiz sim! estou arrependida depois que fiz isso com tigo, o Bernardino não disse a voce que eu emgommei 3 collari-nhos muito mal mas quis te ser agra-davel mais uma vez estão mal emgomm-ados porque não sei emgommar, sei só para voce que é meu Benzinho. Da tua e sempre tua Chininha do Alvaro (Bilhete 08 – destinado a Álvaro)

O exemplo ilustra uma mudança do eixo interlocutivo. A remeten-te da carta dá voz a uma remeten-terceira pessoa e o que é dito pode ser lido como o pronunciamento dessa terceira voz. Assim, nota-se a mudança no tratamento, que marca exatamente essa ação: “o que tenho a dizer agora não saiu da minha boca e, por isso, não quero me comprometer com isso”. Nota-se que a remetente, Robertina (Chininha), usa um tom de cobrança como se estivesse “tirando a limpo toda a situação de não saber das coisas”, e, por isso, entra no território do outro, ameaçando a sua face negativa. Nesse contexto, mais marcado, o destinatário passa a ser tratado por você.

(27)

A n net te M yr e J ør gen sen

Nesse caso, o emprego de formas relacionadas a você pode ser visto novamente como estratégias do tipo “Minimize a imposição” e “Mostre respeito”, em que, para minimizar a ameaça, a remetente deixa clara a distância social, o poder relativo e o grau de imposição do ato. A partir desse momento no bilhete, o tom volta a ser afetuoso, como no início da correspondência.

No trecho em destaque do exemplo (70), a forma alternante você encontra-se em uma estrutura de advertência, como se a remetente estivesse chamando a atenção do destinatário. Tal ato invade o territó-rio do outro e é, por isso, um ato ameaçador à face negativa do desti-natário. Para suavizá-lo, como nos exemplos descritos anteriormente, utiliza-se uma forma de tratamento mais formal de modo a mostrar deferência e minimizar a imposição:

(70) Meu Benzinho para que diseste hoge que querias morrer, voce não pode dizer

isso por que voce e meu só quem manda em voce sou eu não e assim? meu coração

para disseste que era disgracado. não quero [[quero]] que digas mais Isso. Da tua até a morte... (Bilhete 11 – destinado a Álvaro)

Nesse caso, além da utilização da forma de tratamento como sinal de maior respeito, observa-se a presença de outra estratégia de polidez negativa: “Questione / seja evasivo / minimize”. Tal estratégia deriva do desejo de não presumir e de não coagir o outro através da utilização de um angulador que modifica a força ilocutória de um ato de fala. Dessa forma, “não é assim?” é visto como um angulador na estrutura linguística que mitiga a força de imposição do ato ameaçador.

Na sequência, serão analisados os bilhetes destinados ao compa-nheiro Arthur. Nessas correspondências, a forma predominante, ao contrário do observado nos bilhetes a Álvaro, são as formas relaciona-das a P3 (você). As formas de P2 (tu) agora seriam as alternantes por serem mais raras e esporádicas. São exatamente as formas relaciona-das a tu que interessam nesse momento, uma vez que, na perspectiva aqui adotada, pretende-se analisar a motivação pragmática que levou a remetente a variar no tratamento empregado:

(71) Arthur, eu já fis 7 prome- ssas de verdadeiros sacrifícios só para alcançar o teu perdão, tenha penna de mim que sofro tanto estou ameaçada de aborto, o seu Fontes quis chamar o medico mas eu não quis, quero saber primeiro se estou perdoada, manda-me dizer se recebeu uma carta registrada que eu mandei para

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