UM MODELO DE AVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES CORTICAIS
ANA GUARDIOLA * — LIANA LISBOA FERNANDEZ ** NEWRA TELLECHEA ROTTA ***
R E S U M O — Os autores p r o p õ e m p r o t o c o l o e l a b o r a d o p a r a p a d r o n i z a r a avaliação das funções corticais superiores, capaz d e se c o n s t i t u i r em e l e m e n t o de localização d e p a t o l o g i a cortical.
A n evaluation model of cortical functions.
S U M M A R Y — T h e authors s u g g e s t a p r o t o c o l e l a b o r a t e d t o s t a n d a r d i z e t h e evaluation of h i g h b r a i n functions that should b e c o m e an e l e m e n t f o r l o c a l i z a t i o n of cortical p a t h o l o g y .
O estudo dos processos corticais traz informações de valor inestimável e revela importantes caminhos no conhecimento de sistema funcional bastante complexo, como é o cérebro. Desde épocas remotas se conhecem relatos sobre observações do funcio-namento cerebral. Galeno j á fazia esforços para desvendar os mistérios da mente, mas foi Broca, anatomista francês, quem pela primeira v e z , em 1861, correlacionou alterações de linguagem com achados anatômicos no hemisfério esquerdo, na autópsia de um paciente 8. P o d e m o s citar, no histórico do estudo das funções corticais, autores como Spurzheim, D a x Trousseau, Fritzch, Hitz, Déjerine, Broca, W e r n i c k e , Pierre M a r i e , Jackson, Pick, von M o n a k o v , Head, Luria, Hécaen e tanto outros que estabe-leceram os alicerces para os conhecimentos atuais 8. U m grande salto no entendimento
das funções corticais está sendo dado com as modernas investigações de neuroquímica marcada que trazem elucidações incontestáveis, não deixando dúvidas sobre áreas estu-dadas por tomografia computadorizada cerebral.
N ã o há literatura consenso de quais os conjuntos de provas que devem ser aplicados no estudo das funções corticais. P a r a tanto, objetivamos a apresentação de um protocolo elaborado para padronizar a avaliação das funções cerebrais superiores, que seja capaz de se constituir em elemento de localização de patologia cortical.
P R O T O C O L O
U t i l i z a - s e p r o t o c o l o d e funções c o r t i c a i s d i v i d i d o e m 4 p a r t e s : p r o v a s que a v a l i a m as p r a x i a s , as gnosias, a l i n g u a g e m e o calculo.
1. P r a x i a s — A p r i m e i r a p a r t e c o n s t i t u i - s e d e testes p a r a a v a l i a r as p r a x i a s ( T a b e l a 1 ) , v e r i f i c a n d o a c a p a c i d a d e d e r e a l i z a r a t o s c o m u n s c o m o : p e n t e a r os cabelos, p i c a r u ma b o l a e r e c o r t a r um a f i g u r a , p r i m e i r o c o m o o b j e t o e, e m seguida, sem o o b j e t o (1,2,6). Os atos
T r a b a l h o r e a l i z a d o n o I n s t i t u t o d e N e u r o l o g i a d a Santa Casa d e M i s e r i c ó r d i a d e P o n o A l e g r e S e r v i ç o ' P r o f . Celso M a c h a d o d e A q u i n o ' ( I N S C P A ) e n o D e p a r t a m e n t o d e N e u r o l o g i a d a F u n d a ç ã o F a c u l d a d e F e d e r a l d e Ciências M é d i c a s d e P o r t o A l e g r e : * N e u r o p e d i a t r a , M é d i c a A s s i s t e n t e d o I N S C P A ; ** N e u r o l o g i s t a , P r o f e s s o r A u x i l i a r d e N e u r o p s i c o l o g i a d o Instituto' d e P s i c o l o g i a d a P o n t i f í c i a U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a d o R i o G r a n d e d o S u l ; *** N e u -r o p e d i a t -r a , P -r o f e s s o -r A d j u n t o d e N e u -r o l o g i a d a F a c u l d a d e d e M e d i c i n a d a U n i v e -r s i d a d e F e d e r a l d o R i o G r a n d e d o Sul, R e s p o n s á v e l p e l a N e u r o p e d i a t r i a d o H o s p i t a l de Clínicas d e P o r t o A l e g r e .
p l e x o s é a v a l i a d a p o r d o i s t e s t e s : t o c a r p i a n o e g u i a r a u t o m ó v e l (1,6). São e x a m i n a d a s as p r a x i a s c o n s t r u t i v a s p e l a c ó p i a d e 11 f i g u r a s p r o g r e s s i v a m e n t e m a i s difíceis (1) ( F i g . 1) e pela construção d e u m a casa c o m paus d e f ó s f o r o (1,6). E x a m i n a - s e a p r a x i a d e v e s t i r - s e p o r d o i s t e s t e s : t i r a r e colocar os sapatos, d e s a b o t o a r e a b o t o a r a camisa (1,6). A p l i c a - s e o teste d e r a p i d e z d e M i r a S t a m b a c k q u e consiste e m riscar o m á x i m o de quadradinhos possí-v e i s , c o m um c e n t í m e t r o d e aresta, numa f o l h a q u a d r i c u l a d a com 25cm x IScm quadrados, durante um m i n u t o ( F i g . 2 ) . O n ú m e r o de riscos r e a l i z a d o s é c o r r e l a c i o n a d o a uma tabela de i d a d e (9): 57 traços, 6 a n o s ; 74 traços, 7 a n o s : 91 traços, 8 anos; 100 traços, 9 anos; 107 traços, 10 a n o s ; 115 traços, 11 anos.
2. Gnosias — N a s e g u n d a p a r t e d o p r o t o c o l o d e funções c o r t i c a i s são e x a m i n a d a s as d i v e r s a s g n o s i a s ( T a b e l a 2 ) . Avalia-sxi a e s t e r e o g n o s i a p e l o r e c o n h e c i m e n t o tátil d e 4 o b j e t o s , em a m b a s as mãos, c o m os o l h o s f e c h a d o s : u m a borracha, uma t a m p a d e caneta, uma m o e d a .
I . P R A X I A S A . A t o s comuns ( c o m o b j e t o e sem o b j e t o ) 1. P e n t e a r os c a b e l o s 2. T o m a r á g u a 3. P i c a r uma b o l a 4. R e c o r t a r uma f i g u r a B . A t o s c o m p l e x o s 1. P r e g a r u m b o t ã o 2. E n f i a r um colar C. P r a x i a s b u c o f o n a t ó r i a s 1. F e c h a r os o l h o s 2. A b r i r a b o c a 3. F a z e r uma careta 4. A s s o b i a r 5. A s s o p r a r um b a l ã o D . I m i t a r a t o s c o m p l e x o s 1. T o c a r p i a n o 2. G u i a r um c a r r o E . T e s t e s p a r a p r a x i a s construtivas 1. C o p i a r f i g u r a s ( v e r F i g . 1)
2. C o n s t r u i r uma casa c o m paus d e f ó s f o r o
F . P r a x i a s d e v e s t i r - s e 1. T i r a r e colocai- sapatos
2. T i r a r e c o l o c a r a roupa
G. T e s t e de r a p i d e z de M i r a Stamback ( v e r F i g . 2)
Tabela 1 — Protocolo de avaliação de funções corticais: avaliação de praxias.
1
r
o
•
A
0
3
A
Avaliação de funções corticais 161 I I . G N O S I A S A . E s t e r e o g n o s i a 1. P e d a ç o de pano 2. B o r r a c h a 3. T a m p a de caneta 4. M o e d a B . Gnosia auditiva 1. Cair chaves 2. A m a s s a r papel 3. R i t m o s de Stamback ( v e r T a b e l a 4)
C Gnosia visual para o b j e t o s 1. Sapato
2. V a s o 3. X í c a r a
D . Gnosia para cores 1. B r a n c o 2. A m a r e l o 3. V e r d e 4. V e r m e l h o 5. A z u l G. P r e t o E . Gnosia d i g i t a l 1. M e s m a m ã o 2. M ã o contralateral F . S i m u l t a n e o g n o s i a G . Gnosia espacial ( P r o v a s de P i a g e t - H e a d ) 1. P i a g e t 1 — m ã o d i r e i t a ( D ) — mão esquerda ( E ) — olho E» 2. H e a d 2 — m ã o D na o r e l h a E — m ã o E no olho D — m ã o D no olho E — m ã o E na orelha D — posição r e l a t i v a de d o i s o b j e t o s 3. P i a g e t 2: conhecimento d i r e i t a - e s q u e i d a no e x a m i n a d o r —• m ã o D — m ã o E
— qual ó a mão em que tenho a chave V 4. H e a d : imitação de g e s t o s do o b s e r v a d o r — m ã o E no olho D — m ã o D na o r e l h a D — m ã o D no olho E — m ã o E na orelha E — mão D no olho D — mão E na o r e l h a D — m ã o D na orelha E — m ã o E no olho E 5. H e a d 3: r e p r o d u ç ã o de f i g u r a s ( v e r F i g . 3) 6. P i a g e t 3: posição r e l a t i v a e n t r e três o b j e t o s
1. P e r c e p ç ã o da p a l a v r a faladia ( o b e d e c e r 4 ordens s e g u i d a s ) 2 3. 4 P e r c e p ç ã o de f i g u r a s P e r c e p ç ã o de cores P e r c e p ç ã o da escrita ( l e i t u r a de uni t e x t o ) B . E x p r e s s ã o 1. E x p r e s s ã o espontânea oral 2. E x p r e s s ã o oral p r o v o c a d a 3. E x p r e s s ã o g r á f i c a I V . C Á L C U L O S A . Cálculos simples B . Cálculos c o m p l e x o s
Tabela •> — rrotocolo de avaliação de funções corticuis: avaliação da linguagem e avaliação de cálculos.
Fifj. 2 — Praxias: teste de rapidez de Mira Stamback (Tamanho adotado: largura 25cm e altura 18cmj cada quadrado deve ter um cm de lado).
um pano (1,5). E x a m i n a - s e a g n o s i a a u d i t i v a p e l o r e c o n h e c i m e n t o do barulho de chaves, d e r a s g a r um papel (1,5) e p e l a r e p e t i ç ã o d e r i t m o s , d a p r o v a d e M i r a Stamback. E s t a p r o v a caracteriza-se pela r e p e t i ç ã o d e 21 e s t r u t u r a s r í t m i c a s , p r o g r e s s i v a m e n t e m a i s difíceis, r e a l i z a d a s p e l o e x a m i n a d o r ( T a b e l a 4 ) . O n ú m e r o d e acertos é c o r r e l a c i o n a d o a uma tabela de idades, m o d i f i c a d a , v i s t o não ter sido a p l i c a d a a p r o v a d e l e i t u r a d o s r i t m o s : 6 anos, 3 a c e r t o s ; 7 anos, 7 a c e r t o s ; 8 anos, 9 a c e r t o s ; 9 anos, 12 a c e r t o s ; 10 anos, 13 a c e r t o s ; 11 anos, 16 acertos. A falha na segunda t e n t a t i v a consecutiva é considerada e r r o (10). A gnosia visual p a r a o b j e t o s é m e d i d a p e l o r e c o n h e c i m e n t o de t r ê s o b j e t o s : um sapato, um vaso, uma x í c a r a (1,5). E x a m i n a - s e a g n o s i a p a r a c o r e s p e l o seu r e c o n h e c i m e n t o : branco, preto, azul, amarelo, v e r d e , v e r m e l h o (1,5). A g n o s i a d i g i t a l é e x a m i n a d a solicitando ao paciente, com os olhos fechados, que m o v i m e n t e o d e d o e s t i m u l a d o na mesma m ã o e, p o s t e r i o r m e n t e , na m ã o contralateral ao e s t i m u l o (1,5). A s i m u l t a n e o g n o s i a é e x a m i n a d a pela capacidade de i n t e g r a r as diversas p a r t e s d e u m t o d o a t r a v é s de u m a l â m i n a ( 1 , 5 ) . A g n o s i a espacial é e x a m i n a d a pelo teste d e P i a g e t - H e a d , a d a p t a d o p o r G a l i f r e t - G r a n j o n , q u e m e d e o conhecimento de d i r e i t a e esquerda nas d i f e r e n t e s f a i x a e etárias de 6 a 11 anos C4) ( F i g . 3 ) .
Avalüvção de funções corticais 163 1 O O O 2 O O OO 3 O O O 4 O O O 5 O O O O 6 O O O O 7 O O O O 8 OO OO OO 9 O O O O O 10 O O O O 11 O O O O O 12
ooooo
13 O O O O O 14 O O O O O O 15 O O O O O 16 O O O O O O 17 O O O O O OO 18 O O O 0 OO 19 O O O O O O 0 20 O O O O O O OO 21 O O O OO O O OTabela 4 — Gnosias: ritmos de Stamback.
Fiy. -i — Gnosias: prova Head •} de reprodução de figuras.
3. L i n g u a g e m — A t e r c e i r a p a r t e d o p r o t o c o l o caracteriza-se p o r p r o v a s q u e a v a l i a m a l i n g u a g e m ( T a b e l a 3 ) . A p e r c e p ç ã o é e x a m i n a d a p o r 4 testes (1,7): p e r c e p ç ã o da palavra falada, que consiste em o b e d e c e r 4 o r d e n s s e g u i d a s propostas de a c o r d o c o m a f a i x a e t á r i a ; p e r c e p ç ã o de f i g u r a s (sapato, casa, flores, g a t o ) ; percepção d e cores, c o m d i f i c u l d a d e s cres-centes d e a c o r d o c o m a i d a d e ; p e r c e p ç ã o d a escrita p e l a l e i t u r a de frases, c o m palavras conhecidas p e l o paciente. A e x p r e s s ã o da l i n g u a g e m é i n v e s t i g a d a p o r t r ê s p r o v a s (1,7): e x p r e s s ã o espontânea o r a l ; expressão o r a l provocada, em q u e é t e s t a d a a o r i e n t a ç ã o quanto ao t e m p o e espaço ( p e l a s s e g u i n t e s questões — Que d i a é h o j e ? E m que mês estamos? Qual será o p r ó x i m o m ê s ? Qual f o i o m ê s q u e passou? Quais as estações d o a n o ? E m qual delas estamos? Qual s e r á a p r ó x i m a estação? Quais são os dias da s e m a n a ? Qual é o n o m e do teu c o l é g i o ? Qual é o teu e n d e r e ç o ? ) ; e x p r e s s ã o g r á f i c a do d i t a d o de p a l a v r a s conhecidas p e l o paciente.
p r o p o s t a ( E x e m p l o : calcule q u a n t o sobra d e 100 cruzados após c o m p r a r uma fruta de 25 cru-zados e um p ã o d e 18 c r u z a d o s ) .
T o d o s os itens d o p r o t o c o l o d e funções corticais são quantificados d a seguinte f o r m a : r e c e b e m 2 q u a n d o t o d a s as p r o v a s são r e a l i z a d a s s a t i s f a t o r i a m e n t e ; r e c e b e m 1,5 os itens nos quais há a t é 25% d e falhas nas p r o v a s ; r e c e b e m 1, q u a n d o há 50% d e f a l h a s ; 0,5 quando 75% d a s p r o v a s n ã o são realizadas s a t i s f a t o r i a m e n t e ; 0 ( z e r o ) quando mais de 75% das p r o v a s n ã o são r e a l i z a d a s .
C O M E N T Á R I O
A análise desse p r o t o c o l o permite concluir que sua aplicação em clínica neuro-lógica, por constar de provas padronizadas para avaliação das funções corticais, pode ser mais um recurso s e m i o l ó g i c o no estudo das funções cerebrais superiores e das p a t o l o g i a s corticais. Constitui ele elemento localizador de grande valia, desde que o b -servados os graus de desenvolvimento e de escolaridade dos pacientes.
R E F E R Ê N C I A S 1. B a r b i z e t J, D u i z a b o P — Manual de N e u r o p s i c o l o g i a . A r t e s M é d i c a s / M a s s o n , P o r t o A l e g r e , 1985. 2. B a r r a q u e r B o r d a s L — A f a s i a s , A p r a x i a s , A g n o s i a s . T o r a y , Barcelona, 1974. 3. Christensen A - L — E l D i a g n ó s t i c o N e u r o p s i c o l ó g i c o de L u r i a . P a b l o del R í o , M a d r i d . 4. G a l i f r e t - G r a n i o n N — B a t e r i a P i a g e t - H e a d ( T e s t s d e orientación d e r e c h a - i z q u i e r d a ) . I n Zazzo R et al ( e d s ) : Manual p a r a el E x á m e n P s i c o l ó g i c o del N i ñ o . E d 3. F u n d a m e n t o s , M a d r i d , 1971, p g 53.
5. L e f è v r e A B — A g n o s i a s . I n T o l o s a A P M , Canelas H M ( e d s ) : P r o p e d ê u t i c a N e u r o l ó g i c a , T e m a s Essenciais. E d 2. S a r v i e r , São P a u l o , 1975, p g 248.
6. L e f è v r e A B — A p r a x i a s . I n T o l o s a A P M , Canelas H M ( e d s ) : P r o p e d ê u t i c a N e u r o l ó g i c a , T e m a s Essenciais. E d 2. S a r v i e r , São P a u l o , 1975, p g 245.
7. L e f è v r e A B — D i s t ú r b i o s clínicos da comunicação a t r a v é s d a fala, escrita e leitura. I n T o l o s a A P M , Canelas H M ( e d s ) : P r o p e d ê u t i c a N e u r o l ó g i c a , T e m a s Essenciais. E d 2. Sarvier, São P a u l o , 1975, p g 234.
8. L u r i a A R — F u n d a m e n t o s d e N e u r o p s i c o l o g i a . L i v r o s T é c n i c o s e Científicos, R i o de J a n e i r o , 1981.
9. Stamback M — P r u e b a s de nível y d e estilo m o t o r . I n Z a z z o R et al ( e d s ) : Manual para el E x á m e n P s i c o l ó g i c o del N i ñ o . E d 3. F u n d a m e n t o s , M a d r i d , 1971, p g 185.
10. Stamback M — T r e s pruebas de r i t m o . I n Z a z z o R et al ( e d s ) : Manual p a r a el E x á m e n P s i c o l ó g i c o del N i ñ o . E d 3. F u n d a m e n t o s , M a d r i d , 1971, p g 259.