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EDITORIAL Revista Poeticus Revista de Poesias, Artes e Reflexões

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E

DITORIAL

A Revista Poeticus – Revista de Poesias, Artes e Reflexões, publicação do CPL – Círculo de Poetas Libertários, vem para trazer uma contribuição para divulgação de poesias e outras manifestações literárias, bem como com reflexões sobre poesias e outras artes.

No seu quarto número, a Revista Poeticus reafirma seus objetivos e mantém a busca de uma luta cultural que contribua com a luta pela emancipação humana. A poesia não é mero passatempo, nem os contos e outras manifestações artísticas. Da mesma forma, as reflexões sobre as produções artísticas não são mera produção intelectual desinteressada. Os problema por detrás das obras de arte e das reflexões sobre eles não é o desinteresse e sim quais interesses, valores e concepções as geram. Aqui o que gera a produção artística e reflexão sobre as artes é o compromisso com a libertação humana, o que pressupõe compromisso com a verdade, com a ética, com a transformação social.

A Revista Poeticus está aberta para a contribuição de todos que queiram colaborar com esse processo.

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Ano 02, numero 04 jul/dez. 2015 [

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O

BSERVAÇÃO

A

LESSANDRO

M

ACEDO

Observe as pessoas, não são mais pessoas São apenas seres deprimidos e frustrados

Esses mesmos seres tiveram sua liberdade roubada Sua dignidade violentada pela propriedade privada.

Observe as ruas, ouçam o zum, zum, zum das sirenes, dos gritos e dos tiros

Um emaranhado colorido e supérfluo povoado por automóveis, prédios e galerias

Tudo que se move neste terreno esta à serviço da mercadoria.

Observe as fábricas, ávidas por sangue e suor Dela vem sua riqueza e minha desgraça. Vejo vidas sendo sugadas,

assim como as chaminés expulsam a fumaça.

Olhe, veja o prédio da dor

Aqui reside o roubo institucionalizado, que se alimenta de mentes e corpos atrofiados pelo trabalho alienado.

Observe as pessoas, as ruas e as fábricas

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ao contrário é uma prisão, uma grande prisão social

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N

ADA É

I

MPOSSÍVEL DE

M

UDAR

B

ERTOLT

B

RECHT

Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta,

de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada,

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P

OEMA

T

ORTO EM

H

OMENAGEM À

N

OSSA

L

UTA

R

UBENS

V

INICIUS DA

S

ILVA

A luta é minha musa inspiradora A razão de minha existência

Minha arte dela deriva

E de poesias de luta mostro a sua pertinência

Para alguns, mais um sonhador

Para outros, alguém que ainda não encontrou seu caminho Aqueles que assim se dirigem a nós

A mim e à nossa luta

Dessa tão aparente, preconceituosa e inacabada forma São tão ingênuos, coitadinhos!

Mal sabem os hipócritas Que não estou na luta sozinho

A cada avanço da repressão Uma denúncia de sua desumanização

Na luta não há derrota anunciada Nem vitória que não seja merecida

Pois pra quem das classes exploradas toma partido Tem a certeza de que só a luta muda a vida!

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F

RAGMENTOS DA

V

IDA EM

M

ERCADORIA

À

TILA

L

IMA

No vai e vem “fragmentado” do dia a dia Completamos mais uma semana.

Mais uma semana onde não nos realizamos enquanto seres humanos completos.

Somos levados a reproduzir e dialeticamente reproduzimos o que nos nega, nos “fragmenta”, o que nos aliena.

Na sexta-feira vem à esperança de nos reunirmos, de nos encontrarmos, de minimamente nos realizarmos.

Mas nossas esperanças são mortas no espetáculo do consumo das vidas que trabalham. No suor dos humilhados e explorados pelo mundo da mercadoria.

Olhamos para o lado procurando outros humanos e só encontramos o status, a ostentação, o fetiche, a busca da reafirmação alienada na mercadoria.

Neste instante um dos poucos momentos que era pra ser nosso (...), o nosso tempo livre, é cooptado e manipulado.

Transforma-se em mais um momento da reprodução do mundo da mercadoria.

Com essa constatação, o desespero bate a porta e a irracionalidade ronda as subjetividades em busca de soluções imediatas. É preciso urgência para mudar.

É urgente recomeçar. “Mas, quando há urgência histórica, não é permitido ter pressa”. Neste momento, o ato de lucidez é fundamental, pois é justamente na crise que as possibilidades da mudança podem ser construídas.

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E é precisamente quando o movimento aparente da “fragmentação” da mercadoria se universaliza, que a possibilidade da totalidade do ser pode vir a ser.

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S

EM

A

DJETIVO

FÁBIO DANT AS Que me perdoem Os céticos e os imaginativos Os frios e os perplexos Os bons e os maus Os amantes e os maridos...

Que me deixem passar Os ateus e os crentes Os parentes e os indigentes Os animais e a gente... Que permaneçam Os falantes e os calados Os sujos e os lavados Os criativos e os tradicionais...

Que todos convivam em paz comigo Pois sou melhor assim

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A

LMA

V

AGA

ERNANDY LUÍS VANCONCELOS-DE-LIMA

Suspirante

Vida dilacerante, vida edificante Vida que marca, vida que aparta Vida que amolece, vida que encrudesce Alma que roga, alma que joga e droga Alma congelante, alma dissipante Alma arrogante, reverente

Coração arrefece, coração encandece Coração jugula, coração trucida

Cora-me a alma; esta vida, cuenta, sedenta, sanguinolenta Tormenta e assenta, coração duro, imaturo, tenaz

Pertinaz é a alma, vita cor agire Age alma vaga; contenta, apaga

Embriaga-me codis, sangrento, renhido, cruento Lento, sanguinário vigor que estimula, fomenta Alma piedosa; espectro bondoso, legalis, vox animae

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Diga-me vida latejante, norte entrante

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A

A

RTE DE

A

BRIR UMA

L

ATA DE

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XTRATO DE

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OMATE

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ILDO

V

IANA

Eugênio estava de férias. Ele era considerado um gênio e um dos grandes intelectuais de São Pedro, uma cidade com 15 milhões de habitantes. Depois de dedicar uma vida inteira à ciência e à pesquisa, ele se orgulhava de longa trajetória e dedicação para a humanidade.

Ele fez um balanço de toda sua produção, pensando que ela poderia ser escrita em suas memórias. Ele esperava ganhar um prêmio pela relevância social de suas obras e, principalmente, de seu último livro, A Arte de Abrir uma Lata de Extrato de Tomate. Ele considerava que esta era sua grande obra e a mais importante do ponto de vista da relevância social. Nesta obra, ele explicava que abrir uma lata de extrato de tomate não era algo prosaico, vulgar e sim uma arte. Em primeiro lugar, ele escreveu 50 páginas sobre o que é a arte, distinguindo-a da ciência e da produção artística em geral. Por arte ele queria dizer técnica, e para abrir uma lata de extrato de tomate é preciso uma rigorosa técnica. A história da humanidade já havia mostrado a importância da técnica e, por isso, ele dedicou apenas 10 páginas finais para ressaltar e recordar isto.

Ele expôs com maestria como se deve abrir uma lata de extrato de tomate. Mas antes discorreu sobre a importância do extrato de tomate, principalmente para a macarronada. Os usos do extrato de tomate recebeu 25 páginas. Mas ele, como pesquisador rigoroso e consciencioso, como gostava de dizer, foi mais longe e explicou

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a importância da lata de extrato de tomate, pois, sem ela, não teríamos acesso ao extrato de tomate. As formas da lata, os tipos de lata, a lata e a conservação dos alimentos, tudo isto foi explicado com maestria. Depois disso tudo, a arte de abrir a lata de extrato de tomate ganhou nova dimensão devido sua importância. Para abrir tal lata era necessário um cálculo minucioso, uma precisão microscópica, além de instrumentos adequados e esterilizados.

Essa obra-prima ganhou reconhecimento internacional e passou a ser referência em todos os centros de pesquisa do mundo. Ele estava feliz, pensava que já havia dado a sua contribuição para a humanidade e que agora só precisaria colher os frutos de sua longa e invejável colheita.

De volta às aulas, Eugênio se deparou com uma situação que o deixou irritado. Uma aluna do mestrado, chamada Graça, entra na sala de aula dez minutos mais cedo e interrompe as reflexões do doutor Eugênio.

Graça – A professora de Economia passou o seu livro, A Arte de Abrir uma Lata de Extrato de Tomate para a gente ler, mas eu não entendi nada. Que importância tem isso?

Eugênio – O quê? Uma vida dedicada à humanidade para ouvir isso dos alunos de mestrado?

Graça – Mas abrir uma lata de extrato de tomate qualquer um dá conta, oras!

Eugênio – Isto é um absurdo!! Qualquer um? Você nem sequer entendeu a importância desta arte e já se julga no direito de fazer uma afirmação destas? Ora, todos os estudiosos reconhecem a importância disso, inclusive os meus críticos. A sutileza do escrito e a importância de seu conteúdo só são acessíveis para quem se dedica e conhece

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os segredos da arte e você não sabe nada disso. Você mesma disse que não entendeu nada. Logo, se não entende não pode julgar.

Graça – Como faço para entender e depois poder julgar? Na minha casa eu sempre abro uma lata de extrato de tomate e nunca vi mistério nenhum...

Eugênio – Pobre criança! Da mesma forma que um pescador pesca mas nada sabe da Arte de Pescar, escrito pelo grande mestre antropólogo Caio Brandão, também autor, anote aí, de obras inesquecíveis, como Plantar para Comer e Colher, além do clássico As Pamonhas Assadas – Da Arte de Fazer à Arte de Degustar, você nada sabe da arte de abrir uma lata de extrato de tomate apesar de abrir algumas. A arte é um dom, e somente aqueles que possuem o dom entendem a arte. Outros, como você, somente com muito estudo, pesquisa, esforço, sacrifício, é que poderão ter uma noção, mesmo que meio turva, de tal arte.

Graça – Acho que vou largar disso...

Eugênio – Isso, faça isso mesmo, pois quem não tem o dom, não tem futuro. Faça outra coisa, trabalhe numa fábrica de extrato de tomate! Seja operária, já que não leva jeito para intelectual.

Graça – Então preciso aprender outras coisas... de onde vem o extrato de tomate?

Eugênio: Da fábrica.

Graça – Quem produz ele?

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Graça – Mas não vem da fábrica?

Eugênio – Isto não tem importância, não faz parte da arte de abrir a lata de extrato de tomate. Logo, vou responder mas pare de perguntar... O camponês produz o tomate e manda para a fábrica, lá os robôs colocam na lata e pronto, assunto encerrado.

Graça – Mas doutor, como que o camponês produz tomate? E como o tomate vira extrato? E quem fez o robô que faz o tomate? O operário? E de onde vem este operário?

Eugênio – Está fazendo graça?

Graça – Não, quem me fez foi minha mãe mais meu pai...

Eugênio – Eu disse, graça de engraçado. Não discuto coisas irrelevantes como essas.

Graça – Mas não é importante saber da produção do extrato de tomate?

Eugênio – Isso é coisa de trabalho manual e eu não discuto estas coisas pobres. Hoje nós sabemos que a grande produção é o trabalho intelectual, imaterial, não manual. Nada de mão, a não ser para abrir a lata de extrato de tomate, mas com os instrumentos adequados.

Graça – Mas como poderia haver arte de abrir lata de extrato de tomate sem tomate, extrato de tomate, lata de extrato de tomate?

Eugênio – Muito engraçado, mas não tenho tempo para perder com essas futilidades. Vou tomar um café até os outros alunos chegarem e por favor não toque mais neste assunto irrelevante e sem sentido. Caso queira discutir estas trivialidades

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procure o professor Zeca Samba, que perde seu tempo com estas questiúnculas inoportunas.

Graça – Desculpe tê-lo incomodado com minhas perguntas bobas. Mas eu vou assistir suas aulas e acabo aprendendo alguma coisa.

Eugênio – Espero, isso é possível, afinal, uma lagarta se transforma em borboleta e por quê você não poderia aprender alguma coisa?

Graça ficou sozinha e pensou que já tinha gastado anos estudando e ainda nem tinha chegado no meio do caminho da genialidade de um Eugênio. Ela pensou: “seria isso o sinal de que o embrutecimento tem limites?”

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O

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EMITIDO

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UCAS

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AIA

Ele chegou à praça por volta das onze horas da manhã. O sol já castigava a superfície terrestre. As plantas apresentavam um aspecto de derretimento. Sofriam com o calor que ondeava a partir do chão. Todos os transeuntes apresentavam um aspecto cansado e suado. Não estava um dia agradável.

A praça não tinha um aspecto muito apresentável. Alguns bancos de cimento bastante danificados. Todos apresentavam uma sujeira de longos períodos sem manutenção. O pó preto que os automóveis levantavam do asfalto formava uma fina camada áspera sobre todos os objetos da praça. Uma árvore estropiada fazia uma sombra pouco confortável e toda vazada sobre um dos bancos. Um acúmulo de entulhos de toda espécie estava espalhado pela praça. A um de seus cantos, uma pilha de lixo com aspecto fétido se avolumava.

Ele sentou-se no banco cuja sombra refrescava um pouco o ambiente. Aquela sombra fraca, famélica, esfrangalhada não ajudava a melhorar sua condição. Acabara de ser demitido. Estava no emprego há quase três meses. Não era dos melhores, nem tinha salário que realmente pudesse dar à sua família algo mais do que uma casa precária, água e luz pagas todo mês, alimentação diária pouco variada. Contudo, já era algo.

A certeza do salário acalmava-lhe o espírito. 

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O olhar distante e o semblante sem esperança davam àquela figura um aspecto perdido. Mexeu no bolso da camisa puída, mas bem limpa e conservada, retirou uma carteira de cigarro. Pegou um. Acendeu-o. Deu uma, duas, três tragadas bem demoradas e profundas. A nicotina e o tabaco percorreram todo o corpo. Sentiu uma sensação de bem estar confortável. Um leve vento soprou aliviando um pouco o calor, mas logo se dissipou.

O tabaco fez sua mente voar rápido. O barulho dos carros, o burburinho da cidade, as vozes dos passantes foram ficando cada vez mais distantes. Ele começou a entrar num estado de reflexão bastante profundo. Quanto mais fumaça inalava, mais sentia que se afastava daquela praça horrenda.

Contudo, o que começou encontrar nos confins de seu espírito foi ainda mais assustador. Viu-se diante de si mesmo e de seus impasses. Um retorno à praça agora até que lhe daria um alívio. Não voltou. Aprofundou mais e mais.



Não chegou a terminar o período de experiência. Seu último pagamento estava em seu bolso. Descontando o vale que havia feito duas semanas antes, estava agora, portanto, com apenas dois terços do salário. Estes dois terços dariam para o aluguel, que venceria naquela semana. A água e a luz já estavam pagas. A alimentação diária estava garantida para mais uma ou duas semanas. Sobraria ainda uma mixórdia que não daria para quase nada.

Refletindo... Disse a si mesmo: “Sou assim tão imbecil que não consigo ficar num emprego nunca?”.

Sua demissão causou-lhe uma profunda sensação de impotência. Tinha a plena certeza de que ficaria no emprego por vários anos, que teria garantida sua existência sem as dores advindas do desemprego. Mas não... Nem cumpriu o prazo de experiência e já estava na rua de novo.

“Devo ser muito incompetente. Não devo merecer nem um empreguinho como este mesmo”...

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Sentia-se, neste estágio de sua introspecção, como completamente responsável por sua demissão. Nunca lhe ocorreu que talvez os motivos da demissão fossem outros. Sua culpa o feria como navalha. Os cortes que lhe fazia eram deveras graves. Ele era o responsável. Fora demitido por que era incompetente. Somente uma pessoa incompetente, sem talentos, sem iniciativa como ele seria tão sucessivas vezes demitido. Somente alguém como ele, que não suportou terminar os estudos iniciais da escola, que não conseguiu fazer qualquer preparação profissional, que, enfim, era um preguiçoso e inábil poderia ser um desempregado.

Repetia para si mesmo: “Sim, a culpa é minha, de mais ninguém... Meu patrão, ou melhor, meu ex-patrão, é mais jovem do que eu e já é bem sucedido. Tem a empresa, tem carros, tem família limpa e bem controlada. Já eu? Envelhecendo, sem estudos. Mereço isto mesmo”.

Não lhe passou pela cabeça que a empresa de seu ex-patrão fora montada com capital que este recebera de seu pai, que era empresário muito maior e mais poderoso. Mas isto, naquele momento, pouco importava. De fato, seu ex-patrão era ainda patrão e ele, seu ex-empregado, era agora desempregado. Somente isto importava. Somente isto lhe oprimia.



“Estou novamente sem trabalho. Isto é um fato. Não vou cumprir a promessa...”, pensou quase em voz alta.

Ele tinha uma filhinha de sete anos de idade, Elisa. As crianças nesta faixa etária não são muito compreensivas. Não entendem muito de economia política para saber as razões das dificuldades dos pais. Seu pai havia lhe prometido aquela boneca... Aquela que estava a todo momento na TV. A boneca fazia barulhos como se fosse realmente um bebê vivo: ria, chorava, gritava e falava um conjunto de palavras programadas. A boneca fazia xixi. Bastava que se colocasse água num compartimento, que de tempos em tempos, ela liberava um pouco de água, molhando as fraudas.

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Elisa estava fascinada com a tal boneca. Já havia três semanas que ela não falava de outra coisa. Toda vez que via o pai, no finalzinho da tarde e início da noite, antes mesmo de lhe dar o beijo de boas vindas e aquele abraço caloroso que toda criança dá nos pais quando estes voltam do trabalho, cobrava-lhe a boneca.

 Papai, trouxe minha boneca hoje?

Ela faria novamente esta pergunta. Das outras vezes, ele mentia, mas no fundo acreditava que ia comprar o brinquedo para sua filha. Assim que a situação desse uma aliviada, compraria a boneca. Não poderia fazer isto agora. A situação iria piorar. Estava ainda a decidir se mentiria uma vez mais. Contudo, se mentisse agora, seria uma mentira verdadeira, pois sabia que não iria comprar a tal boneca. Se não mentisse, ela descobriria que todas as outras vezes em que havia prometido, tinha, na verdade, mentido. Esse dilema o estava dilacerando. Mentir ou não mentir, eis a questão.

Os olhinhos dela brilhariam, indagando a respeito do objeto prometido. Se dissesse que compraria, não suportaria olhar-se no espelho novamente depois de tamanha mentira e desfaçatez. Se não mentisse, revelaria-se como verdadeiro mentiroso. Sinuca de bico. Beco sem saída.



Deu mais uma tragada profunda. O cigarro desceu próximo ao filtro. Veio um gosto amargo na boca. Sua mente, contudo, pensando em si mesma, desceu mais fundo ainda. Veio-lhe à mente aquela pequena dívida que tinha no mercadinho da rua abaixo de sua casa. Era justamente o lugar onde sua esposa comprava as coisas que faltavam em momentos de dificuldade e desemprego.

Ele ficou quase três meses empregado, recebendo regulamente salário. Preferiu transferir o dinheiro da dívida para outro lugar, o bar. Não pagou a dívida quando pode, julgando que continuaria empregado e que um dia pagaria, pois sempre paga suas dívidas. Não pagou, contudo. Estava agora novamente sem emprego, sem salário e soma-se à dívida do mercado, a do bar, que havia crescido devido à confiança que adquirira de que se tornaria um assalariado perene.

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Sentiu-se um grande patife. “Quando pude pagar, não paguei. Como vou olhar agora na cara de D. Nena para lhe pedir que me fie um litro leite, dois quilos de açúcar, um litro de óleo? Não tenho esta coragem...”.

Lembrava-se que D. Nena no mês anterior tinha ido à sua casa e lhe cobrado a dívida. Ela sabia que ele estava empregado, que estava recebendo salário. Ele sempre dizia que passaria no final da semana para acertar tudo. Nunca passou. Passava sempre no bar, tomava uma, duas, três cervejas. Engrossou a dívida com S. Antônio. Não poderá, também a ele, fazer o pagamento, embora a vontade de tomar algumas no fim da tarde seja uma força incontrolável.

Vergonha de D. Nena. Vergonha de S. Antônio. Vergonha de sua filha. Vergonha de si mesmo. Por ser tão inútil, alcoólatra, irresponsável, estava agora novamente sem emprego. Não pagaria suas dívidas. Teria que se humilhar diante dos pequenos comerciantes do bairro para lhe venderem fiado novamente, mesmo sabendo que estes lhe olham com desprezo e desconfiança. Sabe que D. Nena o despreza por ser desempregado, por ser caloteiro. Mas não há outro remédio, a única que vende fiado a ele é somente D. Nena. Nenhum outro comerciante confia em lhe vender absolutamente nada.

Seu pensamento deu um grito bem alto:  Que... Vergonha!!!



Fumou a última gota de nicotina ainda presa ao filtro do cigarro, que se apagou. Olhou para o resto do cigarro apagado entre seus dedos. Olhou para a praça que ainda estava tão feia e quente como antes. Recostou-se no banco empretecido, sujando sua camisa. Não se importou com a sujeira. Uma sensação tátil de aspereza lhe incomodou. Era a poeira assentada sobre o banco. O sol abrasava tudo. O calor estava realmente insuportável. Fechou novamente os olhos. A sensação de que tudo estava errado era tão física quanto a sensação térmica que tornava tudo profundamente desagradável. Não teve ânimo para se levantar. Continuou em sua introspecção.

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Sentiu a pele de seu rosto pegajosamente oleosa. O calor fazia com que suas glândulas sudoríparas trabalhassem mais. Suava demasiado por debaixo da camisa. O óleo da pele, o suor quente e a poeira áspera formavam uma mistura repulsiva. Foi assim realmente que ele se sentiu: repulsivo.

Não eram mais somente as múltiplas vergonhas que o assombravam. A elas, somou-se outra coisa mais. Ele era também repugnante. Não só por que estava fedendo a tabaco e nicotina, não só por que o suor e a poeira davam-lhe um aspecto pegajoso. Era repugnante por que se considerava um fraco, um mentiroso, um caloteiro, um bêbado... Um desempregado!

“Realmente, não sou outra coisa senão um homem repugnante”, dizia-se a si mesmo.

Percorriam por suas células cerebrais pensamentos torpes. A vilania de sua existência era algo repreensível. Enganava a todos: D. Nena, S. Antônio, Elisa, mas principalmente, Solange.

Viu subir-lhe pelo estômago até a boca um sentimento de angústia. Solange confiou nele. Ela, que também amargava alguns meses de desemprego, confiou que ele resolveria a situação.

“Sou o homem da casa!!! Como pode ser assim? Não consigo manter minha própria família. Minto pra minha filha. Minto pra minha mulher”.

Sentiu-se como a própria encarnação do fracasso. Retirou outro cigarro. Acendeu-o. Tragou repetidas vezes. Um gosto amargo e uma sede feroz tornaram sua situação ainda mais difícil. Os transeuntes sobem, descem, atravessam a praça. Ninguém o nota. Ele não significa nada para os outros. Ele é somente mais um no meio da multidão. Ninguém se importa com ele.



Abateu-se. Vergonha, angústia, desespero, repugnância... Solidão!!!

Não era ninguém. Não tinha importância para seu patrão, pois fora descartado como coisa velha que não presta para mais nada. Essa foi realmente a sensação que lhe tomou todo o corpo e o espírito. Coisa velha que não presta para nada.

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A maneira como o Dr. Tavares, seu gerente, havia lhe dado a notícia veio à superfície de sua consciência. Tal lembrança foi a última pá de terra sobre seu cadáver:

 Fulano, passe no RH antes do almoço. Não precisamos mais de você. “Não precisamos mais de você”. Esta frase foi muito dolorida. Foi justamente esta frase que mais tornou a situação insuportável. Fora dispensado como coisa velha, como coisa estragada, como coisa que não presta mais. Como coisa. Coisa!!! Este foi o estado de espírito que se abateu sobre ele ao ser demitido. Enquanto prestou, por quase três meses, estava contratado. Quando não prestou mais, foi demitido. Esta sensação de ser coisa é a mais embrutecedora das sensações.

No caso, não se tratava de se sentir como coisa, mas de ser efetivamente coisa. Todo o papo humanista das escolas de administração, o discurso liberal de respeito à vida humana não tem nenhum sentido quando se está à beira do precipício da demissão. Ele caíra pelas bordas e estava agora a se esborrachar pelas pedras. A cada impacto, um pedaço de sua carne ficava para trás. A cada baque, algumas gotas de sangue se derramam pelas encostas. Agora que já estava lá embaixo, despedaçado, destroçado... Era menos-que-coisa. Nem para coisa parecia servir mais.

Não conseguiu continuar pensando... Coisa, aliás, menos-que-coisa, não pensa. Levantou-se de súbito. Pareceu emergir das profundezas. Chegou novamente à superfície da consciência. Lá estava a praça. Lá estava o calor. Lá estava o lixo. Lá estava ele, o menos-que-coisa: o fulano. Sentiu uma forte impulsão para chorar. Conteve-se. Homem não chora. Os olhos brilharam afogados em lágrimas, mas nenhuma rolou pelo rosto.



A caminho de casa, sacolejando no ônibus, tinha visões terríveis. Viu D. Nena com uma caderneta nas mãos a cobrar-lhe dia e noite a dívida. Viu S. Antônio com aquele bigode militar a recusar-lhe uma dose de pinga. Viu Elisa dirigir-lhe um olhar triste, descobrindo que o pai era um mentiroso. Sobretudo, já ouvia as reprovações de Solange:

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 Eu lhe disse para não matar serviço! Eu lhe disse para não chegar atrasado! Eu lhe disse para não beber na hora do almoço...

As palavras dela, antecipadas em sua mente, já eram uma realidade. Parecia que todos estavam ali a intimidar-lhe, a humilhar-lhe. Uma menos-que-coisa sendo humilhada por outras coisas.

Solange estranhou a chegada do marido em hora tão adiantada. Anteviu o que havia acontecido. Ele contou a ela tudo o que lhe ocorrera. Preparou o espírito para as reprovações.

Ela apertou-o num caloroso abraço. Por demorados segundos, ficaram a apertar-se. Nenhuma palavra foi dita. Ele não se conteve. Uma lágrima indiscreta irrompeu de seus olhos, desceu pela face, atravessou a boca pelos vincos que algumas rugas faziam no canto de sua boca e aconchegou-se no ombro quente de Solange.

Eles se entreolharam profundamente. Olhos nos olhos. Os olhos dela estavam embebidos em lágrimas. Algumas despencaram violentamente, parando no canto da boca. Nenhum ruído de choro. Ele a confortou...

Lucas Maia Aparecida de Goiânia, 21 de maio de 2015

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Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus

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meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos.

Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.

- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...

- Duas?

- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

- Não?

- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a

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alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...

- Perdão; essa senhora quem é?

- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:

- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio

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escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...

- Espelho grande?

- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?

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- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.

- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de

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louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.

- Matá-lo?

- Antes assim fosse. - Coisa pior?

- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça

abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never!

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lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se?

- Sim, parece que tinha um pouco de medo.

- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.

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- Mas não comia?

- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...

- Na verdade, era de enlouquecer.

- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia...

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- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.

- Mas, diga, diga.

- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e...não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir...

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Intenciono neste texto dois alvos: 1) incentivar aqueles que ainda não leram “Keep The Aspidistra Flying” ou segundo a tradução que utilizamos, “Mantenha o Sistema”, a entrarem em contato com o texto. Este primeiro objetivo é em si irrelevante, dada a estatura literária de George Orwell. Por isto, o segundo alvo é efetivamente o verdadeiro objetivo; 2) discutir uma contribuição de Orwell para o entendimento da luta anticapitalista.

Este ensaio não constitui, também, uma interpretação, no sentido que os críticos literários gostam de atribuir aos comentários às obras literárias. Trata-se, pois, de buscar no livro, sobretudo em sua ordem geral de exposição das ideias, a leitura que Orwell faz de algumas formas de resistência políticas à sociedade moderna.

A trama que ordena o livro estrutura-se em torno da vida de Gordon Comstock e na luta que este trava contra o dinheiro. O dinheiro é a expressão ou a materialização do todo da sociedade capitalista. Tudo, absolutamente tudo, segundo a apreciação de Comstock, gira em torno do vil metal. Desde a aquisição de bens materiais (roupa, alimentação, moradia etc.), amizade, amor, capacidade de criação artística etc. Tudo é mais fácil para quem tem dinheiro. Para aqueles cujos bolsos estão cheios, é mais fácil morar, comer, ter amigos, amar, produzir arte. Para aqueles a quem faltam as moedas, tudo se torna mais difícil. Mas ao mesmo tempo, Comstock identifica no dinheiro a falta de amizade, a falta de amor, os problemas familiares etc. O dinheiro é, pois, um mal a ser evitado. É algo a ser rejeitado. É a partir desta premissa que

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Comstock organiza toda a sua vida: a) profissional; b) familiar; c) círculo de amizades; d) intelectual; e) amorosa.

Sua vida profissional é miserável. Trabalha em uma livraria e ganha uma miséria por semana. Dinheiro que mal dá para pagar o aluguel da pensão onde mora, o cigarro que fuma e a bebida que o torna ébrio. Mas ele ao mesmo tempo rejeita qualquer outro emprego que o remunere melhor, negando várias oportunidades que lhe foram dadas, o que deixa sua família, amigos e namorada completamente confusos. Seu objetivo é negar o dinheiro. Para tanto, deve ter um péssimo emprego. À medida que a trama se desenvolve, ele desce cada vez mais na escala social, indo para empregos cada vez piores. Se tem um salário baixo, tem pouco dinheiro. Nada mais, nada menos do que o estrito necessário para sobreviver. E isto para ele é o que basta. Contudo, ele não pensa duas vezes, quando em apuros financeiros, em pedir dinheiro emprestado à irmã, único membro da família com quem mantém algum contato mais direto. Por rejeitar o dinheiro, Comstock também acaba por rejeitar sua família que nunca consegue entender sua atitude diante da vida. Esta é a luta de Gordon. Negar o dinheiro, pois ao fazer isto, nega o mundo que necessita do dinheiro como coluna mestra de sustentação.

Também o círculo de amizades de Gordon é muito restrito, na verdade, quase inexistente. Consiste basicamente em dois nomes: Flaxman e Ravelston. O primeiro mora na mesma pensão que ele e ao que tudo indica é um comerciante que está temporariamente separado da esposa e por isto mora na pensão. O segundo é editor de uma revista chamada “Anticristo”. Este é rico, mas mora em uma bela casa num bairro degradado de Londres. Trata-se de um editor de inspiração política comunista e publica regularmente alguns poemas de Gordon. Comstock não aceita sair para beber com eles e quando aceita faz questão de pagar, mas nunca tem dinheiro para tanto, o que sempre provoca situações muito desagradáveis. Esses são os únicos a quem Gordon recorre ou que olham por ele: a irmã Júlia e os amigos Flaxman e Ravelston.

Além deles, há também uma mulher a quem Gordon nutre grande afeição: “amor”? Rosemary é seu nome. Este amor é durante toda a obra interrompido, religado, diminuído e aumentado pelo dinheiro ou a falta de dinheiro. A relação entre os dois

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sempre tem no meio a discussão sobre o dinheiro, a necessidade de Comstock abandonar esta ideia de rejeitar o dinheiro e arrumar um emprego melhor, morar num lugar melhor etc. Entre idas e vindas, os dois não conseguem nunca retirar a sombra do dinheiro de entre ambos.

Esta ideia de Comstock de que o problema é o dinheiro e que por este ser o problema deve ser rejeitado, condiciona também sua vida intelectual. Segundo Gordon, os que têm dinheiro são os que melhor escrevem, os que melhor pintam. Os grandes artistas não tem que se preocupar em pagar o aluguel no final do mês, só tem que se preocupar em realizar sua arte. Gordon é poeta. É autor do livro de poemas: “Ratos”, que não chegou a vender a 100 cópias. Está há meses labutando para escrever um poema, “Prazeres de Londres”, o qual ele nunca consegue dar forma final. Argumenta que seu fracasso também como artista tem origem no dinheiro, por isto rejeitá-lo é a única alternativa.

Este é Gordon Comstock, o último membro da família Comstock. Devido à sua luta contra o dinheiro, torna sua vida familiar, amorosa, profissional, intelectual um problema sem fim. A atividade política de Gordon para negar o “sistema” é negar aquilo que dá dinamismo ao “sistema”, ou seja, o dinheiro. Esta sua luta política, luta árdua, ingrata, coloca o nosso herói anticapitalista no mais abjeto modo de vida. Ele sustenta que isto é o adequado. Quem quer que queira lutar contra o dinheiro, deve levar às últimas consequências as suas ideias. A ação de lutar contra o dinheiro, negando-se a tê-lo, é o eixo estruturante da recusa de Gordon à sociedade capitalista. Recusa a sociedade moderna negando-se a ter dinheiro e arcando com todas as responsabilidades deste ato. A sarjeta, a lama, o desespero, a miséria, a solidão são a consequência necessária da aplicação de suas ideias. Ele sofre com isto, mas aceita sua situação miserável sem a ninguém querer incomodar, exceto a irmã, nos momentos de grande desespero.

Quando Gordon, no empreendimento de sua luta, estava no mais abjeto modo de vida, um diálogo dele com Ravelston é bem revelador de sua ação política e dos limites que ela necessariamente apresenta:

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 Você pensa que sou um sem-vergonha  disse olhando para o teto.

 Não, não penso. Por que devia pensar isto?

 Sim, você pensa. Pensa que sou um sem-vergonha por ficar num lugar nojento destes ao invés de procurar um emprego decente. Você pensa que eu devia tentar novamente aquele emprego da New Albion.  Não, que diabo! Nunca pensei nisto. Compreendo inteiramente seu ponto de vista, como já lhe disse antes. Penso que está absolutamente

certo quanto a seus princípios.

 Mas você pensa que está tudo muito bem quanto a princípios, contanto que o sujeito não vá tão longe e os ponha em prática.

 Não. Mas a questão é sempre a mesma: quando é que alguém os está pondo em prática?

 É muito simples. Declarei guerra ao dinheiro. E isto me levou até aqui.

Ravelston coçou o nariz e mexeu-se, pouco à vontade, em sua cadeira.  O erro que você comete, você não percebe, é o de pensar que alguém possa viver numa sociedade corrupta, sem se tornar corrupto ele mesmo. Afinal de contas, que objetivo alcança você ao se recusar a ganhar dinheiro? Você está tentando comportar-se como se alguém

pudesse permanecer fora do nosso sistema econômico. Mas ninguém pode. Ou se consegue mudar o sistema, ou não se muda coisa alguma.

Não se pode ter uma boa perspectiva das coisas olhando o mundo por um buraco, se é que você entende o que quero dizer (ORWELL, s/d, p. 219) (grifos meus).

À exceção da questão da corrupção, pois Orwell generaliza demasiadamente o raciocínio, pois nem todo mundo é corrupto nesta sociedade, explicita-se aqui a contradição fundamental ou a limitação política congênita no modo de pensar e agir do Gordon Comstock. A luta de Gordon contra a sociedade capitalista é correta quanto aos seus princípios. Esta sociedade deve, de fato, ser negada. Um dos seus aspectos, o dinheiro, deve ser negado. O que Orwell quer demonstrar com esta imagem é que a mercantilização de todas as esferas da vida é algo que degrada o ser humano. Quando Gordon nega o dinheiro, o que está sendo dito por Orwell com esta imagem é que se deve negar a mercantilização da vida tal como a sociedade capitalista a estrutura.

O conjunto da vida na sociedade moderna é marcado por relações mercantis. Ou melhor dizendo, em outras palavras, a sociedade capitalista mercantiliza o conjunto da vida. Marx e Engels atestaram este aspecto da vida moderna quando disseram que:

A burguesia despojou de sua aura todas as atividades até então consideradas com respeito e temor religioso. Transformou o médico, o

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jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em assalariados por ela remunerados. A burguesia rasgou o véu de emoção e de sentimentalidade das relações familiares e reduziu-as a meras relações monetárias (MARX & ENGELS, 2002, p. 28).

O desenvolvimento da sociedade capitalista marcado por esta mercantilização das relações sociais é necessariamente acompanhando, como demonstra o estudo de Viana (2002), pela burocratização do conjunto da vida. Mercantilização e burocratização são elementos indissociáveis na constituição da sociedade moderna. A crítica de Orwell neste livro está fundada neste primeiro elemento, ou seja, da mercantilização1. O dinheiro, elemento que simboliza a mercantilização da sociedade no conjunto da trama, leva o protagonista a situações as mais difíceis. A rejeição ao dinheiro, metaforicamente, representa a rejeição à mercantilização da vida. Assim, sua arte, seus amigos, sua família, seu amor, seu trabalho são todos envolvidos nos mais dolorosos conflitos, justamente por que Comstock não quer ceder à vida mercantil, quer negá-la, quer rejeitá-la. “Declarei guerra ao dinheiro” é sua sentença.

O que Orwell demonstra na fala de Ravelston é que atitude de Gordon é inocente, ingênua. Ele quer viver contra o dinheiro, sem negar o que gera a necessidade do dinheiro. Mais ainda, quer negar o dinheiro sem negar a sociedade que necessita do dinheiro como forma de fazer circular os produtos, as mercadorias. Gordon não se preocupa em negar a sociedade capitalista, as relações sociais capitalistas. Contenta-se ingenuamente em negar somente um aspecto desta sociedade, sem negar o conjunto. Orwell demonstra isto quando narra os pensamentos de Gordon logo após Rosemary, sua namorada, dizer-lhe que há uma possibilidade real de emprego com bom salário e que basta ele entrar em contato com os possíveis empregadores.

De certo modo, porém, a coisa não era tão simples. Certa noite, cerca de nove horas, jazia ele na cama com a colcha rasgada sobre os pés e mantendo as mãos sob a cabeça, para aquecê-las. O fogo estava apagado. Por sobre todas as coisas havia uma grossa camada de poeira. A aspidistra já havia morrido há uma semana e ali estava secando, erecta, no vaso. Gordon retirou um dos pés de sob a coberta,

1

Seu clássico 1984 (ORWELL, 1986) discute de modo incontestável o outro elemento, ou seja, a burocratização. A distopia inventada por Orwell neste famoso livro descreve uma sociedade completamente burocratizada e repressora controlada por um partido único, o Ingsoc. Esta discussão, contudo, foge aos objetivos deste trabalho.

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manteve-o no ar e contemplou-o. A meia que usava estava cheia de buracos – havia mais rasgões do que meia. Então ali estava ele, Gordon Comstock, no sótão de uma casa de uma rua ordinária, sobre uma cama de andrajos, com os pés surgindo de meias esburacadas, com apenas um xelim e quatro pence no bolso e três décadas que haviam ficado para trás, sem que nada, absolutamente nada tivesse realizado! Não era ele agora um irrecuperável? Certamente. Por mais que tentassem, poderiam eles arrancá-lo de uma arapuca como aquela?

Havia desejado chegar até a lama. Bem, aquilo era a lama, não era? E, no entanto, ele sabia que não era assim. O mundo que evitava, o mundo do dinheiro e do sucesso, estava sempre tão estranhamente perto. Você não pode evitá-lo refugiando-se simplesmente na sujeira e

na miséria. Sentira-se amedrontado, assim como enraivecido quando Rosemary lhe falara sobre a oferta do Sr. Erskine, porque tal comunicação aproximara-o muito do perigo. Bastaria uma carta, um telefonema e ele sairia daquela miséria para entrar, de volta e diretamente, no mundo do dinheiro – seria a volta a quatro libras por semana, ao esforço e à decência, a volta à escravidão. Arruinar-se, ir

para o diabo, não é assim tão fácil como parece. (ORWELL, s/d, p.

227/228) (grifos meus).

Orwell anuncia aqui a manutenção do voo da aspidistra ou, segundo nossa tradução, a manutenção do sistema. O título do livro no original é uma espécie de metáfora da normalidade. A aspidistra é uma planta que parece acompanhar a todo cidadão conformado, estabelecido, assalariado e satisfeito com a vida mercantil desta sociedade. Quando Gordon estava em sua luta contra o dinheiro, a aspidistra estava em seu quarto sempre à beira da morte, quando não, completamente morta. Gordon sempre teve ao seu lado esta plantinha, mas sempre a mantinha em estado deplorável. Ao que parece, metaforicamente, Orwell está demonstrando com esta imagem a negação da vida mercantil, cotidiana.

Quando Comstock desceu o máximo que pode, caindo na sarjeta e chafurdando na lama, ou seja, sem dinheiro, portanto, sem vida mercantil, a aspidistra que o acompanhava também morreu. A negação do dinheiro, da mercantilização da vida levou o protagonista ao mais fundo na escala social. Nosso herói caiu. Contudo, como indicamos na citação anterior, Orwell demonstra que basta Comstock olhar par acima que está lá, tudo como ele havia deixado antes, o mundo do dinheiro, do salário, do trabalho diário, do aluguel, do casamento, da família, das compras etc. Estava tudo lá,

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Ano 02, numero 04 jul/dez. 2015 [

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ele que havia caído tanto é que não queria mais ter acesso àquilo tudo, mas aquilo tudo continuava a existir como sempre.

O que significa, pois, “Keep the Aspidistra Flying”? O que significa “Mantenha o Sistema”? O voo da aspidistra é a manutenção do sistema. Comstock lutou, como Dom Quixote, contra moinhos de vento como se fossem gigantes. Sua luta foi totalmente inútil e não levou a absolutamente lugar nenhum. Tudo estava lá. Ele se afastou do mundo do dinheiro, mas o mundo do dinheiro estava todo inteirinho, forte, pujante, brilhante e mercantil como uma vitrine de shopping center. Toda a luta de Comstock contra o dinheiro nada significou para o mundo do dinheiro.

A prova disto é que Gordon a ele retornou. Após uma notícia de Rosemary dizendo a ele que estava grávida, a aspidistra voou, ou seja, saiu da lama, da sarjeta de onde estava para um emprego estável, casou-se com Rosemary, alugou uma casa num bairro melhor, parou de escrever poemas, que era para Gordon uma forma de resistência, tornou-se, enfim, um cidadão conformado e bem situado na vida mercantil da sociedade capitalista. O voo da aspidistra é, pois, o retorno da normalidade, da vida cotidiana, do trabalho alienado, da mercantilização de tudo. É a vitória do dinheiro.

Últimas palavras: o significado disto para a luta revolucionária

Nossas considerações agora se dirigem aos grupos, indivíduos que se julgam a si mesmos revolucionários. Revolucionário aqui não remete a nenhuma mitologia ou lenda capitalista de líderes fumando charuto, vestindo fardas, empunhando fuzis, nem muito menos a chefes de partidos políticos, pousando de intelectuais e líderes da classe operária. Deixemos essas velhas ideias mofando no porão de onde nunca deveriam ter saído.

Revolucionário aqui remete a todo coletivo, indivíduo, organização que se disponha, em todos os níveis, a se contrapor às relações capitalistas estabelecidas. O revolucionário é o que nega. É também, paradoxalmente, o que afirma. Comstock negou o dinheiro, mas não afirmou nada em seu lugar. Revolucionário aqui é o que questiona o

Referências

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