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As práticas de leitura de pessoas com síndrome de Down: implicações para a constituição do leitor

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Academic year: 2021

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Letícia Alves de Souza

AS PRÁTICAS DE LEITURA DE PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN: IMPLICAÇÕES PARA A CONSTITUIÇÃO DO

LEITOR

Dissertação submetida ao Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Linguística.

Orientador: Profª. Drª. Ana Paula de Oliveira Santana.

Florianópolis 2017

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Letícia Alves de Souza

TÍTULO: SUBTÍTULO (SE HOUVER)

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de “Mestre” e aprovada em sua forma final pelo Programa de

Pós-graduação em Linguística Local, x de xxxxx de xxxx. ________________________ Prof. xxx, Dr. Coordenador do Curso Banca Examinadora: ________________________ Prof.ª xxxx, Dr.ª Orientadora Universidade xxxx ________________________ Prof.ª xxxx, Dr.ª Corientadora Universidade xxxx ________________________ Prof. xxxx, Dr. Universidade xxxxxx AGRADECIMENTOS

À professora Ana Paula, pela amizade, pela liberdade, pela confiança e pelos profundos ensinamentos.

À professora Rosângela, por nossas aulas, pelas conversas no café, por me apresentar a linguística aplicada e pela formação para a vida.

À professora Maria Sylvia, responsável por aumentar meu desejo em acreditar cada vez mais nas pessoas com síndrome de Down.

À professora Cláudia, por aceitar fazer parte dos direcionamentos dados à minha pesquisa.

À professora Mary, a quem tenho grande estima, sobretudo por ter me proporcionado uma admiração maior a Vigotski e a Marx.

À professora Núbia, que teve paciência para me mostrar que a gramática gerativa é compreensiva a qualquer um.

Ao Jonas, meu amigo e companheiro.

Às colegas de estudo Camila, Charlene, Mônica, Carla, Nicole, Beth, Laís e Sandra, pelas trocas e ensinamentos.

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“Quanto a ser nômade, sim, se isto significar liberdade, amplitude de ação, mas nunca se significar falta de direção” (CELANI, 1998)

RESUMO

Muitos trabalhos sobre Alfabetização relacionados a pessoas com síndrome de Down já foram realizados, todavia, há escassez de discussões sobre as práticas sociais de leitura e escrita dessas pessoas. O tema dessa dissertação é sobre como pessoas com síndrome de Down se inserem nas práticas sociais de leitura e escrita, e de que forma essa inserção influencia o processo de alfabetização para a constituição do leitor, tendo em consideração a impossibilidade de dissociar a discussão entre alfabetização e letramento. Objetiva-se, neste estudo, compreender as práticas sociais de letramento de pessoas com síndrome de Down alfabetizadas e discutir as implicações dessas práticas para o processo de constituição do leitor. Essa pesquisa apresenta-se de forma qualitativa enquanto estudo de caso de duas pessoas alfabetizadas com síndrome de Down. A fim de empreender uma análise acerca da leitura desses indivíduos, foram realizadas entrevistas com os mesmos, com seus familiares e professores. As duas pessoas com síndrome de Down que participaram desta pesquisa são: Sofia, 30 anos, e com o ensino médio completo, trabalha atualmente como auxiliar administrativo numa empresa. Em seu trabalho, diariamente faz uso da leitura, sobretudo a partir do manuseio de documentos, apresentando boa compreensão em sua leitura; e Pedro, 15 anos, cursa o 9º ano escolar, dentre suas atividades diárias, frequenta o atendimento educacional especializado. Na leitura, Pedro, apresenta dificuldade em abstrair conceitos e de compreensão quando não há mediação do interlocutor. Nos dois casos, as mães foram as principais responsáveis pelo incentivo na busca da alfabetização dos dois indivíduos. A análise de dados que compõe esta pesquisa aponta para a importância das práticas sociais de leitura e de escrita, como as brincadeiras em casa e na escola, a vivência lúdica com materiais escritos, a vivência familiar com a leitura, sendo estas pontos primordiais para a alfabetização dos participantes com síndrome de Down. Conclui-se que as práticas sociais de leitura e escrita vivenciadas pelos indivíduos antes da entrada na instituição de ensino e durante o processo de alfabetização foram de grande relevância para o aprendizado da leitura e da escrita. Desta forma, a partir da imersão de práticas sociais de leitura e escrita vivenciadas no contexto familiar e educacional, os dois indivíduos dessa pesquisa, resguardadas todas as suas dificuldades, constituíram-se como leitores, evidenciando que a síndrome não é definidora para a alfabetização e para o letramento, mas estas ocorrem a partir das práticas vivenciadas no meio social.

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Palavras-chave: Leitura. Letramento. Práticas sociais de leitura e escrita. Síndrome de Down.

ABSTRACT

A lot of research on literacy related to people with Down syndrome has already been conducted; however, there is not much debate on these people’s social practices of reading and writing. Thus, this master thesis focuses on how people with Down syndrome are inserted in social practices of reading and writing and also how such insertion influences the initial literacy processes in the reader’s development, taking into account the impossibility of dissociating the discussion between the initial and the later processes of literacy. In this sense, the objectives of this study are to understand the social literacy practices of literate people with Down syndrome and to discuss the implications of these practices in the reader's development process. This research is a qualitative case study of two literate individuals with Down syndrome. The data collection was conducted through interviews with the participants, their relatives and teachers. Sofia, one of the participants, is 30 years old and is graduated from high school. She is currently working as an administrative assistant in a company. For her job, she makes use of reading daily, especially from the handling of documents, and she presents good reading skills. Pedro, the other participants, is 15 years old and attends the 9th year of elementary school. Among his daily activities, he also attends a specialized educational service. Concerning his reading, Pedro presents difficulty in abstracting concepts and understanding when there is no interlocutor’s mediation. In both cases, the mothers were mainly responsible for encouraging the literacy development of the individuals. The data analysis points to the importance of social practices of reading and writing, such as: playing activities at home and at school, contact with playful written materials, and family experience with reading. Such activities were primordial for the literacy development of the participants. It was concluded that the social practices of reading and writing experienced by the individuals before entering the teaching institution and during the literacy process were pivotal for their reading and writing learning. In this way, from the immersion of social practices of reading and writing experienced in the family and educational contexts, the two participants of this study, in spite of all their difficulties, constituted themselves as readers. This demonstrates that the syndrome does not define the initial and the later processes of literacy. Literacy occurs through the practices lived in the social environment.

Keywords: Reading. Literacy. Social practices of reading and writing. Down syndrome

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Cariótipo apresentando a trissomia do cromossomo 21...25

Figura 2 – Cariótipo humano normal e cariótipo humano com trissomia do cromossomo 21...26

Figura 3 – Cariótipo apresentando a translocação do cromossomo extra para o cromossomo 14 ...27

LISTA DE QUADROS Quadro 01 – Diagnóstico clínico da SD...27

Quadro 02 – As cinco dimensões da AAIDD ...38

Quadro 03 – Classificação da síndrome de Down segundo a CID-10...47

Quadro 04 – Classificação para a deficiência intelectual segundo categorias da CID-10 ...47

Quadro 05 – Documentos sobre as pessoas com deficiência e a relação com a educação ...57

Quadro 06 – Transcrição da escrita de Sofia quando frequentava a 5ª série, com 14 anos, no ano de 2001...118

Quadro 07 – Transcrição da escrita de Sofia, com 30 anos, no ano de 2016...120

Quadro 08 – Apropriações da aprendizagem no período escolar da Educação Infantil, nos anos de 1989 a 1996...128

Quadro 09 – Apropriações da aprendizagem no período escolar do Ensino Fundamental I (Ensino Primário), nos anos de 1996 a 2000...131

Quadro 10 – Comparativo da aprendizagem de Sofia Capacidades de leitura avaliadas pelo PNAIC nos anos iniciais...135

Quadro 11 – Texto original do gênero nota informativa...146

Quadro 12 – Transcrição da leitura de Sofia do gênero nota informativa...146

Quadro 13 – Texto original do gênero cartaz...148

Quadro 14 – Transcrição da leitura de Sofia de um cartaz do gênero informativo ...149

Quadro 15 – Texto original do gênero notícia...149

Quadro 16 – Transcrição da leitura de Sofia gênero notícia...151

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Quadro 18 – Transcrição da escrita de Pedro no ano de 2016...160

Quadro 19 – Apropriações da aprendizagem no período escolar do Ensino Fundamental I, nos anos de 2003 a 2016...162

Quadro 20 – Capacidades de leitura avaliadas pelo PNAIC no 2º ano dos anos iniciais do EFI, em comparação a aprendizagem de Pedro na 1ª série/2º ano...166

Quadro 21 – Texto original do gênero notícia...171

Quadro 22 – Recorte da leitura do gênero reportagem, realizada por Pedro...173

Quadro 23 – Texto original do gênero charge...177

Quadro 24 – Transcrição da leitura de Pedro do gênero charge...178

Quadro 25 – Capacidades de Leitura nomeadas por Rojo (2004) ...179

LISTA DE TABELAS Tabela 01 – Pessoas de 5 anos ou mais de idade, com deficiência intelectual e a relação com a alfabetização e os grupos de idade...74

Tabela 02 – Distribuição de matrículas por tipo de deficiência...75

Tabela 03 – Evolução do Número de Matrículas na Educação Básica por Modalidade e Etapa de Ensino...76

Tabela 04 – Número de Matrículas na Educação Básica por Modalidade e Etapa de Ensino da Educação Especial no ano de 2013...77

Tabela 05 – Evolução do indicador de alfabetismo da população de 15 a 64 anos...81

Tabela 06 – Distribuição da população em grupos de alfabetismo e escolaridade ...81

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAIDD - American Association on Intellectual and Developmental Disabilities.

AAMR - American Association on Mental Retardation. AEE - Atendimento Educacional Especializado.

APAE - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais. APA - Associação Psiquiátrica Americana.

CID - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde.

CIF - Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde.

DEED - Diretoria de Estatísticas Educacionais.

DPI - Disable People’s International (Entidade Internacional de Deficientes).

DSM-IV - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fourth Edition (Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais - Quarta Edição).

DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos. ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente.

EFI - Ensino Fundamental do 1º ao 5º ano. EFII - Ensino Fundamental do 6º ao 9º ano. EJA - Educação de Jovens e Adultos. EM - Ensino Médio.

FCEE - Fundação Catarinense de Educação Especial. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. INAF - Indicador de Alfabetismo Funcional.

INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira.

LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação. MEC - Ministério da Educação e Cultura. OMS - Organização Mundial da Saúde.

PDE - Plano de Desenvolvimento da Educação. PIS - Programa de Integração Social.

PNAES - Programa Nacional de Assistência Estudantil. PNBE - Programa Nacional de Biblioteca da Escola. PNE - Plano Nacional de Educação.

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. QI - Quociente de Inteligência.

SNPD - Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância.

UPIAS - Union of the Physicalli Impaired Against Segregation (Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação).

USP - Universidade de São Paulo.

WISC-III - Wechsler Intelligence Scale for Children - Third Edition (Escala de Inteligência Wechsler para Crianças - Terceira edição).

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 12

2 SÍNDROME DE DOWN: A DEFICIÊNCIA EM QUESTÃO ... 18

2.1 CARACTERIZAÇÃO DA SÍNDROME DE DOWN ... 18

2.2 SÍNDROME DE DOWN E DEFICIÊNCIA ... 27

3 INCLUSÃO E SÍNDROME DE DOWN: LINHAS QUE SE CRUZAM ... 45

3.1 A INCLUSÃO E A ESCOLARIDADE DAS PESSOAS COM SÍNDROME DE DOWN EM QUESTÃO ... 45

3.2 A ESCOLARIDADE NO BRASIL EM DADOS ESTATÍSTICOS...67

4 A LEITURA E A ESCRITA CONSTITUIDORAS DA HISTÓRIA SOCIAL ...79

4.1 A APRENDIZAGEM NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL ... 79

4.2 APRENDIZAGEM E LINGUAGEM ESCRITA ... 85

4.3 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: A ALFABETIZAÇÃO E O LETRAMENTO ... 94

4.4 A LEITURA E O LEITOR ... 98

5 METODOLOGIA ... 106

5.1 SELEÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ... 106

5.2 PROCEDIMENTOS DE PESQUISA ... 107

6 A TRAJETÓRIA DE SOFIA NA APROPRIAÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA ... 112

6.1 SOFIA E SUA ENTRADA NA “CULTURA ESCRITA” ... 118

6.2 SOFIA, UMA LEITORA? ... 141

7 A TRAJETÓRIA DE PEDRO NA APROPRIAÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA ... 154

7.1 PEDRO E SUA ENTRADA NA “CULTURA ESCRITA” ... 157

7.2 PEDRO, UM LEITOR? ... 166

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 180

REFERÊNCIAS ... 186

ANEXO A – Texto escrito por Sofia na 5ª série ... 202

ANEXO B – Texto de Sofia escrito na terapia fonoaudiológica em 2016...204

ANEXO C – Relatório da Professora Integradora da Sala de Recursos, quando Sofia estava na 7ª série ... 207

ANEXO D – Escrita de Pedro durante a entrevista do trabalho de pesquisa em 2016. ... 209

1 INTRODUÇÃO

O interesse pelas práticas de leitura de pessoas com síndrome de Down (doravante SD) surgiu da experiência pessoal como fonoaudióloga na área educacional, ocorrida, sobretudo, durante a vivência na educação especial. A possibilidade de conviver com indivíduos com esta síndrome, desde crianças recém-nascidas, a idosos e vivenciar o desenvolvimento pelo qual passavam, fez com que despertasse uma motivação para compreender o seu processo de alfabetização e letramento. Questionei-me até que ponto as vivências na família e na escola poderiam influenciar o desenvolvimento da aprendizagem da leitura por parte das pessoas com síndrome de Down, para além dos déficits apontados na literatura que acompanham a “síndrome”, já que uma lista de sintomas não define um indivíduo. É este, pois, o contexto que marca o interesse pela elaboração da presente pesquisa.

Inicialmente, vale destacar os diversos estudos reconhecidos na literatura e que consideram as pessoas com SD como pessoas com deficiência intelectual1, estudos estes que, por vezes, perduram como guia

do pensamento e das práticas de muitos profissionais e/ou pessoas que pelos mais variados motivos se veem envolvidas com pessoas com SD. De modo inverso ao ideário coletivo, este trabalho de pesquisa, assim como de alguns estudiosos e outros profissionais2, sustenta-se na

1 Embora a maioria das legislações, dos trabalhos científicos e dos livros

consultados utilizem ainda os termos “retardo mental” e “deficiência mental” – os quais serão mantidos –, neste estudo se utilizará o termo “deficiência intelectual” pelos seguintes posicionamentos: “[...] é mais apropriado o termo intelectual por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo [...] podermos melhor distinguir entre deficiência mental e doença mental” (SASSAKI, 2005, p. 2, grifos do autor). Outro ponto importante é a Declaração de Montreal sobre deficiência intelectual, elaborada durante o evento da Organização Pan-Americana da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, que aconteceu no ano de 2004, no Canadá, e do qual o Brasil também participou (SASSAKI, 2005). Em 2002, a Confederação Espanhola de Organizações para Pessoas com Deficiência Mental substituiu a palavra “Mental” por “Intelectual”. Em 2003, nos Estados Unidos, o então Comitê Presidencial de Deficiência Mental passou a se chamar Comitê Presidencial para Pessoas com Deficiência Intelectual, enquanto a Associação Internacional para o Estudo Científico da Deficiência Mental substituiu a palavra “Mental” por “Intelectual”.

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compreensão de que a deficiência intelectual não é senão mais uma característica que pode aparecer ou não nas pessoas com SD, não estando propriamente estabelecida entre ambas – deficiência intelectual e síndrome de Down – uma relação de sinonímia. De modo contrário e distante de tal concepção, objetiva-se com isso sustentar que, mediante as possibilidades de desenvolvimento e avanços no processo de aprendizagem de pessoas com SD, não se pode ter como parâmetro tão somente a deficiência intelectual, haja vista que, como qualquer outro indivíduo, a pessoa com síndrome de Down, a partir de sua vivência histórica e social, pode assim participar ativamente de vivências na cultura escrita3 e usufruir das práticas de letramento historicamente

constituídas.

Ainda, muitas pessoas com síndrome de Down, são reconhecidos pela escola como alunos intelectualmente deficientes, corroborando a consciência coletiva inclinada a aceitar, sem objeções, uma suposta “incapacidade” cognitiva e intelectual de pessoas com SD, o que ainda muito se percebe, mesmo atualmente. Acrescenta-se ainda, que por muitas vezes a escola é vista apenas como uma “participação social”, sem muitas expectativas, como se a criança com síndrome de Down não tivesse a “capacidade” de concluir a escola, ser alfabetizada ou mesmo ingressar em uma universidade.

Em outras palavras, o que se constata é falta de reconhecimento, por parte da sociedade, da competência das pessoas com SD de frequentar uma instituição escolar, o que parece piorar consideravelmente quando se trata de reconhecer a plena capacidade desses indivíduos de frequentar o ensino superior e que os prepare, de modo concomitante, ao mundo do trabalho, de forma igualitária, como ocorre com qualquer sujeito que, sem qualquer deficiência, insere-se no ensino superior. Neste caso, é perceptível não apenas um discurso discriminatório, incluindo-se, neste caso, a própria falta de conhecimento da maioria das pessoas, mas também, e talvez agindo de maneira central, a notória influência de estudos direcionados ao estabelecimento da associação entre deficiência intelectual e síndrome de Down, sugerindo a baixa capacidade cognitiva das pessoas com a síndrome e, consequentemente, o não reconhecimento de suas habilidades.

Diante de tais percepções, efetivas mudanças apenas serão

3 Como cultura escrita, considera-se a vivência de práticas sociais de leitura e escrita na sociedade letrada, que apresenta-se grafocêntrica, constituída de diversos artefatos de leitura como, placas, outdoors, folhetos, propagandas, que fazem parte da vida diária dos indivíduos.

possíveis a partir de um trabalho integrado entre família, sociedade e a própria pessoa com SD. Deste modo, a nosso ver, é no interior das instituições de educação que se percebe a necessidade mais latente de não apenas intensificar a reflexão acerca das questões que tratam da inclusão escolar, o que por si só já se caracteriza como atividade central da educação, mas também de melhor preparar os profissionais que atuam diretamente nessa etapa do processo escolar. Enquanto formadora de pessoas, a educação básica é uma das primeiras a promover a sociabilidade e interação entre os próprios indivíduos envolvidos no processo, considerando que o ingresso de alunos com SD em instituições básicas de ensino está intrínseca e fundamentalmente associado às ações de sua primeira instituição formativa, isto é, a família (FERREIRA, 2013).

É importante ressaltar que, enquanto direcionamento central da pesquisa, buscar-se-á analisar o modo como ocorreu a inserção na cultura escrita de pessoas com a síndrome de Down, no intuito de compreender como se efetiva a transmissão do capital cultural4 na constituição familiar

desses indivíduos.

A partir dessas considerações, questiona-se: A literatura tem discutido aspectos relacionados ao letramento de pessoas com SD? Será possível afirmar que as práticas de letramento são decisivas na apropriação da leitura e da escrita de pessoas com síndrome de Down? Se sim, de que forma isso ocorre? Quais são os aspectos principais que devem ser considerados na formação de um “leitor”? De que forma a família e a escola se constituem como agência de letramento de pessoas com Síndrome de Down? Se as pessoas com síndrome de Down fazem parte de uma sociedade grafocêntrica, de que forma elas participam dos eventos de letramento?

4 O capital cultural pode existir sobre três formas: no estado incorporado (é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e se tornou parte integrante da pessoa, um habitus – gostos, formas de julgamento e de valor que são adquiridos de forma, inconsciente); estado objetivado (sob a forma de bens culturais: livros, quadros, dicionários, instrumentos, máquinas etc); estado institucionalizado: certificado escolar). É preciso ainda ter cuidado com o termo “transmitir” e “transmissão” porque remete à ideia de uma reprodução idêntica de uma disposição mental. Contudo, a noção de transmissão é muito ampla para que possa dar conta do trabalho (apropriação e construção) efetuado pelo aprendiz e pelo herdeiro (BOURDIEU, 1999).

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A partir desses questionamentos e levando em conta a relevância da interação da criança com o meio social determinante para o desenvolvimento do intelecto de todo e qualquer indivíduo (VIGOTSKI, 1931; GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998; ROJO, 2004, 2009; STREET, 2014), o objetivo desta pesquisa é compreender as práticas sociais de letramento de pessoas com síndrome de Down alfabetizadas e discutir as implicações dessas práticas para o processo de constituição do leitor.

No capítulo 2, buscar-se-á explicar as características genéticas presentes na constituição de uma pessoa com SD, bem como a definição de deficiência intelectual num contraponto com a definição de “inteligência”. Empreendemos uma análise a respeito do modo como se convencionou identificar o nível de inteligência dos indivíduos, isto é, através de testes cognitivos que, compostos de perguntas e respostas, a nosso ver, correspondem a modelos em si mesmos enrijecidos e estanques e que desconsideram em grande parte a vivência social e cultual dos indivíduos, permanecendo, assim, distantes da realidade da criança avaliada. Estabelecidas as diferenças terminológicas e conceituais entre deficiência intelectual e síndrome de Down, buscaremos ressaltar o equívoco em tratá-las como sinônimos, na medida em que as marcas e os modos de ação da pessoa com síndrome de Down não são senão caracterizações provenientes do meio social; a deficiência intelectual é aqui compreendida como uma característica possível da síndrome, mas não determinante. Serão analisadas também as concepções presentes na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, a fim de destacar seus direcionamentos, sobretudo no modo como em seu texto estão estruturadas as questões da deficiência em si, da pessoa com deficiência e as relativas à inclusão. Levando em conta a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência no cenário atual, interroga-se: Esta lei também não legitimaria um discurso predominante acerca da compreensão de deficiência intelectual e da normalidade?

No capítulo 3, será ressaltada a importância do processo de inclusão escolar das pessoas com deficiência e, de modo específico, das pessoas com síndrome de Down, tendo em vista, contudo, o seu contraponto, isto é, o processo de exclusão escolar. Como parte do processo de inserção de pessoas com SD no meio escolar, destacamos o conceito de integração social, este que, embora próximo daquilo que se espera enquanto ideal inclusivo, paradoxalmente, não corresponde de forma efetiva à prática da inclusão social. Isto porque exige dos próprios indivíduos com deficiência a responsabilidade pela adaptação às dificuldades que, por vezes, irão surgir, sem, contudo, oferecer-lhes os

meios para tal. Ademais, partindo de dados censitários, neste capítulo buscaremos estabelecer uma melhor compreensão acerca das mudanças ocorridas ao longo dos anos na relação entre o ensino escolar e a vivência de pessoas com deficiência neste ambiente, de modo a ser possível perceber também como se estruturou a relação entre as práticas escolares e as experiências vividas por alunos com SD.

No capítulo 4, o intuito é compreender como ocorre a influência das práticas de leitura e escrita a partir da vivência familiar do indivíduo com síndrome de Down bem como os incentivos proporcionados pela escola para o processo da aprendizagem desse aluno. Com efeito, a base para se alcançar essa compreensão consiste numa análise apurada da influência das práticas de letramento exercidas sobre esses indivíduos e o desenvolvimento da relação da escrita e da leitura por meio da escola, da família e do meio social. Conferimos destaque à pessoa com SD enquanto ser intrinsecamente ligado à cultura na qual se insere, reafirmando que, somente assim lhe serão possibilitadas as vivências capazes de fazê-lo reconhecer suas próprias práticas sociais. Neste olhar atento à relevância que cumprem os aspectos culturais e o meio social na vida do indivíduo com Down, destaque-se que essa interação pressupõe, de modo indispensável, a atividade mediadora perante a capacidade de novas apropriações por parte desses indivíduos. Seja no seio familiar, no ambiente escolar ou em qualquer outro meio em que estiver presente a pessoa com SD, como as demais pessoas, é fundamental a sua participação em atividades mediadas na busca por novas formas de experiências e conhecimentos que intensifiquem sua compreensão de mundo, o que ocorre, uma vez mais, pelas experiências constituídas por meio de sua interação social. Intenta-se, assim, destacar a centralidade que cumprem as práticas de leitura e escrita enquanto formas imprescindíveis de experiência para a apropriação de novos conhecimentos, de modo que muitas dificuldades apresentadas pelo indivíduo com SD são provenientes de sua pouca vivência com as práticas sociais de leitura e escrita.

No capítulo 5, discorrer-se-á sobre a Metodologia, sendo que a utilizada nesta pesquisa é a de cunho qualitativo, com a proposta de dois estudos de caso, com pessoas com síndrome de Down alfabetizadas. A primeira delas é Sofia, uma mulher adulta, com trinta anos, que concluiu o ensino médio com 21 anos. O segundo é Pedro, um jovem adolescente de quinze anos, que frequenta o 9º ano do ensino fundamental. O que se objetiva compreender são os usos das práticas sociais de letramento pelas pessoas com SD, a transmissão cultural envolvendo sua família e a escola e como isso se torna um reflexo para a aprendizagem e desenvolvimento

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da leitura e da escrita para tornar-se um indivíduo leitor.

Os capítulos 6 e 7 compreendem a análise dos dados. Nestes, iremos apresentar o histórico familiar de realizações das vivências das práticas e eventos de letramento. Serão apresentados os dados do desenvolvimento escolar dos indivíduos pesquisados, procurando relacionar as atividades proporcionadas pela família e pela escola, apresentando quais as influências de cada indivíduo a partir dos meios sociais na apropriação da aprendizagem, buscando perceber se os incentivos de atividades para a leitura e a escrita vivenciadas durante a infância e em seu desenvolvimento escolar foram decisivas ao aprendizado escolar.

Desta forma, convido o leitor a inserir-se comigo nesse universo que é singular. Afinal, somos todos pessoas que possuem trajetórias sociais heterogêneas, que vivenciam as práticas de leitura e escrita de forma diversificada, sendo leitores ou não, com sucesso ou com fracasso escolar, indivíduos singulares em sua história, independentemente de terem ou não o diagnóstico de síndrome de Down.

2 SÍNDROME DE DOWN: A DEFICIÊNCIA EM QUESTÃO

León [...] quando diz, ao final da última entrevista: “Eu, desde que tomei consciência de que era Síndrome de Down, e que... era como era... eu sempre senti muita vontade de romper as regras. Sempre, e sempre vou ter. Ou seja, barreira de espinhos, eu quero rompê-las” (CARNEIRO, 2008, p. 151).

2.1 CARACTERIZAÇÃO DA SÍNDROME DE DOWN

Os primeiros registros históricos sobre a síndrome de Down foram identificados no século XIX, no ano de 1838, em um dicionário médico. Nele, o médico Étienne Esquirol5 realizou a primeira referência

à SD (sinonimamente como deficiência intelectual), conhecida à época como “Idiotia”. No dicionário constava o seguinte enunciado: “[...] a idiotia pode ser congênita ou adquirida, mas constitui uma categoria bastante diferenciada das que agrupam os problemas propriamente psíquicos” (PACHECO, 2003, p. 154).

Em 1844, no livro de Robert Chambers6, a SD era referenciada

como uma idiotia do tipo mongoloide e, entre os anos de 1846-66,

5 Étienne Esquirol (1772-1840), médico francês, contribuiu fortemente para mudanças na psiquiatria que representaram um avanço expressivo no plano teórico. Propôs uma nova classificação nosográfica a partir de uma análise detalhada e da diferenciação das síndromes psicopatológicas, diferenciando quatro grupos de doenças mentais, “por meio dos quais procurou separar as perturbações de fundo claramente orgânico das perturbações de natureza psíquica consideradas disfunções mentais” (PACHECO, 2003, p.154).

6 Robert Chambers (1702-1871), escritor inglês, publicou anonimamente, em 1844, o livro Vestiges of the natural history of creation (Vestígios da história natural da criação), em que sua identidade só é revelada após sua morte no prefácio da 14ª edição do livro. Sua identidade mantém-se não revelada por insegurança às reações da época, contrárias aos pensamentos evolucionistas. No livro, propõe que a origem e a evolução do universo e dos seres vivos ocorreram por causas naturais, de modo que as espécies passam por processos de transmutação. Acreditava que o processo evolutivo continuava a ocorrer, e que era a partir da formação de seres mais simples, que estes evoluem e vão se tornando mais complexos (HUEDA; MARTINS, 2014; SCHRAGO, 2009).

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Edouard Seguin7 classificou-a como um tipo de cretinismo e foi o

primeiro a descrever características físicas da SD. Ele descreve características da idiotia e, dentre destas, um subgrupo com características específicas, posteriormente atribuídas à síndrome de Down (TEZZARI, 2010).

No ano de 1866, John Langdon Haydon Down8, que também se

apoiava em conceitos evolucionistas, identificou dois tipos de raças: as superiores e as inferiores. Estas últimas, aportavam características do chamado mongolismo9, cuja população apresentava pouca capacidade de

desenvolvimento intelectual, sendo, por isso, chamada de mongol ou mongoloide. Até então, não havia relação entre essas características e a composição celular/genética do indivíduo, uma vez que o termo mongoloide era atribuído às características físicas que se assemelhavam às pessoas que habitavam a Mongólia, país do continente asiático (SILVA; DESSEN, 2001).

Somente no século XX, os cientistas identificaram as estruturas que compunham o núcleo das células humanas, de modo que, apenas no ano de 1956, foi possível contabilizar quantas eram as estruturas filiformes, os cromossomos, que constituíam o núcleo das células humanas. Em 1959, o médico geneticista francês Jerome Lejeune conseguiu identificar as causas genéticas dessa cromossomopatia10. Ele

batizou a anomalia com o nome de síndrome de Down, cuja terminologia foi dada em homenagem ao médico John Langdon Haydon Down por causa de suas pesquisas e de sua dedicação às pessoas com essa alteração

7 Edouard Seguin (1812-1880), francês, foi educador e depois se tornou doutor em medicina. Ficou conhecido como l’instituteur dês idiots (o professor dos idiotas), sendo considerado um dos fundadores da educação para as pessoas com deficiência intelectual (TEZZARI, 2010).

8 John Langdon Haydon Down (1828-1896) foi um médico inglês dedicado a pesquisas na área. Em seus estudos, descreve as características fenotípicas das pessoas que, à época, foram chamadas de mongóis, estabelecendo uma relação de características físicas à deficiência intelectual. Em 1866, publicou o livro Observations on an ethnic classification of idiots (Observações sobre uma classificação étnica de idiotas) (SILVA; DESSEN, 2001).

9 “A denominação mongolismo foi excluída da Revista Lancet em 1964, das publicações da Organização Mundial da Saúde em 1965 e do Index Medicus em 1975. Hoje este termo é considerado arcaico e preconceituoso e não deve ser

utilizado”. Cf.

<http://200.214.130.94/CONSULTAPUBLICA/display/dsp_print_completo.php?d=3388 >.

10 É uma alteração na constituição cromossômica de um indivíduo.

cromossômica.

A partir desses estudos, define-se que no núcleo de uma célula humana normal estão contidos 46 cromossomos11. Na SD, o cariótipo12

do indivíduo aparece configurado com um cromossomo a mais no núcleo das células, pois, ao invés de 46, aparecem 47 cromossomos. Esse evento formador de um cromossomo a mais, no entanto, é inesperado, mas pode acontecer no processo de divisão celular durante a fecundação do óvulo (NAHAS, 2008; SILVA; DESSEN, 2001; STRATFORD, 1997).

Na SD existe a possibilidade de ocorrerem três genótipos diferentes, identificados pelo exame de cariótipo. A seguir, apresentam-se as três formas diferentes de alteração cromossômica que podem apresentam-ser identificadas (SILVA; DESSEN, 2001; STRATFORD, 1997):

1) Trissomia simples: é a trissomia do cromossomo 21. Neste caso, aparece um cromossomo 21 extra no núcleo de todas as células do indivíduo, de modo que, ao invés de possuir dois cromossomos 21, serão três cromossomos 21. É uma falha que ocorre, geralmente, na produção dos óvulos ou espermatozoides, quando um dos pares do cromossomo 21 deixa de se separar. Na Figura 1 representa-se o cromossomo constituinte a mais no núcleo celular.

11 A identificação dos cromossomos é realizada por meio de um exame genético, o exame de cariótipo. Esses cromossomos são divididos em pares e numerados de 1 a 23, sendo que o par 23 é o que denomina o sexo do indivíduo. Na formação do zigoto (óvulo fecundado), encontramos a união de 23 cromossomos do óvulo e mais 23 cromossomos do espermatozoide para a constituição do sujeito humano.

12 Cariótipo é a representação do conjunto de cromossomos de uma célula. Cf. http://dle.com.br/citogenomica/citogenetica. “O exame de cariótipo tem como objetivo a identificação e análise dos cromossomos e suas regiões. O teste é realizado a partir de uma cultura de células que possibilita a obtenção de metáfases (células em divisão) e posterior coloração dos cromossomos com bandamento. Através das bandas cromossômicas é possível a identificação de aberrações cromossômicas numéricas e/ou estruturais, equilibradas ou desequilibradas, totais ou parciais”.

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Figura 1 – Cariótipo apresentando a trissomia do cromossomo 21.

Fonte: Google imagens, 2016 (adaptado pelo autor).

2) Mosaicismo: ocorre quando parte das células do corpo tem a trissomia do cromossomo 21, ou seja, enquanto algumas células apresentam três cromossomos 21, as outras têm um par do cromossomo 21. Por exemplo, se uma pessoa tem mil células, ela pode apresentar quatrocentas células normais com um par do cromossomo 21 e seiscentas células com a trissomia do cromossomo 21. Na Figura 2, abaixo, apresentam-se os cromossomos de uma célula normal e de uma célula com trissomia do cromossomo 21; com essas duas configurações celulares, o corpo do indivíduo é constituído. No mosaicismo, por sua vez, as características fenotípicas da Síndrome de Down são menos acentuadas.

Figura 2 – Cariótipo humano normal e cariótipo humano com trissomia do cromossomo 21

Fonte: Google imagens, 2016 (adaptado pelo autor).

3) Translocação: neste caso, a configuração do cariótipo apresenta parte do cromossomo 21 extra (o terceiro cromossomo 21), colado no cromossomo 14 ou em outro cromossomo 21, tendo em vista que os cromossomos 14 ou 21 aparecem mais compridos por terem parte do cromossomo 21 extra em seu corpo (SILVA; DESSEN; 2001; STRATFORD, 1997). Na Figura 3, observa-se um cariótipo com a translocação do cromossomo 21 extra para o corpo do cromossomo 14.

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Figura 3 – Cariótipo apresentando a translocação do cromossomo 21 extra para o cromossomo 14.

Fonte: Google imagens, 2016 (adaptado pelo autor).

A partir da identificação dos três tipos possíveis de ocorrência genotípica da síndrome de Down, constata-se que a maioria dos casos é de trissomia simples, sendo que o mosaicismo ocorre em 2 a 3% dos casos e a translocação em 5 a 6% deles. A incidência13 de nascimentos de

pessoas com a síndrome é de um para seiscentos a oitocentos nascimentos vivos. Esse índice é considerado em todas as partes do mundo, independentemente da raça, cultura, clima ou classe social. Se a situação econômica, a idade dos pais, a condição parental, a educação, a religião e o social são levados em consideração, ver-se-á que a taxa de sobrevivência de nascidos com síndrome de Down é maior em alguns lugares do que em outros, sendo esse aspecto chamado de prevalência14

(NAHAS, 2008; SIQUEIRA; MOREIRA, 2006; SILVA; DESSEN, 2001; STRATFORD, 1997).

As pessoas com SD apresentam características físicas específicas, chamadas de fenotípicas, sendo que, em cada um deles, a

13 Por incidência, entende-se ser o número de pessoas com síndrome de Down relacionada a uma quantia de habitantes em um tempo delimitado.

14 Por prevalência, entende-se a proporção de nascimentos vivos afetados, em uma específica área ou população.

síndrome assume uma expressividade variada. Logo, caracteriza-se por um conjunto de sinais e sintomas próprios.

A primeira identificação da SD é realizada logo após o nascimento, a partir de uma avalição clínica. Nessa avaliação, analisam-se determinadas características já pré-estabelecidas pelo Ministério da Saúde para que se possa estabelecer um primeiro diagnóstico (ver Quadro 1). Caso haja a detecção dessas características, a criança é encaminhada para o exame de cariótipo (BRASIL, 2012). O fenótipo da SD é caracterizado pelas seguintes características: cabeça achatada na parte de trás, menor tamanho cerebral, rosto arredondado, olhos amendoados, fissuras palpebrais com inclinação superior, pregas epicânticas, base nasal achatada, orelhas pequenas com implantação abaixo da linha dos olhos, pescoço curto, palato ogival, mãos menores com dedos mais curtos, prega palmar única, presença de clinodactilia15 do 5º dedo das mãos, distância

aumentada entre o 1º e o 2º dedos dos pés, pé plano, frouxidão ligamentar e hipotonia muscular.

Quadro 1 – Diagnóstico clínico da SD.

Exame Segmentar Sinais e Sintomas

Cabeça Olhos Epicanto Fenda palpebral oblíqua Sinófris

Nariz Ponte nasal plana Nariz pequeno

Boca Palato alto Hipodontia Protusão lingual Forma Braquicefalia

Cabelo Fino, liso e de implantação baixa

Orelha Pequena com lobo delicado Implantação baixa Pescoço Tecidos conectivos Excesso de tecido adiposo no dorso do

15 Cf. BISNETO, 2013, p. 7. Clinodactilia se refere à deformidade das falanges, normalmente afeta o quinto dedo da mão.

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pescoço

Excesso de pele no pescoço

Tórax Coração Cardiopatia

Abdome Parede abdominal Diástase do músculo reto abdominal Cicatriz umbilical Hérnia umbilical

Sistema locomotor

Superior

Prega palmar única Clinodactilia do 5º dedo da mão

Inferior Distância entre 1º e o 2º dedo do pé Tônus Hipotonia Frouxidão ligamentar

Desenvolvimento global Déficit pondero-estatural Déficit motor Déficit Intelectual Fonte: BRASIL, 2012, p.17.

Nota: quadro apresentado pelas “Diretrizes de atenção à pessoa com Síndrome de Down”, adaptado do Committee on Genetic of American Academy od Pediatrics, 2011.

Quanto à apropriação da linguagem oral, o indivíduo com SD demora mais que uma criança típica para apresentar a linguagem oral. Na criança típica inicia por volta dos quatorze meses e, na maioria das crianças com SD, esta linguagem apresenta-se por volta dos vinte e um meses. Uma das características, que se apresenta na linguagem oral, é a disfluência. Nesta fase inicial comunicativa, a compreensão apresenta-se mais efetiva que a expressão oral (LIMONGI, 2004). No geral, o desenvolvimento físico e mental acontece de forma mais lenta do que ocorreria em uma pessoa sem a SD. Cumpre notar que todas as características já apresentadas para a SD são variáveis e podem não aparecer juntas (STRATFORD, 1997; SILVA; DESSEN, 2001; NAHAS, 2008). Desta forma,

[...] há um consenso da comunidade científica de que não existem graus de SD e que as diferenças de desenvolvimento decorrem de uma multiplicidade de fatores desde características individuais decorrentes da herança genética, estimulação,

educação, meio ambiente, problemas clínicos e até fatores culturais (SILVA; KLEINHANS, 2006, p.125).

Com relação à funcionalidade dos órgãos, podem ocorrer dificuldades motoras, atraso na linguagem, cardiopatias, deficiência intelectual e aprendizagem mais lenta. A deficiência intelectual pode ou não estar presente nas pessoas com síndrome de Down. Embora a literatura ressalte que apresentam um cérebro menor e menos células nervosas16, tais aspectos não estão diretamente relacionados à

determinação da deficiência intelectual (VALENTE, 2009). Sobre esse tema, Gardner, Kornhaber e Wake (1998) destacam que o funcionamento do cérebro não é o que determina a inteligência, que se liga não apenas às questões orgânicas do indivíduo, mas também à funcionalidade e às experiências sociais, de modo que a questão do tamanho cerebral não é determinante.

É por isso que as vivências para as crianças com SD devem começar o mais cedo possível para que os possíveis atrasos de aprendizagem possam ser sanados. Desta forma, os primeiros anos de vida são considerados como um fator decisivo ao desenvolvimento de conexões cerebrais, envolvendo os fatores biológicos e ambientais (CARNEIRO, 2008; VALENTE, 2009). “O que as vai diferenciar uma das outras, é a forma como foram atendidas nos seus primeiros minutos de vida e, mais tarde, ao longo da sua infância, independentemente de nascerem com potencial hereditário mais ou menos inteligente ou saudáveis” (VALENTE, 2009, p. 40).

16 Um importante processo para o bom funcionamento cerebral é a constituição da mielina que reveste os neurônios e transmite os impulsos elétricos produzidos no cérebro. Para o bom funcionamento da mielina, são necessários dois fatores: a constituição orgânica saudável, que envolve a recepção de estímulos pelos cinco sentidos – audição, olfato, tato, visão, paladar – do indivíduo, e os fatores ambientais – interação social, estímulos visuais e táteis, alimentação –, que irão proporcionar os novos conhecimentos e as sensações para o indivíduo (VALENTE, 2009). “A mielinização (proteção) das células nervosas ocorre rapidamente nos primeiros anos de vida; o desenvolvimento dos córtices de associação acontece durante o mesmo período; [...] e a maturação mais gradual do córtex frontal acontece durante a primeira década de vida” (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 170).

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2.2 SÍNDROME DE DOWN E DEFICIÊNCIA

Em decretos e leis, as pessoas com síndrome de Down são consideradas como tendo deficiência intelectual. Sobre a deficiência intelectual, é importante destacar, inicialmente, dois aspectos: o que se considera inteligência e o que se considera deficiência intelectual (da inteligência).

Quando se discute inteligência, parte-se de alguns questionamentos: o que é a inteligência? O que é ser inteligente? Quem são as pessoas inteligentes? De que forma se é inteligente? Quais conhecimentos é preciso ter para ser inteligente? A inteligência pode ser modificada? Existem inteligências diferentes? A inteligência é um atributo individual? Como se avalia a inteligência?

A inteligência não apresenta uma definição única universal. Ela se modifica historicamente e também a partir de diferentes áreas de estudo, pois “[...] o que é considerado inteligência depende da pessoa à qual perguntamos, dos métodos que os respondentes usam para explorar o tópico, do nível de análise de sua investigação e dos seus valores e crenças” (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 18).

No início do século passado, autores como Terman (1921), bem como Jekins e Patterson (1961), definiam inteligência a partir de estudos cognitivos, que relacionavam inteligência com a resolução dos testes de inteligência, como podemos observar nas respectivas conceituações: “[...] um indivíduo é inteligente na medida em que é capaz de pensar em termos abstratos [...]” (TERMAN, 1921, p. 128 apud GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 15); “[...] a inteligência é aquilo que os testes [de inteligência] testam” (JENKINS; PATTERSON, 1961, p. 210 apud GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 19).

Embora essas concepções ainda se mantenham atualmente (PRIMI et al, 2001; PRIMI, 2003), concomitante a essa visão, há autores que concebem inteligência como associada à competência social, de modo que suas noções variam entre as culturas. A inteligência estaria, nesse caso, voltada à solução de problemas científicos ou práticos e, como ela difere de uma cultura à outra, algumas valorizações aparecem, tais como “raciocínio lógico”, “poderes de persuasão” e “saber escutar” (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998).

Já na antropologia, a inteligência é analisada por especialistas da área que

[...] observam as pessoas funcionando em seus ambientes cotidianos [...] tentam compreender as

visões daquele povo. As respostas dos antropólogos relativas às questões de Inteligência frequentemente centram-se nas definições dos habitantes do lugar e na competência no desempenho nas tarefas e papéis da cultura (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p.19).

Atualmente, fala-se em uma perspectiva ecológica, que define “[...] a inteligência individual no contexto da interação social, recursos e forças culturais” (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 19).

Nas culturas tradicionais — isto é, nas comunidades que caçam, coletam e pescam, e nos povos agrícolas —, a grande maioria dos membros da comunidade preocupa-se em suprir as necessidades de subsistência. Desta forma, ser “inteligente” é ser capaz de oferecer comida e abrigo, de caçar bem e de oferecer segurança para os demais membros do grupo. A condição de inteligência é influenciada pelas questões hereditárias, biológicas e sociais, inicialmente resultantes das práticas familiares

Como Robert Plomin (1990) explica, um lar com muitos livros (uma medida comumente usada para avaliar o meio ambiente familiar) pode refletir o QI parental: pessoas inteligentes tendem a ler mais. [...] Assim, a mensuração de uma variável ambiental como o tempo gasto lendo para as crianças pode refletir, em parte, o interesse geneticamente influenciado de crianças mais inteligentes por essas atividades (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 163).

Assim, percebe-se que “[...] se uma criança é seriamente privada de nutrição ou de estimulação cognitiva ou afetiva, seu escore em testes de inteligência17 vai baixar” (GARDNER; KORNHABER; WAKE,

17 Conhecidos também como testes psicométricos, são utilizados para medir a inteligência do indivíduo. No estudo de Noronha e Vendramini (2003), argumenta-se que “[...] os testes são instrumentos utilizados na prática do psicólogo e podem fornecer importantes informações para a elaboração de um diagnóstico, quando do processo de avaliação [...] Os testes psicológicos têm sido entendidos como instrumentos auxiliares na coleta de dados, que juntamente com as demais informações organizadas pelo psicólogo, auxiliam a compreensão do

(17)

1998, p. 164). Com isso, nota-se a importância das experiências para a ativação do intelecto

Afinal de contas, no mínimo 30% e talvez até 50% da variação da inteligência se deve a outros fatores que não a identidade dos pais biológicos da pessoa. E é aqui que a educação, a modelagem e o treinamento (ou a falta deles!) podem fazer uma diferença significativa nas “opções de vida” globais disponíveis para uma criança (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998, p. 164-5). O indivíduo torna-se, assim, mais inteligente à medida que exercita e procura melhorar constantemente seus conhecimentos e habilidades mentais (GARDNER; KORNHABER; WAKE, 1998). O exercício ocorre por meio dos novos conhecimentos e das possibilidades de diversas vivências nas esferas sociais.

A medição da inteligência foi realizada durante muito tempo a partir de testes cognitivos (PRIMI, 2003). Os testes são formas classificatórias de análise do quanto o indivíduo se afasta ou se aproxima da média. As classificações estabelecidas no modelo médico resultam da necessidade dos exames, algo que possa apresentar uma classificação, que “[...] permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1999, p. 154). A partir disso, os indivíduos podem ser diferenciados por essa classificação que, por sua vez, é legitimada por uma relação de poder entre os que são “normais” e “anormais”. Logo, é o exame que confirmará a verdade que os indivíduos esperam, o encontro ou não da normalidade. O exame perpassa a área da medicina e da educação, como medidor classificatório do bom ao ruim. Nele, reúnem-se “[...] a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade” (FOUCAULT, 1999, p. 154).

Ao finalizar os exames, classifica-se e obtém-se a resposta das capacidades possíveis daquele indivíduo, o fator de destaque e sua importância dentro da sociedade. No entanto, caso não sejam alcançadas a medida satisfatória nos exames e a média da normalidade, a aptidão não existe, de modo que o indivíduo não é valorado, estando fora da média e da normalidade.

problema estudado, de forma a facilitar a tomada de decisões” (NORONHA; VENDRAMINI, 2003, p. 177-78).

[...] a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços “específicos”, como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa “população” (FOUCAULT, 1999, p. 158).

O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz de cada indivíduo um “caso”: um caso que, ao mesmo tempo, constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder. O caso não é mais, como na casuística ou na jurisprudência, um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros, e assim, em sua própria individualidade. E é também o indivíduo que tem que ser treinado ou retreinado, tem que ser classificado, normalizado, excluído etc. (FOUCAULT, 1999, p. 159).

Embora, atualmente, haja críticas contundentes ao formato desses testes, é constante o encontro de estudos que relacionam diretamente os fracassos nos testes psicométricos com a possibilidade do indivíduo apresentar deficiência intelectual (SANTOS, NORONHA, SISTO, 2005).

O WISC-IV18 já está sendo utilizado no Brasil desde 2013

18 Wechsler Intelligence Scale for Children Third Edition (Escala de Inteligência Wechsler para Crianças – Quarta edição). “Elaboradas para a avaliação de habilidades cognitivas, as Escalas Wechsler de Inteligência foram desenvolvidas ao longo de várias décadas. A primeira forma foi publicada em 1939 - a Escala de Inteligência Wechsler- Bellevue - elaborada com a finalidade de oferecer um teste apropriado para a avaliação da inteligência de adultos [...] Em 1949, surgiu a extensão para crianças em idade escolar (WISC) [...] utilização das Escalas Wechsler de Inteligência está voltada para os contextos clínico, psicoeducacional e de pesquisa, possibilitando a avaliação minuciosa das capacidades cognitivas de crianças, adolescentes e adultos. A aplicação das Escalas Wechsler de Inteligência é individual e exige que o profissional seja altamente treinado tanto para a aplicação quanto para a correção” (NASCIMENTO; FIGUEIREDO, 2002, p. 603-4).

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(MACEDO; MOTA; METTRAU, 2017), sendo que o WISC III foi um dos testes mais utilizados para a medição da inteligência em todo o mundo, traduzido e validado para o Brasil (NASCIMENTO; FIGUEIREDO, 2002). Segundo Riemke (2008), muitas questões que integram o teste são distantes da realidade das crianças, estando relacionadas diretamente ao conhecimento educacional, o que pode gerar “erros” no diagnóstico, considerando a heterogeneidade dos indivíduos e de suas práticas sociais e, ainda, as diferenças relacionadas ao nível de conhecimento educacional. Eis algumas das perguntas utilizadas: Quem foi Monteiro Lobato? Por que se coloca selo nas cartas? O que é vangloriar? O que é dilatório? O que são hieróglifos? Qual a semelhança entre quadro e estátua? Para que serve o estômago? Em que continente fica o Canadá? Diga o nome de três oceanos. Que país tem a maior população do mundo? O que tem em comum cotovelo e joelho? Como se vê, tais questões são parte de um grupo de atividades realizadas para compor o teste, e se respondidas de forma errada, podem levar a definição de uma inteligência abaixo da média.

A partir desses testes, criaram-se expectativas para se identificar o padrão de inteligência das pessoas, juntamente com o seu grau de deficiência intelectual. Embora se defenda a avaliação multidimensional, a caracterização da pessoa com deficiência intelectual ainda depende de um laudo médico, representado através do número fornecido pelo CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde)19.

Ressalta-se aqui a importância de uma avaliação cognitiva que leve em conta as características subjetivas e de desenvolvimento social e pessoal. Já há vários estudos na área de psicologia que têm destacado essa importância e a preocupação de um diagnóstico que leve em conta não apenas o resultado de um teste, simplesmente (DIAS; OLIVEIRA, 2014; PLETSCH; BRAUN, 2008).

Logo, vê-se a complexidade de um diagnóstico de deficiência intelectual. Essa complexidade já vêm sendo descrita nos documentos oficiais. No Caderno de Educação Inclusiva, do Ministério da Educação, por exemplo, afirma-se que o “[...] diagnóstico na deficiência mental não se esclarece por uma causa orgânica, nem tão pouco pela inteligência, sua quantidade, supostas categorias e tipos” (BRASIL, 2006, p. 10). No

19 A CID (International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems/Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) é publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A classificação da CID-10 sobre a deficiência intelectual se dá através de categorias.

documento também se problematiza a utilização do CID, que depende dos níveis de QI (Quociente de Inteligência)20, “[...] um resultado avaliado em

função de conteúdos produzidos por um indivíduo em um determinado momento [que], portanto, não diz respeito à função cognitiva em si mesma” (BRASIL, 2005, p. 13). O que já se sabe é que o indivíduo deve ser pensado de forma singular, avaliado em toda a sua bagagem histórica e social, para que se possa chegar a um diagnóstico, pois ainda o “diagnóstico de deficiência mental preconizado pelos testes de QI reduz a identidade da criança a um aspecto relativo a uma norma estatística padronizada” (BRASIL, 2005, p. 14).

Finalizar um diagnóstico e definir a uma pessoa a nomenclatura de deficiente intelectual é algo complexo e de grande responsabilidade, pois apenas indicar que ela possui deficiência intelectual, sem relacionar suas condições particulares, o meio social em que vive, a forma de interpretar o mundo, a relação que realiza entre os conceitos e fatos, e também, suas relações com a aprendizagem, torna-se algo limitado e comprometedor para a vida social do indivíduo (DIAS; OLIVEIRA, 2014).

A deficiência intelectual não é finalizada em um consenso específico, pois não se esgota em sua condição orgânica e/ou intelectual, tampouco se define a partir de um único saber. Os documentos oficiais (BRASIL, 2006) já apontam que a concepção de deficiência intelectual deve ser discutida levando-se em conta os processos históricos e as vivências socioculturais, as possibilidades e as potencialidades do indivíduo.

Vê-se, a seguir, a definição atual para a deficiência intelectual adotada internacionalmente e utilizada como a base de diversas propostas e conceituações. Segundo a American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD)21

20 O Quociente de inteligência é compreendido como um fator que mede a inteligência de uma pessoa, encontrado nos resultados de testes psicométricos de inteligência que podem ser aplicados por psicólogos (MAIA; FONSECA, 2002). 21 Em 2007, a AAMR (American Association on Mental Retardation) foi renomeada como AAIDD (American Association on Intellectual and Developmental Disabilities). A AAIDD, em 2006, quando ainda era AAMR, publicou a primeira versão no Brasil de seu manual, e a partir dessa primeira versão em português, é “que a definição de deficiência intelectual e o sistema de apoios propostos pela AAMR foram sendo mais difundidos em diferentes contextos educacionais no Brasil” (CARNEIRO, 2015, p. 05). As principais mudanças ocorridas no cenário mundial em relação à deficiência intelectual

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Deficiência intelectual é uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto no funcionamento intelectual (raciocínio, aprendizagem, solução de problemas) quanto no comportamento adaptativo, que abrange o âmbito das habilidades sociais e práticas cotidianas. Essa incapacidade origina-se antes dos 18 anos de idade (AAIDD, 2016, s/n, tradução nossa22).

Essa definição não é a única determinante quanto à deficiência intelectual. A AAIDD propõe também cinco hipóteses, que devem ser avaliadas conjuntamente, para que seja possível validar a proposta de classificação acerca do que é a deficiência intelectual:

1. As limitações no funcionamento atual devem ser consideradas dentro do contexto dos ambientes da comunidade característicos das pessoas da mesma faixa etária e da mesma cultura do indivíduo. 2. A avaliação válida considera a diversidade cultural e linguística, e também as diferenças na comunicação, nos fatores sensoriais, motores e comportamentais.

3. Em cada indivíduo, as limitações frequentemente coexistem com as potencialidades. 4. Um propósito importante ao descrever as limitações é o de desenvolver um perfil dos apoios necessários.

5. Com apoios personalizados apropriados durante um determinado período de tempo, o funcionamento cotidiano da pessoa com retardo mental em geral melhora (AAMR, 2002, p. 25 apud CARNEIRO, 2008, p. 21).

A AAIDD apresenta cinco dimensões que têm o intuito de facilitar a compreensão e a classificação em relação à deficiência intelectual, operando com a visão multidimensional. Nessa proposta, a

aconteceram pela AAIDD, desde que foi criada em 1986, pois é ela quem domina os estudos nessa área (RIZZINI; MENEZES, 2010).

22 “Intellectual disability is a disability characterized by significant limitations both in intellectual functioning (reasoning, learning, problem solving) and in adaptive behavior, which covers a range of everyday social and practical skills. This disability originates before the age of 18” (AAIDD, 2016).

classificação baseia-se nas intensidades dos apoios necessários: Quadro 02 – As cinco dimensões propostas pela AAIDD.

Dimensão Referência Ações

I Habilidades

intelectuais  Raciocínio;  Planejamento;

 Solução de problemas;  Pensamento abstrato;  Compreensão de ideias complexas;  Rapidez de aprendizagem;  Aprendizagem pela experiência. II Comportamento

adaptativo  Reunião de habilidades conceituais, sociais e práticas;  Habilidades aprendidas pelas pessoas para elas funcionarem em seu cotidiano. III Participação, interações e papéis sociais  Importância da participação na vida comunitária.

IV Saúde  Fatores etiológicos;

 Fatores de saúde física;  Fatores de saúde mental;  Saúde física e mental influenciam as realizações diárias de sua vida.

V Contextos  Condições de vivência da pessoa;

 Qualidade de vida imbricada.

Fonte: para a estruturação deste quadro, realizou-se consulta em CARVALHO; MACIEL, 2003; CARNEIRO, 2008; 2015.

A dimensão I é a que inclui as questões de pensamento, raciocínio e compreensão. As questões intelectivas ainda são avaliadas

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por meio dos testes que medem a inteligência, mas não apenas por eles, pois se considera também a relação com as outras dimensões (CARVALHO; MACIEL, 2003; CARNEIRO, 2008; 2015).

A dimensão II apresenta as habilidades conceituais, sociais e práticas como pontos importantes para que as relações com o ambiente e o convívio no dia a dia não sejam dificultados. As habilidades conceituais voltam-se aos aspectos acadêmicos, cognitivos e de comunicação; as habilidades sociais, à competência social, incluindo a responsabilidade, a autoestima, as habilidades interpessoais, a credibilidade, a ingenuidade, a observação de regras, normas e leis e a capacidade para evitar a vitimização; e, por fim, as habilidades práticas, voltadas ao exercício da autonomia, como preparar alimentos e alimentar-se, deslocar-se de maneira independente, utilizar meios de transporte, cuidar da higiene pessoal, vestir-se, cuidar da casa, tomar remédios, lidar com dinheiro, usar o telefone, além das atividades voltadas ao trabalho e à segurança pessoal (CARVALHO; MACIEL, 2003; CARNEIRO, 2008; 2015). Essa dimensão tem sido discutida no contexto brasileiro, pois se questiona a quantificação de critérios, que são subjetivos. Segundo Carneiro

A avaliação do comportamento adaptativo deve ser feita através do uso de medidas padronizadas, existentes nos Estados Unidos, mas sem padronização para o Brasil. Esta proposta de avaliação quantitativa de uma dimensão constituída por elementos subjetivos, interativos e contextuais já demonstra a fragilidade do caráter inovador do discurso, que não se sustenta se não houver dados mensuráveis, quantificáveis, para a avaliação e o diagnóstico (2015, p. 5-6).

Na dimensão III, buscam-se avaliar as interações sociais e os papéis vivenciados pela pessoa, por meio da participação na comunidade em que vive (CARVALHO; MACIEL, 2003; CARNEIRO, 2008; 2015). Já na dimensão IV, a preocupação é com a saúde física e mental do indivíduo, que influenciam em seu desenvolvimento. E, por fim, a dimensão V trata dos contextos de vivência.

Os níveis de contexto considerados estão de acordo com a concepção de Bronfenbrenner23 (1979),

23 Urie Bronfenbrenner (1917-2005) nasceu na Rússia, mas aos 6 anos sua família mudou para os EUA, onde desenvolveu seus estudos. Foi bacharel em psicologia

incluindo: (a) o microssistema – o ambiente social imediato, envolvendo a família da pessoa e os que lhe são próximos; (b) o mesossistema – a vizinhança, a comunidade e as organizações educacionais e de apoio; (c) o macrossistema – o contexto cultural, a sociedade, os grupos populacionais (CARVALHO; MACIEL, 2003, p. 152).

Enfim, apesar de alguns pontos ainda se basearem em testes de medida intelectual, essa avaliação acontece, principalmente, considerando as práticas e os valores culturais, as oportunidades de educação, o trabalho, e também as condições ambientais, tais como o bem-estar, a saúde, a segurança pessoal, o conforto material, a segurança financeira e as atividades comunitárias. A avaliação desses contextos é realizada antes da utilização de medidas padronizadas, prevalecendo, neste caso, os critérios qualitativos e de julgamento clínico (CARVALHO; MACIEL, 2003; CARNEIRO, 2008; 2015; BRIDI; BAPTISTA, 2014).

Então, ainda que essa definição priorize atributos individuais quantificáveis, as premissas apresentadas são multidimensionais e parecem valorizar o contexto em que os sujeitos vivem. Esse movimento contraditório pode nos dar pistas para se compreender a deficiência intelectual como uma condição socialmente construída, resultado do entrelaçamento indissociável entre aspectos biológicos e culturais (CARNEIRO, 2015, p. 07). Apesar de alguns autores criticarem a classificação da AAIDD, ela, com seu caráter multidimensional, pode ser considerada uma inovação na proposta de um novo sistema classificatório, já que se baseia nos apoios necessários para a pessoa. Esse sistema apresenta um caráter individualizado, sendo que a ênfase é dada ao indivíduo. Assim, o que se acredita é que os apoios são capazes de melhorar a capacidade funcional das pessoas com deficiência intelectual. Mas há ainda outros modelos de

e música, engajou-se em lutas ligadas à questão do desenvolvimento humano por acreditar que as políticas públicas afetavam o bem-estar e o desenvolvimento dos seres humanos. Apresentou a visão ecológica do desenvolvimento em seu destacado livro, A Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados.

Referências

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