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Brasil

Leite, Suely; Camardella Rio Doce, Cláudia

A CONFIGURAÇÃO DO FANTÁSTICO NO CONTO “A SEGUNDA VIDA”, DE MACHADO DE ASSIS

Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 27, septiembre, 2016, pp. 4-13 Laureate International Universities

Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454260002

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A CONFIGURAÇÃO DO FANTÁSTICO NO CONTO “A

SEGUNDA VIDA”, DE MACHADO DE ASSIS

THE FANTASTIC CONFIGURATION ON THE SHORT STORY

“A SEGUNDA VIDA”, BY MACHADO DE ASSIS

Suely Leite1 Cláudia Camardella Rio Doce2

RESUMO: Esse artigo tem como objetivo analisar a configuração do fantástico no conto “A segunda vida”, de Machado de Assis. Para tanto, nos apoiaremos em Todorov, Roas e Furtado e também lançaremos mão de algumas ideias da topoanálise proposta por Bachelard, já que é a partir do espaço que a hesitação entre natural e sobrenatural ocorre. Com isso, podemos perceber que a constituição do fantástico marca a fratura da racionalidade, uma vez que, ao trabalhar com a loucura e o pesadelo, mostra a angústia do sujeito.

Palavras-chave: Literatura fantástica, conto, Machado de Assis.

ABSTRACT: This article aims to analyze the fantastic configuration on the short story "A

segunda vida", by Machado de Assis. Therefore, we will support our reading in Todorov, Roas and Furtado, and we will also bring in some ideas of topoanalysis proposed by Bachelard, since it is from space that hesitation between natural and supernatural occurs. With this, we can see that the constitution of the fantastic breaks rationality, once working with madness and nightmare shows the anguish of the subject.

Keywords: Fantastic Literature, short story, Machado de Assis.

David Roas, ao tentar explicar o medo no gênero fantástico, lembra-se da cena de um filme chamado A troca (1979). O filme é sobre uma casa assombrada pelo espírito de um garoto que morreu ali há muitos anos. O clima opressivo se estabelece diante de barulhos e objetos que se movem de maneira inexplicável. A cena que serve de exemplo para Roas é a de um personagem que se encontra sozinho na casa, trabalhando em seu escritório, quando ouve um barulho na escada. Vai até lá e se depara com uma bolinha rolando escada abaixo. O personagem pega a bola, entra no carro e a joga dentro de um rio, ao atravessar uma ponte. Quando volta para casa, no entanto, a bolinha está novamente rolando escada abaixo, só que molhada. Roas, então, diz que além de causar medo, o que foi narrado escapa a qualquer explicação. “Afirmar que a causa é o fantasma do menino morto [...]

1 Professora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual

de Londrina e docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEL. Doutora na área de Letras. E-mail: suelyleite@uel.br.

2 Professora de Literatura Brasileira e Teoria Literária na Universidade Estadual de Londrina. Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: claudiariodoce@uel.br.

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não explica nada, já que vai além da nossa ideia do real. Entretanto, o problema essencial é que a bolinha é algo que está aí, diante dos olhos do personagem (e diante dos nossos)” (ROAS, 2001, p. 133).

Experimentamos sensação semelhante ao lermos “A segunda vida” de Machado de Assis, texto que foi originalmente publicado na Gazeta

Literária, em 1883 e, um ano mais tarde, compilado em Histórias sem data. Ao

contrário do filme, o que assombra o Monsenhor Caldas não é exatamente um fantasma, mas um homem que julga ser louco e que se diz vivendo uma segunda vida, já que morreu e foi obrigado a voltar à Terra. Nesse caso, se não é louco é “fantasma encarnado”. É mais fácil aceitá-lo como louco, pois é mais apaziguador. Mas o clímax da história, que está no final do conto, coloca em xeque nossa credulidade nas coisas apaziguadoras: enquanto José Maria avança sobre o padre, “Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés” (Assis, 1989, 74). O medo, portanto, não se instaura pelo que é palpável, mas ao contrário, pelo impalpável, porém igualmente aí: a revelação de forças imateriais que regem a matéria, ferindo nossa ideia do real.

Apresentado como “louco” desde o início da narrativa, o universo fantasioso de José Maria nos intriga, mas não agride nossa ideia de real, já que o rótulo justifica previamente qualquer coisa que ele venha a falar ou fazer. Não esperamos coerência ou sensatez de sua parte. Pelo contrário. Mas a inexplicável luta que se ouve em um plano superior, no final do conto, nos faz duvidar de que a história narrada pelo protagonista seja apenas fantasia de um lunático. A manifestação do plano superior inverte a lógica da narrativa, pois o que acreditamos ser “real” não passa de um jogo de aparências que dissimula o jogo de forças entre o palpável e o impalpável.

Nesse sentido, a narrativa é extremamente irônica, pois trabalha com a inversão, em diferentes níveis, de determinadas crenças cristalizadas no senso comum. A narrativa de José Maria ganha credibilidade com a manifestação de forças invisíveis; já o padre, de quem poderíamos supor uma credulidade nas coisas ocultas, é o primeiro a duvidar delas. A revelação, para ele, embora venha tarde, questiona a validade de sua (e da nossa) percepção da realidade. Da mesma forma, a experiência, que é tida normalmente como boa, revela-se perniciosa no decorrer do conto. E o código ou norma que rege o mundo imaterial tratado não segue nenhum tipo de lógica reconhecível, mas o mais absoluto acaso, o que também parece assustador. A inquietação causada, então, não é somente pela revelação de algo desconhecido, mas principalmente porque, sendo regido pelo acaso, jamais se tornará conhecido. Reportemo-nos para os acontecimentos do conto para nos explicarmos melhor.

Já o título, “A segunda vida”, nos indica a atmosfera insólita e mágica com a qual iremos nos deparar. A referência a uma segunda vida aponta para

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Leite, S.; Rio Doce, C. C. A configuração do fantástico no conto “A segunda vida”, de Machado de Assis. Nonada: Letras em Revista, n. 27, vol. 2. Setembro de 2016. pp. 4-13.

o extranatural, para o fantasioso. O conto começa com o narrador nos relatando sobre as providências de Monsenhor Caldas ao perceber que está diante de um lunático: “João, vai ali à estação de urbanos, fala da minha parte ao comandante, e pede-lhe que venha cá com um ou dois homens, para livrar-me de um sujeito doido”. (ASSIS, 1989, p. 68). Instaura-se a tensão entre o padre e o seu interlocutor: “era um homem de trinta e poucos anos, pálido, com um olhar ora mole e apagado, ora inquieto e centelhante” (ASSIS, 1989, p. 68). Os personagens são, assim, apresentados: um religioso e um louco. Há, logo no início, um deslocamento espacial, uma vez que a narração é iniciada na casa do padre, portanto um espaço delimitado, comum ao fantástico que busca a verossimilhança junto ao leitor. O deslocamento das personagens (quer seja em sentido real ou imaginário) para outros ambientes é iniciado em lugar reconhecível para conferir o aspecto de real ao conto. A casa do padre é seu espaço de abrigo, conforto e intimidade, em contraposição ao universo exterior. No entanto, é invadido pelo discurso de José Maria, que narra a trajetória percorrida por sua alma depois de ter morrido. A alma de José Maria poderia ser o que há de mais íntimo seu, mas transita pelo cosmos e volta à Terra, sendo absorvida pela exterioridade e tornando-se novamente privada da personagem. O exterior – universo – invade, portanto, a interioridade de José Maria e a do padre de forma indireta, através de relatos pouco críveis. Quando José Maria conta a sua chegada ao céu, a narrativa adquire um aspecto insólito revelando o estado psicológico do protagonista, intensamente marcado pela fantasia, pelo sonho e pelo devaneio.

Segundo Bachelard,

O devaneio se alimenta de espetáculos variados, mas por uma espécie de inclinação inata contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular, que o devaneio põe o sonhador fora do mundo mais próximo, diante de um mundo que traz a marca do infinito. (BACHELARD, 1978, p. 316)

É o que percebemos no relato de José Maria, cuja alma, logo depois de sua morte, rapidamente voa e, deixando a Terra, atinge o espaço, saindo do espaço próximo e reconhecível para o longínquo espaço do além. Refletindo sobre a imensidão, Bachelard ainda nos diz que “como o imenso não é um objeto, uma fenomenologia do imenso nos enviará sem rodeios a uma consciência imaginante” (BACHELARD, 1978, p. 317).

A atitude do Monsenhor frente ao que é contado pelo homem é de medo e descrédito. A demência de José Maria representa uma ameaça ao religioso:

Mas o desconhecido teve um assomo de raiva, que meteu medo ao pacato clérigo. Que podiam fazer ele e o preto, ambos velhos, contra qualquer agressão de um homem forte e louco? Enquanto

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esperava o auxilio policial, Monsenhor Caldas desfazia-se em sorrisos e assentimentos de cabeça, espantava-se com ele, alegrava-se com ele, política útil com os loucos, as mulheres e os potentados. (ASSIS, 1989, p. 68).

José Maria descreve para o Monsenhor a sua primeira vida e o processo pelo qual conseguiu voltar à Terra, e sua história passa a ser para o padre e para o leitor algo incompreensível no mundo real. No entanto, essa narrativa incompreensível é uma “verdade” que se apresenta como restrita a José Maria, não violando as fronteiras do que projetamos e aceitamos enquanto real. A loucura de José Maria é o elemento mediador, é o que estabelece os limites entre o real e o irreal. A narração prossegue com José Maria contando ao clérigo como chegou à segunda vida. O fato estranho que a personagem narra oscila entre a loucura e a lucidez.

O conto se apresenta como um diálogo entre Monsenhor Caldas e José Maria, com poucas interferências do narrador, que descreve algumas cenas. O narrador reitera a visão de Monsenhor Caldas de que José Maria é louco. Portanto, embora a fala de José Maria predomine em quase toda a história, ela já está desautorizada desde o princípio, pois nos aparece sob o signo da loucura. É importante ressaltar que nós, leitores, em nenhum momento duvidamos da loucura do personagem pois, além do teor fantasioso de suas histórias, seu comportamento instável e singular só parece fortalecer esta descrição. O narrador, que iniciara o relato, rapidamente cede a voz a José Maria e, consequentemente, transfere-lhe a responsabilidade do equívoco, eximindo-se da tarefa de proporcionar qualquer compreensão dos fatos. Ao protagonista é atribuída a veiculação de um relato fantástico, regido segundo o olhar de outra realidade, a imaginária, cujo universo ambíguo é estruturado em imagens oníricas e fantasiosas. Assistimos a um embate entre interior e exterior: Monsenhor Caldas abre-se ao exterior ao receber José Maria para escutar-lhe as aflições. Mas se fecha a ele quando vê sua integridade física ameaçada, e solicita ajuda policial para livrar-se de sua presença. José Maria, por sua vez, procura o padre em busca de conselho. Abre-lhe, assim, a intimidade e permanece receptivo às opiniões do religioso. Por outro lado, permaneceu fechado em seu universo interior por toda a segunda existência, razão pela qual se encontra desesperado e procura o conselho do padre.

O motivo pelo qual a alma de José Maria recebe o dever de voltar a uma nova vida (note-se que a alma de José Maria não queria voltar à Terra, mas não lhe foi dada a liberdade da recusa) também apresenta-se como algo insólito. Ele não é escolhido por merecimento, nem para que possa cumprir uma missão, evoluir espiritualmente, é por mera coincidência de ser ela a milésima alma a adentrar “no novo sol, que é o planeta dos virtuosos da Terra”

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Leite, S.; Rio Doce, C. C. A configuração do fantástico no conto “A segunda vida”, de Machado de Assis. Nonada: Letras em Revista, n. 27, vol. 2. Setembro de 2016. pp. 4-13.

(ASSIS, 1989, p. 69). José Maria ao voltar para a Terra em uma nova condição, faz a tessitura textual ganhar os contornos do fantástico que passa pelo desdobramento de personalidade, o duplo. Tendo a oportunidade de escolher de que forma voltaria, José Maria impõe uma condição: a de viver uma nova existência protegido pela experiência. Já na Terra, em vez de ser favorecido por essa condição, ela acaba se tornando um fardo, pois sabendo de antemão as possíveis consequências de seus atos, deixa de aproveitar a vida:

(...) para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento. (ASSIS, 1989, p. 70)

Disso, podemos concluir que possuir o conhecimento das coisas exige um ônus. Em uma guerra travada entre a sua interioridade e o mundo exterior, José Maria perde a razão. Possuindo as experiências da vida anterior, a personagem se fecha a novas experiências, ao exterior. Esse fechamento, no entanto, ao mesmo tempo em que lhe protege das coisas ruins, impede-o que viva as boas. José Maria torna-se apenas um espectador da existência. A imagem que lhe define a vida, formulada pelo padre e aprovada por ele, é a de um pássaro batendo asas, mas amarrado pelos pés. Torna-se, então, perceptível o desespero do personagem que não tem como escapar da situação.

Filipe Furtado (1980) aponta estratégias empregadas pelo fantástico, como por exemplo a opção por personagens consideradas respeitáveis e idôneas para atestar a veracidade do acontecido, representadas por figuras que impõem respeito pela idade, pela sabedoria ou pelo estatuto social. O diálogo entre Monsenhor e José Maria pode ser visto como um embate entre o senso comum e o que não tem explicação. No conto “A segunda vida”, há o relato de uma experiência insólita que é trazida para o espaço de intimidade de um religioso. O tema central da conversa entre as personagens, é a conduta humana.

Ao chegar à idade adulta, José Maria conhece Clemência, por quem se apaixona. Resistindo ao casamento, pois o amor pode terminar cedo e por inúmeras razões, José Maria acaba cedendo ao sentimento e se casando. Até esta parte do conto, José Maria narra ao Monsenhor Caldas apenas as coisas que tinha deixado de fazer na vida, e não as coisas que tinha feito. O casamento, portanto, inaugura uma “nova fase” da segunda vida da personagem, pior do que a primeira, pois seus sustos com o que pode vir a ser aumentam expressivamente. José Maria diz mesmo que é aí que começa o “trágico” da história, e que a experiência o levou “ao sangue”. Percebemos claramente que é no momento em que José Maria rompe com a proteção de

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estar enclausurado em seu universo interior e abre-se ao exterior (mas também a uma convenção social, ou seja, o senso comum), no momento em que o pássaro finalmente alça voo, é que as coisas pioram consideravelmente. A personagem anuncia que irá contar “o caso do sangue”, e narra um sonho que teve com o diabo:

Sonhei que o Diabo lia-me o Evangelho. Chegando ao ponto em que Jesus fala dos lírios do campo, o Diabo colheu alguns e deu-mos. “Toma, disse-me ele; são os lírios da Escritura; segundo ouviste, nem Salomão em toda a pompa, pode ombrear com eles. Salomão é a sapiência. Sabes o que são estes lírios, José? São os teus vinte anos.” Fitei-os encantado; eram lindos como não imagina. O Diabo pegou deles, cheirou-os e disse-me que os cheirasse também. Não lhe digo nada; no momento de os chegar ao nariz, vi sair de dentro um réptil fedorento e torpe, dei um grito, e arrojei para longe as flores. Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: “José Maria, são os teus vinte anos.” Era um gargalhada assim: - cá, cá, cá, cá, cá... (ASSIS, 1989, p.74).

Ora, a passagem do evangelho que o diabo lê no sonho de José Maria faz parte do sermão da montanha, tido por muitos como uma espécie de resumo dos ensinamentos acerca do reino de Deus. Extremamente moralista, um dos tópicos explorados pelo sermão é o dos falsos profetas que, comparados aos loucos, constroem suas casas sobre a areia, tornando-as frágeis e vulneráveis, condenando-as a ruína. Uma série de questionamentos poderiam ser feitos a partir disso. Seria o Monsenhor Caldas um padre sem fé? Poderia ele ser equiparado ao desequilibrado José Maria? Porque o diabo estaria lendo os ensinamentos do reino de Deus? O conto não nos fornece elementos suficientes para respondermos a estas questões. De qualquer forma, o trecho que fala sobre os lírios do campo, termina da seguinte maneira: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas [alimentos, roupas] vos serão dadas de acréscimo. Não queirais, pois, andar demasiadamente inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de amanhã cuidará de si; a cada dia basta o seu cuidado" (MATEUS 6: 33-35). O sonho, então, se apresenta como uma alegoria do próprio conto. O lírio é sempre associado à inocência, pureza e verdade. Os lírios do sonho são os vinte anos de José Maria, e estão estragados. Em outras palavras, a experiência estragou a juventude de José Maria, porque tirou dela a pureza e a inocência, e deu-lhe, no lugar, excesso de preocupação com o vir a ser. Esse excesso de preocupação, por outro lado, ou o desejo de nascer experiente, demonstra falta de confiança nos desígnios divinos, ou seja, falta de fé.

Ao acordar, a primeira coisa que José Maria vê são os olhos de sua mulher. Ela, aflita, está ajoelhada diante dele (gesto de súplica ou devoção?), mas ele desvairadamente associa seus olhos com o mal e enlouquece. O que

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Leite, S.; Rio Doce, C. C. A configuração do fantástico no conto “A segunda vida”, de Machado de Assis. Nonada: Letras em Revista, n. 27, vol. 2. Setembro de 2016. pp. 4-13.

acontece depois não se sabe, são apenas sugestões que levam o leitor a acreditar em um possível assassinato (afinal, está narrando “o caso do sangue”). Neste momento, José Maria transtornado, avança sobre Monsenhor Caldas. O sonho invade a realidade e a figura do diabo parece se misturar à figura de José Maria que se coloca em posição de ataque ao padre.

David Roas afirma que um motivo típico do gênero fantástico é a existência de uma figura que se apodera da vontade dos personagens e os conduz ao crime (2001, p. 135), e chama de fatalidade ao efeito catastrófico que o fenômeno impossível tem para os protagonistas da história, visto que os leva à morte ou à loucura.

Percebemos, então, ao final da história, que o universo interior de José Maria sobrepuja as outras realidades, rompendo finalmente com a fronteira e causando a hesitação das outras personagens, bem como do leitor. Esta hesitação é explicada por Todorov, que define a literatura fantástica justamente como a hesitação que o leitor experimenta ao se deparar com um acontecimento sobrenatural na narrativa, sem saber se crê no fenômeno que se apresenta como algo sobrehumano ou se busca justificativas naturais para o acontecimento. Clemência e Monsenhor Caldas são atacados e provavelmente assassinados por José Maria, que não pode mais lidar com as demandas do senso comum, que regem a realidade. Por sua vez, a convivência constante com o que para os outros é o impossível, o leva à loucura. No entanto, não é o sonho de José Maria que nos leva ao chamado medo metafísico, embora deixe-nos inquietos. É o desfecho da narrativa:

Neste ponto a fisionomia de José Maria estava tão transtornada que o padre, também de pé, começou a recuar, trêmulo e pálido. “Não miserável! Não! Tu não me fugirás!” bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e de pés (ASSIS, 1989, p.74).

Como dissemos anteriormente, a inexplicável luta que se ouve “escada acima”, portanto em um plano superior, é o que nos faz duvidar de que o que vinha sendo narrado por José Maria era apenas fruto de delírios. É essa a manifestação do impossível, o fato inexplicável. E ela nos aparece de forma tão inesperada que duvidamos tê-la compreendido. Ora, não seria essa dúvida fruto de nossa incapacidade de aceitar a coexistência do natural com o sobrenatural? Não é a materialização do embate simbólico entre as duas personagens? Enfim, não é o pequeno detalhe que coloca em risco a estabilidade precária da nossa visão de mundo?

O conto “A segunda vida” aponta para a ambivalência narrativa bem como para a duplicidade realidade/fantasia, verossímil/inverossímil, traços imprescindíveis ao fantástico. O texto em pauta pode ser classificado na

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categoria do fantástico, uma vez que possibilita a revelação de situações insólitas, sobrenaturais, provocando a indecisão da personagem e do leitor quanto à verossimilhança dos fatos até determinado momento da narrativa. Ao final do conto, o leitor fica diante da subjetividade perturbada de José Maria que se expande e domina todo o exterior, subjugando a realidade e o senso comum. O enredo tematiza a transposição da vida para a morte, a fusão dos mundos, tudo calcado na loucura e sonho de José Maria, personagem cheia de angústia existencial, perdido em um mundo estranho, no qual os fatos insólitos o acometem. O real e o fantástico se fundem e se confundem em uma eterna busca, na tomada de consciência crítica ante o mundo.

A ambiguidade é um traço que distingue o fantástico e ela é engendrada na trama do texto de maneira a manter, na figura do personagem Monsenhor Caldas, a força da angústia de quem balança entre o crível e o não crível diante da duplicação da identidade de José Maria: na primeira vida um inexperiente, já na segunda, um ser que sofre por saber das amarguras que terá diante de qualquer coisa que faça, diante do vazio da existência, do nada.

José Maria é considerado pelo Monsenhor como um insano, mas ao final da narrativa o leitor percebe toda a sua negação em estudar, casar, enfim, são frutos da experiência adquirida como condição por ele imposta para voltar ao mundo, e suas frustrações diante do desenrolar dessa nova vida é uma consequência da experiência que o torna um observador crítico de suas ações e de sua incapacidade de realização dos desejos. É como, se de alguma forma, José Maria reconhecesse nessa nova vida o estranho familiar, o que provoca o sentimento de estranheza que habita esse personagem, construído pela ótica que oscila entre a loucura e a lucidez. Em grande parte dos textos machadianos encontramos uma crítica à sociedade, mesmo que de forma sutil; nesse conto, a crítica é percebida, por exemplo, pelo questionamento sobre a eficácia da experiência para se ter uma vida mais realizada.

Pode-se dizer que o desenvolver da narrativa se faz a partir de uma série de elementos que se poderiam chamar de irredutível “impressão de estranheza”, e essa estranheza, que parte da descrição do espaço e das personagens, é acrescida de fatos ainda mais estranhos e sobrenaturais. A narrativa fantástica, com efeito, deve provocar algo de estranho, que incomode, assuste ou cause um sentimento que fuja do habitual, do cotidiano e vá ao encontro do desconhecido, do oposto ao real. Seria o diabo o duplo de José Maria? Ao se dirigir ao Monsenhor afirmando que este não lhe escaparia, nos parece que as imagens do sonho do personagem são representações dele mesmo. Nesse momento, temos a junção dos dois planos. Sonho e realidade se fundem. Esta suposição parece ser paradoxalmente corroborada pela topoanálise proposta por Bachelard. Bachelard nos diz que o sótão é o lugar dos pensamentos claros e sólidos, dos projetos racionais. No sótão, os medos

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Leite, S.; Rio Doce, C. C. A configuração do fantástico no conto “A segunda vida”, de Machado de Assis. Nonada: Letras em Revista, n. 27, vol. 2. Setembro de 2016. pp. 4-13.

se racionalizam. Tornar o embate simbólico entre as duas personagens algo palpável, no som da luta de espadas, é apontar para a racionalização deste medo, uma espécie de explicação daquilo mesmo que nos faz duvidar de seu sentido. A luta travada no “plano superior” só ganha sentido se pensarmos em José Maria como agente do mal, revelando-se, dessa maneira, como algo muito maior do que apenas a pessoa perturbada que protagonizou toda a história.

Importante pensar que, ao aceitarmos a possibilidade de que José Maria é um agente do mal que investe contra o Monsenhor, temos que admitir que esse ser é o mesmo que traz uma reflexão coerente sobre como encarar a vida sendo uma pessoa experiente, o reconhecimento de que a sabedoria conduz ao vazio, pois tudo já se é sabido, conhecido de antemão. A sabedoria, virtude ou valor tão pregado pelos preceitos religiosos é o que vai fazer com que José Maria se canse de viver e procure Monsenhor para quem sabe ter um alívio ou consolo sobre sua vida infernal; incongruências da realidade que ora pode se tornar fantástica. Por sua vez, Monsenhor que poderia ter ao seu favor o fato de ter fé é justamente aquele que desautoriza a versão de José Maria e pode ser atacado por este. Fé e incredulidade, sabedoria e ignorância, dicotomias que andam juntas no conto machadiano. Aceitando ou não a referida luta como manifestação do sobrenatural, a falta de compreensão da realidade contida na narrativa é o que origina o fantástico, segundo Volobuef (2000). Para a autora, o leitor, à princípio, sente-se desorientado, pois são deixadas lacunas no texto, não há explicações ou justificativas para os acontecimentos. Se o fantástico do século XIX marca a fratura da racionalidade, mostrando que esta não é suficiente para dar conta da totalidade dos elementos exteriores ao sujeito, na narrativa de Machado de Assis é o plano psicológico que situa-se no centro do relato, dando voz à loucura, às alucinações e aos pesadelos, deparando-nos com situações de um absurdo desconcertante. Em “A segunda vida” prevalece a tessitura de um enredo impregnado pelas inquietações humanas, problematizando a instância identitária do homem, e por extensão, do próprio narrador e do próprio leitor.

Referências

ALMEIDA, João Ferreira de. Trad. A Bíblia Sagrada (revista e atualizada no Brasil), 2 ed. São Paulo: Sociedade Bíblica Brasileira, 1993, p. 1034.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Histórias sem data. Rio de Janeiro: Garnier, 1989.

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A Poética do

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FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte Universitário, 1980.

ROAS, David. Teorias de lo fantástico (Org.). Madrid: Arco/Libros SL, 2001. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

VOLOBUEF, Karen. Uma leitura do fantástico: “A invenção de Morel” (A. B. Casares) e “O processo” (F. Kafka). Revista Letras (Curitiba), Curitiba (UFPR), v. 53, p. 109-123, 2000.

Recebido em 18 de março de 2016. Aceito em 30 de maio de 2016.

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