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Latusa digital ano 2 N 18 setembro de 2005

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Latusa digital – ano 2 – N° 18 – setembro de 2005

Pânico e fobia na direção de uma análise

Maria Angela Maia*

“Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real”. 1

“A angustia é uma via que visa o real.” 2

Lacan propõe a combinação das operações lógicas de alienação e separação entre o Sujeito e o Outro para a causação do sujeito, sujeito dividido que tem seu abrigo no núcleo do inconsciente: o coração da experiência analítica. A alienação é análoga à operação matemática de reunião que autoriza a existência de dois conjuntos, que fazem Um, desde que não seja necessário escolher ou privilegiar um deles. O sujeito aparece em fading no momento em que perde uma das duas partes que o estruturam. A separação, análoga a operação matemática de interseção, autoriza a existência do que é comum aos dois conjuntos, inclinando o sujeito a consentir em escolher o que ele perde como sendo uma parte de si mesmo, e demarcando uma falta no Outro.

* Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP).

1 LACAN J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990. Pág 55.

2 MILLER J.-A. “Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan”. Opção Lacaniana n° 43. São Paulo: Eolia, maio de 2005, p. 23.

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Essa é uma maneira de entender as conhecidas abordagens de Lacan do fenômeno da angústia como índice da “falta da falta” ou como a “presença do objeto” que deveria faltar; conforme entendemos, correspondentes respectivamente às concepções freudianas de “angústia sinal” e “angústia automática”. Jacques-Alain Miller enfatiza que “a angústia é uma via que visa o real, utilizando para isso outra coisa que não o significante”.3

No caso clínico a seguir privilegiamos o fenômeno da angústia e as soluções que, sob transferência, o sujeito encontrou para atravessá-la.

Ela procura ajuda no momento em que a sua construção fantasmática, tela defensiva através da qual vê o mundo, vacila. Nisso nada de extraordinário encontramos, sendo exatamente por esse fato que podemos, já nas entrevistas preliminares, divisarmos algo da posição de gozo do sujeito na fantasia fundamental: “Será que um dia vou ser feliz sendo homossexual?”, pergunta. Algo premente ameaça irromper: alguém muito próximo, também homossexual, tem uma doença terminal. Ela não sabe ainda, não lhe disseram, mas ela sabe o não-sabido por um saber inconsciente, até formular: “Não tenho estrutura e ele também não. Não sei como vai ser quando tiver que vê-lo. Ele vai ficar diferente, vai se transformar em outra pessoa. Vou precisar de coragem para ver aquilo que não quero ver”. O medo de enlouquecer se faz presente para ela. Medo do caroço que cresce no corpo desse alguém, deformando-o, e que ela sente, nela, crescer; o rosto dela formiga, parece inchado: “será que dá para perceber?”, pergunta. Ao olhar-se no espelho, diz vê-lo; todos afirmam que são muito parecidos: o rosto, os gestos, os braços. Sofre um primeiro fenômeno de uma série que define como “a coisa”: “é uma sensação horrível, suo, meu coração dispara, acho que vou morrer, sinto a cabeça saindo do corpo”. Uma solução para o fenômeno da angústia automática era urgente. Também a falta constante ao trabalho a ameaçava com o risco de demissão e a falta às sessões ameaçava a possibilidade de análise. A estratégia adotada para reduzir a angústia foi atacar por dois

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flancos. Favorecer que a alienação no nível imaginário não permanecesse como uma petrificação, de modo que a identificação narcísica primária pudesse vir a ser apreendida na sua inconsistência estruturante. E circunscrever o gozo que a invadia, na tentativa de que ela pudesse encontrar uma forma de paralisar o desenvolvimento da angústia automática, isto é, que pudesse tomar a angústia como sinal de defesa.

Como efeito ela pode dizer: “não quero ficar perto dele, e não posso deixar de vê-lo. A análise está mexendo comigo a ponto de eu não saber para onde me vai levar: não sei o que vou ser, há um rombo dentro de mim. Nada pode preencher. Não adianta querer tapar”. Algo estranho então acontece, pois nunca percebera antes: começa a conversar consigo mesma e, principalmente, sobre a diferença entre si mesma e esse alguém. Alcança perceber que tudo aquilo que sente em seu corpo lhe assusta, exatamente, por indicar uma transformação que é dela. O significante “transformação” passa a demarcar a diferenciação entre ela essa pessoa e marcar que a transformação diz respeito a seu corpo. Sua análise começa.

Ela é fruto do primeiro casamento de seu pai, que terminou quando tinha três anos idade. Todos os filhos ficaram sob a responsabilidade do pai que logo casou novamente com sua amante, como ela supõe. Sua mãe não casou, mas teve inúmeros namorados, todos “sujos e grosseiros”, conforme descreve. Os maus tratos da madrasta e as idas e vindas às escondidas de sua mãe para visitar os filhos marcaram sua infância com um sofrimento enorme quanto à separação e ao abandono. Morou com sua mãe na adolescência e teve alguns namorados, mas sem deixar de perceber seu interesse especial por várias amigas.

Hoje, pode achar o corpo do homem bonito, mas não quer sexo. Assusta-se ao fantasiar sexo com um homem – “será que deveria tentar um homem?” – pergunta. A analista sublinha o significante “tentar”. Ela se surpreende, olhando-se no espelho e pensando o que poderia fazer para tornar seu corpo

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bonito: “Isso é normal?” – pergunta. Ante a ausência de resposta diz: “não me engano mais, ele vai morrer”.

A busca de sentido irá conduzi-la, a despeito da vergonha, a revelar seu maior segredo, que desvela o mito familiar. Amparada em duas cadeias significantes, homens proibidos (pai) e homens desejados (mãe), ela vale-se de um sintoma fóbico: medo de sair de casa, principalmente, de passar mal em filas.

Poderíamos pensar que a “escolha” homossexual serviria para circunscrever seu gozo, sendo os homens deixados de lado pela possibilidade de ocorrência de uma vivência ameaçadora de um gozo sem limites, que poderia estar implicado tanto em uma série quanto na outra?

Pouco a pouco, a trama das identificações que restaram dos investimentos nos objeto, que compõem o campo das relações do sujeito ao Outro, vai sendo desvelada na análise: questões sobre a feminilidade começam a ocupar seu pensamento. Sonha que está viajando com seu pai e sua namorada. Ele a ensina a conduzir o carro. Tem muito medo, mas consegue aprender. Depois, está no comando; o dia está claro, a estada florida. Aparece um rio estreito e ela precisa, com muito medo, atravessá-lo. Ela e a namorada descem do carro e mergulham na água clara com muitos peixes, tubarões. Mas, ela não tem mais medo.

Termina o namoro e passa a se interessar por uma amiga bissexual. Dormem juntas, sem haver sexo, e conversam sobre o relacionamento homem-mulher, melhor dizendo, ela escuta. Lembra que dormia na cama com sua mãe: “o comportamento de minha mãe parecia homossexual”, formula. Ante o dizer da analista quanto à possibilidade de sua homossexualidade protegê-la de sua mãe, responde: “uma sensação de que o chão vai quebrar e vou cair num buraco”. Lembra de uma cena infantil em que uma mulher a prende entre suas pernas e profere uma frase que associa ter um caráter sexual secundário e ser homem. O medo de que acabassem descobrindo que ela era homem, desde então, a acompanhou.

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Uma queixa esquecida se faz presente. Seu pai não percebia nada do que se passava a sua volta. Escutou-o dizer que ela tinha bom coração: “muito pouco para uma adolescente que se transformava”, diz. E, as questões que ficaram caladas passaram a ocupar sua análise. O que ela quer das mulheres? Tanto pode olhar para uma mulher e a achar bonita, querendo ser como ela, quanto pode querer ter ela.

Um dia, esquece no divã o arco que passou a usar em seus cabelos outrora tão desalinhados. A analista corre e ainda a pega no elevador. Sem qualquer surpresa diz: “não tem importância fica para a próxima”. A analista diz: Não! Fica com você.

Relata o sonho no qual transava com um homem, tinha um filho e, mais ainda, gostava. Também o fato de seu carro quebrar na estrada e aparecer um mecânico para consertar – paralítico. Passa horas e horas fascinada conversando com ele. Como é a vida dele? Ele transa? De chofre diz: “tenho uma bomba para te contar: sai com um homem”. Ele diz coisas que ela gosta de ouvir, lhe faz carinhos, e principalmente, o abraço dele a faz sentir-se protegida.

Um dia, oferece à analista um cartão com a foto de um artista que ocupa no imaginário social o lugar de objeto sexual. A analista interrompe a sessão e se despede pela primeira vez com dois beijinhos. Esse ato demarca uma mudança subjetiva fundamental. Da posição passiva ante a vida passa para a atividade nos mais diversos campos da realidade: no trabalho, nos relacionamentos e, na vida amorosa, conquista uma mulher que desejava. Questiona então a posição de “objeto sexual” que diz ter ocupado no grande amor de sua vida, e uma doença de caráter psicossomático que há tanto tempo não a incomodava, se faz presente.

Se a depuração das várias identificações ideais precipita a construção da fantasia fundamental, sua travessia poderá acarretar uma nova forma de

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relação do sujeito com a pulsão. Na direção do tratamento há um momento, que se faz necessário, no qual o sujeito é colocado em jogo quanto à afirmação do seu ser em oposição ao Outro, que, enquanto lugar do tesouro dos significantes, necessariamente, ocupa um lugar vazio e enigmático. Lugar do não-sentido que o objeto a vem ocupar. Lugar do gozo, cabendo a pulsão restaurar a perda do ser do sujeito.

Lacan não nos deixa esquecer: a nossa práxis é orientada para o núcleo do real, orienta-se para provocar um encontro com o que está por trás da fantasia, lá onde “a experiência da fantasia fundamental se torna pulsão”.6

6 LACAN J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op.cit.,p. 258.

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