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Cefaléia em Salvas. Quadro clínico e fisiopatologia - uma breve revisão

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Cefaléia em Salvas. Quadro clínico e fisiopatologia

-uma breve revisão

Cluster headache – Clinical features and pathophysiology - a brief review

INTRODUÇÃO

A despeito de apresentar, de um modo geral, um qua-dro clínico bem típico e de ser considerada uma das dores mais atrozes que o ser humano pode suportar (considera-da pelas mulheres sálvicas pior que a dor do parto),1 a cefaléia em salvas (CS) ainda permanece com sua fisio-patologia pouco elucidada e também continua sendo in-corretamente diagnosticada.

Sinonímia. Certamente não encontraremos nenhu-ma outra entidade clínica que tenha unenhu-ma sinonímia tão rica quanto a CS, pois várias denominações lhe são atribuídas como: “cefaléia do relógio”, “cefaléia suicida”, “cefaléia de Horton”, “cefaléia histamínica”, “cefaléia em cachos”, “cefaléia em pencas”, “cefaléia agrupada”, ‘cefaléia acu-minada, “cefalalgia paroxística noturna”, ”neuralgia vidiana”, “neuralgia ciliar”, “neuralgia enxaquecosa”, RESUMO

Introdução: A cefaléia em salvas, a mais dolorosa dentre as cefaléias primárias, é uma dor estritamente unilateral que ocorre associada a manifestações disautonômicas e, na maioria dos pacientes, tem uma notável periodicidade circanual e circadiana. Sua fisiopatologia é nebulosa e complexa e ainda não é possível uma explicação unificada. Objetivos: Revisar e discutir os aspectos mais relevantes da cefaléia em salvas. Métodos: Foi efetuada uma revisão da literatura disponível, a qual foi analisada sendo seus principais aspectos mencionados. Conclusões: Envolvendo vias centrais e periféricas, as quais resultam em

características únicas de periodicidade e em manifestações autonômicas associadas à dor, a cefaléia em salvas permanece como uma das mais complexas, intrigantes e fascinantes entidades clínicas.

PALAVRAS-CHAVE

Cefaléia em salvas; cefaléia de Horton; cefaléias

trigêmino-autonômicas; SUNCT; hemicrânia paroxística.

ABSTRACT

Introduction: Cluster headache, the most painful of the primary headaches, is a strictly unilateral headache that occurs in association with cranial autonomic features and, in most patients, has a striking circannual and circadian periodicity. Its pathophysiology is cloudy and complex, and a unifying explanation is not yet available. Objectives: To review and to discuss the most relevant aspects of cluster headache. Methods: The available literature was reviewed and analyzed, and its aspects considered to be relevant are discussed. Comments and Conclusions:

The involvement of both central and peripheral pathways results in the unique features of cluster headache

regarding its periodicity and associated autonomic features, resulting in one of the most complex, intriguing and fascinating conditions known by medicine.

KEY-WORDS

Cluster headache; Horton’s hedache; trigeminal-autonomic headaches; SUNCT; paroxysmal hemicrania.

Roldão Faleiro de Almeida Neurologista do Hospital Belo Horizonte - BH Ambulatório Experimental de Cefaléias do Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais Membro das Sociedades Mineira e Brasileira de Cefaléia.

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“neuralgia esfenopalatina”, “neuralgia espasmódica, “eritro-melalgia da cabeça”, eritroprosopalgia de bing”, “enxaque-ca vermelha”...

Aspectos Históricos. Provavelmente a primeira des-crição da CS coube ao médico e anatomista de Amsterdan Nicolaas Tulp (seu sobrenome era Pieterszoon, Tulp era devido às tulipas que ornamentavam a sua casa) que, em 1641, publicou uma série de casos clínicos, sendo que em um desses casos ele relatava um paciente que apresentava cefaléia intensa que ocorria em horários fixos e tinha dura-ção inferior a duas horas. Porém, sua descridura-ção não fazia menção ao aspecto unilateral da dor, nem às manifestações disautonômicas.2

Há uma descrição da Babilônia que, apesar se fazer menção a uma crise migranosa, bem que nos parece mais sugestiva de um ataque da CS: “A doença da cabeça afeta-va sua vítima como um raio, tornando o portador afogueado como uma estrela no céu, sem lhe dar paz, fazendo-o va-guear pela noite, sem rumo”.3

Se levarmos em consideração que, até a classificação de 1988, a CS pertencia ao Grupo I, considerada como uma “variante da Enxaqueca”, a descrição da Babilônia po-deria ser considerada a primeira descrição da CS (?).

Em 1939, Horton et al descreveram os aspectos da CS e relataram suas experiências no tratamento da “nova síndrome da cefaléia vascular”, com histamina.4 Em 1952, a CS passou a ser conhecida como “cefaléia histamínica” ou “cefaléia de Horton”. Não vamos confundir “cefaléia de Horton” com “doença de Horton” (arterite de células gigantes). Posteriormente, na mesma década, Kunkle criou o termo “Cluster Headache”. Em 1962 (Comitê de Bethesda), a CS foi colocada no Grupo I (“Vascular Headache of Migraine-type”), classificada como I-C.

Em 1979, no Brasil, Raffelli Jr. conseguiu pôr um fim naquela miscelânea de epônimos e denominações para a CS, criando para o nosso idioma o termo “Cefaléia em Salvas”, termo este aceito e recomendado pela então Soci-edade Brasileira de Cefaléia e Enxaqueca”.

Em 1988, a CS é, racionalmente, desvinculada da Migrânea, e passa a compor um grupo à parte (Grupo III) juntamente com a Hemicrânia Paroxística. Finalmente, em 2003, com a nova classificação da IHS, ocorrem modifi-cações nos critérios diagnósticos da CS e um novo inte-grante passa a fazer parte do Grupo III: a “SUNCT”.5

EPIDEMIOLOGIA Prevalência

Rasmussen encontrou uma prevalência de 0,1 % na população dinamarquesa; Kudrow, na população

norte-americana, encontrou prevalência de 0,08% nas mulheres e de 0,4% nos homens; Karl Ekbom encontrou em 9.803 recrutas do exército sueco uma prevalência de 0,09%; Roberto D’Alessandro, em 21.972 habitantes da Repúbli-ca de San Marino, encontrou uma prevalência de 0,07%.

Incidência

Baseando-se em estudos retrospectivos de 6.400 prontuários médicos, a incidência da CS foi de 4/ 100.000 pessoas por ano para o sexo feminino e de 15,6/100.000 pessoas por ano para o sexo masculino.6

Sexo

A CS apresenta um nítido predomínio no sexo mas-culino, mas os últimos estudos têm mostrado um aumento da incidência no sexo feminino, talvez em decorrência das mudanças nos hábitos de vida das mulheres.7 Horton (1956), em 1.176 pacientes sálvicos, encontrou uma ra-zão de 6,7:1,0; Kudrow (1980), em 425 pacientes, encon-trou razão de 5,0:1,04; Manzoni (1997), em 482 pacientes, encontrou uma razão de 3,5:1,0.

Idade

Rozen et al encontraram, em 101 pacientes estuda-dos, uma média de idade para início das crises de: 29,4 anos para as mulheres e de 31,3 anos para os homens.8 Ekbom encontrou uma média de 25,6 anos e de 27,8 anos, respectivamente para as mulheres e para os homens. Manzoni também encontrou uma idade de início mais pre-coce nas mulheres (23,3 anos) em relação aos homens (29,6 anos).

A CS pode também ocorrer em extremos de idade: Farias da Silva descreveu-a aos 3 anos de idade e aos 72 anos de idade; Kudrow, em um paciente com 3 anos de idade; Ekbom, aos 8 anos de idade, e Terzano, em um recém-nascido.

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS (IHS-2003)

A – Pelo menos cinco crises preenchendo critérios de A a D;

B – Dor forte ou muito forte unilateral, orbitária, su-pra-orbitária e/ou temporal, durando de 15 a 180 minutos, se não tratada;

C –A cefaléia é acompanhada de pelo menos um dos seguintes itens:

1- hiperemia conjuntival e/ou lacrimejamento ipsilaterais; 2- congestão nasal e/ou rinorréia ipsilaterais; 3- edema palpebral ipsilateral;

4- sudorese frontal e facial ipsilateral; 5- miose e/ou semiptose palpebral;

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Características do paciente sálvico

Graham apresentou, durante o Simpósio Internacio-nal de Cefaléia em Chicago (1969), os aspectos do pacien-te sálvico: alto, atlético, pele rosada, áspera, sulcos naso-labiais profundos, telangiectasias no nariz, queixo quadra-do (queixo de pugilista), etilista e tabagista.4 Lembramos que o tabagismo ocorre em até mais de 85% desses paci-entes e o etilismo deflagra a crise em 71,13% dos casos (Farias da Silva). Estas mesmas características podem ocorrer nas mulheres.

Graham chegou a citar o traço da personalidade do paciente sálvico: o indivíduo aparenta ser aquilo que na verdade não é, através de sua aparência, que nos dá a im-pressão de força, decisão e segurança, porém, na verdade, trata-se de uma pessoa frágil, indecisa e insegura.

Sintomatologia migranosa

Rozen et al chamaram atenção para a sintomatologia migranosa associada à CS. Estudando 69 homens e 32 mulheres (total de 101 pacientes), estes autores encontra-ram náusea em 62,5% das mulheres e 43,5% dos homens; vômito em 46,9% das mulheres e 17,4% dos homens; fotofobia em 75% das mulheres e 81,2% dos homens e fonofobia em 50% das mulheres e 47,8% dos homens, lembrando que, apesar destes sintomas ocorrerem com uma certa freqüência (em média 53%, 32%, 78% e 49%, respectivamente), eles não fazem parte dos critérios diag-nósticos.8

Aspectos da dor

Como nas demais cefaléias, a dor é o elemento capital do quadro clínico, sendo que, na grande maioria das ve-zes, trata-se de uma dor atroz, insuportável, intolerável, indescritível. É considerada uma dor excruciante (lanci-nante), Isto é, punitiva, aflitiva, atormentadora. Em torno de 80% dos casos, a dor apresenta uma qualidade terebrante (perfurante), como se uma verruma fosse usada de en-contro ao olho; e em torno de 20% dos casos, o paciente pode relatar uma dor de qualidade pulsátil.

Em relação à localização, quase sempre a dor é estri-tamente unilateral, periorbitária, retro-orbitária, podendo iniciar-se também nas regiões temporal, maxilar, mandibu-lar e occipital.

A dor também pode ocorrer sempre do mesmo lado durante todo o tempo de existência da CS.4

Manifestações disautonômicas (Quadro 1)

As manifestações disautonômicas ocorrem de modo associado e contemporaneamente ao quadro álgico, sendo que as manifestações de disfunção simpática (Horner par-cial: miose e semiptose palpebral) podem persistir além do período da dor, especialmente após ataques freqüentes.1,4,7 6 – sensação de inquietude ou agitação.

D – As crises podem ocorrer na freqüência de uma crise a cada dois dias a oito por dia;

E – Não atribuída a nenhum outro transtorno. QUADRO CLÍNICO

Periodicidade

Geralmente, o quadro clínico da CS é muito típico, sendo a periodicidade um elemento marcante e quem sabe até exclusivo desta entidade clínica. A CS ocorre em pe-ríodos denominados salvas ou surtos que, em média, per-duram por duas semanas (mini-bouts)7 a três meses, ten-do como principal fator deflagraten-dor o álcool (qualquer tipo de bebida alcoólica) que parece não exercer influên-cia fora do período susceptível; e é dentro do período da salva que ocorrem as crises. Deve-se lembrar que exis-tem outros deflagradores, como histamina, vasodila-tadores, mudanças climáticas, alteração da pressão at-mosférica e, para não deixar de ser, assim como na migrânea e na cefaléia tensional, o estresse emocional.

A CS tipicamente apresenta períodos de dor intercala-dos por períointercala-dos livres de dor (fase de remissão), sendo assim possível dividi-la em episódica, que é mais freqüen-te (em média 85% dos casos), na qual o pacienfreqüen-te apresen-ta períodos de dor que variam de sete dias a um ano, com período de remissão maior ou igual a trinta dias. Na forma crônica, ocorrem períodos de dor superiores a um ano, sendo a fase de remissão menor que trinta dias ou até mes-mo ausente.

Os ataques (crises) apresentam início e fim abruptos e podem ocorrer de um a cada dois dias até oito ataque diários (em média três/dia) com uma duração de 15 a 180 minutos (45 minutos em média), sendo que os ataques noturnos são mais freqüentes e ocorrem em torno de 90 minutos após o paciente adormecer, estando assim associ-ados ao início do sono REM. Deste modo, de acordo com Dodick (2000), o paciente sálvico tenta prolongar ao má-ximo seu tempo de vigília, ficando o maior tempo possível acordado, pois a privação do sono encurta o tempo de latência do sono REM e, quando o sono chega, o paciente entra mais precocemente nesta fase do sono e, conseqüen-temente, o ataque terá menor duração, redundando em menor sofrimento. Por outro lado, a privação do sono pode conduzir o paciente à depressão e à ideação suicida.

Passando a tempestuosa fase da salva, o paciente en-tra na fase de remissão (período livre de dor), que pode ter, em média, na forma episódica, duração menor que dois anos (Ekbom, 1970). Kudrow (1980) encontrou período de remissão de sete a doze meses em 47,7% de seus 428 pacientes.3

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Aliás, temos um colega médico no Hospital Militar -BH o qual, praticamente durante todo período de salva, apresenta miose e semiptose palpebral, que permanecem depois de cessada a crise (ataque).

Lembramos que uma ou mais das manifestações pode faltar (todas podem faltar em torno de 3% dos casos)4 e que edema palpebral, rubor e sudorese são de ocorrência rara.

Rubor, apesar de não fazer parte dos critérios diag-nósticos, é citado por Lance (1971) em 12 dos seus 60 pacientes, representando 20% de sua casuística.11 Por outro lado, Kudrow e Ekbom citam que este achado é nada mais que o resultado da mão comprimindo a área conflagrada.

Também podem ocorrer manifestações disautonô-micas sistêdisautonô-micas, como bradicardia, hipertensão arterial e aumento da secreção gástrica.4

Comportamento do paciente durante uma crise

Podemos dizer que, durante uma crise, o paciente pode apresentar um comportamento irracional. Ao contrário do migranoso, que prefere permanecer quieto (apenas o fato de abaixar a cabeça ou bater o pé no chão piora sua dor), o sálvico fica agitado, inquieto, andando de um lado para o outro com a mão colada contra a área dolorosa. Vale a pena lembrar que, apesar de fazer parte dos critérios diag-nósticos da atual classificação (2003), há vários anos que Kudrow já considerava a impossibilidade do paciente per-manecer quieto durante uma crise, patognomônica da CS.3 Alguns pacientes chegam a empurrar familiares, quebrar objetos e até mesmo, em atitudes amedrontadoras, de for-ma enlouquecida, ficam dando murros na parede ou ba-tendo violentamente a cabeça contra a mesma. Tomado pelo desespero, o paciente pode chegar a fantasiar o auto-extermínio (atendemos em junho do ano passado, no am-bulatório no Hospital Militar – BH, um policial militar por-tador da forma crônica, proveniente do interior do estado, que, totalmente sem esperanças e sem credibilidade, confi-denciou-nos o desejo de pegar sua arma e “dar um tiro em cima da dor”, apontando o local com o dedo indicador),

ou então suplicar a um familiar que dê fim ao seu sofri-mento.4 Graham chegou a comparar o paciente em crise ao cão de caça. Dócil e obediente em relação ao seu dono, o cão subitamente é surpreendido por uma carga de espi-nhos lançada em seu focinho pelo porco espinho. O animal torna-se agitado, inquieto e agressivo, não mais obedecen-do ao seu obedecen-dono, correnobedecen-do em círculos, salivanobedecen-do e lacri-mejando, tentando assim desvencilhar-se desesperadamente dos espinhos e, ao conseguir, entra finalmente num qua-dro de exaustão profunda.12

Nuances do quadro clínico

As nuances são raras, porém existem e devem ser lembradas, pois, caso contrário, poderemos deixar de “fe-char” um diagnóstico de CS.

Aura: até alguns anos atrás, a CS não era considerada estar associada a aura (como podemos ver na migrânea), mas Silberstein, em 2000, apresentou seis casos de aura (cinco casos de aura visual) precedendo a crise.

Lateralidade da dor: em torno de 89,20% dos casos (Farias da Silva, 2002), a dor ocorre sempre do mesmo lado, porém pode haver alternância de lado de uma salva para outra em 10% dos casos, de acordo com Sjaastad (Farias da Silva encontrou 8,52%). Também a dor pode mudar de lado na mesma salva em 5% dos casos e, até mesmo, ocorrer simultaneamente nos dois lados em 2%-3% dos casos.

Manifestações disautonômicas: como nós sabemos, estas manifestações ocorrem ipsilateralmente e contem-poraneamente associadas à dor, porém Farias da Silva ,em 176 pacientes, encontrou distúrbio autonômico bilateral com dor unilateral em dez pacientes, distúrbio autonômico contralateral em um paciente; distúrbio autonômico unila-teral com dor bilaunila-teral em um caso; distúrbio autonômico sem dor em um caso; dor sem distúrbio autonômico em três casos.

DIAGNÓSTICO

Exceto nuances do quadro clínico que são raras, o diagnóstico da CS não é muito difícil de ser realizado; en-tretanto, por vezes, encontramos o paciente sálvico peram-bulando por consultórios, “desorientados”, tentando de-sesperadamente um alívio, uma explicação para tamanho sofrimento. Portanto, é muito importante que tenhamos sempre em mente os pilares que compõem o quadro clíni-co da CS:

Periodicidade: aspecto circadiano das crises e o aspecto circanual e sazonal das salvas;

Lateralidade da dor: dor quase sempre estritamen-te unilaestritamen-teral, periorbitária ou retro-orbitária;

Quadro 1

Percentuais de manifestações disautonômicas em pacientes com cefaléia em salvas 8,9,10

Sintomas Rozen Sanvito Farias da

autonômicos et al* % Silva

Lacrimejamento 7 3 8 2 79

Hiperemia conjuntival 6 6 7 1 76

Congestão nasal 4 2 6 0 72

Rinorréia 2 2 3 9 69

Síndrome de Horner parcial 5 0 2 8 37

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Intensidade da dor: na grande maioria dos casos, trata-se de uma dor atroz, insuportável, atormentadora e terebrante;

Manifestações disautonômicas: ocorrem ipsilate-ralmente e contemporaneamente à dor, sendo as mais fre-qüentes hiperemia conjuntival, lacrimejamento e conges-tão nasal.

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Apesar da riqueza do quadro clínico da CS, às vezes nos defrontamos com algumas formas de algias primárias, e, até mesmo as secundárias, as quais podem nos trazer algumas dificuldades diagnósticas. Mas, vale a pena lem-brar do inestimável valor de uma boa anamnese e de um detalhado exame clínico e neurológico. Contudo, às vezes poderá ser difícil distinguirmos uma cefaléia secundária que mimetiza a CS (Cluster Secundário), sendo necessária neste caso a realização de exames complementares. Auto-res como Spierings apud Krymchantowski13 preconizam a solicitação de exames de imagem para todos os pacientes que estão começando a apresentar a CS pela primeira vez. Por outro lado, outros autores como Farias da Silva não compartilham esta conduta, uma vez que a ocorrência do Cluster Secundário é muito rara. Dentre as cefaléias se-cundárias, podemos citar como exemplo: tumores cere-brais, aneurismas, malformações arteriovenosas, dissec-ção de vasos cervicais, glaucoma agudo e até mesmo sinusopatias.

Em relação às cefaléias primárias, o diagnóstico dife-rencial deve ser feito com as demais cefaléias do grupo III, lembrando que a Hemicrânia Paroxística Crônica (di-agnóstico diferencial mais próximo da CS) é mais comum no sexo feminino, e suas crises são de menor duração e maior freqüência e são responsivas à indometacina. O SUNCT, por sua vez, caracteriza-se por crises ainda mais freqüentes e de menor duração que a Hemicrânia Paroxística Crônica e não responde nem ao tratamento para a CS, nem à indometacina.

A Cefaléia Hipnica pode também ser citada como di-agnóstico diferencial, apesar de ser mais comum acima de 60 anos de idade, ocorrer exclusivamente à noite, ser uma dor geralmente difusa, que melhora assim que o paciente se levanta e, além do mais, não apresenta o efeito devasta-dor da CS.

A Migrânea, a princípio parece ser um diagnóstico diferencial fácil, contudo as coisas podem complicar, uma vez que algumas formas de enxaqueca ocorrem de modo agrupado, ou associadas a manifestações disautonômicas. Por outro lado, a CS pode vir associada à sintomatologia migranosa e até mesmo à aura.

A Neuralgia do Trigêmeo (NT) também deve ser lem-brada como diagnóstico diferencial. A dor é tão intensa quanto a CS, todavia, de duração mais curta e de ocorrên-cia muito rara no território da primeira divisão do nervo trigêmeo (menos de 5% dos casos). Às vezes o diagnósti-co pode ser mais difícil quando a NT vem associada a sinais disautonômicos (hiperemia conjuntival e lacrime-jamento) os quais, por sua vez, ocorrem quando a crise é mais intensa e prolongada, porém a resposta à carba-mazepina é muito boa.

Finalmente temos ainda com diagnóstico diferencial a Cluster-Tic syndrome (síndrome Sálvica-Trigeminal), que implica crises do tipo trigeminalgia e do tipo cefaléia em salvas, sendo os dois primeiros casos publicados no Bra-sil por Monzillo, Sanvito e Peres, em 1996.14 Posterior-mente, Monzillo, Sanvito e Costa relataram mais cinco casos.15

FISIOPATOLOGIA

Complexa e nebulosa, a fisiopatologia da CS ainda não está totalmente elucidada. Assim sendo, nada poderemos acrescentar, apenas tentaremos, de modo singelo e resu-mido, mesclar as hipóteses central e periférica.

Uma explicação unificada para a fisiopatologia da CS ainda não é possível, pois qualquer hipótese a respeito do assunto precisa justificar os três aspectos clássicos des-ta entidade clínica: 1) localização da dor; 2) presença de manifestações disautonômicas; 3) aspecto circadiano das crises e circanual das salvas.

Se considerarmos que substâncias vasodilatadoras como o álcool (em especial), a histamina e a nitroglicerina podem deflagrar uma crise no período susceptível, e que o oxigênio e drogas vasoconstritoras como os derivados ergotamínicos e os triptanos podem abortá-la; e se ainda acrescentarmos que foi constatada uma acentuada dilata-ção da artéria oftálmica ipsilateral à dor durante ataque es-pontâneo de CS através de angiografia cerebral (Ekbom, 1970) e angiorressonância magnética (Ekbom,1993),16 não poderemos negar que a participação vascular pudesse me-recer um certo respaldo. Mas, se existe a possibilidade da participação vascular, onde se encontraria o “teatro de ope-rações” que pudesse justificar as tão complexas manifes-tações que compõem o quadro clínico da CS?! Onde se encontraria o “sítio vascular?!” Bem, este “sítio vascular” poderia ser o local para onde se convergem fibras simpá-ticas, fibras parassimpásimpá-ticas, artéria carótida interna e a primeira divisão trigeminal. Portanto, este local seria o seio cavernoso. Se já elegemos um sítio vascular, que proces-so ocorreria? Haveria uma inflamação neurogênica media-da por peptídeos vasoativos. Goadsby e Edvinson17

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en-contraram na veia jugular externa ipsilateral à dor em paci-entes sálvicos durante a crise, um significativo aumento do peptídeo intestinal vasoativo (VIP), que é um neuro-transmissor encontrado nas fibras parassimpáticas. Este aumento também pode ocorrer na hemicrânia paroxística e até mesmo durante uma crise migranosa, desde que esta venha associada a manifestações disautonômicas. Assim sendo, um aumento do VIP poderia indicar um aumento da atividade parassimpática. Também foi encontrado um im-portante aumento dos níveis do peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP) que, por sua vez, é um neuro-transmissor encontrado nas fibras trigeminais. Um aumento do CGRP indicaria uma ativação trigeminal. Goadsby e Edvinson relatam não ter havido modificação nos níveis sangüíneos do neuropeptídeo Y (NPY), nem nos níveis da substância P (SP). Além do mais, os níveis do VIP e do CGRP voltaram ao normal após uso de oxigênio e suma-triptano, enquanto os opiáceos não alteraram os níveis des-ses peptídeos.17 Dessa forma, tanto o CGRP, que marca o sistema trigêmino-vascular quanto o VIP, que marca a ati-vidade parassimpática, estão ambos elevados no sangue venoso de pacientes durante uma crise de CS. Podemos dizer que haveria uma inflamação neurogênica que levaria a uma vasculite venosa, com uma conseqüente congestão do seio cavernoso. Este quadro levaria não apenas à dor (fibras trigeminais), mas ao envolvimento de fibras simpá-ticas que trafegam junto à artéria carótida interna, com conseqüente disfunção simpática. Além do mais, esta vasculite levaria hipoteticamente a uma isquemia hipo-talâmica e hipofisária que duraria o tempo da inflamação, causando assim uma disfunção temporária do hipotálamo (aspecto cíclico da CS?). Em relação às manifestações de hiperatividade parassimpática, Goadsby e Lipton (apud Rozen8) têm sugerido que estas poderiam ser anatomi-camente explicadas pela presença de uma via reflexa autonômico-trigeminal, sendo a via aferente a primeira di-visão trigeminal (responsável pelo estímulo nociceptivo) e via eferente formada por fibras parassimpáticas (resposta vasodilatadora e de hiperatividade parassimpática), sendo assim a vasodilatação apenas um fenômeno posterior ao aparecimento da dor.

Mas, talvez seja difícil explicar o aspecto cíclico da CS, baseando-se apenas em mecanismos hemodinâmicos.4 Isto nos faz acreditar que a CS tenha origem em algum mecanismo central, pois os surtos quase sempre ocorrem nas mesmas épocas do ano e as crises ocorrem quase que com hora marcada. Assim sendo, a periodicidade da CS sugere o envolvimento de um relógio biológico ou de um marca-passo, o qual, em humanos, encontra-se localizado no hipotálamo. O hipotálamo, através do núcleo supra-quiasmático, é considerado o principal marca-passo do ritmo circadiano da produção de vários hormônios nos

mamífe-ros. Estudos têm mostrado alterações hormonais em pa-cientes sálvicos (níveis basais de cortisol elevados, dimi-nuição da melatonina, dimidimi-nuição de testosterona, dentre outras), durante o período de surto. Kudrow (1975) me-diu os níveis plasmáticos de testosterona em 19 pacientes sálvicos (nove pacientes encontravam-se no período de surto e dez pacientes na fase de remissão) que foram com-parados com um grupo controle. Os pacientes na fase de remissão apresentavam níveis mais baixos que o grupo con-trole, enquanto os demais pacientes (fase de dor) apresenta-vam níveis mais baixos ainda. Kudrow cita que sintomas similares ao do climatério masculino (dificuldade de con-centração, fadiga, depressão e choro) podem ocorrer no paciente durante o período de salvas.18 A melatonina é uma indolamina derivada da serotonina, produzida pelos pine-alóticos (células estruturalmente análogas aos cones da reti-na), apresentando níveis normalmente baixos durante o dia e elevados durante o período noturno.19 Em pacientes sálvicos ocorre diminuição da produção deste hormônio, durante a fase de surtos. Baixos níveis de melatonina podem decorrer da diminuição da disponibilidade da serotonina, a qual é ne-cessária para a sua síntese. A diminuição da função sero-toninérgica pode ocorrer na CS que, segundo D’Andrea (apud Nobre, 2001), caracteriza-se por um aumento dos metabólitos da serotonina plasmática que poderia refletir um envolvimento do sistema serotoninérgico central na pato-gênese desta entidade clínica.20

O hipotálamo também é considerado o principal nú-cleo regulador das funções do sistema nervoso autônomo. A estimulação nas regiões ântero-laterais e póstero-laterais hipotalâmicas produz, respectivamente, resposta paras-simpática e paras-simpática.

A via simpática descendente do hipotálamo (via hipo-talâmica-espinal descendente) ao que parece quase não apresenta (ou não apresenta) decussação. Exames de Pet-Scan têm demonstrado ativação hipotalâmica ipsilateral à dor, alteração esta que parece ocorrer apenas na CS e nas outras cefaléias do Grupo III. A via parassimpática des-cendente não é bem conhecida. Esta via contém fibras que emergem do mesencéfalo (núcleo de Edinger Westphal com nervo óculo-motor) e da ponte (núcleo supraquiasmático com o nervo facial). As fibras que emergem da ponte junto ao nervo facial, terminam por inervar as glândulas da mucosa nasal e glândulas lacrimais (fibras eferentes se-creto-motoras), determinando assim a base anatômica dos sintomas cranianos de hiperatividade parassimpática da CS. Assim sendo, ocorreria uma disfunção hipotalâmica que, por sua vez, acarretaria uma disfunção do núcleo supraquiasmático, levando a alterações cronobiológicas do paciente sálvico. Este transtorno do hipotálamo levaria a uma disfunção simpática e também causaria a ativação do sistema trigêmino-vascular (STV). Esta ativação do STV

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levaria a uma inflamação neurogênica do seio cavernoso, mediada por peptídeos vaso-ativos (CGRP) através da condução antidrômica. Pela condução ortodrômica, o es-tímulo passaria pelo núcleo caudado e tálamo, chegando a nível cortical, onde seria dada a sensação de dor. Haveria uma ativação reflexa do núcleo salivatório superior na ponte, tendo como aferente a via trigeminal e como eferente a via parassimpática (sinais de hiperatividade parassimpática). A natureza desta disfunção hipotalâmica ainda não foi elucidada.4

CONCLUSÕES

O aspecto cíclico associado às manifestações disau-tonômicas fazem da CS uma das mais típicas dentre as cefaléias primárias. Em relação aos critérios diagnósticos, lembramos que há vários anos Kudrow já chamava a aten-ção para o fato do paciente sálvico não conseguir perma-necer quieto durante uma crise. Também ressaltamos que a hiper-hidrose decorre de uma hiperfunção simpática e que o edema palpebral e rubor são de ocorrência muito rara. Assim sendo, quando fazemos menção às manifesta-ções disautonômicas associadas ao quadro clínico da CS, devemos falar em hiperfunção parassimpática e disfunção simpática, devendo evitar o termo “hipofunção simpáti-ca”.

Na verdade, segundo Bordini, ambas as hipóteses (central e periférica) utilizam-se basicamente dos mesmos elementos, divergindo-se apenas em relação ao sítio inicial gerador da CS: seio cavernoso ou hipotálamo.21

O mais intrigante aspecto da CS é a sua natureza episódica, da qual deriva o seu nome, aliás, muito bem indicado. As crises “ligam-se” e “desligam-se” como se o paciente fosse uma máquina, na qual vem acoplado um “piloto automático”, respeitando assim algum ritmo que tenha o selo do relógio biológico.

Apesar de ter importante participação na fisiopatologia da CS, o seio cavernoso não se parece digno de atuar como centro gerador de uma das mais complexas, intrigantes e fascinantes entidades clínicas conhecidas pela Medicina. REFERÊNCIAS

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