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Nonada: Letras em Revista E-ISSN: Laureate International Universities Brasil

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Academic year: 2022

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nonada@uniritter.edu.br

Laureate International Universities Brasil

França, Julio; Silva, Daniel Augusto P.

ASPECTOS GÓTICOS NA ESTRUTURA NARRATIVA DE “SARAPALHA”, DE GUIMARÃES ROSA

Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 29, 2017, pp. 185-200 Laureate International Universities

Porto Alegre, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512454263012

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ASPECTOS GÓTICOS NA ESTRUTURA NARRATIVA DE “SARAPALHA”, DE GUIMARÃES ROSA

GOTHIC ASPECTS IN THE NARRATIVE STRUCTURE OF

“SARAPALHA”, BY GUIMARÃES ROSA

Julio França Professor Adjunto de Teoria da Literatura e do Programa de Pós-

Graduação em Letras da UERJ

Daniel Augusto P. Silva Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Este artigo tem por objetivo analisar a construção narrativa do conto “Sarapalha”, escrito por Guimarães Rosa e publicado em Sagarana (1946). Partimos da hipótese de que a estrutura do texto se baseia em elementos próprios da poética do gótico literário, tais como a apresentação do espaço como locus horribilis, a presença de personagens com aspectos monstruosos, a exploração, no plano temático, da morte e da doença, e, sobretudo, a criação de uma temporalidade circular e fantasmagórica.

Palavras-Chave

literatura gótica, literatura do medo, horror, literatura brasileira.

Abstract

This paper aims at to analyzing the narrative construction of the Guimarães Rosa’s

“Sarapalha”, a short story published in Sagarana (1946). Our hypothesis is that typical Gothic fiction elements organize the text structure, such as the usage of a locus horribilis space, the presence of characters with monstrous aspects, the thematic exploitation of death and disease and, mostly, the creation of a circular and ghostly temporality.

Keywords

gothic literature, fear literature, horror, Brazilian literature.

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No vau do Sarapalha, nas terras do Gótico

crítica e a historiografia literárias atribuíram à obra de Guimarães Rosa um espaço de destaque no cânone da ficção brasileira. Em virtude de suas experimentações linguísticas e textuais, o autor é recorrentemente comparado a outros celebrados nomes da literatura do século XX, como o argentino Jorge Luis Borges e o irlandês James Joyce. Não obstante o caráter inovador e vanguardista de suas narrativas, o escritor mineiro também promoveu um diálogo intertextual intenso e profícuo com diversas tradições poéticas. Como aponta o crítico Alfredo Bosi (2006, p. 461), sua obra “de tão aguda modernidade se nutre de velhas tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco.”

Entre as diferentes vertentes literárias que desaguam na ficção roseana, focalizaremos aqui o Gótico, que se faz notável já na estreia em livro do autor, o volume de contos Sagarana (1946). Estamos cientes de que, à primeira vista, tal proposta pode causar surpresa, tendo em vista a pouca atenção dispensada pelos estudos literários nacionais à presença da ficção gótica na literatura brasileira (cf. FRANÇA, 2017B). Outra razão para um possível estranhamento inicial é a compreensão do Gótico exclusivamente como um estilo de época, desenvolvido ao longo do século XVIII e que teria se restringido a meados do XIX.

Por fim, contribuiria para a singularidade da proposição o entendimento mais ou menos disseminado no campo de estudos de literatura que os exageros e os clichês das convenções góticas seriam incompatíveis com a sofisticação literária de um escritor como Guimarães Rosa.

Para que se dissipe a estranheza de nossa proposta, é necessário revelar o conceito de Gótico com o qual trabalhamos. Entendemos tal literatura não como um conjunto de narrativas datado e restrito a um local e a uma época, mas sim como a confluência entre uma visão de mundo desencantada e uma linguagem artística bastante convencionalista e estetizada, que possui uma série de recorrências estilístico-textuais. Desse modo, o Gótico não se limita a espaços e

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a períodos pré-determinados: pelo contrário, trata-se de uma ficção cultivada até a contemporaneidade, nas mais diversas literaturas nacionais (cf. PUNTER, 1996; STEVENS, 2000; BOTTING, 2014).

Entre os elementos mais convencionais e recorrentes nas narrativas góticas, destacamos três, que, quando utilizados em conjunto, engendram um modo narrativo especializado em gerar efeitos de recepção como o medo, o horror e a repulsa. Aliados às técnicas do suspense e do melodrama, bem como a uma mundividência negativa, esses aspectos perpassam as diversas realizações históricas da ficção gótica, e podem ser identificados não apenas em romances setecentistas, mas também em obras diversificadas como a prosa decadente de João do Rio, a escrita modernista de William Faulkner ou os best-sellers de Stephen King.

O primeiro desses elementos fundamentais do Gótico é o locus horribilis, isto é, a existência de um espaço narrativo opressivo, adverso e qualificado como mau, capaz de determinar o caráter vilanesco das personagens. Tais locais são frequentemente descritos como sujos, perigosos, labirínticos, proibidos, em ruínas e mesmo amaldiçoados. Suas representações variam, sem dúvida, de acordo com os contextos culturais em que estão inseridas, mas as manifestações mais recorrentes incluem tanto localidades rurais quanto urbanas, tanto ambientes internos quanto externos, tais como castelos e casas mal- assombrados, florestas e bosques obscuros, grandes cidades marcadas pelo crime, além de regiões desérticas e ermas (cf. BOTTING, 2014). Trata-se de um elemento de construção narrativa capaz de expressar, metonimicamente, o desconforto e a insegurança que o homem moderno experimenta em relação a seu ambiente físico e social.

O segundo elemento é a presença fantasmagórica do passado no presente.

A ficção gótica, enquanto fenômeno literário da modernidade, carrega a ansiedade e o desconforto causados pela aceleração do ritmo de vida e pelas mudanças na percepção da passagem do tempo. Em uma época marcada pela ideia de progresso e por constantes novidades, o passado não ajuda a antecipar o que o futuro pode ser nem a esclarecer os desafios do presente, já que as experiências passam a se caracterizar justamente pela imprevisibilidade e pela

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inovação. Ao não auxiliar mais a compreensão do homem, os eventos do passado tornam-se potencialmente aterrorizadores: segredos, mistérios e assuntos não resolvidos em tempos pretéritos invadem as narrativas góticas de modo a atormentar as personagens. Muitas vezes, essa figuração do passado ocorre de forma sobrenatural, por meio da representação de fantasmas e de mortos-vivos.

Finalmente, o terceiro dado da construção narrativa gótica é a personagem monstruosa. Maus, desviantes, criminosos e sexualmente transgressivos, os vilões e anti-heróis góticos são descritos como verdadeiros monstros e, não raro, seus aspectos físicos degradados, entre o humano e o animal, são repulsivos. Eles funcionam, recorrentemente, como representações da alteridade e dos limites impostos por determinada cultura. Essas monstruosidades costumam corporificar os desejos e os medos de uma época (cf. COHEN, 2000), ao transgredir não apenas códigos de categorização do real, com suas compleições grotescas, mas, sobretudo, por desviar de normas de conduta social. Nesse grupo de personagens, encontramos não apenas figuras clássicas como vampiros, fantasmas, zumbis, mas também femmes fatales, cientistas extrapoladores, estrangeiros, criminosos, senhores de escravos, entre outros.

Esses elementos da construção ficcional gótica estão presentes, em maior e em menor nível, em diversas narrativas de Guimarães Rosa, como já foi observado por uma série de pesquisadores, em especial nas primeiras publicações do autor (cf. TEIXEIRA, 1995; MACHADO, 2009; CEZAR, 2012; GAMA- KHALIL, 2012; ALVES, 2016). Entre os contos normalmente arrolados como representativos dessa poética, podemos citar “O Mistério de Highmore Hall”,

“Caçadores de Camurças”, “Tempo e Destino” e “Makiné” – inicialmente publicados em periódicos por volta da década de 1930 e postumamente editados em Antes das primeiras estórias (2011) – bem como “São Marcos”, de Sagarana (1946), e “Droenha”, de Tutameia – Terceiras Estórias (1967). A essa lista, incluímos agora “Sarapalha”, também presente no volume de contos Sagarana.

O lugar fora do mapa

“Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua,

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sozinha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.” (ROSA, 1994, p. 281). A introdução de “Sarapalha” apresenta o cenário melancólico e taciturno onde se desenvolverá a ação do conto. Os moradores da região desocuparam suas habitações, despovoaram o local e partiram para longe, fugindo do avanço da malária. Apenas dois homens ali permaneceram:

Primo Ribeiro e Primo Argemiro. Sofrendo com as febres típicas da doença e com as decepções do passado, os dois personagens se aproximam cada vez mais da morte ao decorrer do texto.

A devastação em que se encontra a região é indicada já na primeira palavra do texto: “tapera”. A ambientação em um local em ruínas se configura como uma das principais características espaciais do Gótico (cf. BOTTING, 2014). Desde o século XVIII, castelos, igrejas e abadias abandonadas têm suas ruínas destacadas nesses textos. Com recorrência, é exatamente nelas em que ocorrem as aparições fantasmagóricas e as maiores transgressões e crimes das tramas. No Brasil, são inúmeras as referências a taperas em narrativas do medo de cunho regionalista (cf. CASTRO, 2015), como é o caso dos contos de Afonso Arinos e de Coelho Neto.

Todas as outras referências espaciais do primeiro parágrafo do texto dizem respeito a elementos sem utilidade no presente diegético, já que a maior parte da população fugira do local. A rua foi invadida pelo mato e se encontra destituída de suas funções originais, pois não pode mais servir de estrada a ninguém. Da mesma forma, as vendas, as casas e a igreja não têm mais razão de existir. Apenas o cemitério parece plenamente harmonizado ao ambiente de dissolução.

O narrador prossegue em sua apresentação do povoado, classificando-o como um lugar que “já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar” (ROSA, 1994, p. 281). Além de tornar mais evidente o impacto da doença para a destruição do local, o trecho ainda confere à região um caráter de não existência, situado além dos limites do homem. Ao não fazer mais parte da geografia e do mundo conhecido, torna-se terra de ninguém – lugar nenhum. Com o avanço da malária, a região perde progressivamente seus moradores, cujas plantações também são inutilizadas: “As terras não valiam mais nada. Era pegar a trouxa e

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ir deixando, depressa, os ranchos, os sítios, as fazendas por fim. Quem quisesse, que tomasse conta” (ROSA, 1994, p. 281). A natureza será justamente a responsável por retomar o controle do local e por acelerar seu processo de degradação, tanto com a invasão de árvores, como “a gameleira, fazedora de ruínas” (ROSA, 1994, p. 282), quanto a de morcegos, por dentro das casas.

Após a caracterização do povoado, a narração se aproxima de uma fazenda, o local específico em que se encontram os protagonistas do conto. Ao apresentar essa nova localidade, o campo semântico utilizado contribui para indicar a desagregação do ambiente:

É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de pedra-seca do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro, uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da enorme morada, pés de milho levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no eirado, como se a roça se tivesse encolhido, para ficar mais ao alcance da mão.

E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol. (ROSA, 1994, p. 282. Grifos nossos.)

O narrador focaliza objetos do passado que estão em péssimo estado de conservação, a fim de ressaltar a paralisia temporal que impera naquele espaço.

As próprias figuras humanas são apresentadas como inteiramente integradas a esse lugar abandonado e, logo, descritas com a mesma degeneração que define os outros elementos. Imiscuídos ao cenário devastado, os protagonistas recebem adjetivações que indicam velhice, decrepitude, fraqueza e imobilidade.

De tal modo abatidos, eles são, simultaneamente, causa e consequência do estado de abandono em que se encontra a fazenda.

Isolados do restante do mundo, a fazenda e seus moradores se fecham em torno de si próprios, dando forma a uma temporalidade distinta, estagnada, sem progressão cronológica. Ocorre então a convergência entre o locus horribilis, com seus espaços deteriorados, e o tempo típico das narrativas góticas que, como veremos a seguir, apresenta-se como circular e fantasmagórico.

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A paralisia do tempo

“As palmas do coqueiro estão agora paradas de todo. As galinhas foram pastar as folhas baixas do melão-de-são-caetano. Nem resto de brumas na baixada. O sol caminhou muito.” (ROSA, 1994, p. 289). Além da clara desolação da paisagem, a que já aludimos no tópico anterior, é curioso perceber também um contraste no trecho: ao movimento do sol, da passagem do tempo, opõe-se a imobilidade das folhas do coqueiro. Os dias continuam a se suceder no vau do Sarapalha, mas aqueles personagens estão imersos em uma outra temporalidade, na qual tudo está em suspenso, imobilizado em algum momento pretérito.

Tal concepção da categoria narrativa do tempo é recorrente na ficção gótica. Os enredos estão repletos de personagens atormentados por crimes, transgressões e segredos do passado, que persistem no presente diegético e perpassam praticamente todas as ações das narrativas. A temporalidade, longe de constituir um elemento secundário nesses textos, influencia as outras categorias narrativas, seja colaborando para o desenvolvimento das paranoias das personagens, ao criar figuras fantasmagóricas que corporificam a presença do passado no presente; deformando os espaços, transformando-os em ruínas;

determinando o núcleo dos enredos, baseados em eventos que são consequências de fatos há muito acontecidos; e, frequentemente, contribuindo para uma narração não-linear das histórias, em virtude das contínuas analepses que provoca.

A incômoda presença do passado nas narrativas góticas é fruto do próprio contexto cultural em que essa literatura se desenvolveu. O Gótico expressa o desconforto gerado pelas mudanças na percepção do homem moderno sobre a passagem do tempo (cf; FRANÇA, 2017A). A Modernidade foi, aliás, marcada por uma nova maneira de experimentar as instâncias temporais. Como aponta Reinhart Koselleck (2006), trata-se de uma outra relação entre a experiência dada pelas experiências do passado e a expectativa projetada sobre o futuro. Em um ambiente dominado pela ideia de progresso, de constantes alterações e inovações na vida social, econômica e cultural, os cidadãos modernos passaram

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a compreender o tempo como o surgimento de eventos sempre novos e sempre distintos do que existia antes. Cria-se, assim, uma relação de ansiedade e de temor tanto em relação ao futuro, que não pode ser mais prenunciado, e ao passado, que já não mais esclarece, explica e guia as ações do presente.

Para o homem ocidental, até meados do século XVII, a relação com tempo era intermediada pelo pensamento religioso cristão. Os tempos eram compreendidos de maneira mais estática e integrada, já que o destino último era inevitavelmente o apocalipse, o juízo final. As experiências dos antepassados serviam, assim, de base para se prever o futuro e para se lidar com os desafios do presente. No entanto, a partir do Iluminismo, a consciência histórica substitui progressivamente a escatologia cristã: “A história humana não tem qualquer meta a atingir; ela é o campo da probabilidade e da inteligência humana” (KOSELLECK, 2006, p. 28-29). Enquanto o tempo religioso possuía unidade e circularidade, o tempo moderno, guiado pela ideia de progresso, é imprevisível.

Não apenas o horizonte de expectativa sobre o futuro sofre as consequências dessa nova relação temporal; as experiências do passado igualmente já quase nada mais dizem sobre o presente. Sob uma concepção de mundo que não se baseia mais em eventos circulares e repetíveis, tais vivências passam a ser entendidas como singulares, absolutamente distintas do que existe no agora e do que acontecerá no futuro. O passado é, então, transformado em um tempo obscuro, representante de uma alteridade desconhecida e que produz apenas ruínas. Desse modo, ele se torna também uma fonte de medo e de ansiedade.

A narrativa gótica, ao decidir centrar suas ações na influência do passado sobre o presente, contrapõe-se ao movimento laudatório do progresso e do primado do pensamento racional. A dinâmica temporal, cada vez mais inesperada, se configura também como perigosa. Frente as rápidas transformações técnicas, econômicas e sociais do século XVIII, o Gótico se revela como um modo discursivo capaz de lidar com esse passado desconhecido e obscuro que, a despeito das tentativas de ser esquecido e superado, insiste em existir:

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(...) Sob tais circunstâncias, não surpreende o aparecimento de uma literatura cujos temas centrais sejam paranoia, manipulação e injustiça, e cujo projeto central seja compreender o inexplicável, o tabu, o irracional.

(PUNTER, 1996, p. 112)

Em “Sarapalha”, essa temporalidade gótica é especialmente destacada, e está explicitada sobretudo pelos dois protagonistas do conto. Ambos resistem à passagem do tempo, e mesmo suas descrições físicas apontam para esse dado:

“os dois velhos – que não são velhos” (ROSA, 1994, p. 283). A velhice é uma categoria ligada à sucessão temporal e, portanto, inadequada à situação de estagnação em que se encontram os personagens. Saudosos de Luísa e praticamente sozinhos no povoado, Primo Ribeiro e Primo Argemiro conservam a rotina para conter a passagem do tempo: “Há mais de duas horas que estão ali assentados, em silêncio, como sempre. Porque, faz muito tempo, entra ano e sai ano, toda manhã assim.” (ROSA, 1994, p. 283). Os marcadores temporais dessa passagem indicam a repetição das mesmas ações, dos mesmos modos, ininterruptamente.

Em diversos outros momentos do conto, a narração reforça o aprisionamento de tais personagens ao passado, e os indicadores temporais empregadas revelam que as ações se repetem já há um grande período, a tal ponto que não sabemos ao certo a duração daquela situação de doença e desleixo a que estão entregues os protagonistas:

Primo Argemiro espera um pouco. Aí, ele se espanta. De há muitos anos, dia trás dia, tem a hora do perdigueiro dormir ali perto, e a horinha do perdigueiro sacudir as orelhas, que é o momento de Primo Ribeiro dizer:

— Vida melhor do que a nossa...

Para Primo Argemiro, eternamente, responder:

— E sim... (ROSA, 1994, p. 284. Grifos nossos.)

Nem mesmo as marcas cronológicas presentes ao longo do conto são capazes de situar adequadamente a ação em um ponto específico do tempo, que possa orientar a recepção. Elas dizem respeito a ciclos da natureza ou a situações da vida político-social restritas ao pequeno povoado. De um lado, temos a indicação de que a malária chega à região “em abril, quando passaram as chuvas”

(ROSA, 1994, p. 281). Por outro, sabemos que a orientação do médico da região para que os habitantes se mudassem de lá ocorreu “no tempo da eleição do seu Major Vilhena” (ROSA, 1994, p. 286). O único dado temporal que possui de fato

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uma significação na narrativa é o apresentado logo em seguida, quando Primo Ribeiro situação o ápice do surto de malária após a despedida de Luísa: “foi seis meses em-antes-de ela ir s’embora...” (ROSA, 1994, p. 286).

A chegada da malária e a partida de Luiza estabelecem entre si quase uma relação de causalidade: uma chega para que a outra parta. Curiosamente, ao mesmo tempo em que os dois primos mantêm tudo conforme era antes, eles buscam bloquear a memória e as lembranças da vida pregressa. A mágoa de Primo Ribeiro em relação à traição de Luísa e o segredo de Primo Argemiro sobre a paixão que nutria pela mulher do parente e amigo constituem tabus na narrativa. O passado é apresentado, portanto, como um dos agentes de medo e de tensão na trama, de tal modo que eles tentam negar aquele tempo: “Desde que ela se foi, não falaram mais no seu nome. Nem uma vez. Era como se não tivesse existido.” (ROSA, 1994, p. 286).

Até mesmo a natureza atua para essa suspensão temporal. Ao longo do desenvolvimento da narrativa, há um ruído constante: o zumbido dos mosquitos responsáveis pela transmissão da malária. Trata-se de um som em uníssono, constante e que, aliado à febre da doença, leva os personagens a um estado quase hipnótico e de transe, a um “outro mundo” (ROSA, 1994, p. 283). A melodia monótona emitida pelos insetos – mais especificamente, pelos mosquitos machos, já que as fêmeas são responsáveis por sugar o sangue – acentua a sensação de interrupção do tempo. A própria descrição desse rumor reforça a função do som na narrativa – “uma nota única, em tom de dó” (ROSA, 1994, p. 283. Grifos nossos) – em uma dupla referência à posição na escala musical e ao sentimento que expressa.

Fora dos momentos de transe nada acontece de novo, não há experiências a serem vivenciadas, já que os sentidos convencionais estão entorpecidos ou mesmo avariados pela maleita. Tudo é previsível, pois todo e qualquer ato já foi realizado antes e apenas se repete. A inércia é alterada apenas quando Primo Ribeiro, no início de um delírio provocado pela sezão, produz uma quebra na sequência de diálogos rotineiros: ele se recorda de como era a vida com Luísa e expressa seu desejo de morrer o mais rapidamente possível. É nesse momento

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que a narrativa se aproxima de seu clímax, e emergem as figuras monstruosas do vau do Sarapalha.

Ela, a monstruosidade

O conto de Guimarães Rosa apresenta uma repetição que, em uma primeira leitura, pode passar despercebida. Até o desfecho da narrativa, são quase cinquenta utilizações do pronome “ela”, seja sozinho, enquanto pronome pessoal, seja presente em estruturas como “dela” e “nela”. Essa recorrência não é, de forma alguma, acidental no texto ou resultado de um descuido de estilo do autor. Na verdade, trata-se de um jogo linguístico, que alterna as referências feitas pela palavra conforme o contexto em que estas se encontram. Além disso, as qualificações atribuídas a cada um desses pronomes no texto são negativas e, frequentemente, monstruosas.

O primeiro “ela” que surge no texto reporta-se à malária: “Ela veio de longe, do São Francisco. (...) Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, (...) matando muita gente”

(ROSA, 1994, p. 281. Grifo nosso.). A doença subiu o rio Pará e, ao encontrar o povoado, causou bastante destruição. Como podemos observar na passagem, sua apresentação é como a de um agente do medo, cuja aproximação é encarada como um sinal de perigo. O temor não é injustificado: trata-se, afinal, de uma doença com elevadas taxas de morbidez e letalidade no contexto histórico do conto, o interior de Minas Gerais nas primeiras décadas do século XX.

A segunda ocorrência mais produtiva do termo diz respeito à Luísa. Tendo saído do povoado antes da chegada da maleita, a mulher faz o caminho contrário da doença e desce o rio Pará. Sua representação no conto também é ambígua, já que é retratada, simultaneamente, como a doença da alma dos personagens e como uma possível cura para tudo o que estava lhes acontecendo. Como fala Primo Ribeiro, “só sei é que se ela, por um falar, desse de chegar aqui de repente, até a febre sumia...” (ROSA, 1994, p. 286. Grifo nosso). Em outro momento, no entanto, Primo Argemiro apresenta uma outra visão sobre a moça por quem também se apaixonou: “− Ela foi uma ingrata, não foi, Primo Ribeiro?... A gente

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toma amor até à criação, até aos cachorros. E ela..” (ROSA, 1994, p. 287. Grifos nossos).

Essa alternância na qualificação de Luísa, ora como traidora responsável pela desgraça dos homens ora como esperança de salvação, é também característica de uma série de monstruosidades da ficção gótica. Em seus trabalhos, o crítico Jeffrey Jerome Cohen (2000) defende que é possível ler e entender uma cultura a partir dos monstros que elas engendram, pois estes funcionariam como constructos reveladores dos medos, dos desejos e das ansiedades dessas mesmas sociedades. Tais figuras demarcariam as diferenças culturais, em termos de raça, de gênero, de nacionalidade e de sexualidade, e as normas comportamentais que não poderiam ser ultrapassadas. Ao violar essas regras, as monstruosidades seriam capazes de causar tanto repulsa quanto atração:

O monstro também atrai. As mesmas criaturas que aterrorizam e interditam podem evocar fortes fantasias escapistas; a ligação da monstruosidade com o proibido torna o monstro ainda mais atraente como uma fuga temporária da imposição. Esse movimento simultâneo de repulsão e atração, situado no centro da composição do monstro, explica (...) sua constante popularidade cultural, explica o fato de que o monstro raramente pode ser contido em uma dialética simples, binária (tese, antítese... nenhuma síntese). Nós suspeitamos do monstro, nós o odiamos ao mesmo tempo que invejamos sua liberdade e, talvez, seu sublime desespero. (COHEN, 2000, p.

48).

A terceira forma da monstruosidade é o mosquito fêmea, responsável pela transmissão da doença. Como pudemos observar já no tópico anterior, enquanto os insetos machos produzem o zunido, são elas que picam os protagonistas: “o mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo, com a tromba repleta de maldades” (ROSA, 1994, p. 282). Nesta figura, fica patente o aspecto feminino atribuído aos aspectos monstruosos do conto e a maldade que lhe seria característica. Sob tal perspectiva, tanto Luísa quanto as outras formas de monstro acabam por se assemelhar.

Uma quarta representação monstruosa revelada pela palavra “ela” é a maleita, a febre intermitente que submete os protagonistas na narrativa. Em um dos diálogos dos primos, esse quarto “ela” é evidenciado: “− Ei, Primo, aí vem ela. / − Danada!... / (...) E a maleita é a ‘danada’; ‘coitadinho’ é o perdigueiro;

‘eles’, a gente do povoado, que não mais existe no povoado” (ROSA, 1994, p.

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283. Grifo nosso.). No desenvolvimento do conto, Primo Ribeiro revela a Argemiro um de seus delírios, no qual ocorre uma sobreposição da maleita à figura de uma mulher bonita. Tal fenômeno reforça novamente a correspondência entre esses elementos de caráter monstruoso:

— A moça que eu estou vendo agora é uma só, Primo... Olha!... É bonita, muito bonita. É a sezão. Mas não quero... Bem que o doutor, quando pegou a febre e estava variando, disse.., você lembra?.., disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha.., e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... (...) (ROSA, 1994, p. 291. Grifos nossos.)

Finalmente, a quinta representação feminina da monstruosidade é a morte. A perspectiva da morte deflagra o fim da suspensão temporal a que estão presos os protagonistas e permite que as memórias sobre Luísa retornem. A emersão do passado se dá, portanto, por meio da consciência da finitude e, sobretudo, pelo desejo de morrer que experimenta Primo Ribeiro. O próprio físico do personagem é comparado ao de um defunto e ao de um fantasma, a tal ponto que possui “sarro de amarelo na cara chupada, olhos sujos, desbrilhados, e as mãos pendulando, compondo o equilíbrio, sempre a escorar dos lados a bambeza do corpo” (ROSA, 1994, p. 283). Ele passa a recusar os remédios oferecidos pelo Primo Argemiro, pois diz que “está custando muito a chegar a morte... E eu quero é morrer” (ROSA, 1994, p. 288).

O vislumbre da morte interrompe o tempo cíclico experimentado pelos personagens. As ideias e sensações reprimidas pelo pacto de esquecimento assomam em torrente – os ciúmes de Ribeiro e Argemiro, o arrependimento de Ribeiro em não ter conseguido manter sua esposa, o sentimento de culpa de Argemiro por cobiçar a mulher do primo –, e instauram no conto a temporalidade linear. Temendo a morte inevitável do amigo, Argemiro se sente impelido a confessar seu amor por Luísa. Ribeiro, no entanto, se enfurece com a “traição”

do primo e decreta seu banimento da fazenda.

O final da narrativa ocorre justamente nessa separação dos personagens.

Perdido e sem saber para onde ir, Argemiro se afasta da fazenda, justamente quando é vitimado por mais uma sezão. Alucinando, encontra um belo campo, um novo espaço no conto, surgido apenas após a revelação da verdade, no qual declara: “− Mas meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’r’a gente

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deitar no chão e se acabar!...” (ROSA, 1994, p. 295). A natureza ao seu redor treme junto a seu corpo, dominado pelos calafrios da sezão. Nada mais se fala sobre Primo Ribeiro, encerrado em outro tempo-espaço, e assim o conto se encerra.

A visão de mundo desencantada

Apesar da beleza alucinatória em meio ao cenário de destruição do sertão, o epílogo de “Sarapalha” é ainda bastante negativo. Afinal, os dois primos se afastaram, estão próximos da morte, não tiveram seus amores correspondidos, e permaneceram, com esperanças da volta de Luísa, voluntariamente aprisionados em um povoado abandonado, dominado pela doença e pelos mosquitos, um verdadeiro locus horribilis. Como observamos, essa visão de mundo desencantada, que enforma as narrativas góticas, está presente nos elementos estruturais da narrativa analisada.

Podemos, ainda, citar outros elementos que reforçam no conto uma perspectiva bastante negativa sobre o mundo. O primeiro deles possui um cunho paratextual: trata-se da epígrafe, cujo sentido de descrença no amor, de certa forma, é retomado no final da história. Nela, lemos: “‘Canta, canta, canarinho, ai, ai, ai... / Não cantes fora de hora, ai, ai, ai... / A barra do dia vem aí, ai, ai, ai...

/ Coitado de quem namora!...’” (ROSA, 1994, p. 281). Nesse excerto, há uma oposição entre o tom da música, lamentoso em relação ao amor, e a descrição ironicamente pessimista que lhe segue: “O trecho mais alegre, da cantiga mais alegre, de um capiau beira-rio” (ROSA, 1994, p. 281).

O tom melancólico da canção faz-se também presente dentro da narrativa, no conto que Primo Ribeiro, em seus delírios, sempre pede para Primo Argemiro lhe recontar. É a história de moça que se apaixonou por um rapaz bonito e fugiu com ele, descendo o rio. Durante a descida, o homem se revela como o “capeta”

e some nas águas com a moça. Ninguém, no entanto, fica sabendo o que aconteceu com os dois, mas todos têm consciência de que a mulher não se importou com a revelação da verdadeira identidade do homem, “porque já tinha criado amor” (ROSA, 1994, p. 291). Além da evidente analogia do causo com a

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vivência dos protagonistas, a história revela uma concepção de mundo em que o mal pode influenciar e seduzir as pessoas, afastando-as da vida com seus semelhantes.

Aliada às descrições espaciais negativas, à temporalidade circular e às monstruosidades que assumem formas femininas, a visão de mundo desencantada veiculada por “Sarapalha” é mais um dos aspectos góticos na construção da narrativa. A única forma que os personagens do conto rosiano encontram de vencer as “ruindades do mundo” é através da própria morte, como nos revela Primo Ribeiro, na passagem a seguir: “Tudo tem de chegar e de ir s’embora outra vez... Agora é a minha cova que está me chamando... Aí é que eu quero ver! Nenhumas ruindades deste mundo não têm poder de segurar a gente p’ra sempre, Primo Argemiro...” (ROSA, 1994, p. 286). Fiel à tradição gótica, na história dos dois primos do vau do Sarapalha não há espaço para finais felizes.

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