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Contestação e inquietude: entre o universalismo do cidadão bósnio e o particularismo dos grupos nacionais na Bósnia-Herzegóvina 1

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Academic year: 2021

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Contestação e inquietude: entre o universalismo do cidadão bósnio e o particularismo dos grupos nacionais na Bósnia-Herzegóvina1

Andréa Carolina Schvartz Peres (Cebrap-SP)

Resumo

Territórios, culturas, religiões, nacionalidades, etnias, cidadanias passaram a ser termos contestados e diferentemente pensados pelas pessoas na Bósnia-Herzegóvina desde a guerra dos anos 1990.

Esse paper propõe fazer uma breve apresentação de alguns eventos que ocorreram nesse país em 2013 que apontam diretamente para essa disputa acerca da representação política da diferença hoje na Bósnia-Herzegóvina – território dividido pelo acordo de paz de 1995 em duas entidades semiautônomas, uma sérvia (República Srpska), outra croata-muçulmana (ou bosníaca) (Federação da Bósnia-Herzegóvina).

Estes eventos foram: a mudança na lei sobre a emissão do número de identificação do recém-nascido, a manifestação de pais de crianças do ensino primário por educação diferenciada para seus filhos e o caso Sejdić-Finci versus Bósnia-Herzegóvina, pelo lugar das minorias no sistema eleitoral tri-nacional do país.

Concepções diversas do que seja um estado multicultural entram, portanto, em jogo e apontam para a contradição e sobreposição, mais do que mera oposição, entre o universalismo do cidadão e o particularismo da nação, e o modo como estes são percebidos pelas pessoas e incorporados no jogo político.

A pesquisa foi realizada em duas cidades, Banja Luka, capital da República Srpska, e Sarajevo, capital da Federação da Bósnia-Herzegóvina (e da Bósnia-Herzegóvina como um todo).

Palavras-chave: Bósnia-Herzegóvina, Política, Identidade

Protestos

Junho de 2013. Estava morando em Banja Luka, capital da Republika Srpska. Cidade linda ao longo do rio Vrbas na Bósnia-Herzegóvina. Após a guerra dos anos 1990, a cidade foi proclamada capital dessa entidade bósnia. A outra entidade é a

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

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2 Federação da Bósnia-Herzegóvina. Território neutro e também semi-autônomo é o Distrito de Brčko, sobre o qual ficarei devendo uma reflexão.

O acordo que colocou fim à guerra e instituiu a nova Constituição da Bósnia-Herzegóvina partiu da conclusão de que grupos étnicos ou nacionais que guerrearam entre si, sendo assim, o acordo de paz foi estabelecido entre eles (seus líderes), sob supervisão internacional. Hoje estes grupos são as “nações constitutivas” da Bósnia-Herzegóvina: sérvios predominam e têm maior poder na Republika Srpska (traduzindo, República Sérvia2), bosníacos3 e croatas na Federação da Bósnia-Herzegóvina (somente Federação, daqui em diante).

Antes de viver em Banja Luka, morei dois anos em Sarajevo. É importante sublinhar, portanto, que as minhas observações em Banja Luka e mesmo o meu lugar em Banja Luka, antes de ser o de uma estrangeira ou brasileira, era de alguém que vinha de Sarajevo, cujo olhar a respeito de tudo que aconteceu naquele lugar, era um olhar formado por Sarajevo – ou percebido como tal. Além disso, era inevitável estar novamente na Bósnia-Herzegóvina e não ir à Sarajevo.

Sarajevo é a capital da Bósnia-Herzegóvina e da Federação. Hoje possui população predominante muçulmana, porém, ainda se vê como cidade multicultural e tolerante, e seus habitantes (mesmo os considerados muçulmanos) veem-se antes como sarajevanos e bósnios do que como bosníacos.

Durante esse último ano – 2013 – que vivi em Banja Luka, ia a Sarajevo todo mês, e ficava lá uns 4-5 dias. Em princípio minhas idas a Sarajevo era para manter os contatos, conversar com as pessoas e rever os amigos. Logo, minhas idas a Sarajevo passaram a ser quase existenciais – ia a Sarajevo para me lembrar de Sarajevo, para me lembrar de que existiam bósnios na Bósnia – e não apenas bosníacos, croatas, sérvios e minorias nacionais – para me lembrar de que houvera uma guerra de agressão na Bósnia – e não apenas uma guerra civil –, e para me lembrar do cerco a Sarajevo.

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Sérvia aqui entra como adjetivo – Srpska – e não substantivo – Srbija. Em português não temos como diferenciar ambas as palavras, assim mantenho o nome original. Ainda mais porque há um debate sobre traduzir ou não traduzir o nome dessa entidade; a tradução, como ouvi algumas vezes, dá uma impressão de maior autonomia e independência, e prefiro não entrar neste embate aqui.

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Em 1993, o termo oficial “Muçulmano” foi substituído por “bosníaco” (Bošnjak) enquanto categoria oficial e de auto-identificação das pessoas de ascendência muçulmana e eslava na Bósnia, mas não só: também muçulmanos eslavos do Kosovo, de Sandžak e da Macedônia adotam muitas vezes essa categoria, considerada não apenas religiosa, mas também étnico-nacional.

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3 Viver em Banja Luka, em muitos momentos, significava esquecer Sarajevo, quero dizer, como Sarajevo experienciou e interpretou a guerra, mas não só.

Neste ano, os jogos finais de classificação para a Copa do Mundo de 2014 estavam acontecendo. Era incrível andar em Banja Luka como se nada estivesse ocorrendo. Ou não conseguir ver a transmissão para os jogos em nenhum canal de televisão aberto em Banja Luka. Ou encontrar apenas pequenas notinhas no jornal local a respeito dos jogos. Isso, frente à excitação e euforia vivida em Sarajevo por ocasião desses jogos, que atingiu o ápice e manchetes de jornais internacionais com a classificação da Bósnia-Herzegóvina e a estreia da seleção no campeonato mundial de futebol. A seleção bósnia era um time estrangeiro em Banja Luka.

A empatia ou não pela seleção nacional de futebol foi, todavia, apenas um dos elementos de estranhamento.

Em junho de 2013, vários protestos pararam Sarajevo e receberam apoio em várias cidades da Federação devido à crise acarretada por um impasse na mudança de lei relativa ao número de identificação do recém-nascido (Jedinstveni matični broj, JMB4). Ao mesmo tempo, em Banja Luka, a população, em união com os estudantes universitários, clamava nas ruas por mais moradias estudantis.

Em outubro de 2013, um grupo de pais de Konjević Polje (uma vila na Republika Srpska) acampou na frente do prédio do OHR (Escritório do Alto Representante da ONU na Bósnia-Herzegóvina) em Sarajevo, demandando que assuntos nacionais bosníacos fossem ensinados para seus filhos nas escolas – a maioria destes eram bosníacos que voltaram para sua antiga vila, Konjević Polje, de onde haviam fugido, ou sido expulsos durante a guerra, e onde, por ser na Republika Srpska, as escolas ensinavam história, língua e geografia sérvias, além dos referenciais do cristianismo ortodoxo (religião, nomes das escolas, feriados etc.). Estes pais receberam total apoio dos mesmos sarajevanos que costumavam reclamar do absurdo de haver escolas croatas e bosníacas sob o mesmo teto em algumas cidades da Federação.

Além destes dois grandes eventos – ou três se pensarmos os jogos de futebol – o Caso Sejdić-Finci v. Bósnia-Herzegóvina apareceu constantemente na mídia. Dervo Sejdić, de origem roma, e Jakob Finci, de origem judaica – ambos grupos que não são

4 Chamado pelos manifestantes de Número de Identificação do Cidadão (Jedinstveni matični broj građana, JMBG), como era chamado na ex-Iugoslávia.

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4 considerados nações constitutivas pela Constituição da Bósnia-Herzegóvina –, clamam por maior participação política na Bósnia-Herzegóvina de membros de nacionalidades não-constitutivas. O processo que moveram contra a Bósnia-Herzegóvina e que recebeu aprovação da Comissão Europeia pelos Direitos Humanos acusa o estado de ser segregacionista e de não respeitar os direitos humanos e pede por uma reforma constitucional radical na Bósnia-Herzegóvina.

O que um número de registro de nascimento, protestos estudantis, protesto de pais de crianças e o caso Sejdić-Finci têm em comum? E quais problemas eles revelam?

Todos estes eventos sinalizam uma crise sobre a divisão do estado em entidades e da sociedade em grupos nacionais. Todas as demandas, impasses, desconfortos, indignações etc. são demonstrativas dessas divisões e da forma como a Bósnia-Herzegóvina foi organizada pelo Acordo de Dayton.

JMB e moradias estudantis

O começo de junho foi um período de grandes protestos. Em Banja Luka, estudantes – depois apoiados pela população – protestavam por maior acesso a moradias estudantis e pela construção de mais um prédio para abrigá-los na cidade.

Em Sarajevo, e em algumas outras cidades da Federação, os protestos aconteciam devido ao impasse em relação ao Número Exclusivo de Identificação (JMB) – o número que cada pessoa recebe quando nasce. Aqui o ponto do impasse era um dos dígitos do JMB, que diz respeito à cidade onde a criança nasceu.

Os deputados da Republika Srpska estavam interessados em mudar esse dígito em particular e, em 2011, 76 membros da Assembleia Nacional da Republika Srpska enviaram uma alegação ao Parlamento da Bósnia-Herzegóvina estabelecendo que a lei a repeito do JMB, a mesma da antiga Iugoslávia, não estava de acordo com a Constituição da Bósnia-Herzegóvina, pois não levava em conta a divisão política e administrativa do estado em entidades, assim, no prazo de seis meses, a lei teria que ser mudada. (O número seria alterado especialmente nas vilas na fronteira inter-entidades que haviam pertencido à determinada cidade e que, com a divisão em entidades, passaram a pertencer à outra).

O Parlamento, entretanto, não conseguiu chegar a um consenso. E, em sessão de 16 de janeiro de 2013, a Corte Constitucional da Bósnia-Herzegóvina, em decisão publicada no Diário Oficial em 12 de fevereiro, estabeleceu que a lei referente ao JMB

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5 deixava de valer, fato este que levou com que centenas de bebês que nasceram desde fevereiro não recebessem seus números de identificação. Dessas crianças, duas nasceram doentes e precisavam viajar para fora do país para receber o devido tratamento. Como não possuíam seus números de identificação, não podiam tirar passaporte e não podiam realizar a viagem. Um dos bebês morreu, o outro veio a morrer meses depois5.

No dia 6 de junho, milhares de sarajevanos e alguns grupos de pessoas de outras cidades bloquearam a saída do prédio do Parlamento em Sarajevo. Políticos e estrangeiros, que estavam no prédio participando de um seminário, foram impedidos de sair do mesmo até às 4 horas da manhã.

Os manifestantes interditaram a saída do Parlamento para que os parlamentares votassem a nova lei naquele mesmo dia – não importando qual fosse – e que, assim, os bebês pudessem receber seus números de identificação.

Coincidentemente, eu estava em Sarajevo no momento dessa manifestação – e participei também desta e de outras menores que aconteceram nos dias anteriores e posteriores. No dia 9 de junho voltei para Banja Luka. E, para a minha surpresa, esta manifestação foi totalmente desaprovada em Banja Luka, sendo constantemente reportada como “crise dos reféns”, na qual cidadãos de Sarajevo mantiveram como reféns as pessoas no Parlamento, especialmente os deputados da Republika Srpska, e mesmo aqueles que começaram a passar mal.

Um amigo de Banja Luka perguntou minha opinião a respeito do assunto e contou que vinha ouvindo na mídia que estava se tornando perigoso para os parlamentares da Republika Srpska trabalharem em Sarajevo, já que deixaram todo mundo sair do prédio menos os parlamentares sérvios. Ouvi nessa ocasião de outras pessoas e também através da mídia local que os parlamentares da Republika Srpska estavam pensando seriamente em começar a boicotar a participação nas “instituições comuns”6

, a menos que essas reuniões fossem realizadas em outra cidade, já que Sarajevo representava-lhes uma ameaça.

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Interessante aqui é que em nenhum momento as manifestações abordaram a questão do sistema de saúde deficitário – em termos de pessoal, equipamentos, medicamentos e condições de tratamento – para não mencionar a dificuldade de acesso ao mesmo, que não é plenamente universal nem público.

6 “Instituições comuns” é como são chamados na Republika Srpska os parlamentos, ministérios e

presidência da Bósnia-Herzegóvina, e assim, com essa manobra retórica, evita-se mesmo mencionar o nome “Bósnia-Herzegóvina” nesta entidade.

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6 A crise em relação JMB não foi sentida pelos bebês da Republika Srpska, pois estes continuaram recebendo seus números, mesmo o parlamento não tendo votado ainda a mudança da lei. Somente os bebês da Federação foram afetados pelo impasse.

Enquanto eu estava em Sarajevo, perdi o ápice das manifestações por moradia estudantil em Banja Luka, quando os estudantes foram chamados pelo secretário executivo do SNSD (União dos Socialdemocratas Independentes), maior partido político na Republika Srpska, de bastardos. O insulto acabou dando nome às manifestações: Revolução dos Bastardos (Kopilad revolucija). No dia 12 de junho fui a uma das marchas de estudantes que começou na frente da Faculdade de Economia e terminou no prédio do governo da Republika Srpska. Centenas de pessoas gritavam “ladrões” na frente do prédio do governo.

Como já havia sido frisado pelos estudantes anteriormente e pude confirmar neste dia, não havia nenhuma relação destes com os protestos em Sarajevo – o contrário já não é verdade, em Sarajevo pude ver algumas faixas de apoio aos estudantes em Banja Luka –, e havia bandeiras da Republika Srpska por toda a parte – sendo que em Sarajevo a única bandeira que vi foi uma da Bósnia-Herzegóvina na qual ao invés de estrelas, havia chupetas. Aliás, a chupeta com uma mão em forma de punho virou o emblema das manifestações em Sarajevo, chamada de Baby Revolution, ou bebolucija, aonde muitas pessoas chegavam com seus bebês para protestar.

Em julho, os políticos finalmente concordaram com a mudança na lei do JMB. Os protestos ficaram conhecidos como “Revolução dos Bebês” em Sarajevo, e como “Crise dos Reféns” em Banja Luka.

Em Banja Luka as demandas estudantis foram atendidas e uma nova moradia será construída.

Crianças de Konjević Polje

Outubro de 2013. Acampamento na frente do OHR.

Em protesto, os pais das crianças de Konjević Polje e Vrbanjci, ambas pequenas cidades na Republika Srpska, pararam de enviar suas crianças à escola desde o começo do ano letivo, dois meses antes; e, em outubro, começaram a acampar em frente ao prédio do OHR em Sarajevo, demandando uma resolução na questão do ensino de assuntos nacionais bosníacos nas escolas na Republika Srpska.

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7 O cargo de Alto Representante das Nações Unidas (OHR, ou Office of the High Representative) existe desde 1995. Este supervisiona o cumprimento do Acordo de Dayton, controla para que haja algum consenso entre as partes e possui altos poderes, os chamados Bonn Powers (desde a reformulação do acordo em 1997), que lhe permite impor leis, vetar decisões do governo central ou das entidades e depor um governante/representante democraticamente eleito. Como a educação está sob a jurisdição das entidades, os manifestantes provavelmente buscavam alguma intervenção do Alto Representante, que é o único que poderia passar por cima de todas as instâncias governamentais – legislativas, executivas e judiciárias –, para resolver a questão, embora também dirigissem suas reivindicações ao ministro da educação da Republika Srpska (Ministério da Educação e Cultura).

Os manifestantes demandavam o ensino de assuntos nacionais nas escolas, criticavam o fato de suas crianças terem que aprender língua, história e geografia sérvia, e o fato de que pouquíssimos professores e diretores fossem bosníacos nas escolas de suas crianças (o ensino na Bósnia-Herzegóvina é público, e as crianças devem ir às escolas de seus bairros ou vilas). Esta questão aponta para a necessidade do ensino diferenciado de acordo com o grupo nacional ao qual a criança pertence.

A língua falada e aprendida na Bósnia-Herzegóvina até a guerra era o servo-croata, que usava os alfabetos latino e cirílico. Já durante a guerra e especialmente após, a língua se dividiu conforme o grupo nacional em questão em sérvia, croata e bósnia (que seria a língua falada por bosníacos, “bósnios” e outros que assim preferem chamar sua língua). Não há diferença entre elas, somente no que tange a escrita: o sérvio utiliza o alfabeto cirílico predominantemente, o croata e o bósnio, o alfabeto latino predominantemente. Há diferenças regionais dialetais e de uso de vocábulos que atravessam as diferenças entre os grupos, e há uso de algumas palavras que funcionam como marcadores de identidade. A questão, entretanto, do ensino da língua não seria tão problemática se os textos e autores utilizados não passassem mensagens problemáticas – de viés nacionalista – ou ignorassem alguns autores por não serem sérvios, ou croatas ou bosníacos, ou subjugassem as demais línguas e literatura.

No que tange o ensino de história e geografia a questão esbarra em problemática semelhante. Crianças croatas usam livros didáticos da Croácia que não fazem menção à Bósnia-Herzegóvina ou a tratam como lugar estrangeiro. Crianças sérvias usam livros de ensino sérvios da Bósnia-Herzegóvina que tratam a fronteira entre as entidades como

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8 se fosse uma fronteira nacional. E as crianças bosníacas utilizam livros didáticos bósnios, e aprendem assim sobre a unidade bósnia e são romanticamente vistas como aquelas que preservam a cultura e a unidade do país. Fatos históricos, especialmente no ensino médio, são tratados de modo completamente diferente conforme o livro didático. Minorias e outros grupos são ignorados por todos e estereótipos a respeito do outro são utilizados com frequência.

Deste modo, se o ensino com livros didáticos sérvios é uma violência para essas crianças bosníacas, o contrário também não seria uma mentira. Segundo estudo sobre educação na Bósnia-Herzegóvina hoje (Cf. Obrazovanje..., 2007), nenhum livro didático de temas nacionais (que seriam: língua materna, história, geografia e religião) está livre de problemas no que tange a discriminação do outro, seja ignorando-o, seja tratando-o como alguém inferior.

Antes de 2013, eu sempre ouvi comentários em Sarajevo sobre o absurdo das “duas escolas sob o mesmo teto” em algumas cidades da Federação – onde de manhã, por exemplo, crianças croatas vão estudar, e de tarde, crianças bosníacas –, que representam exemplo de segregação, alimento à perpetuação da divisão e obstáculo à reconciliação7. Este incômodo dizia respeito ao fato de se tratar crianças como seres étnico-nacionais, em contraste com a percepção universalista do sujeito, especialmente crianças. Todavia, qualquer relação entre essas escolas e a reivindicação desses pais para escolas exatamente como essas na Republika Srpska pareceu não existir para meus interlocutores em Sarajevo. Para eles, a escola é uma fonte primária de educação nacional e religiosa, deste modo, é um absurdo crianças bosníacas terem que ser educadas em escolas sérvias, o que significa, além do que já foi dito, celebrar feriados cristãos ortodoxos, aprender sobre a eterna batalha contra os turcos opressores, ler somente escritores sérvios e assim por diante.

Depois de três meses acampando ao léu, no final de janeiro de 2014 esses pais voltaram para as suas casas. O problema não foi resolvido. As crianças de Vrbanjci perderam o ano letivo. Para as crianças de Konjević Polje, as aulas iniciaram-se na vizinha Nova Kasaba (também na Republika Srpska), no majlis (medžlis, ou sede

7 Reconciliação é um tema muito querido aos estudiosos e organizações internacionais e não

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9 islâmica) da Comunidade Islâmica da Bósnia-Herzegóvnia, as provas serão realizadas em Sarajevo8.

Meus interlocutores em Banja Luka parecem nem ter ficado sabendo a respeito dessa história. Eu mesma, praticamente, tomei conhecimento dela – ou da sua seriedade – somente quando fui à Sarajevo, vi o acampamento e recebi na rua o folheto informativo sobre o que estava acontecendo e no qual se reivindicava o status de nação constitutiva – e não de minoria – para os bosníacos na Republika Srpska, com direitos iguais, inclusive no que tange a educação na língua materna, sobre história e literatura bósnia (Cf. Ne..., 2013). Além disso, pedia-se ao Alto Representante uma atitude em relação à questão. Nessa ocasião, tive que assinar um abaixo assinado em apoio aos manifestantes para receber o folheto.

Conversando com uma professora de história do ensino fundamental em Gradiška, na Republika Srpska, ela disse-me que não vê motivo para educação diferenciada, já que a história da guerra recente ainda não está sendo trabalhada nas escolas. Também para outros dois amigos meus, professores de ensino fundamental em Banja Luka, parece não haver problemas em relação a isso9.

Caso Sejdić-Finci v. Bósnia-Herzgóvina

De acordo com a Câmara do Tribunal Superior Europeu para Direitos Humanos,

Os requerentes, Dervo Sejdić e Jakob Finci, são cidadãos da Bósnia-Herzegóvina. Nasceram em 1956 e 1943 respectivamente e vivem em Sarajevo. O primeiro é de origem roma e o segundo é judeu. Ambos são notórias figuras públicas. A Constituição bósnia, em seu preâmbulo, distingue duas categorias de cidadãos: as chamadas “nações constitutivas” (bosníacos, croatas e sérvios) e os “outros” (judeus, roma e outras minorias nacionais além daqueles que não declaram sua afiliação étnica). A Casa dos Povos, segunda câmara do Parlamento, e a Presidência são compostas somente por pessoas que pertencem a uma das três nações constitutivas. O Sr. Jakob Finci averiguou junto à Comissão Eleitoral Central a respeito da possibilidade de concorrer nas eleições

8 Tanto esta solução como a decisão unilateral do governo da Republika Srpska de continuar dando JMB

aos bebês que nasciam nesta entidade podem ser vistas como soluções inconstitucionais.

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Cheguei a folhear rapidamente os cadernos e os exercícios que esses dois amigos passam em sala de aula. Apesar de serem em cirílico, não percebi nenhuma conotação política. Todavia, o material consultado (Cf. op. cit., 2007) traz exemplos incontestáveis de manipulação ou politização dos conteúdos histórico-geográfico-literários pelos livros didáticos – para não entrar na questão do ensino de religião nas escolas (que é optativo-obrigatório – o curso é optativo, mas uma vez que se escolhe fazê-lo, ele torna-se obrigatório).

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10 para a Presidência e para a Casa dos Povos no Parlamento. No dia 3 de janeiro de 2007 ele recebeu por escrito da Comissão Eleitoral Central notificação de que ele não poderia concorrer às eleições devido a sua origem judaica. (…) Os requerentes apresentam queixa segundo a qual embora possuam experiência comparável a dos representantes eleitos, eles são impedidos pela Constituição da Bósnia-Herzegóvina e pelas cláusulas correspondentes do Decreto Eleitoral de 2001 de candidatarem-se para a presidência ou para a Casa dos Povos no Parlamento devido somente a suas origens étnicas. Eles fiam-se nos Artigos 3 (proibição de tratamento inumano e degradante), 13 (direito a recurso efetivo) e 14 (proibição de descriminação) da Convenção Europeia para os Direitos Humanos, Artigo 3 do Protocolo nº 1 (direito a eleições livres) e Artigo 1 do Protocolo nº 12 (proibição geral de discriminação) da Convenção.10

O processo foi encaminhado para a Corte Europeia em 2006. Em 2009, a Corte decidiu em favor dos requerentes e, desde então, a resolução dessa questão tornou-se uma das condições da entrada da Bósnia-Herzegóvina na União Europeia.

Entretanto, os políticos da Bósnia-Herzegóvina parecem não conseguir chegar a um consenso em relação a essa questão, que demandaria uma mudança radical na Constituição do país e na organização do poder.

Simplificadamente, a Bósnia-Herzegóvina é dividida em duas entidades e o Distrito de Brčko. No Distrito de Brčko, há uma assembleia de deputados, prefeito e gabinetes/secretarias. Aqui todos podem concorrer a eleições e ser eleitos para quaisquer cargos. As entidades, por sua vez, possuem uma estrutura de organização do poder complicadíssima, com presidências, duas câmaras parlamentares, premières, vices e ministérios. Exceto a câmara dos deputados (Assembleia Nacional da Republika Srpska e Câmara dos Deputados da Federação), todas as demais instâncias – e não apenas as duas citadas no trecho acima – são preenchidas por membros das nações constitutivas, e mesmo na câmara dos deputados, o presidente da câmara e seus vices (são sempre 3) devem ser sérvios, croatas e bosníacos. O mesmo se dá no governo central – na presidência, nos ministérios, e nas duas câmaras parlamentares. A maioria dos cargos administrativos e de governo são escolhidos de modo indireto pelos parlamentares ou presidentes eleitos diretamente11. Muitas vezes, devido à enorme quantidade de políticos e a todas as instâncias pelas quais uma emenda de lei ou uma nova lei deve passar, ou mesmo a escolha de um prefeito ou a formação da

10 Cf. Grand…, 2009. Tradução minha.

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11 Casa/Assembleia dos Povos12, pode acontecer de demorar meses (e já aconteceu de demorar mais de um ano) para algo se consumar.

Os governantes da Republika Srpska costumam acusar o governo da Federação de mal funcionamento devido ao excesso de burocracia – e de fato, se não bastasse os níveis Estado (governo central), entidades e municípios, na Federação há ainda dez cantões, com seus governantes, assembleias e secretarias. Os deputados cantonais, eleitos diretamente, que devem escolher entre si aqueles que irão constituir a Casa dos Povos da Federação. No caso da Republika Srpska, são os deputados da Assembleia Nacional da Republika Srpska, também eleitos diretamente, que escolherão os delegados na Assembleia dos Povos da Republika Srpska.

Se fosse apenas o problema de minorias mal representadas na Bósnia-Herzegóvina, há também o problema da má representação dos croatas na Federação, que, por serem minoria numérica, acabam sendo eleitos necessariamente por bosníacos e outros, que escolhem representantes croatas, que, representando-lhes mais, acabam por representar menos os interesses particulares croatas13. A entrada de judeus e roma na equação política poderia prejudicar ainda mais os croatas e seu lugar político nesta entidade e no governo central. E ainda, ao invés de dissolver o elemento étnico em prol da constituição de um estado que represente seus cidadãos, acrescentaria mais um elemento étnico na organização do poder.

A luta pelos direitos humanos, aqui traduzida como participação política no jogo democrático e combate à discriminação de base étnico-nacional, encontra, assim, como única solução a inclusão de outras categorias, também elas adscritivas e étnico-nacionais.

12 Na Republika Srpska chama-se Assembleia dos Povos, na Federação, Casa dos Povos, e no governo

central também Casa dos Povos. Conformam o parlamento bósnio e das entidades respectivas, e tem como função, entre outras, cuidar para que assuntos nacionais vitais sejam assegurados e protegidos. A Casa dos Povos no nível Estado é formada por cinco bosníacos e cinco croatas da Federação, mais cinco sérvios da Republika Srpska. A Casa dos Povos da Federação e a Assembleia dos Povos da Republika Srpska possuem representantes somente de suas entidades respectivas, incluindo cota para membros de outros grupos, porém estes não podem ser nem presidentes, nem vices dessas câmaras de representantes.

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Este é o argumento comumente ouvido por políticos de partidos nacionais (em oposição a partidos cívicos, ou plurinacionais) croatas da Bósnia-Herzegóvina. Exemplo paradigmático disto foi a eleição de Željko Komšić como membro croata da Presidência bósnia. Na ocasião, vários sarajevanos diziam com orgulho que Komšić era também sarajevano e aquele que melhor os representava. Croatas indignados criticavam o abuso de poder da maioria bosníaca, que havia elegido seu representante bosníaco e o dos croatas.

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Bósnia multiétnica e multicultural? Sobre o uso político da diferença

Para quem não está familiarizado com a Bósnia-Herzegóvina, pode parecer que na Bósnia-Herzegóvina vivem povos diferentes, que falam línguas diferentes, que possuem uma visão diferente do cosmos e de sua história e que lutam pelos seus direitos culturais, políticos e territoriais.

Mas não, na Bósnia-Herzegóvina há basicamente duas histórias concorrentes – uma que afirma que a Bósnia-Herzegóvina é formada por nações constitutivas e minorias nacionais ou étnicas, e outra que afirma que a Bósnia-Herzegóvina é formada por grupos nacionais e étnicos diversos, mas que o pertencimento a esses grupos até antes da guerra era irrelevante ou um dos vários elementos que constituíam a identidade do sujeito e que apontavam para a pluralidade de tradições locais, onde uma democracia baseada no cidadão não encontraria problema em se desenvolver14.

Viver em Sarajevo é ser informada – pelos sarajevanos – o tempo todo a respeito dessa tradição plural. Com orgulho, eles dizem que são bósnios, e que defenderam sua cidade e seu país durante a guerra, pela manutenção da convivência, do pluralismo e de uma tradição secular – onde a religião é do campo da vida privada, e aí deve ser mantida (lembrando que a religião que informa o pertencimento aos grupos étnico-nacionais independentemente da pessoa ser religiosa ou ateia). Sarajevanos são sérvios, croatas, bosníacos, muçulmanos, bósnios, misturados, católicos, ortodoxos, judeus, iugoslavos, roma e mais uma enormidade de auto-identificações que não encontram respaldo nem na constituição, nem em um estado dividido entre grupos étnico-nacionais definidos e em entidades.

Um dia eu perguntei ao dono do apartamento onde eu morei em Banja Luka se ele sente bósnio. Ele simplesmente riu da minha pergunta e respondeu: “Não importa como eu me sinto. Eu sou cidadão de um estado chamado Bósnia-Herzegóvina. Ponto”. Uma pessoa em Sarajevo diria o mesmo, mas ela iria começar com “Sim, já que sou um cidadão da Bósnia-Herzegóvina”; o tom da sua voz, no entanto, seria totalmente diferente. Segundo a resposta do dono do apartamento em Banja Luka, não é ele quem

14 Assim, aqueles que acreditam nisso elegem, por exemplo, Željko Komšić, aqueles que não acreditam,

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13 escolhe. Enquanto em Sarajevo, a questão é que “somos cidadãos de um país chamado Bósnia-Herzegóvina, então eu escolho ser bósnio". Em ambos os momentos, a noção de pertença a um território e a noção de territorialidade estão implicados – o espaço representa a pessoa e a nomeia, fazendo dela um sujeito político em um lugar político, uma vez que é um Estado democrático. Em ambos os momentos, ela também implica a noção de cidadania e nacionalidade (e, podemos dizer, as concepções de nacionalismo). O sentimento de negação da existência da Bósnia-Herzegóvina é facilmente classificado como nacionalismo em Sarajevo. Já o sentimento de aceitação desse país não é. Assim, a noção de cidadania, no caso de Sarajevo, como que num passe de mágica, perde sua territorialidade e torna-se um valor em si mesmo, oposto a sentimentos de territorialidade – ou seja, nacionalismo – e ligado a uma categoria ampla e mais genérica de identidade – bósnia, por exemplo – também marcada por uma fronteira, mas que alegadamente uniria a todos dentro dela, noção abstrata de identidade, independente de uma cultura específica, como que ligada a todas as culturas, e base de um estado multinacional e multicultural.

No caso do dono do apartamento onde morei em Banja Luka, como para grande parte das pessoas nesta cidade, essa mágica não funciona, e ser cidadão da Bósnia-Herzegóvina é sim uma categoria de territorialidade, além de imposta sobre ele. Ele não é um nacionalista, somente quer viver sua vida onde ele sempre viveu e não ser importunado com essas questões. Porém, este incômodo revela que não é possível ser bósnio na Republika Srpska. Esta categoria está aqui ligada à Bósnia-Herzegóvina, e aos inimigos, bosníacos especialmente, que queriam todo o território só para si15.

O lugar

Retomando o resumo, quando afirmo que neste lugar – Bósnia-Herzegóvina – territórios, culturas, religiões, nacionalidades, etnias, cidadanias passaram a ser termos contestados e diferentemente pensados pelas pessoas na Bósnia-Herzegóvina desde a guerra dos anos 1990, tenho em vista que a guerra na Bósnia-Herzegóvina, mais do que uma guerra entre grupos nacionais, foi uma guerra que reafirmou, reorganizou e reificou

15 Um aforismo de Basalo (2013, p. 82) – escritor e satirista que vive em Banja Luka – sintetiza, de certo

modo, essa visão: “Sérvios e croatas guerrearam entre si para viver lado a lado, já, os bosníacos, para dominar os primeiros e os segundos”.

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14 os grupos que guerrearam entre si, e junto deles, as noções acima, apontando para a disputa acerca da representação política da diferença, onde concepções diversas do que seja um estado multicultural entram em jogo, revelando a contradição e sobreposição entre o que seria o universalismo do cidadão (bósnio) e o particularismo da(s) nação(ões) – bosníaca, croata, sérvia e “outras”.

A guerra é comumente datada de 1992 a 1995, ou seja, do momento que a Bósnia-Herzegóvina foi reconhecida internacionalmente como Estado ao momento da assinatura do acordo de paz.

Todavia, nem o referendo que tornou legítimo o reconhecimento do Estado, nem a assinatura do acordo de paz, têm como inequívocas suas legitimidades. O referendo foi ignorado por quase metade da população. O acordo de paz construiu um estado ignorando um dos lados da guerra – o do universalismo do cidadão bósnio – e favorecendo outro, o do particularismo dos grupos nacionais.

A Bósnia-Herzegóvina hoje é um país dividido administrativamente (pela Constituição) e simbolicamente em duas entidades semi-autônomas: a Federação (de maioria bosníaca e croata) e a Republika Srpska (de maioria sérvia) – na Federação os sérvios possuem quase tantos direitos como os “outros”, na Republika Srpska, croatas e bosníacos possuem quase tantos direitos como os “outros”. Além dessas duas entidades, há o Distrito de Brčko, que ainda espera uma resolução que estabeleça a qual das duas irá pertencer.

A Constituição, ou Anexo 4 do acordo de paz assinado em Dayton (Estados Unidos), reconhece três nações constitutivas, sérvia, croata e bosníaca (outros grupos nacionais, “minorias” ou “grupos étnicos” são unidos não explicitamente na categoria “outros”16

) e as línguas sérvia, croata e bósnia – atentando que antes da guerra se tratava da mesma língua que então ganhou denominações nacionais17.

Alguns direitos, especialmente aqueles que se referem à participação nas instituições públicas, dependem do pertencimento a algum grupo nacional. Muitos

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A diferenciação dos grupos nacionais na Bósnia, como na antiga Iugoslávia, tem origem religiosa, católicos são croatas, muçulmanos são bosníacos, e cristãos ortodoxos são sérvios, em linhas muito gerais. Grupos nacionais, ou nações – nacija, ou narod – era o modo de chamá-los durante a Iugoslávia socialista, hoje o termo varia, sendo também chamados de grupos étnicos.

17 Claro, há linguistas que discordam que seja a mesma língua, mas a disputa se dá mais em torno dos

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15 cargos públicos são cotizados, e poucas dessas cotas são destinadas a outro grupo não oficialmente reconhecido, como o dos “bósnios” ou apontado como sendo “outros”.

Esses três elementos que aponto aqui e que podemos sintetizar como referentes a: pertencimento territorial, nacional, linguístico e político, apareciam durante a pesquisa de campo como mais do que meros itens de uma carta constitucional, mas como elementos de uma carta constitucional que atestava cotidianamente a existência de um estado cuja divisão em entidades era vista como imposta em Sarajevo e como pactuada (ou dos males, o menor) na Republika Srpska, sendo a Bósnia-Herzegóvina um estado aceito em Sarajevo, e praticamente ignorado em Banja Luka. Quaisquer eventos que se passem no território da Bósnia-Herzegóvina parecem, portanto, atestar para esses pontos de inflexão, como vimos anteriormente nas grandes manifestações que ocorreram em 2013 em Sarajevo e em Banja Luka e o Caso Sejdić-Finci versus Bósnia-Herzegóvina.

Escolhi estes eventos, pois, naturalmente, eu estava lá, trafegando entre as entidades, com amigos e interlocutores em toda a parte. Depois destes, dois grandes eventos ocorreram na Bósnia-Herzegóvina: em fevereiro de 2014, na Federação, ocorreu uma série de manifestações contra o governo, com queima de prédios públicos, grande mobilização populacional e a formação de plenárias populares; e bem recentemente, testemunhamos as enchentes que assolaram o país, além de regiões da Croácia e da Sérvia. A solidariedade durante as enchentes foi evidente, com muitos falando (na Federação principalmente) de uma nova solidariedade iugoslava.

Todavia, as fronteiras estão lá. E na Bósnia-Herzegóvina, elas não coincidem. De um lado, a Herzegóvina aparece em seu todo, de outro, a Bósnia-Herzegóvina aparece como formada por entidades, sendo o todo um mero formalismo político (formalismo contestado pelas enchentes de maio de 2014, que parece que escolheram a Republika Srpska para assolar, e fizeram com que esta precisasse não só da Bósnia-Herzegóvina, como de toda a ajuda necessária).

A guerra construiu esse lugar. Diversos termos são utilizados para defini-la: guerra civil (na Republika Srpska, especialmente) e guerra de agressão (na Federação, especialmente) são os mais comuns na Bósnia-Herzegóvina – apesar do termo “guerra étnica” (comumente aceito internacionalmente) entre muçulmanos (hoje chamados bosníacos), sérvios e croatas, que definiram os lados do conflito, e definiram as partes envolvidas no acordo de paz. E, por fim, o território da Bósnia-Herzegóvina nunca foi

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16 tão homogêneo em termos populacionais como ele é hoje, com suas cidades de maiorias “etnicamente” muito bem definidas. Assim, Sarajevo e Banja Luka, as duas cidades onde fiz pesquisa de campo, se antes da guerra possuíam populações sérvias, croatas, muçulmanas (ou bosníacas), além de outras, roma, judias, iugoslavas, misturadas, e mesmo, ucranianas, italianas, tchecas etc., hoje são cidades muçulmana e sérvia, respectivamente.

Sarajevo ainda luta para manter uma imagem de cidade plural, Banja Luka prefere se ver como a cidade multicultural que “sempre fora”. A diferença entre ambas as noções é sutil. Na primeira cidade, seria irrelevante quem é quem, na segunda, não seria irrelevante, mas haveria lugar para todos. Utilizo o futuro do pretérito aqui, pois vemos que as coisas não são bem assim, nem em Sarajevo é totalmente irrelevante, nem em Banja Luka há lugar para todos. “Todos” é um termo aqui de fronteiras embaralhadas por noções de cidadania que não possuem lugar na política e por grupos minoritários também excluídos desses processos, sem falar nas disputas linguísticas e culturais entre pessoas que eu não saberia diferenciar, que não pelo modo como entendem a própria história e pensam a diferença entre os grupos.

Posto isso, desde o início das minhas pesquisas na ex-Iugoslávia, o tema que salta aos olhos é o debate sobre a história e as verdades em torno desta, sobre o que de fato aconteceu (na guerra dos anos 1990, nas Guerras Mundiais, e retrocedendo, durante o período austro-húngaro e otomano – parece às vezes que o único período ainda inconteste, a menos na Bósnia-Herzegóvina, é o período socialista, embora, a percepção das diferenças neste período também vem sofrendo uma releitura).

Vivendo em uma cidade, as certezas são umas, vivendo em outra, as certezas são outras. Trafegando e tentando entender esse universo de disputas a única conclusão a que se chega é que a afirmação de uma verdade por um dos lados é uma forma de violência para o outro, violência que muitas vezes cheguei a sentir na pele – como que bombardeada por todos os lados – e que temo por uma terceira via fazer parte dela, pelo simples ato de estar presente e de escrevê-la, marcando eu também a fronteira entre os “grupos” e “territórios”, reificando-a.

Lembro quando conheci Hannah, estudante americana de mestrado em Banja Luka, sob mesmo supervisor. A primeira pergunta que ela me fez foi se meu trabalho era sobre reconciliação (tema “clássico” entre estudiosos estrangeiros na Bósnia-Herzegóvina). Eu disse: “não, justamente o contrário”. E pensei, “enquanto não houver

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17 concordância sobre quem matou, quem morreu, onde e como não há possibilidade de reconciliação”. Infelizmente, continuo pensando isso, e escrevendo e inscrevendo isso, contribuindo para que diferenças continuem se perpetuando como divisões.

A autodeterminação étnico-nacional pode ser qualquer coisa na Bósnia-Herzegóvina, e mais ou menos espontânea, porém é o único modo de identificação que atualmente faz sentido e que tem lugar na política e na história. Há uma contínua naturalização das diferenças e a reinvenção do seu passado, que caminham para a separação das histórias, do futuro dessas pessoas e das culturas, cada vez mais distantes umas das outras.

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Anexo

Referências

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