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A SOMBRA DA CORTE REPRESENTAÇÕES DO POVO NO BRASIL OITOCENTISTA. A corte no Brasil.

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Ana Silvia Volpi Scott

Eliane Cristina Deckmann Fleck

(Organizadoras)

A Corte no Brasil

População e Sociedade no

Brasil e em Portugal

no início do século XIX

^OIKOS^ mü

uniu EDITORA UNISINOS

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A SOMBRA DA CORTE: REPRESENTAÇÕES

DO POVO NO BRASIL OITOCENTISTA*

Robert Rowland

Num contexto de celebração de efemérides, em que se multipli-cam iniciativas destinadas a assinalar os 200 anos da transferência da corte portuguesa para o Rio e em que proliferam publicações, de quali-dade muitas vezes discutível, destinadas ao grande público, pouco te-rei a dizer sobre o acontecimento em si. Limito-me a tomar como mote a lapidar descrição que dele fez, em À Margem da História, Euclides da

Cunha:

Napoleão Bonaparte, que se propunha derramar sobre a terra o fulgor da elaboração emancipadora da Enciclopédia no coruscar das fuzilarias, lançou, em 1807, as tropas de Junot contra a Península Ibérica. E foi, como se sabe, um rude passeio militar... O imortal sargentão entrou pelas fronteiras desguarnecidas de Portugal e apavorou o mais inofen-sivo dos reis (1926, p. 218-9).

O episódio, como se sabe, tem vindo a ser objeto de variadas in-terpretações por parte-de diferentes sensibilidades historipgráficas. Naquela que foi, durante muitos anos, a narrativa hegemônica, sendo transmitida a gerações sucessivas de brasileiros nos bancos da escola, a vinda da Corte constituiu o ponto de partida de um processo que culminou, em 1822, com a independência política. A abertura dos por-tos às nações amigas, o tratado de 1810, a elevação em 1815 do Estado do Brasil ao estatuto de Reino Unido com Portugal, e a posterior tenta-tiva, por parte das Cortes de Lisboa, de restabelecer uma forma de

sta-tus quo ante, tudo isso foi visto como uma história cujo desfecho, quando

* Esle artigo reproduz, com pouquíssimas alterações o com o acrosconto das roferCncias bibliográficas indispensáveis, o texto da conferencia pronunciada na sossüo de abertura do colóquio. Para uma discussão mais aprofundada (embora com outro enfoque) de al-guns dos temas aqui abordados, parmUo-me remeter para outro texto meu (ROWLAND, 2003).

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não inevitável, era pelo menos previsível e estava inscrito na ordem natural das coisas.

Já na própria conjuntura da independência, alguns setores pro-punham uma interpretação formulada nesses termos. O comerciante inglês John Armitage, próximo de Estácio da Veiga e do grupo da Auro-ra, e que viveu no Rio entre 1828 e 1835, escrevia em sua History of Brazil, publicada em Londres em 1836:

[O manifesto das Cortes] suscitou as mais sérias apreensões da parte dos brasileiros, mas (...) foi recebido com aplauso pelos portugueses. Olhavam estes com inveja para a progressiva extensão do comércio es-trangeiro no Brasil, enquanto o de Portugal minguava diariamente; con-sideravam esta circunstância como unicamente filha da liberdade do comércio, quando só era devida ao progresso que todas as outras na-ções faziam nas artes e manufaturas, e ao estado inativo e estacionário de Portugal (...). Haviam os brasileiros imitado os habitantes portugue-ses em abraçar com fervor a causa constitucional, pela qual esperavam conseguir maior latitude de liberdade civil. Porém, convencendo-se, pelo contrário, que a intenção das Cortes era reduzi-los outra vez à condição de colonos, separaram-se do partido português, e determina-ram conseguir a sua independência se fosse possível. (1943, p. 45, 63) Esta interpretação "nacionalista", segundo a qual a vinda da Cor-te e a abertura dos portos desencadearam um processo de exacerba-ção das contradições do sistema colonial e criaram uma oposiexacerba-ção in-sanável entre os interesses de portugueses e brasileiros, foi sendo repe-tida, com algumas variações, ao longo do século XIX e boa parte do século XX.

Para Emília Viotti da Costa, por exemplo, escrevendo em 1968, Desde 1808, D. João oscilava entre a necessidade de liberalizar a econo-mia, de acordo com as tendências da época e as exigências britânicas (...) e a necessidade de manter numerosas restrições indispensáveis à proteção dos interesses portugueses [...]. Adotar em toda. extensão os princípios do liberalismo econômico significava destruir as próprias bases sobre as quais se apoiava a Coroa. Manter o sistema colonial era impossível nas novas condições. Daí as contradições de sua política ecojiâmiCfl. Os inúmeros conflitos decorrentes acentuaram e tornaram mais claras, aos olhos dos dolonos e dos agentes da metrópole, as diver-gências de interesses existentes entre eles, provocando reações opos-tas: os colonos perceberam as vantagens de ampliar cada vaz mais a liberdade, enquanto os metropolitanos convenciam-se da necessidade de restringi-las. [...] A política de D. João VI tornaria Insuperáveis as

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•J

divergências entre colônia e metrópole e inevitável o rompimento en>*e

ambas (1968, p. 79-80). /

Para outra corrente, mais recente, o processo foi menos marcaac pela inevitabilidade. No seu clássico artigo sobre a "interiorização . J metrópole", por exemplo, Maria Odila Silva Dias argumentou que se- i conveniente "desvincular o estudo do processo de formação da nacio-nalidade brasileira (...) da imagem tradicional da colônia em luta coú-tra a metrópole", separando a independência política do "processo . terno (...) de enraizamento de interesses portugueses e interiorizaçr i

da metrópole no Centro-Sul da colônia"(1972, p. 161, 165). Este pro-cesso interno, através do qual mercadores e outros agentes econômica portugueses viram os seus interesses enraizarem-se no território bra. leiro e passarem a constituir a base para um potencial projeto econômi-co e polítieconômi-co autônomo, terá tido início ainda no século XVIII. Foi evi-dentemente reforçado pela instalação da Corte no Rio de Janeiro, e prc* seguiu até meados do século (cf. FRAGOSO, 1992; FRAGOSO e FL" RENTINO, 1993; GORENSTEIN, 1993; FURTADO, 1999; MATTOS 1999)| É, hoje, consensualmente reconhecido que foram esses interes-ses e a sua estruturação, muito mais que a naturalidade portuguesa c brasileira, que determinaram as atitudes das elites do Centro-Sul face ' política das Cortes de Lisboa e ao processo da Independência. Na for-mulação de Luiz Felipe de Alencastro: f

Nas classes dominantes do país, houve (...) dois comportamentos bein distintos e bem fundamentados quanto à opção a tomar depois de 182 Todos os proprietários, todos os fazendeiros e senhores de engenho estivessem eles na América portuguesa havia muitas gerações ou a, guns anos somente, tinham de brasilianizar-se. Detentores da orde" privada escravista, exercendo domínio direto sobre os escravos e o« homens livres que viviam em suas terras, eles precisavam assumir plb namente os direitos políticos outorgados pelo Império, a fim de garar tir sua própria inserção nas novas instituições nacionais. Todos os qu* tinham comércio, negócio de importação e de distribuição de importa dos, tomaram uma atitude oposta. (...) Continuavam submetidos às a sas comerciais do Porto e de Lisboa. Não convinha, nem aos seus pa-trões metropolitanos, nem a eles próprios, optar pela nacionalidade brasileira (1998, p. 308-309).

Neste contexto, ser português ou ser brasileiro eram construçóe

políticas que refletiam interesses e projetos sociais e econômicos mai? amplos, e, ao contrário do que pressupunha a historiografia

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nacionalis-ta tradicional, essas identidades não eram nem dadas de antemão, nem determinadas pela naturalidade de cada um.

De resto, o próprio contexto político encontrava-se em vias de reestruturação. Conforme sublinharam István Jancsó e João Paulo Pi-menta,

a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarve (...) transformara, ainda que apenas no plano simbólico, um conglomerado de capitanias atadas pela subordinação ao poder de um mesmo prínci-pe numa entidade política dotada de precisa territorialidade e de um centro de gravidade. (...] A partir daí, a nação brasileira tornava-se pen* sável se referida ao Estado - o Reino do Brasil - que definia seus contor-nos como uma comunidade politicamente imaginável (2000, p. 154-5). Neste processo de estruturação da nacionalidade, interesses eco-nômicos e referentes políticos relacionavam-se num processo fluido cujo desfecho estava longe de ser inevitável, o qual, de qualquer forma,

dificilmente poderá ser reconduzido à transferência da corte e às suas conseqüências imediatas.

Reconhecendo, de certa forma, as limitações de uma abordagem exclusivamente política ou político-econômica das suas implicações, outros autores têm vindo ainda mais recentemente a abordar a transfe-rência da corte, ou, melhor, a tentativa de recriação de uma corte euro-péia no Brasil, numa perspectiva cultural, centrada no seu funciona-mento e nos seus mecanismos internos. Merecem destaque, aqui, os livros de Jurandir Malerba (2000) e Kirsten Schultz (2001). Outros, ain-da, numa abordagem que se filia, de certo modo, na tradição historio-gráfica nacionalista, acentuaram o conflito - que se teria prolongado até a afirmação do modernismo, em pleno século XX - entre os mode-los europeus de civilização trazidos pela corte e as mais "autênticas" tradições culturais miscigenadas do povo brasileiro (NEEDELL, 1999). % difícil, hoje, imaginar o qhoque cultural que representou, para ambas as partes, o súbito desembarque no Rio de Janeiro de 10 a 15 mil cortesãos portugueses. Apanhados de surpresa por Junot e forçados a uma fuga improvisada, esses portugueses não sabiam bem o que os aguardaria quando finalmente chegassem ao seu destino. Mas podiam temer o pior, pois o que se sabia, ou julgava saber, em Portugal acerca dos habitantes do Brasil não era de molde a inspirar muita confiança. Já D. Luís da Cunha, quando, no início do século XVIII, aconselhava D. João V a transferir a sua corte para o Brasil, tentava argumentar contra o preconceito generalizado que havia em Lisboa a esse respeito:

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[...] pois não sabe como possa vir à cabeça de hum homem, que conser-va toda a sua razão, propor que hum Rey de Portugal trocasse a sua residencia da Europa pela América, cujos povos, sem falar da diferença dos climas, apenas tem os sentimentos de homens; ao que respondo, que as cidades do Brasil não são povoadas desta mizeravel gente, mas de muitos e bons portugueses que delia se servem, como em Lisboa nos servimos de negros (...) (apud. SCHWARTZ, p. 109).

Na realidade, 30% da população eram escravos; 40% eram mesti-ços, mamelucos e pardos; e dos restantes, "brancos", o Marquês de La-vradio disse numa carta, em 1768, que "os que. lá chamam brancos, passam entre nós com muito favor por mulatos" (1972, p. 34}.

O problema, para os europeus, não se limitava à cor da pele, mas estendia-se à mentalidade e ao comportamento. Segundo o frade car-melita Loreto Couto, no manuscrito que enviou de Pernambuco em 1757 ao futuro Marquês de Pombal;

Não é fácil determinar nestas Províncias quaes sejam os homens da Plebe [i.e. o povo]; porque todo aquelle que he branco na cor, entende estar fora da esfera vulgar. Na sua opinião o mesmo he ser alvo, que ser nobre, nem porque exercitam officios mecânicos perdem esta presump-çáo [...]. O vulgo da cor parda, com o immoderado desejo das honras de que o priva não tanto o acidente, como a substancia, mal se accomoda com as diferenças. O da cor preta tanto que se vê com a liberdade, cuida que nada mais lhe falta para ser como os brancos (1981, p. 226-7). Em 1798, comentava-se na Bahia que "as filhas do país têm um timbre tal que a filha do homem mais pobre, do mais abjecto, a mais desamparada mulatinha forra, com mais facilidade irá para o patíbulo de que servir ainda uma Duquesa, se na terra houvesse" (RUY, 1951, p. 43).

E, em 1805, o viajante inglês Thomas Lindley comentava assim a falta de respeito pela hierarquia entre a população brasileira:

É espantoso ver o pouco que se conhece a subordinação à hierarquia neste país; a FVança no auge da sua revolução e culto da cidadania ja-mais o excedeu, nesse aspecto. Aqui pode-se ver o criado branco versando com seu senhor de igual para igual de forma amigável, con-testar suas ordens, e discuti-las, se forem contrárias à sua opinião - o que o senhor admite, e freqüentemente consente. O sislerna náo fica nisso, mas se estende aos mulatos e até aos negros (1805, p. 60-69). Quando chegaram ao Rio de Janeiro, os membros da Corte viram-se forçados, por necessidade das circunstâncias, a interagir com os

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na-(

• A sombra da Corto: representações do povo no Brasil oitocentista • Robert Rowland.

turais da terra e aceitar a ajuda que estes, com alguma generosidade, lhes ofereceram. Essa interação nào se limitou aos primeiros momen-tos: à medida em que as estruturas da'corte foram sendo recriadas no novo contexto, foi a própria lógica de funcionamento da mesma que levou à inclusão dos naturais na densa teia de reciprocidade e redistri-buição, de prestações, contraprestações e distribuição de mercês, que caracterizava o funcionamento de uma corte de antigo regime.

Os membros da Corte, a administração imperial e sua clientela, estavam pouco familiarizados com os padrões de sociabilidade vigen-tes na colônia e viam na afirmação dos padrões ritualizados peninsula-res um modo de, pela distinção, afirmar a sua superioridade. Os pa-drões locais pareciam-lhes uma ausência de civilidade. Como afirmou mais tarde Fernand Denis, o qual certamente reproduzia aquilo que lhe disseram quando chegou ao Brasil em 1816, "neste país a sociedade não existia e com dificuldade se podiam descobrir alguns elementos de sociabilidade" (1980, p. 163-4).

As elites locais, por outro lado, aderiram prontamente às regras do jogo que lhes era proposto. Para além da generosidade, pelo menos em parte espontânea, com que receberam os portugueses recém-chega-dos, deixaram-se logo enredar na etiqueta da Corte, aprendendo e acei-tando as regras que lhes eram impostas, e, ao mesmo tempo, fazendo valer os recursos que comandavam e de que a Corte necessitava. Os membros desta, convencidos da superioridade dos seus próprios pa-drões de sociabilidade, concebiam a sua ação em termos de civiliza-ção. Como observaram, mais tarde, os naturalistas Spix e von Mar-tius, que também certamente reproduziam o ponto de vista dos seus anfitriões na corte, a "selvageria americana", pelo menos na capital, fora removida pela "influência da civilização e cultura da velha Euro-pa" (1981, p. 47-8)

O objetivo destas minhas reflexões, partindo deste primeiro con-junto de elementos, não se circunscreve às características ou às conse-qüências imediatas da instalação de uma corte de antigo regime no Rio de Janeiro. Olhando para além dfc período joanino e da conjuntura ime-diata pré e pós-independência, pretendo analisar algumas das conse-qüências indiretas da vinda da Corte. Em particular, interessam-me as que se relacionam com a formulação de um discurso identitário para o país recém-independente e com as sucessivas representações do povo enquanto base possível (ou impossível) para a construção de um proje-to nacional.

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• A Corte no Brasil: População e- Sociedade no Bras<i e em Portugal no inicio do Século '

" O

*

Comecemos, pois, com 1822. Consumada a ruptura política e lan-çadas as bases para a construção de um Estado independente, as elites brasileiras viram-se, também, na necessidade de formular uma narrau va fundacional, capaz de definir a especificidade da nova nação pd colonial e de fundamentar a reivindicação de um lugar no concerto d?" nações.

Sucessivas tentativas de elaborar essa narrativa lançaram mã.. como veremos, de um conjunto diverso e heterogêneo de temas e tójr' cos, os quais foram sendo combinados e recombinados por diferente* atores, de maneiras diversas e nem sempre coerentes, ao longo do sé-culo seguinte.

Estes elementos incluíram:

- a oposição a Portugal, expressa em agressões xenófobas, verbais e físicas, contra os "portugueses" no Brasil;

- a afirmação de uma continuidade histórica e cultural com Pc tugal, traduzida pela permanência da dinastia brigantina e pela prt* pria monarquia;

- a exaltação romântica da natureza tropical e da figura do índit, - o pessimismo, de inspiração supostamente científica (Darwij Spencer, Gobineau) acerca do efeito corruptor dos trópicos e da misci-genação;

- e finalmente, no meio disto tudo, a ênfase dada, sobretudo . partir do segundo reinado, à influência redentora e civilizadora da cc roa, com o imperador a desempenhar o papel de patrono das artes e-das ciências.

Posteriormente, a partir de 1922, e em particular após 1930, est narrativa composta e heterogênea foi sendo, progressivamente, substi-tuída pelo nacionalismo cultural associado ao modernismo, e pela ado-ção implícita, pelas elites culturais e pelo próprio aparelho de Estado, do "mito das três raças" como narrativa fundacional unificadora e he gemônica, à qual se atribuiu a função de definir as origens, a essência f»

perspectivas futuras do povo brasileiro (DA MATTA, 1981).

O exemplo do discurso modernista permite, por aquilo que re produz e por aquilo que pretende superar, perceber melhor a naturezr dos discursos anteriores. Subjacente à sucessão de narrativas identitá-rias que foram sendo elaboradas entre 1822 e 1922 havia, de fato, u m a

lógica política implícita. Esta lógica traduzia-se, de maneira sistemáti ca, na omissão - ou melhor, na elisão - do povo enquanto potencia1

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QJIQXQ, neste discurso, não era bom para pensar. Mais objeto que

sujeito, era visto como uma matéria-prima que, tal como a natureza tropical e as suas riquezas, tinha que ser dominada, civilizada, redimi' da. Só assim poderia vir, no futuro, a desempenhar a função que, nos termos da definição européia oitocentista do Estado nacional, lhe de-veria em teoria competir.

Para percebermos melhor a natureza do problema, convém exa-minar com um pouco mais de pormenor a estruturação desta narrativa compósita. Ao conseguirem a sua independência em relação à Espanha e a Portugal, as elites latino-americanas viram-se na contingência de terjle definir uma identidade nacional que simultaneamente corres-pondesse à especificidade cultural e étnica de cada novo Estado e ser-visse como justificação e legitimação da independência. As novas re-públicas latino-americanas e o império do Brasil eram, no sentido rigoroso do termo, Estados pós-coloniais, pelo que as suas elites cultu-rais e políticas, constituídas no âmbito do Estado colonial, não podiam basear essa identidade, de forma exclusiva, nas características das po-pulações e tradições nativasj Mesmo em países como o México e o Peru, onde a herança pré-colombiana era mais evidente, a língua, a cultura, a religião e as características étnicas das elites remetiam inevitavelmen-te para a Europa e o antigo sisinevitavelmen-tema colonial. A procura de raízes nacio-nais envolvia a invenção, ou recriação, de uma tradição que, de um modo ou de outro, estabelecesse uma relação entre a metrópole euro-péia. as culturas indígenas, e o recém-nascido Estado nacional.

Surgiram três formas de encarar esta relação. Por um lado, podia-se colocar a ênfapodia-se nas culturas e populações indígenas, definindo a identidade das novas nações em termos da sua especificidade cultural e herança pré-colombiana. Foi esta, em termos gerais, a atitude adota-da, embora de maneira hesitante, por Simón Bolívar. No Brasil, ela cor-respondeu ao nativismo das décadas de 1820 e 1830 e, mais tarde, ao indianismo.

Inversamente, podia-se, como Martin Sarmiento, afirmar a supe- \ rioridade da cultura e civilização européias, rejeitando, como inferio-res, as culturas indígenas e mestiças. Foi esta, no Brasil, como se sabe, a posição defendida, de forma isolada e inconseqüente, por Francisco Adolfo de Varnhugen.

Ou, então, seria possível adotar uma posição menos unilaterais cultivando as potencialidades da noção de uma civilização européia transplantada para a América, capaz de dar origem, no futuro, a novas

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formas culturais que refletissem o novo contexto tropical. Foi, sobretu-do, no Brasil que esta fórmula obteve sucesso, primeiro, de forma abs-trata, no conhecido ensaio escrito eín 1845 por von Martius para o ins-tituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre "Como se deve escrever a história do Brasil" (1991); e, um pouco mais tarde, com o desenvolvi-mento da noção de missão civilizadora do Estado, consubstanciada na ação do imperador e da sua corte.

No Brasil, por conseguinte, estas três perspectivas traduziram-se em três estratégias discursivas relativamente autônomas. Estas, apesar de formuladas em alturas diferentes, passaram a coexistir de forma ins-tável na produção ideológica das elites brasileiras durante mais de um século, o seu peso respectivo variando consoante as conjunturas políti-cas e o desenvolvimento da sociedade brasileira.

I - A primeira destas estratégias discursivas, que teve a sua ori-gem nos conflitos políticos que antecederam a independência e se lhe seguiram, definia a identidade brasileira em termos de oposição à me-trópole, servindo-se do que era visto como um conflito de interesses entre Portugal e o Brasil para explicar e justificar a separação política.

Num primeiro momento, tratou-se de opor "brasileiros" a "portu-gueses", deixando pelo menos implícito que era a naturalidade de cada um a determinar, em princípio, a sua colocação face à independência. Mas, na realidade, como já vimos, as coisas não eram tão conveniente-mente simples.

Antes e pouco depois da proclamação da independência em 1822, os "portugueses" eram aqueles, nascidos ou não em Portugal, que se opunham à solução política defendida e simbolizada por D. Pedro. Não eram muito numerosos. Os "brasileiros", inversamente, eram aqueles, nascidos ou não no Brasil, cujos interesses exigiam a sua inserção e participação nas novas instituições que se iam estruturando. A esses era preciso acrescentar os membros da população livre, brancos ou pardos, que se identificavam com a independência ou que se opunham aos "portugueses".

A partir de 1823, o significado dos termos começou a mudar. O termo "partido português" passou a designar, na capital e no sudeste do país, aqueles - sobretudo mercadores e comerciantes - que apoia-vam o projeto centralizador de D, Pedro; nas outras regiões do país, abrangia aqueles (na sua maioria grandes proprietários) que mantinham relações estreitas com a Corte. "Brasileiros" eram, conseqüentemente,

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os que se lhes opunham. Nesta nova conjuntura, o antilusitanismo dos Andradas, cujo alvo principal era esse "partido português", acabou por se alastrar e ser dirigido contra os comerciantes portugueses no varejo, tidos como responsáveis pela alta de preços, e contra os jovens caixei-ros portugueses, que eram acusados, como imigrantes, de ocupar mui-tos dos poucos lugares disponíveis no muito restrito mercado urbano de trabalho assalariado. Os confrontos entre estes portugueses e os tra-balhadores livres logo assumiram contornos raciais, opondo os "bran-cos" portugueses, ou "caiados", aos "pretos", "pardos" ou "mulatos". O que começara como uma contraposição abstrata entre partidos "nacio-nais" ameaçava tornar-se um conflito social, e como tal foi encarado como um problema de ordem pública.

Uma segunda versão desta primeira estratégia discursiva, já im-plícita em algumas expressões do antilusitanismo dos anos 1820, mas formulada de maneira mais explícita e autônoma por expoentes do movimento romântico dos anos 1830 e 1840, definia a identidade bra-sileira em termos positivos, sublinhando a singularidade do novo país, manifestada na natureza tropical, na paisagem luxuriante, bem como na população, na cultura e nas tradições indígenas.

Estas estratégias discursivas não foram elaboradas ou utilizadas isoladamente, como nos mostra o exemplo de D. Pedro, o qual, quando foi iniciado na maçonaria em 1822, adotou o nome de Guatimozim (ou seja, Cuauhtémoc-tzin), o último imperador asteca. O nome do jornal de José Bonifácio, O Thmoio, evocava a resistência dos índios contra a

colonização portuguesa. Pouco depois da independência, tornou-se moda mudar de nome, trocando sobrenomes portugueses por nativos. O exemplo mais conhecido foi o do futuro Visconde de Jequitinhonha, Francisco Gomes Brandão, o qual, em 1823, adotou um sobrenome com-posto (africano, tupi e asteca): Francisco Gê Acaiaba Montezuma.

Esta tendência nativista jk vinha de antes da independência. Nas decorações e cerimônias da corte de D. João, o Brasil era freqüentemen-te representado pela figura de^um índio e pela vegetação tropical. Es-crevendo pouco depois da independência, o jovem Ferdinand Denis argumentou que um país livre como o Brasil deveria ter uma literatu-ra independentejLpropôs Que a natureza tropical, juntamente com os costumes, tradições e a resistência heróica dos índios deveriam subs-tituir a cansada paisagem européia e as figuras da mitologia grega ou cavalaria medieval como fontes de inspiração literária (1824, 1825, 1837).

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Atitudes similares foram freqüentes durante os anos 1820 e 1830 e serviam, por vezes, como contraponto cultural à retórica antilusitana veiculada nos jornais e nas ruas.

Costuma-se considerar, como ato fundador do romantismo brasi-leiro, a publicação em 1836, em Paris, dos Suspiros poéticos e saudades

de Gonçalves de Magalhães, e dos dois únicos números da revista

Nite-rói. Mas, de fato, a história é mais complexa. Magalhães e o pintor

Araú-jo Porto-Alegre tinham ido a Paris a convite de Jean-Baptiste Debret, o pintor responsável por boa parte da iconografia da Corte no Rio entre 1816 e 1831 (LIMA, 2007), o qual os introduziu no círculo associado ao recém-criado Instituí Historique de Paris. Foi aqui que surgiu a idéia da

revista, em que Magalhães preconizou uma literatura guiada pela idéia de pátria e que deixasse para trás os modelos portugueses. Todos os

que integravam o grupo ligado à revista eram membros do Institut His-torique, e todos viriam a tornar-se membros do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, criado em 1838 sob a égide do jovem imperador D. Pedro II (GUIMARÃES, 1988). G romantismo brasileiro foi, por ou-tras palavras, uma tentativa programática para definir e promover, atra-vés da criação de uma cultura literária e histórica autenticamente bra-sileira, uma identidade nacional e, indiretamente, para fornecer uma ideologia de legitimação para o ainda jovem Estado imperial (CÂNDI-DO, 1997. p. 11,14).

Foi este, pois, o contexto em que surgiu o indianismo, o qual, durante as próximas décadas, seguindo o exemplo e as sugestões de Ferdinand Denis e outros expoentes do romantismo europeu, iria tor-nar-se a tendência dominante do romantismo brasileiro, fazendo da figura trágica do índio, vítima sacrificial da conquista e da coloniza-ção, o emblema da nova nação.

II - A segunda das três estratégias discursivas, quase simetrica-mente oposta à primeira, foi, como disse, adotada por Francisco Adolfo dè Varnhagen. Este, na sua juventude, tinha tido um breve namoro com o indianismo. Mas depois de uma experiência pessoal traumática no interior do Estado de São Paulo, quando por pouco se livrou de ser atacado, segundo afirmou, por um bando assassino de selvagens, resol-veu denunciar o que qualificou de "ilusões indianistas". Em 1849, pu-blicou um panfleto condenando a legislação que visava promover a assimilação dos indígenas, considerando-a condenada ao fracasso. Pelo contrário, asseverava, dever-se-ia acabar com a importação de escravos

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africanos (responsável, aos seus olhos, por muitos males, entre os quais» a miscigenação) e extinguir a escravatura. Em sua substituição, dever-se-ia promover a captura dos índios selvagens para amansá-los e obri-gá-los a trabalhar. Uma vez civilizados pelo trabalho forçado poderiam, ao contrário dos africanos, misturar-se com o resto da população. Só a força, concluiu, seria capaz de vencer a barbárie (PUNTONI, 2003).

Em 1854. Varnhagen publicou o primeiro volume da sua História Geral do Brasil, onde exaltava o papel histórico desempenhado pelos

portugueses. A obra foi recebida com indiferença. Espicaçado pela re-cepção entusiástica acordada, pouco depois, ao poema épico do seu rival indianista Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios,

que apresentava o sacrifício dos índios como mito fundador da nacio-nalidade, Varnhagen incluiu, no segundo volume de sua História, uma

versão revistajie um texto que apresentara cinco anos antes ao impera-dor. Neste texto, intitulado "Os índios e a nacionalidade brasileira", Varnhagen afirmou que o poema de Gonçalves de Magalhães estava repleto de erros e que, além do mais, as teses indianistas careciam de fundamento histórico. Os Tupi, continuou, nem sequer eram os habi-tantes originais do país. Tinha sido, e era, o elemento civilizador lusi-tano - representado, na atualidade, pela Casa de Bragança e pelo impe-rador - que constituía o fundamento e garante da nacionalidade brasi-leira (PUNTONI, 2003, p. 656-661).

Apesar de violenta, a polêmica não teve continuidade. À primei-ra vista, parecia ser uma meprimei-ra continuação das polêmicas entre nati-vistas e "portugueses" nos anos que se seguiram à independência. Mas havia algo mais em jogo, Num país cuja economia se baseava na escra-vatura, e onde 60% da população era classificada como sendo de cor, uma polêmica acerca do papel respectivo de portugueses e de índios enquanto verdadeira expressão da nacionalidade estava a escamotear a questão principal. O problema da escravatura e das suas implicações foi sistematicamente elidido durante a discussão, apesar de a ênfase de Varnhagen na Casa de Bragança e na figura do imperador estar apa-rentemente a retomar a advertência feita alguns anos antes por von Mar-tius (no seu ensaio de 1845) quanto à importância da monarquia num país com tantos escravos. Não deixa de ser significativo, a este respeito, que um indianista tão proeminente como José de Alencar possa ter sido, sem contradição, um opositor notório da emancipação dos escravos.

De fato, em toda esta discussão quem primava pela ausência era o povo, como se houvesse uma recusa implícita, por parte das elites

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culturais e políticas, em pensar sobre a natureza das relações que man-tinham com "aquela massa de gente de outras origens com a qual, so-bre a qual, ou contra a qual caberia organizar o novo corpo político" (JANCSÓ e PIMENTA, 2000, p. 173).

Nas polêmicas antilusitanas das décadas de 1820 e 1830 - que se prolongaram até a Revolução Praieira de 1848 e depois - o que estava em jogo era a definição implícita, pela negativa, de uma identidade

"brasileira", contrastada com uma igualmente factícia identidade "por-tuguesa". Como observou Hebe Mattos (2000, p. 19), "deste processo surgiria o 'brasileiro', contrastado desde o início com a produção con-comitante de dois estrangeiros cotidianos: o português e o africano". O "povo brasileiro" encontrava-se delimitado do exterior, pela figura do "estrangeiro" - no caso. do "português" -, mas também do interior, pela presença de uma muito significativa população de escravos e libertos. Havia, efetivamente, três elementos em jogo, e não apenas dois. Em 1822, o Brasil comportava, para além de uma das maiores populações escravas (46% da população do Rio de Janeiro), a maior população de descendentes livres de escravos das Américas.

Nas cortes de Lisboa, em agosto de 1822, o baiano Cipriano Bara-ta falava da sociedade brasileira como composBara-ta por

mulatos (...), cabras e crioulos; índios, mamelucos e mestiços, reconhe-cendo em todos, indistintamente, gentes todas nossas (...) que a Consti-tuição deveria reconhecer como iguais, fossem eles filhos de portugue-ses, ou de brasileiros, ainda que ilegítimos, de qualquer corou qualida-de, nascidos no reino do Brasil; e mesmo todos os crioulos e libertos (JANCSÓ e PIMENTA, 2000, p. 172).

Dirigir as hostilidades contra o "estrangeiro", contrapor abstrata-mente o "português" ao "brasileiro", era uma forma de contornar as implicações incômodas dessa diversidade e, em particular, do peso da escravatura na ordem social brasileira. Implicações que se tornavam por demais evidentes quando, também em Lisboa, os deputados pau-listas reivindicaram para o Brasil a paridade de representação com base na população total brasileira e, ao mesmo tempo, o reconhecimento da especificidade da ordem social no Brasil, restringindo a cidadania a uma parte apenas dessa população.

Mesmo quando dela não se falava explicitamente, a questão da escravatura era fulcral. Desde o início, o indianismo e, ainda antes dis-so, o romantismo de Niterói, tinham constituído uma narrativa

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essência da nova nação. Não deixa de ser significativo, neste contexto, que a mera oposição aos portugueses e à sua gesta colonial tenha sido transformada por Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães e outros, num mito sacrificial de fundação, cujo desfecho era o Estado imperial unitário e centralista. Ao justificar a sua História Geral, cujo tema cen-tral era a missão civilizadora dos portugueses, Varnhagen dizia estar a promover um patriotismo que, ao contrário do "patriotismo caboclo" dos indianistas, não se baseava no "ódio aos portugueses" (VARNHA-GEN, 1961, p. 244). Talvez não se tenha dado conta de que os seus adversários, protegidos do imperador, longe de prolongarem as polê-micas antilusitanas dos anos 1820, estavam, de fato, a tentar, embora por outros meios, justificar aquele mesmo Estado e aquelas mesmas instituições que Varnhagen julgava e desejava servir - instituições que eram essenciais, nas circunstâncias tão mudadas de meados do século, para a manutenção e sobrevivência de uma economia e uma sociedade baseadas na escravatura.

III • A terceira estratégia discursiva, que acabou por impor-se em meados do século, representava, de certa forma, uma combinação das duas que lhe precederam. Mas, ao mesmo tempo, ia mais longe. Inde-pendentemente do papel a atribuir aos portugueses ou às culturas indí-genas na formação do novo país, começou a haver consenso a respeito de uma coisa: era missão histórica do Estado imperial criar uma civili-zação nos trópicos. E esta civilização, pelo simples fato da sua

localiza-ção, teria de representar uma síntese dinâmica de elementos europeus e americanos. A identidade nacional deixava, neste discurso, de resi-dir numa qualquer essência aUemporal ou numa simples oposição à metrópole colonial, mas consistia num processo - ou, melhor, num projeto - cujo sujeito e principal impulsionador era o Estado, represen-tado pelo imperador (SCHWARCZ, 1998). Como promotor da moderni-dade e portador da cultura européia, da tecnologia e do progresso, o Estado, auxiliado por um círculo restrito de cidadãos educados, tinha ' como tarefa organizar e disciplinar uma natureza selvagem, da qual, implicitamente, faziam parte todos os setores da população que até então haviam sido excluídos do processo de civilização - os escravos, os li-bertos e os setores mais pobres da população livre (SALLES, 1996, p. 101; MATTOS, 1999, p. 238-74).

Por outras palavras, era missão do Estado assegurar a construção política da nação. Mas em que bases? A própria subordinação da

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socie-dade civil ao Estado, e o peso neste de instituições não representativas eram índice e conseqüência da inorganicidade de uma sociedade ex-cludente (SALLES, p. 67-8). No texto que escreveu em finais da década de 1850 para acompanhar o célebre álbum fotográfico de Victor Frond (SEGALA, 1988), Charles Ribeyrolles comentou que "no Brasil, exis-tem brancos, negros, mulatos, mas, no verdadeiro sentido da palavra, não há povo". Para este discípulo de Victor Hugo, o futuro da nação brasileira residia na constituição de um povo modelado pelo trabalho e renovado pela imigração. O seu comentário foi feito, justamente, a pro-pósito do fracasso da Associação Central de Colonização Brasileira, que se propusera, num primeiro momento, importar 50 mil colonos euro-peus. O projeto fracassara, achava ele, porque no Brasil não havia quem quisesse ou fosse capaz de o assumir - não havia, por outras palavras, o que ele considerava um povo rio verdadeiro sentido da palavra.

Considerações análogas foram tecidas, em 1865, por Charles Ex-pilly, outro autor interessado no potencial do Brasil como terra de imi-gração (1865:136-8). Um pouco mais tarde, ainda, em 1881, Louis Couty (1881: 87-90) afirmou que no Brasil, entre 2 500 000 índios e escravos, por um lado, e 500 000 proprietários de escravos, por outro, vegetavam 6 milhões de pessoas, entre os quais não se vislumbravam aquelas massas fortemente organizadas de produtores livres que, nos países civilizados, constituíam a base de toda a riqueza e uma massa de elei-tores capaz de impor ao governo uma direção definida.

Nestas circunstâncias, não havia quem mobilizar em torno de um projeto nacional, e a construção política da nação passava pela trans-formação da população através de um projeto de civilização assumido pelo Estado. Não deixa de ser significativo, como assinalou Bóris Kos-soy (1999), que, no álbum fotográfico elaborado sob as ordens de Rio Branco para a Exposição Universal de Paris, em 1889, se tenha procu-rado apresentar a imagem de um país transformado pelos esforços mo-dernizadores do Estado, responsável pela introdução dos resultados da ciência e da técnica modernas e pela transformação da natureza tropi-cal. No-álbum de Rio Branco, ao contrário do álbum de frond, quase não se encontra representado o povo trabalhador.

Entretanto, o custo político e econômico da reprodução da força de trabalho escrava continuou a aumentar, e multiplicavam-se as vo-zes que se faziam sentir a favor da abolição. A inevitabilidade da imi-gração e da transição para o trabalho livre era evidente, e a definição de uma política de imigração levantava questões centrais a respeito da

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composição racial da população e das atitudes face à miscigenação e à definição da cidadania numa sociedade sem escravos (ALENCASTRO, 1998, p. 293-6).

Foi, precisamente, neste momento, quando a sociedade brasileira estava a ter de encarar uma definição substantiva da sociedade civil, que o projeto ideológico que tinha estado subjacente à idéia de uma missão civilizadora do Estado imperial começou a desmoronar.

A elite imperai propunha-se a introduzir a civilização, a.ciência e a tecnologia européias, e isto implicava estar a par das últimas tendên-cias científicas e culturais. Na literatura, com a geração de 1870, o ro-mantismo foi destronado pelo realismo e pelo naturalismo, ao mesmo tempo que aqueles que eram tidos como os mais destacados intelectuais europeus começavam a adotar uma visão "científica" da sociedade, baseada no darwinismo evolucionista e numa preocupação com as implicações da raça para o desenvolvimento social (SCHWARCZ, 1993). O Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de Gobineau, foi

publicado em 1854, e a Origem das espécies, de Darwin, em 1859. O

próprio Gobineau foi encarregado da missão diplomática francesa no Rio de Janeiro em 1869-70, freqüentando a Corte.

Segundo o recenseamento de 1872, a população livre brasileira era de 3 800 000, a população livre de cor 4 200 000, e os escravos eram - ainda - 1 200 000. Face a estes números, era inevitável que se discu-tisse a escravatura, a raça e a miscigenação. Os intelectuais conhecidos como pertencendo à geração de 1870, aplicando estas teorias à socie-dade brasileira, começaram a manifestar um pessimismo generalizado sobre o que tinha vindo a ser definido, de maneira inevitável, como uma nação mestiça.

Na literatura, como disse, o realismo de Machado de Assis e Raul Pompéia deu o golpe de misericórdia num romantismo já agonizante, e autores naturalistas, como Aluízio de Azevedo, passaram a pintar um quadro pessimista da sociedade brasileira, sublinhando os efeitos de-gradantes da raça, da hereditariedade e do ambiente. A revolta de Ca-nudos veio apenas confirmar, aos olhos de muitos, este diagnóstico pessimista, e passou a representar, por metonímia, o atraso do povo brasileiro. A partir de então, os termos da discussão teriam necessaria-mente de ser outros.

Alguns anos atrás, o brasilianista norte-americano Jeffrey Needell publicou um artigo intitulado "A missão civilizadora doméstica: o pa-pel cultural do Estado no Brasil, 1808-1930" (1999). Neste ensaio, cujo

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ponto de partida é, justamente, a vinda da Corte em 1808, Needell abor-da, sucessivamente, a política cultural de D. João VI, com a sua tentati-va, através da chamada "missão artística" francesa, de importar mode-los europeus - franceses - de belas-artes; a tentativa do governo impe-rial de impor, nos anos 1820 a 1850, instituições e modelos culturais de origem igualmente francesa, desde o Instituto Histórico e Geográfi-co Brasileiro ao próprio romantismo indianista; a política cultural modernizadora do Visconde de Rio Branco, na década de 1870; e o que, numa obra anterior (NEEDELL, 19&7) já denominara a "belle époque tropical", com uma nova tentativa, na virada do. século, de importar modelos culturais europeus.

Em todos estes episódios, Needell vê uma tentativa elitista e au-toritária de impor um modelo europeu de civilização e de suprimir a cultura popular de matriz afro-brasileira. Não nos deve surpreender, assim, que ele interprete a Semana de Arte Moderna de 1922, e o patro-cínio do modernismo pelo Estado a partir de 1930, como uma inversão de tendência, com a assunção pelo Estado dessa mesma cultura popu-lar, antes rejeitada, como emblemática da identidade brasileira.

Parece-me que esta abordagem, apesar de sugestiva, é, pela sua ênfase nos modelos culturais, demasiado unilateral e empobrecedora. Considero, pelo contrário, que toda a questão dos modelos e códigos culturais ganha muito em ser recolocada no seu contexto social e polí-tico. Dizer que a vinda da Corte em 1808 inaugurou um período de um século durante o qual sucessivos governos elitistas tentaram impor ao povo brasileiro modelos culturais europeus não deixa de ser verdade, mas passa ao lado do que me parece ser a verdadeira questão.

/ A o longo de todo este período, o que esteve em discussão foi, certamente, a identidade cultural brasileira. Mas também estavam em discussão a definição, a construção e a representação da nação, e a relação entre esta e uma determinada ordem social. O que foi inaugura-do pela vinda da Corte foi uma determinada maneira de encarar este problema. As características da ordem social brasileira, escravista e excludente, tornavam difícil qualquer tentativa de atribuir ao povo o papel de portador de um projeto político. Nestas condições, em que o povo como sujeito era uma noção difícil de se pensar, a alternativa era

considerá-la como objeto, como matéria-prima tropical a necessitar de

transformação e valorização. Trata-se, com efeito, da perspectiva que está já implícita no oximoro da. noção de uma Versalhes tropical. Ape-sar do seu anacronismo - afinal de contas, uma quinta oferecida por um ,

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C^G-^CA-negreiro a um expoente tardio do antigo regime ibérico tinha pouco a ver com o palácio do Roi-soleil - a expressão de Oliveira Lima traduz de maneira bastante eficaz a maneira como, ao desembarcarem no Rio, os membros da Corte reagiram ao novo ambiente que encontraram. Imagi-nando-se a si próprios como portadores das luzes da civilização, acaba-ram por desconhecer o mundo que os rodeava. As sucessivas tentativas de enquadramento conceituai e político da sociedade brasileira em fun-ção de uma nofun-ção importada de civilizafun-ção, e dos interesses que nela se refletiam, acabaram por lançar sobre ela menos luz do que sombra.

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