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Viagem ao inferno: problemas de ecdótica e de genologia ou o diabo a quatro

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VIAGEM AO INFERNO: PROBLEMAS DE ECDÓTICA E DE

GENOLOGIA OU O DIABO A QUATRO

A VOYAGE TO HELL: QUESTIONS OF ECDOTICS AND GENRE OR THE

DEVIL IS IN THE DETAIL

José Camões

Centro de Estudos de Teatro / Faculdade de Letras Universidade de Lisboa

Resumo: A fixação do texto do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, e do seu

lugar na História do Teatro em Portugal não é tarefa fácil.

A Barca do Inferno conhece no século XVI quatro edições que se instituem como veículos da transmissão textual ao longo dos séculos vindouros. As diferenças textuais que apresentam resultam de processos de reescrita, sem que esteja atestada a vontade autoral na maioria delas.

Por outro lado, as circunstâncias da produção do texto e do espectáculo são diferentes de testemunho para testemunho, criando, a par dos problemas de crítica textual, problemas de classificação genológica.

Palavras-chave: Crítica textual; História

do teatro; Barca do Inferno; Gil Vicente.

Abstract: It is not an easy task to edit Gil

Vicentes Auto da Barca do Inferno (Boat

of Hell), or to determine the importance

of this play in the history of Portuguese Theatre.

Four witnesses were published in the 16th century, which were established as

vehicles for textual transmission throughout the centuries. Most, if not all of their textual differences result from rewriting processes in which an evidence of the author s intent cannot be attested. On the other hand, different circumstances surrounded every publication, as well as the different stagings of the play that the texts refer to. Along with the problems of textual criticism, this fact poses some questions of genre classification.

Keywords: Textual criticism; History of

the theatre; Boat of Hell; Gil Vicente

Cumpriram-se no ano de 2017 cinco séculos de transmissão de um dos textos mais significativos da história do teatro português. A Barca do Inferno de Gil Vicente foi representada pela primeira vez em Março de 1517, ou pelo menos assim as Histórias do teatro e da literatura o fixaram. As circunstâncias dessa primeira representação não são fáceis de determinar e colocam algumas questões que aqui tentarei sintetizar, sem ousar, no entanto, propor respostas definitivas.

Existem dois testemunhos antigos fundamentais para a conservação e transmissão do texto escrito e representado por Gil Vicente. Um deles surge na

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compilação de todas as suas obras, publicada pelos filhos Luís e Paula entre 1561 e 1562, designado na taboada como «a barca primeira», o outro numa edição avulsa não datada, mas seguramente preparada em vida de Gil Vicente e próxima da representação da obra (figura1).

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Os textos, contudo, não coincidem. Ao confrontarmos os dizeres paratextuais de cada um deles deparamo-nos com uma primeira dificuldade no que diz respeito ao estabelecimento da História do Teatro em Portugal.

Diz a Compilação de 1562:

Representa-se na obra seguinte ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem. E por tratar desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno. É repartida em três partes: de cada embarcação ũa cena. Esta primeira é da viagem do Inferno. Trata-se polas figuras seguintes: primeiramente, a barca do inferno, Arrais e Barqueiro dela, diabos. Barca do paraíso, Arrais e Barqueiros dela, anjos. Passageiros: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Frade, Florença, Alcouviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros. Esta prefiguração se escreve neste primeiro

livro, nas obras de devação, porque a segunda e terceira parte foram representadas na capela, mas esta primeira foi representada de câmara, pera consolação da muito católica e santa

rainha dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de 1517.

Diz o folheto:

Auto de Moralidade composto per Gil Vicente. Por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor nossa senhora e representada per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel primeiro de Portugal deste nome. Comença a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto se fegura que no ponto que acabamos d espirar chegamos supitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batés que naquele porto estão: um deles passa pera o paraíso e o outro pera o inferno. Os quais batés tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um Anjo e o do inferno um Arrais infernal e um Companheiro. O primeiro entrelocutor é um Fidalgo que chega com um Paje que lhe leva um rabo mui comprido e ũa cadeira d espaldas. E começa o Arrais do Inferno desta maneira ante que o Fidalgo venha.

Os elementos textuais são os mesmos: a prefiguração da viagem para o além; os para-textuais não o são: contam histórias que não sendo, em boa verdade, incompatíveis, inscrevem a representação da obra em circunstâncias distintas. No

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testemunho de 1562, sujeito a graus de intervenção editorial elevados, a obra diz-se feita para «consolação da muito católica e santa rainha dona Maria», apondo uma questão pertinente para a teoria dos géneros: há, da parte dos editores, como que uma necessidade de justificar a integração da obra num livro reservado às obras de devoção, como se o espaço determinasse a classificação do texto do espectáculo; ou seja, um espaço sagrado exige matéria sacra, o espaço profano reclama assuntos seculares1. E até mesmo os pretextos condicionam o género do repertório a apresentar: as festas do calendário litúrgico celebram-se com teatro religioso, em capelas e igrejas, e as festividades áulicas, com histórias profranas, em salões ou câmaras. Basta pensarmos, por exemplo, no Auto em Pastoril Português e na Tragicomédia da Serra da Estrela: ambos encenam quartetos amorosos desencontrados que se harmonizarão no final, mas foram representados um numa igreja de Évora, no Natal, e o outro num salão de Coimbra, no nascimento da infanta D. Maria, o que terá motivado a sua inclusão no primeiro livro – obras de devoção – e no terceiro – tragicomédias, respectivamente. Mas nem sempre terá sido assim. Veja-se o caso raro do chamado Sermão de Abrantes, representado na capela para festejar o nascimento do infante D. Luís - e ainda por cima com a encenação dos sinais da morte. Os filhos do autor decidiram remetê-lo para o livro quinto, o das obras meúdas. A sua condição de acção para um só intérprete poderá ter sido determinante nesta escolha.

Na Barca do Inferno, a temática parece ter-se sobreposto ao critério do espaço de representação. É bem possível que a câmara a que se alude na indicação didascálica de 1562 seja a mesma onde 15 anos antes Gil Vicente iniciara as suas lides teatrais com a Visitação que fez ao parto da rainha agora moribunda2.

1 Na Copilação de Todalas Obras de Gil Vicente, os textos encontram-se repartidos por cinco livros

(devação, comédias, tragicomédias, farsas e cousas meúdas). A distribuição é desigual: dezasseis autos de devação, seis comédias, dez tragicomédias, doze farsas e doze cousas meúdas, que inlcuem a paráfrase de um salmo, um pranto, uma pregação, uma carta, um epítáfio, orações, romances e trovas. O corpus não é homogéneo, foi ajustado a uma medida imposta pelos editores de 1562. É evidente que houve um esforço de catalogação por parte de Luís Vicente, primeiro editor das obras do pai, mas a sua divisão em quatro géneros – devoção, comédias, tragicomédias e farsas – revelou-se insuficiente ou ineficaz, como revelou-se pode obrevelou-servar no ecléctico conjunto de obras incluídas no quinto livro, onde parece ter sido colocado o que não coube em nenhum dos outros.

2 Ao contrário do que se pensava, e se lê na maioria dos estudos sobre a obra, a câmara onde se

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Determinante foi, seguramente, o facto de as duas «partes» seguintes – Purgatório e Glória – terem sido representadas em igrejas, evitando, assim, o desmembramento do conjunto.

Para além da questão dos locais, coloca-se a questão das rainhas espectadoras em 1517. No entanto, as duas hipóteses imediatamente possíveis não são necessariamente disjuntivas. Se o livro de 1562 dá como destinatária da Barca do Inferno a rainha consorte, a edição avulsa dá como instigadora da peça D. Leonor, viúva de João II e conhecida patrocinadora do teatro de Gil Vicente, num modo que se repete em mais do que uma ocasião: por sua contemplação e por seu mandado representada ao rei seu irmão. É assim, por exemplo no já mencionado Sermão «feito à cristianíssima rainha dona Lianor e pregado em Abrantes ao muito nobre rei dom Manoel, o primeiro do nome, na noite do nacimento do ilustríssimo ifante dom Luís. Era do Senhor de 1506»; ou o célebre Auto da Alma, «feito à muito devota rainha dona Lianor e representado ao muito poderoso e nobre rei dom Emanuel seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1508»; ou ainda a Farsa da Fama, que parece comportar, sem dúvida, a repetição do programa, sendo «representada à mui católica e sereníssima rainha dona Lianor, e depois ao muito alto e poderoso rei dom Manoel, na cidade de Lisboa em Santos-o-Velho, na era do Senhor de 1510».

Ainda sobre a teoria dos géneros, deverá ser tida em conta a aposição de Auto de Moralidade ao texto da edição avulsa. Corresponde a uma das poucas classificações que Gil Vicente usou para a sua obra no prólogo dirigido ao rei dom João III, que a versão da Tragicomédia de dom Duardos apresenta na Compilação de 1586:

Gaspar Correia nas Crónicas de D. Manuel e de D. João III: «Em de Junho de dito ano de em hũa terça feira às duas oras depois da mea noite pariu a Rainha dona Maria, mulher del Rei dom Manuel, o prímcipe dom João, em Lisboa nos paços de cima, em hũa casa que se chama a câmara do estado» (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Códices e documentos de proveniência desconhecida, n.º 43A, ff. 294v-295). Por sinal, é das poucas construções do paço da Alcáçova que ainda restam no castelo de São Jorge em Lisboa.

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Como quiera (excelente príncipe y rey muy poderoso) que las comedias, farsas y moralidades que he compuesto en servicio de la reina vuestra tía (cuanto en caso de amores) fueron figuras baxas, en las cuales no había conveniente retórica que pudiese satisfacer al delicado spíritu de vuestra alteza, conoscí que me cumplía meter más velas a mi pobre fusta3.

Se Dom Duardos é, como geralmente se aceita, de meados dos anos 20, Gil Vicente já teria, então, escrito textos correspondentes a cada um dos livros pelos quais os filhos distribuíram a sua obra, não referindo nunca a palavra «auto» como género, nem tão-pouco «tragicomédias», de que aliás Duardos é a primeira no livro terceiro – de certeza que Cortes de Júpiter é anterior, nem que seja por meses.

É certo que palavra «auto» aparece no folheto. Para além de ser a primeira palavra do texto, surge também no final: «Autos das barcas que fez Gil Vicente seu mão».

O sentido, porém, é sempre o de «acção teatral», o mesmo que o autor lhe dá nos seus versos (Templo de Apolo – vv. 72-75: «Este palacio enxalzado / para este auto es tornado / muy fermosísimo templo / de Apolo, dios adorado», vv. 164-165: «y os daré el reino eterno / si todo el auto calláis»; História de Deos – v. 11: «Por tanto o exórdio do auto presente / começa tratando desd a criação», rubrica entre vv. 331-332: «apartam-se do auto Adão e Eva e a Morte»; Romagem dos Agravados – vv. 41-43: «O auto que ora vereis / se chama, irmão amados, / Romagem dos Agravados»; Festa – vv. 611-612: «Gil Vicente / que faz os autos a el rei»), por vezes com a variante «aito» (Pastoril Português – vv. 73-75: «Um Gil cujo nam direi / um que nam tem nem ceitil / que faz os aitos a el rei», vv. 81-85: «aito cuido que dezia / e assi cuido que é / mas nam já aito, bofé, / como os aitos que fazia / quando ele tinha com quê», vv. 137-141: «e acabado / que os frades todos andarem / um contrapasso trocado / e os outros atimarem / será o aito atimado»; Lusitânia – vv. 369-371: «que invenção faremos nós / num aito bem acrodado / que tenha ave e piós?», vv. 379-380: «pera que compridamente / aito novo enventemos»).

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É minha absoluta convicção que na primeira metade do século XVI em Portugal a palavra está longe de referir um género; é pura e simplesmente sinónimo de peça de teatro. Assim se entendem sintagmas como: «À farsa seguinte chamam auto da índia», em que não existe oscilação genológica. Para o sentido indefinido que reveste a designação terão certamente contribuído as leituras equivocadas dos nossos colegas espanhóis e outros lusófilos que se iniciaram no hispanismo, que desejam inscrever o auto vicentino numa qualquer produção de cariz popular em que se há-de filiar o Auto Sacramental espanhol, uma tradição veiculada quase anedoticamente por Nicolás António quando, na página 157 do tomo I da sua Bibliotheca Hispana Nova, refere um dos mais interessantes textos do teatro português quinhentista – o Auto da Natural Invenção, de António Ribeiro Chiado, que, como sabemos é de um realismo quase naturalista avant la lettre, como o título indica – que mimetiza o quotidiano urbano de meados do século XVI.

F. Antonio Ribera Chiado, Franciscanus Portugalliae regni, dedit foras: A Regla Geral de San Francisco em trovas, hoc est versibus; unaque:

Um Auto (sic appellamus comoediam sacram) da natural Invençaon.4

O cólofon do folheto da Barca do Inferno aporta mais informação do que a lição de 1562 e, ao mesmo tempo, coloca dificuldades de leitura, nem sempre facilmente ultrapassáveis (figura 2):

4 Nicolao Antonio. Bibliotheca Hispana Nova, sive Hispanorum scriptorum qui ab anno 1500 ad 1584

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Figura 2 – Biblioteca Nacional de Espanha - R-9.438, [f. 8v]

Autos das barcas que fez Gil Vicente per seu mão. Corregido e empremido per seu mandado. Pera o qual e todas suas obras tem privilégio del rei nosso senhor. Com as penas e do teor que pera o Cancioneiro Geral português se houve.

«Autos», no plural? Que «barcas» esteja no plural não é descabido, pois são duas, uma que vai para o inferno e outra para o paraíso. Será legítimo pensar que pudesse tratar-se de um projecto editorial que englobasse as três representações, Inferno, Purgatório, Glória? A ser assim, a edição seria necessariamente posterior

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ao que se pensa – dá-se por adquirido que o folheto é de 1517, ano da morte da rainha dona Maria, ou do ano seguinte – informação que consta da didascália de 1562, recordo, e não da do folheto, mas ainda assim consentânea com a indicação final. A remissão «Com as penas e do teor que pera o Cancioneiro Geral português se houve» só se justificaria se o referente fosse recente; de facto, o Cancioneiro de Garcia de Resende é de 1516, sendo portanto aceitável a datação de 1517 para este impresso. Podemos, até, pensar que pode ser do ano anterior, pois o infante D. António, cujo parto causou as moléstias à rainha, nasceu a 9 de Setembro de 1516.

Digno de nota é a referência que a todas as obras de Gil Vicente se aplicaria este ditame. Em 1517 eram cerca de uma dúzia. Será que estaria No entanto, as duas hipóteses não são necessariamente disjuntivas.previsto um plano editorial? No prólogo da Compilação, Gil Vicente afirmava que tinha deixado as suas obras por imprimir – deve entender-se imprimir em volume? Ou as edições avulsas anónimas seriam edições-pirata? Lembro que algumas delas ostentam o nome do autor, como registou Hernando Colón nos catálogos da sua Biblioteca, e a que adiante me refirei. Outras terão saído anónimas, como as indicadas no Rol dos livros defesos de 1551:

Dos livros proibidos em linguagem: o auto de Dom Duardos que nom tiver censura como foi emendado; o auto de Lusitânia com os diabos, sem eles poder-se-á empremir; o auto de Pedr Eanes [Clérigo da Beira] por causa das matinas; o auto do Jubileu d'Amores; o auto da Aderência do Paço; o auto da Vida do Paço; o auto dos Físicos5.

Estou convencido de que o facto de os exemplares indicados poderem não apresentar nome de autor pode ter justificado que estes textos surgissem sem os cortes prescritos na Compilação de 1562. Coloco esta hipótese ao verificar que o índice expurgatório de 1624, que retoma os róis do século anterior, menciona exactamente os mesmos títulos e respectivas prescrições indicados em 1551 («Auto da Lusitânia, com os diabos», etc), sem reconhecer que o seu autor é Gil

5 Rol dos livros defesos por o Cardeal Ifante, Inquisidor Geral. nestes reinos de Portugal. Lisboa:

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Vicente; apresenta, até, uma secção dedicada a ele, onde se expurgam várias das suas obras mas não se referem estes textos6.

Mas as dificuldades não ficam por aqui: «fez Gil vicente per seu mão». É assim que surge no folheto antigo e que todos os editores adoptaram na tradição editorial desta versão do texto. Inclusivamente nas minhas edições7. Alguns editores corrigem a discordância morfo-sintáctica e publicam «per sua mão», como Révah e quase todos os demais8. Mas a verdade é que não encontro em textos portugueses quinhentistas outra ocorrência de «mão» no masculino. No momento em que volto a considerar este texto para edição dou conta de que nenhuma das lições me convence. Ponho agora a hipótese de que o que está impresso não ser a palavra «mão» mas a abreviatura de «mandado», palavra que surge por extenso na linha seguinte, e que o tipógrafo possa ter treslido na composição tipográfica: «e empremido per seu mandado» (cf. figura 2).

Ao reconsiderar uma nova edição não é esta a única alteração que me proponho fazer ao texto já estabelecido. Há anos atrás pediram-me que reflectisse sobre a missão do editor crítico e lembro-me de que usei a diferença que o português estabelece entre os verbos ser e estar para esclarecer os meus pontos de vista, considerando que uma edição é sempre um estar e nunca um ser, ou seja, em determinado tempo chegou-se a determinada edição, o texto está assim, à espera de um novo estado, por isso recuso muitas vezes a noção de «edição definitiva» que circula pelo mundo editorial.

6 Index auctorem damnatae memoriae tum etiam librorum qui uel simpliciter uel adexpurgatione

usque prohibentur vel denigriam expurgati perminttuntur. Editus auctoritate Illmi. Domini D.

Ferdinandi Martins Mascaregnas Algarbiorum Episcopi Regii Status Consilliarii ac regnorum Lusitaniae Inquisitoris Generalis. Et in partes tres distibutus quae proxime sequenti pagella explicate consentur. De Consilio Supremi Sena Tus Stae. Generalis Inquisitionis Lusitaniae. Ulissp. cusa cul. Exofficina Petri Craesbeck. 1624.p. 96 e pp. 625-626.

7 Vicente, Gil. Repertório escolar. José Camões e Helena Reis Silva (eds.). Lisboa: Dom Quixote, p.

63-95; Vicente, Gil. As Obras. José Camões (dir.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Vol. II, p. 527-558. A edição digital que venho promovendo oferece a oportunidade de actualização sistemática em Teatro de Autores Portugueses do Séc. XVI - Base de dados textual [on-line]:

http://www.cet-e-quinhentos.com/.

8 Sirva de modelo a edição do estudioso francês: Révah, I. S., «Edition critique du véritable texte du

premier Auto das barcas », in Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente, I: Edition critique du premier

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No caso da Barca do Inferno parece-me não haver dúvida de que se devem ter em consideração os dois textos. É inegável que o da edição avulsa está mais próximo de Gil Vicente – o de 1562 terá sofrido o apuro de Luís Vicente, que o confessa orgulhoso no prólogo da Compilação que dirige ao jovem rei D. Sebastião:

E porque sei que já agora nessa tenra idade de vossa alteza gosta muito delas e as lê e folga d ouvir representadas, tomei em minhas

costas o trabalho de as apurar e fazer empremir sem outro

interesse senam servir vossa alteza com lhas deregir e comprir com esta obrigação de filho. E porque sua tenção era que se empremissem suas obras escreveu per sua mão e ajuntou em um livro muito grande parte delas e ajuntara todas se a morte o nam consumira9.

Luís Vicente é tesoureiro de D. Sebastião, não nos esqueçamos.

Até onde foi o trabalho de apuro que Luís Vicente empreendeu não conseguiremos avaliar. I. S. Révah, convencido de que todas as diferenças que os dois textos apresentam se devem à intervenção do filho do autor, chega a analisar questões de estética literária atribuídas exclusivamente ao capricho de Luís Vicente, no caso em que não consegue encontrar um motor mais plausível para a transformação, como sejam causas de índole censória ou, pelo menos, de auto-regulação. Já Jorge Alves Osório é bastante mais cauteloso nas apreciações que faz sobre o trabalho editorial de 1562. Não nos esqueçamos, também, de que o livro «foi visto polos deputados da Santa Inquisição», que poderão ter tido alguma responsabilidade nas emendas. E há sempre a hipótese, claro, de que a reformulação dos textos seja trabalho autoral, se tivermos em conta a declaração de Luís Vicente – não há grandes motivos para não acreditarmos na sua palavra – de que Gil Vicente preparava a edição das suas obras «assi vezinho da morte» como estava.

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E porque sua tenção era que se empremissem suas obras, escreveu per sua mão e ajuntou em um livro muito grande parte delas, e ajuntara todas se a morte o nam consumira10.

Voltamos a encontrar a expressão «por sua mão», é certo, o que indica aqui que o próprio rescreveu, ou como se interpreta a frase? Estava a escrevê-las pela primera vez? Quando as representou, fê-lo de memória? Sabemos que não, pois existem impressos e registos de impressos anteriores a 1536.

São pequenas questões que um dia poderão lançar alguma luz no modo de produção da arte de Gil Vicente.

O certo é que o folheto iniciou uma tradição editorial. É esse o texto que a maioria das edições posteriores da Barca do Inferno utilizam, apresentando já uma consciência da continuidade ao chamar barca primeira em antetítulo, logo na edição avulsa seguinte, que se conhece (figura 3).

10 Ibidem. A frase coloca, também ela, problemas de interpretação: ajuntou em um livro muito

grande parte delas; : ajuntou em um livro muito grande parte delas. Incino-me para esta última

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Figura 3 – Barca primeira, Lisboa, Afonso Álvares, Biblioteca Nacional de Madrid: R-11.059 Embora se trate de uma edição descuidada, feita à pressa, típica do impressor Antonio Álvares – note-se, por exemplo, a falta da preposição: «e começa o arrais do inferno desta maneira ante que o fidalgo venha», embora descuidada, dizia – é um exemplo raro a ter em conta na cadeia de transmissão, e estou convencido de que casos análogos poderão trazer novidades e ajudar a encontrar elos perdidos.

Está ainda por fazer um estudo sobre a transmissão textual da obra de Gil Vicente nos séculos XVII e XVIII, dando-se normalmente de barato que é na Compilação que se filiam as edições soltas que se foram fazendo. No caso da Barca

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do Inferno não é assim, e não me espantaria que outros casos houvesse cujos impressos mais antigos – hoje desaparecidos – tivessem servido edições posteriores.

Embora o único folheto da edição avulsa que se conhece não apresente data, é comummente aceite que se trata de um exemplar da mesma edição que, antes de 1536, Hernando Colón registou nos catálogos da sua Biblioteca11, atribuindo-lhe o n.º 1513412. Na coluna 1 do seu Abecedarium B aponta-se o incipit:

à barca à barca oula que tenemos 15134

A este nº de registo corresponde a nota bibliográfica registada na col. 712 do mesmo repertório:

Gil Vicente, auto do viúvo, en coplas de comedia, 14863 Auto de moralidade en coplas portuguesas 15134. 4º, 2 cols.

É justamente aquela errata – tenemos por temos – que permite pensar que estes assentos correspondem efectivamente a um exemplar da mesma edição de que hoje apenas se conhece o exemplar que se encontra na Biblioteca Nacional de Espanha.

O mesmo catálogo do filho de Cristóvão Colombo apresenta o registo de um impresso com a chamada Barca do Purgatório, assim descrito:no Supplementum (f. 6r) «barca segunda en coplas portugesas del autor de la primera. 15136», a que no Abecedarium B corresponde o incipit que é realmente o primeiro verso do romance que os anjos cantam no início do auto «Remando van remadores barca de grande alegria». Pergunto-me como se sabe que a outra é a primeira? Não se diz no impresso. Ganha corpo a ideia da existência de um plano editorial da sequência, que atrás referi.

Ora uma edição do texto feita em 1723 na oficina de Francisco Xavier de Andrade, que herdou bastante material da oficina de António Gonçalves, apresenta

11 Nas primeiras décadas do século XVI Hernando Colón (1488-1539) reúne em Sevilha uma

importante biblioteca que catalogou em diversos repertórios, entre os quais o Abecedarium B e respetivo Supplementum, que fornecem informação detalhada sobre os volumes (local de impressão, ano, incipit da obra, etc.).

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no título a indicação «segunda barca» (figura 4), ausente na Compilação, e mais significativo para a hipótese da não filiação na lição de 1562 é que um cotejo preliminar da versão de Purgatório de 1723 e 1562 dá conta de uma condenação do taful ligeirissimamente atenuada: «Tafuis e renegadores não tem mui bom livramento» quando no século XVI o diabo era taxativo: «Tafuis e renegadores não tem nenhum salvamento». Também me pergunto o que faz um Taful num universo rústico. Parece uma figura que sobrou de Inferno.

Figura 4 – Auto da segunda barca que é do purgatório, Lisboa, Francisco Xavier de Andrade, 1723, Biblioteca da Ajuda: 154-IV-2/101

Estou convencido de que a tarefa de visitação dos demais impressos tardios de textos de Gil Vicente pode trazer novidades ao estabelecimento da cadeia de transmissão – lembro-me, por exemplo, de uma edição setecentista do Juíz da Beira – o que é um caso estranho, uma vez que muito do referente textual se perde passado o tempo da primeira representação, sendo, portanto, difíceis de entender

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todas as alusões para que o texto aponta 200 anos após a sua composição – mas pode não ser coincidência o facto de Hernando Colón no catálogo da sua Biblioteca, anterior a 1536, repito, registar a compra, e portanto a existência, de uma edição avulsa, tal como Inferno e Purgatório (Supplementum, f.16v):

Gil Viceinte [sic], Auto de 11 personas que una muger se quexa a un juez y 4 ermanos sobre un asno en coplas portuguesas, 15169, 4º, 2 cols.

Por fim, não descarto a hipótese de contarmos com mais um testemunho vicentino da Barca do Inferno: a Tragicomedia Alegorica del paraíso y del infierno13. Trata-se de uma versão ampliada, em castelhano, do texto de Gil Vicente. Todos os estudiosos que sobre ela se debruçaram são unânimes em descartar a autoria directa do poeta português, propondo nomes como Pedro de Lerma (Carolina Michaelis de Vasconcelos) ou Juan de Valdés (Osório Mateus), – este com uma justificação interessante: sempre que em português a alcoviteira Joana de Valdês é nomeada pela sua parceira Brísida Vaz, o nome ou é substituído ou omitido. Conhece-se apenas um exemplar de uma edição de 1539, três anos posterior ao desaparecimento de Gil Vicente (Biblioteca Nacional de Espanha, R-9.419). No entanto há indícios da existência de uma edição anterior, de 1532 de que se não conserva hoje nenhum exemplar. A descrição que Aribau faz de um deles, em 1838, nos comentários às Orígenes del Teatro Español, de Moratín, transcreve: «Compúsola en lengua portuguesa y luego el mesmo autor la trasladó a la lengua de Castilla, aumentándolo»14. Tera existido realmente uma edição com esta indicação? Temos de continuar a procurar. Não me conformo com o facto de a sobrevivência de exemplares singulares ser uma fatalidade de Gil Vicente. E passaríamos a ter um outro texto vicentino das barcas, como não ousou intuir Paulo Quintela15. E para que verdadeiramente tivéssemos um diabo a quatro só faltava que o exemplar das Barcas del paraíso y del infierno, também adquirido por

13 Tragicomedia Alegorica del paraíso y del infierno. Burgos: Juan de Junta, 1539. 14 MORATÍN, Leandro Fernández. Orígenes del Teatro Español. Paris: Baudry, 1838.

15 QUINTELA, Paulo (ed). Auto de Moralidade da Embarcação do Inferno, textos das duas primeiras

edições avulsas e das Copilações estudados por Paulo Quintela, com um apêndice que contém a Tragicomedia Alegórica del Paraíso y del Infierno. Coimbra: Atântida, 1946.

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Hernando Colón (Abecedarium B. col. 192) e composto em enigmáticas «coplas del peru», fosse, também ele, de Gil Vicente.

Estou convencido de que as efemérides são motor para a revisitação da obra, ou das obras, que, para além de uma nova edição do(s) texto(s), trará consigo novas e importantes abordagens exegéticas. Falta um ano para que se terminem os 500 anos das barcas (1517, 1518, 1519). O tempo escasseia.

Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018

Imagem

Figura 1  –  Biblioteca Nacional de Espanha - R-9.438
Figura 2  –  Biblioteca Nacional de Espanha - R-9.438, [f. 8v]
Figura 3  –  Barca primeira, Lisboa, Afonso Álvares, Biblioteca Nacional de Madrid: R-11.059
Figura 4  –  Auto da segunda barca que é do purgatório, Lisboa, Francisco Xavier de Andrade, 1723,  Biblioteca da Ajuda: 154-IV-2/101

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