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José Leon Machado. Jardim sem Muro. Contos na cama e noutros sítios. Vercial. Edições

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Academic year: 2021

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Contos na cama e noutros sítios

Jardim sem Muro

Vercial

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O sonho atrasado e obscuro Do que eu devera ser – muro Do meu deserto jardim.

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O sr. Lindolfo e a esposa costumavam passar quinze dias de férias na Quinta de Pardilhó, nos arredores de Cas-tro Daire. Era um empreendimento de turismo rural de que ambos gostavam devido às boas instalações, à simpatia com que eram tratados pelo pessoal de serviço e sobretudo ao sossego. Depois de um ano de canseiras a administrar o negócio de tintas e vernizes com estabelecimento comercial em Gaia, era com grande prazer que o sr. Lindolfo partia no Mercedes com a Dona Soraia rumo a Castro Daire.

A Quinta de Pardilhó fi cava à face da estrada munici-pal. Atravessava-se uma entrada com o portão sempre aberto e seguia-se por um caminho em terra batida até à recepção. Os hóspedes estacionavam as viaturas sob as árvores à face do caminho ou num telheiro para três lugares. Naquelas férias, porque os lugares do telheiro estavam ocupados, o sr. Lindolfo estacionou o Mercedes debaixo de uma no-gueira, esperando vir a mudá-lo para o telheiro à primeira oportunidade.

Nos dias que passava na quinta, o sr. Lindolfo rara-mente descia à piscina. Enquanto a esposa ocupava as ma-nhãs e as tardes em banhos de sol e de água, ele sentava-se na esplanada em frente à recepção a ler o jornal ou no sofá da sala de convívio a ver televisão. Quando já tinha lido o jornal de ponta a ponta e não lhe apetecia ver televisão, sentava-se à sombra do castanheiro perto do telheiro, num banco de pedra, as pernas estendidas, o cigarro esquecido nos dedos, a observar a paisagem de campos e montes ao longe ou, mais perto, o movimento da piscina e dos hóspedes que passavam.

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Comparava os hóspedes às plantas de um jardim. Cada planta tinha gostos, manhas e caprichos que a distinguiam das demais. A empregada de limpeza fi cara de regar-lhe o jardim da casa dia sim, dia não, enquanto as férias duras-sem, aliás como sempre acontecia. Apesar disso, quando regressava, ia encontrar algumas plantas em muito más condições. É que não bastava regá-las. Era preciso equilibrar a quantidade de água. Não pode ser de mais nem de menos. E depois era preciso ter em atenção a pressão da mangueira, para não remover a terra das raízes. E nisso a empregada era uma descuidada.

De momento, estavam hospedados na quinta, além das galinhas, um galo, três gatos, duas éguas e as rãs do charco ao lado da piscina, um jovem casal com uma miúda de cinco anos, duas senhoras quarentonas com dois miúdos na pré--adolescência, um tipo cabeludo com um miúdo de quatro anos ou à volta disso, e dois pares de namorados, certamente amigos entre si, pois passavam grande parte do tempo jun-tos. Ao todo estavam hospedados na quinta onze adultos, contando consigo e com a esposa, e quatro crianças.

Três dias após a sua chagada, o sr. Lindolfo tinha já uma noção bastante nítida de toda aquela gente, sem ter trocado com a maior parte mais do que os bons dias ou as boas noites. Com os dois pares de namorados nem isso. Eram lisboetas emproados que não saudavam ninguém.

O casal com a miúda de cinco anos era gente educada. A Dona Soraia, quando estava na piscina, costumava conversar com a mãe da criança. Parece que era professora. O marido, mais calado, passava o tempo a ler com os óculos na ponta do nariz um calhamaço de capa negra. Devia ser professor como ela, mas o sr. Lindolfo não estava certo disso. É que ele tinha mais o aspecto de pastor protestante do que de

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professor, sabendo, como sabia, que a leitura de livros não era uma coisa de que normalmente a classe docente gostasse de fazer. A miúda, muito alegre e agitada, brincava com o fi lho do cabeludo, ora dentro ora fora da piscina. Já dava umas braçadas e mergulhava destemidamente. O miúdo ainda não sabia nadar e o pai obrigava-o a vestir um colete salva-vidas que, embora não o deixasse ir ao fundo, atrapalhava-lhe os movimentos na água. Ele bracejava e não saía do sítio. A miúda empurrava-o como a um pequeno barco e ambos divertiam-se imenso com isso.

Era estranho que o pai estivesse hospedado apenas com o miúdo. O mais lógico seria estar também com a esposa. Ali, segundo lhe explicou a Dona Soraia, havia história de divórcio. Era um tipo bastante entroncado, o cabelo castanho comprido aos caracóis e grandes tatuagens nos braços. Se não era um baterista de uma dessas bandas de heavy metal, passava muito bem por um jogador de rêguebi. Deitava-se à sombra de um guarda-sol de lona junto à piscina e dormitava. À noite, deixava o miúdo no quarto a dormir e saía. Era bem provável que fosse até à discoteca mais próxima. Voltava às tantas da madrugada e reparava o sono durante o dia.

Quanto às duas senhoras quarentonas, metia dó olhar para elas, especialmente quando vestiam o fato-de-banho. Uma era animadora cultural e a outra trabalhava no depar-tamento de águas e saneamento de uma câmara municipal. Os miúdos, ele sobrinho de uma e ela fi lha de outra, eram problemáticos. Faziam perrices por tudo e por nada, sova-vam-se entre si e chegaram a ameaçar os outros dois miúdos mais pequenos quando andavam na piscina em mergulhos e natações. O rapaz, no charco ao lado coberto de folhas de nenúfar, dedicava-se a apanhar as rãs e a arrancar-lhes as patas. Num serão em que as duas senhoras se tinham ido

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deitar, o sr. Lindolfo viu os dois catraios na piscina. Estava escuro – a piscina tinha apenas luzes de presença – e ele, que tinha ido dar um pequeno passeio pelo jardim, ouviu uma voz que dizia:

– Não faças isso, que dói.

Aproximou-se da cerca de canas que separava o jardim da piscina, espreitou e viu a mocita debruçada sobre o miúdo estendido numa das espreguiçadeiras. De início não percebeu o que se estava a passar. Ter-se-ia o rapaz magoado e ela estava a ver o que ele tinha? Quando se apercebeu de que não era nada disso, deu meia volta sem que eles se apercebessem e lá os deixou a explorar os segredos do amor.

Quanto às senhoras, depressa descobriu por que razão se iam deitar e deixavam os miúdos sem vigilância, especial-mente junto à piscina, que à noite era um local de perigo redobrado. Assim estariam mais à vontade no quarto que partilhavam. Um serão, sentado sob o castanheiro, viu-as entrar no edifício de mão dada, confi adas de que ninguém as estaria a ver.

Mas para o sr. Lindolfo, os mais estranhos hóspedes da quinta eram os dois casais de lisboetas. Que eram lisboetas, ele não tinha qualquer dúvida. Primeiro pela fala arrebi-cada de simplifi carem os ditongos e de fecharem as vogais abertas; segundo pelo vocabulário estranhíssimo e muitas vezes inglesado que empregavam para nomear as coisas mais corriqueiras; depois por aquelas manias de se mostra-rem educadíssimos e fi níssimos para com os funcionários do hotel e absolutamente insolentes para com os restantes hóspedes que abrissem mais as vogais e que, segundo eles, deviam pertencer à escumalha do norte.

O quarto de um dos casais fi cava por cima do seu e ele e a esposa sentiam-se por vezes incomodados com o barulho.

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Foi aliás esse barulho que levou o sr. Lindolfo a concluir que eles eram realmente gente estranha. Aparentemente, cada casal tinha o seu próprio quarto. No entanto, juntavam-se à noite no quarto que fi cava por cima. Ouviam-se gargalhadas, arrastar de pés e de cadeiras, chiares de cama e, o que era mais curioso, gemidos e gritos. Não os gemidos e gritos habituais de um homem e de uma mulher que bastas vezes se ouviam por esses hotéis portugueses de má construção; mas os gemi-dos e os gritos de dois homens e de duas mulheres. De início, ele não percebia o que se estava a passar. Foi preciso a dona Soraia fazer-lhe um desenho com o dedo no ar. Ele tinha visto sexo em grupo em revistas pornográfi cas mal impressas ou nalgumas cenas de fi lmes de primeiro escalão que ele uma vez por outra visionava à socapa da Dona Soraia. Mas era a primeira vez que assistia esteriofonicamente ao vivo a uma actuação. A Dona Soraia apercebeu-se de que havia qual-quer coisa que não batia certo. É claro que não batia certo, dizia-lhe ele. Dois homens e duas mulheres a comerem-se no mesmo quarto não era uma coisa que estivesse bem. Mas a Dona Soraia não se referia a isso. Era outra coisa.

– O quê? – perguntou o sr. Lindolfo a coçar a virilha debaixo do lençol.

Ela não sabia ao certo. Tinha a ver com o barulho. – O barulho?

O barulho que eles faziam no momento dos trabalhos, tentou explicar ela. Parecia que num momento se ouviam as vozes femininas e no outro as masculinas.

– Isso é porque estão no mesmo rimo – observou o marido.

Se estivessem no mesmo ritmo, contestou a esposa, o barulho haveria de ser diferente.

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notou nada de extraordinário nos gemidos e gritos. Pare-ciam-lhe normais e bem distribuídos.

Nos dias que se seguiram, passou, contudo, a ter os casalinhos debaixo de olho. À hora do pequeno-almoço, costumava encontrar os dois sujeitos na sala a comer torradas e a beber canecas de café. As duas companheiras nunca iam tomar o pequeno-almoço. Enquanto barrava um pedaço de pão com doce de pêssego caseiro, o sr. Lindolfo afi lava o ouvido para captar a conversa. Um deles devia ser dono de uma loja de roupa e o outro era costureiro, pois falavam de coisas que tinham a ver com isso. Sobre os bacanais nem uma palavra.

Os dois lisboetas depois saíam de carro com máquinas fotográfi cas a tiracolo e só apareciam à hora do almoço. Elas, a meio da manhã, desciam à piscina e, sem molhar os pés, estendiam a toalha sobre a relva ou nalguma espreguiçadeira que estivesse livre e deitavam-se ao sol esturricante. Mo-viam-se apenas para mudar de posição, acender ou apagar um cigarro, ou espalhar bronzeador nas costas uma da outra. Ao meio-dia, os outros hóspedes abandonavam a piscina, excepto elas, que ali fi cavam à espera dos marmanjos para irem os quatro almoçar.

Eram ambas altas. Vistas de costas metidas no fato-de--banho, punham qualquer homem normal a salivar. Uma tinha o cabelo liso comprido que prendia com um elástico azul. A outra tinha-o encaracolado como as marroquinas. De frente não eram nada bonitas. Raramente sorriam e uma delas, quando o fazia, mostrava os dentes escurecidos pelo cigarro. O sr. Lindolfo pensava que elas, embora enxutas de carnes, deviam estar mais rodadas do que a carrinha lá da fi rma que ele utilizava para distribuir as tintas e os vernizes. As rugas à volta dos olhos e na comissura dos lábios pareciam

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dar prova disso. À tarde, costumavam levar comida para a piscina. Uma vez levaram um melão de casca verde e come-ram-no sentadas na borda, o sumo a pingar para a água, o que levou alguns hóspedes a fazer comentários indignados que elas ignoraram.

Uma tarde, o sr. Lindolfo teve de ir ao quarto buscar os óculos de que se tinha esquecido. Escutou vozes no quarto de cima. Eram os dois tipos a falar, a rir e a gemer. Sentou-se na cama um pedaço a tentar perceber o que se passava. Os dois parecia que estavam a... Sim, pois claro!, exclamou ele. A Dona Soraia tinha razão. Havia ali alguma coisa que não batia certo. Os dois tipos andavam a comer-se mutuamente e elas se calhar até sabiam. Ou não sabiam?

Depois de ouvir um ronco fi nal, saiu. A meio do corredor, lembrou-se dos óculos. Com o incidente, esque-cera-se mais uma vez deles. Voltou ao quarto e verifi cou, com espanto, que a borga no quarto de cima continuava. Devem ter mudado de posição, conjecturou. Um dava e o outro levava. Agora o que dava leva e o que levava dá. Não esperou muito para ouvir o segundo ronco fi nal.

O sr. Lindolfo era um homem de escassos estudos e, talvez por isso, pouco aberto no que dizia respeito às mo-dernices sexuais. Custava-lhe a aceitar que dois homens se juntassem para gozar os prazeres da carne. Ele sabia que a mariquice não era um sinal dos tempos. Sempre a houve. Num programa de televisão, fi cou a saber que os chimpan-zés, os animais mais próximos do homem, também tinham práticas homossexuais. Por outro lado, não era raro ver os cães vadios da rua onde morava a lamberem-se uns aos outros e a encavalitarem-se simulando o coito na falta de fêmea. A Bíblia também falava nisso. Deus não destruiu Sodoma e Gomorra por causa dessas porcalhices?

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Seria a sodomia de homem com homem mais excitante do que de homem com mulher? O sr. Lindolfo admirava-se como podiam aqueles dois tipos andar a sodomizar-se um ao outro quando tinham dois mulherões onde podiam satisfazer todos os caprichos sexuais. O mais provável, pensou, era as duas andarem a esfregar-se uma na outra. Não se admiraria nada de que assim fosse.

Ele sabia que num jardim, entre as plantas, podiam surgir ervas daninhas. Não havia monda ou herbicida que as erradicasse defi nitivamente. O tratador virava as costas dois ou três dias aos canteiros e lá começavam elas a arrebitar os cornos verdes cheios de viço. As chamadas plantas benignas, se não se tratassem, defi nhavam e acabavam por sufocar no meio das ervas daninhas. Estas vingavam e multiplica-vam-se sem qualquer tratamento especial. Os manuais de jardinagem explicavam que um jardim sem muro era mais propenso ao ataque das ervas daninhas. Com um muro alto, era mais difícil as sementes disseminarem-se pela acção do vento. Por outro lado, a sombra do muro impedia a pro-liferação dessas ervas que, por serem endémicas, preferiam o sol. Havia espécies de plantas ornamentais que se davam bem à sombra e os manuais aconselhavam o seu plantio. Nada disto, porém, era exacto. Apesar do muro, no jardim do sr. Lindolfo proliferavam os dentes-de-leão, as leitugas, as macelas e os beldros. Enquanto isso, as rosas, as petúnias e os amores-perfeitos, se não fossem constantemente vigia-dos, estiolavam.

O jardim humano, mesmo assim, era bem mais complexo. Os muros que a sociedade foi construindo para salvaguardar uma pretensa moral iam desabando. Nenhum herbicida, nenhuma monda seria capaz de expurgar os den-tes-de-leão da sociedade. Simplesmente porque deixaram de

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ser considerados ervas daninhas. São ervas entre outras, com a sua especifi cidade, as suas características próprias, fruto dos mil caprichos da natureza.

Foi a pensar nisto que o sr. Lindolfo passou o resto daquela tarde, sentado à sombra do castanheiro a chupar cigarros com baixo teor de nicotina e alcatrão. Andava a ten-tar parar de fumar, embora tivesse a certeza de que nunca o conseguiria, talvez por falta de verdadeira vontade e porque, além das fl ores e do pensamento, o cigarro era a companhia que mais o distraía. E depois porque achava que já não valia a pena. Teria, quê?, mais dez anos de vida? Se o pulmão es-querdo se aguentasse, disse-lhe o médico, talvez mais quinze. O mais provável era morrer de um acidente de viação.

A esposa lá estava na piscina, deitada de costas numa espreguiçadeira, em conversa com a mulher do pastor, senta-da noutra ao lado. Tinha umas belas mamas, ou pelo menos parecia. O pastor, ou lá o que era, continuava, à sombra de um guarda-sol, a leitura do calhamaço de capa negra. Assim passava aquele tipo os dias de férias, a olhar para as letras do livro como se lá estivesse guardada a explicação dos mistérios da vida. Não seria muito mais esclarecedor olhar à volta? Tantas folhas de papel se enchiam inutilmente de parvoíces que faziam inchar de vaidade os seus autores, esses pobres diabos que imaginavam ser os únicos e autênticos intérpretes da vida e dos seus mistérios!

As duas quarentonas desciam agora até à piscina. De-vem ter ido dormir a sesta, provavelmente na mesma cama. Ao passar, cumprimentaram o sr. Lindolfo. Pelo menos eram educadas. Que importância tinha se andavam a consolar-se uma à outra? O mais importante era cada um ser feliz, ou tentar sê-lo. Ele era um homem razoavelmente feliz. Tinha uma mulher carinhosa e, apesar dos cinquenta e dois, ainda

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elegante. Os fi lhos estavam criados e não davam consumi-ções. Não lhe faltava dinheiro, tinha uma boa casa, um carro potente e confortável, que mais queria? Era difícil ser-se feliz sabendo-se que se está em contagem decrescente. Mas não está todo o ser humano, desde que nasce, em contagem decrescente? Por vezes pensava como seria o momento de morrer. Provavelmente não sentiria nada. Estaria a dormir, drogado pelos médicos, que não gostam que ninguém no hospital se passe para o outro lado aos gritos, para não per-turbar os outros doentes.

Mas não queria pensar agora nisso. Em casa, quando por vezes a morte lhe vinha à ideia, ia cavar para o jardim. Saía de lá retemperado. Era isso o que lhe faltava naquelas férias. Haveria de pedir ao gerente da quinta autorização para, nos dias que ainda ali passaria, tratar do jardim. Nos pequenos passeios que ia fazendo, constatava o seu abando-no. A erva daninha crescia abundante entre as roseiras; as dálias e as zínias secavam com a falta de rega e as ervilheiras, a abarrotar de semente, pediam que as arrancassem. Sempre era preferível vigiar e cuidar um jardim de plantas, mesmo sem muro como aquele, do que andar a espiar os outros hóspedes, embora, considerava, não fosse tão divertido. Era sem dúvida mais saudável.

Ergueu-se do banco de pedra, esmagou a prisca e foi procurar o gerente.

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A olhar para a chuva

Um sábado à tarde, o Santos levou o fi lho ao tai kondo e, enquanto esperava, foi dar um passeio pelo parque junto ao rio. Para se distrair, comprou uma revista de Informática num quiosque perto do local onde estacionou o carro. Cho-vera bastante durante a manhã, as árvores e a relva estavam húmidas e nalguns pontos havia poças de água. O céu mantinha-se acinzentado, com as nuvens a correr ligeiras para o interior.

O Santos gostava de caminhar junto à margem do rio, onde havia um passeio empedrado. Ia levantando uma vez por outra os olhos das páginas da revista para olhar o rio, naquele dia bastante caudaloso e de águas barrentas. Os patos e os gansos que costumavam ser um ponto de atracção estavam na outra margem, aninhados e olhando desconsolados a corrente acastanhada.

Havia pouca gente por ali. Cruzou com um senhor idoso, encolhido numa gabardina, um par de rapazes de fato-de-treino a fazer corrida de manutenção, uma senhora que andava a passear o cão vestido de casaco impermeável, e um homem que procurava trevos de quatro folhas na relva mal tratada. Mas o que mais lhe chamou a atenção foi uma rapariga que se dirigia apressadamente para o rio. Viu-a de perfi l, a uns vinte metros. Vestia uma saia ligeiramente comprida, branca e de um tecido leve e esvoaçante. A blusa era preta e combinava com o branco da saia num contraste que fazia ora lembrar um tabuleiro de xadrez, ora o ying e o

yang. Parou a observá-la.

A rapariga aproximou-se da margem e desceu até um pequeno ancoradouro de madeira suspenso nas águas onde

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no Verão se podia alugar um pequeno barco de passeio. Depois sentou-se num dos degraus, tirou as botas, arregaçou a saia e meteu os pés na água.

O Santos retomou a marcha e foi-se aproximando. Estava agora a uns dez metros. Ela olhava para a outra margem. Estaria a sentir-se bem?, perguntou-se o Santos. Estava demasiado frio para alguém se pôr ali a molhar os pés. Sempre com a rapariga debaixo de olho, foi andando para cima e para baixo ao longo da margem.

Os dois rapazes da corrida de manutenção viram-na e dirigiram-se para o ancoradouro a armarem-se em galãs. A sua entrada abrupta e barulhenta fez estremecer o anco-radouro, mas ela manteve-se imóvel e alheada. Eles deram meia volta e afastaram-se.

O Santos pôs-se a refl ectir no comportamento da ra-pariga. Por que iria ela lembrar-se de meter os pés na água? Se fosse num dia de calor, ainda se poderia compreender. Mas num dia chuvoso e frio como aquele, era um disparate. Começava a pensar se a moça não estava transtornada com alguma coisa. Talvez se tivesse zangado com o namorado e fosse ali desafogar as mágoas. Mas molhar os pés no rio não era a melhor forma de desafogar mágoas de amor. O mais certo era apanhar um resfriado.

A rapariga deve ter estado uns dez minutos sentada, de olhar ausente. O Santos viu-a por fi m a tirar os pés da água e a limpá-los àquilo que lhe pareceu ser um lenço de papel que retirou da pequena bolsa que levava. Enquanto calçava as botas, pôde admirar-lhe a brancura das pernas e das coxas. A rapariga, ou pensava que estava ali sozinha, ou não se importava que alguém a estivesse a ver. Já com as botas calçadas, deixou-se estar mais alguns minutos a olhar em frente como se na outra margem, além dos salgueiros e

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dos patos, houvesse algo mais que lhe prendesse a atenção. Foi por essa altura que um tipo de bicicleta desceu o ancoradouro. Deve tê-la visto ao longe e decidiu exibir-se com umas piruetas. A manobra foi sufi cientemente arriscada para ele, ao dar a volta, quase cair ao rio. Ela ignorou-o.

O Santos reduziu a distância das idas e vindas para poder tê-la debaixo de olho. A rapariga podia lembrar-se de se atirar ao rio e ele, embora não lhe agradasse ter de se meter na água barrenta e fria para a salvar, entendia ser esse o seu dever. Nas páginas abertas da revista sobre um artigo da nova versão do sistema Linux, descobriu entretanto duas pingas, depois três. Ali próximo havia um grande plátano e dirigiu-se para lá antes que a chuva começasse a cair a sério. Já sob a protecção da árvore, viu a rapariga a levantar-se, endireitar a saia e abandonar o ancoradouro. O Santos pensou que ela continuaria em frente, por onde viera. Mas ela acabou por voltar à esquerda em sua direcção. Começou a chover intensamente e a rapariga dirigiu-se à pressa para debaixo do plátano com a pequena bolsa sobre a cabeça.

O velhote, a senhora do cão e o colector de trevos tinham desaparecido. Os dois rapazes da corrida de ma-nutenção aceleraram por entre as árvores do parque e o da bicicleta pedalava num sprint ao longo da margem para fugir à borrasca.

Enquanto a rapariga se aproximava, o Santos pôde vê-la de frente. Tinha a cara miúda, os lábios eram carnudos e estavam pintados de vermelho escuro. O cabelo, castanho, era não muito longo e apresentava caracóis nas pontas. Não devia ter mais de vinte anos e era, segundo os padrões e gostos do Santos, uma bela rapariga.

Quando ela chegou ao plátano, o Santos desviou-se um pouco para lhe dar espaço e estiveram os dois por alguns

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momentos a olhar para os ramos que impediam a água de passar. À volta, a chuva desabava em grandes bátegas. Daí a pouco, o plátano começou a escorrer água e as pingas caíam nas cabeças de ambos. O Santos cobriu a dele com a revista. A rapariga encolheu-se, com os braços cruzados no peito. A bolsa era inútil e tinha-a posto ao ombro. Por gentileza, o Santos decidiu separar a revista em duas partes e ofereceu-lhe uma. Ela aceitou e cobriu a cabeça, agradecendo com um sorriso discreto.

– Nestes dias, é um erro sair de casa sem guarda-chuva – comentou o Santos.

– Esse é um erro pequeno e sem grande importância – acrescentou a rapariga.

– Sempre se pode apanhar uma gripe – contrapôs o Santos.

– Há erros de consequências bem mais graves. As suspeitas do Santos pareciam confi rmar-se. A moça tinha um problema qualquer e fora até ali para desanu-viar. Gostaria de perguntar-lhe o que se passava. Mas não lhe pareceu ser a melhor estratégia. Ela podia muito bem dizer-lhe que não era da sua conta. Por isso, optou pelo comentário.

– Os erros têm remédio. Veja a menina que nos esque-cemos do guarda-chuva e acabámos por solucionar o pro-blema abrigando-nos debaixo desta árvore e improvisando um resguardo com a revista que eu trazia para ler.

– Devemos parecer ridículos com isto na cabeça. – A menina a mim não me parece ridícula. Pareço-lhe eu ridículo?

– Parece – respondeu ela com um breve sorriso. – Deve ter razão. Os chapéus nunca me fi caram bem. Especialmente os que têm forma de telhado.

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Ambos riram discretamente da piada.

O Santos reparou que a roupa que ela trazia vestida era de cerimónia. A blusa, a saia, as botas, a bolsa, o colar, as pulseiras e os anéis não eram coisas para andar no dia-a-dia. Como era sábado, considerou o Santos, era provável que tivesse ido a um casamento.

– Hoje está um dia péssimo para casamentos – co-mentou, dando um tiro no escuro.

– A quem o diz! – respondeu ela.

Bingo!, disse para consigo o Santos. Depois voltou-se para ela e acrescentou:

– Diz-se que casamento com chuva é felicidade até à morte.

– Tanto quanto sei, isso aplica-se aos noivos, não aos convidados.

– Sim, deve aplicar-se aos noivos. Mas a felicidade dos noivos, parece-me, também é a felicidade dos convidados.

– Depende. Pode haver entre os convidados alguém que não queira bem aos noivos.

O Santos preferiu não comentar. Seria ela uma das convidadas que não queria bem aos noivos? Talvez a noiva fosse sua irmã ou prima e ela estivesse apaixonada pelo noivo e houvesse ali um caso de ciúmes. Desse modo se explicava o estranho comportamento da rapariga, que foi até ao rio desafogar as mágoas e o ressentimento.

– Eu sei no que está a pensar – disse ela depois de cerca de meio minuto de silêncio.

O Santos mexeu o sobrolho interrogativamente. – O senhor...

– André Santos. Mas pode tratar-me por André. – Matilde.

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– Eu ia a dizer que sei no que estava a pensar. – E no que estava eu a pensar?

– Que eu sou uma pessoa que quer mal aos noivos. – Longe de mim pensar isso de si, Matilde!

– Pois fi que o André a saber que eu realmente quero mal aos noivos.

Houve mais meio minuto de silêncio. A chuva conti-nuava a cair e as pingas que escorriam por entre a ramagem do plátano tornavam-se mais pesadas e frequentes.

– Talvez tenha exagerado. Eu não quero mal ao noivo. Ele não tem culpa – continuou a Matilde olhando o chão molhado. – Mas ela... ela é uma traidora e uma ingrata.

– A Matilde não precisa de se atormentar com isso. Homens há muitos. E bonita como é, de certeza que não terá difi culdade em arranjar um novo namorado.

– Namorado? Eu quero lá um namorado!

– Imagino que deve estar a passar um período difícil. Eu também já passei por isso, sabe?

– Já?

– Sim, já. Quanto eu tinha a sua idade, apaixonei-me por uma rapariga. Chegámos a namorar uns meses. Mas de-pois ela entrou para a universidade, passámos a ver-nos com menos frequência e ela arranjou outro. Eu sofri muito com isso. Mas acabei por esquecer. Conheci uma outra rapariga e casámos. É a mãe do meu fi lho.

– É uma bonita história. Até parece das telenovelas. O problema é que não tem nada a ver comigo.

– Mas a Matilde não disse?...

– O André vai-me desculpar, mas não percebeu nada.

– Pelos vistos não percebi.

– Os homens nunca percebem nada. E é tudo tão simples...

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A rapariga retirou da cabeça as páginas da revista e sa-cudiu a água. Tinha as pontas do cabelo molhadas. O Santos, que não fi cou ofendido com as maneiras dela, disse:

– Estamos aqui a abrigar-nos da chuva e só por mero acaso é que começámos a falar. Logo que a chuva pare, cada um vai à sua vida. É bem provável que nunca mais nos encontremos. Se quiser contar-me o que lhe vai dentro, pode fazê-lo.

– E para que haveria de contar? – Para se sentir melhor.

– Mas eu não me quero sentir melhor.

– A Matilde lá sabe. Fiquemos então calados a olhar para a chuva.

Duas adolescentes passaram debaixo do mesmo guarda-chuva agarradas uma à outra. Pareciam divertir-se no meio da chuva. O Santos achou insólito o olhar que a Matilde lhes deitou e só então começou a compreender.

As miúdas entretanto desapareceram. Eles devem ter fi cado ali mais uns cinco minutos até que a chuva diminuísse de intensidade. Foi nessa altura que a Matilde estendeu ao Santos o pedaço da revista e lhe disse:

– Obrigada. Tenho de ir.

– Espere mais um pouco. A chuva ainda não parou e vai de certeza molhar-se.

– Não tem importância. A festa da boda já deve ter terminado e eu vou para casa.

– Se quiser que eu a acompanhe... – Está a atirar-se a mim?

– Oh, não! Compreendeu-me mal. – Então quer dizer que eu não o atraio?

– É claro que me atrai. É uma bonita rapariga, já lhe disse. Mas eu não me atiro a todas as raparigas bonitas que

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conheço. E muito menos às que estão com problemas. O que eu queria dizer era que poderia acompanhá-la. Tenho de ir buscar o meu fi lho à aula de tai kondo e talvez o meu caminho seja o seu.

– Não creio.

– Então leve o pedaço da revista. Sempre resguarda a cabeça.

– Se a molhar um pouco mais, talvez aclare as ideias.

– Não vai fazer nenhum disparate, pois não? – Por que diz isso?

– Pela conversa que tivemos, não me parece que a Matilde esteja bem.

– O facto de não estar bem não quer dizer que eu faça um disparate. E para o tranquilizar, digo-lhe o que penso fazer quando chegar a casa: vou despir esta roupa e meter-me na banheira com a água bem quente a dar-me pelo queixo.

– É uma boa ideia. Mas sugiro que não se deixe ador-mecer. Pode afogar-se.

A Matilde disse com um ar atrevido e pouco sincero: – Se o André quiser fazer-me companhia, não me importo de partilhar a banheira consigo. De certeza que assim não adormeceria.

– Tenho de ir buscar o meu fi lho... – respondeu o Santos com algum embaraço.

– E se não tivesse, fazia-me companhia? – perguntou ela desafi adora.

O Santos ponderou alguns segundos e depois res-pondeu:

– Não, acho que não. – E porquê?

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Matilde gostaria de ter. Especialmente numa banheira. Ela sorriu e disse:

– Obrigado por me ter feito companhia debaixo desta árvore. Não é a mesma coisa que numa banheira. Mas não deixou de ser interessante.

– O prazer foi meu.

A rapariga afastou-se e caminhou apressada ao longo da margem. A cerca de cem metros, parou, olhou o rio e o Santos pensou o pior. Iria atirar-se à água barrenta? Viu-a estender o braço e a atirar qualquer coisa à água. Devia ser um objecto pequeno. Talvez um dos vários anéis que levava nos dedos ou qualquer coisa do mesmo tamanho. Depois voltou-se para o lado do plátano, levantou a mão a dizer adeus, atravessou o parque e desapareceu entre as árvores.

Referências

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