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FICÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO DE CIÊNCIAS: POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR AUTOR

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Academic year: 2021

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FICÇÃO CIENTÍFICA NO ENSINO DE CIÊNCIAS: 

POSSIBILIDADES DE FORMAÇÃO DO PROFESSOR‐AUTOR 

 

 

 

  Resumo  No ensino de ciências, os temas científicos se materializam  por  diferentes  textos  e  leituras,  embora  predominem  nas  escolas,  textos  simples,  pretensamente  objetivos  e  imparciais,  com  poucas  referências  a  elementos  próximos  aos alunos. Diante desse quadro de simplificação do ensino,  a  ficção  científica  pode  ser  um  contraponto  importante  para  auxiliar  na  contextualização  e  problematização  dos  conceitos científicos escolares. A partir do mirante teórico‐ metodológico  da  Análise  de  Discurso  de  linha  francesa,  analiso  dois  contos  de  ficção  científica  produzidos  por  estudantes  do  curso  de  licenciatura  em  ciências  biológicas  da Universidade Federal do Paraná inscritos em um projeto  do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência  (PIBID), vislumbrando a relação entre o discurso científico e  o  discurso  ficcional  nessas  produções.  Nesse  percurso,  proponho  uma  reflexão  sobre  o  processo  de  assunção  da  autoria,  uma  função  medular  do  sujeito  do  discurso,  sobretudo na posição de professor‐autor em formação.    Palavras‐chave: Ficção Científica. Ensino de Ciências. Análise  de Discurso. Formação de Professores.      Júlio César David Ferreira  Universidade Federal do Paraná  ferreirajcd@gmail.com           

 

 

 

 

 

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Introdução 

  O presente trabalho é parte de uma ampla pesquisa acerca da aproximação entre  a  ficção  científica  e  o  ensino  de  ciências.  Nesta  oportunidade,  apresentarei  a  análise  de  dois  contos  de  ficção  científica  produzidos  por  alunos  do  curso  de  licenciatura  em  ciências  biológicas  da  Universidade  Federal  do  Paraná  inscritos  em  um  projeto  do  Programa  Institucional  de  Bolsa  de  Iniciação  à  Docência  (PIBID).  O  projeto  teve  como  principal  objetivo  o  incentivo  à  produção  e  utilização  de  múltiplas  linguagens  (jogos  teatrais,  histórias  em  quadrinhos,  tirinhas,  contos  e  vídeos  de  ficção  científica  etc.)  nas  aulas de ciências e de biologia.    A aproximação entre a ficção científica (FC) e o ensino de ciências é tema central  de muitas pesquisas no cenário mundial. Dentre os principais trabalhos, sublinho Dubeck  et al. (1990, 1993, 1998) com propostas pioneiras de ligação entre a ficção científica e as  aulas de ciências. Como referência, há também Freudenrich (2000), Brake (2003) e Dark  (2005). No Brasil, Piassi e Pietrocola (2005, 2006, 2007a, 2007b, 2007c, 2009) destacam‐se  com trabalhos nesse viés, além de Zanetic (1989, 2005, 2006) e outros. 

  Atualmente,  a  FC  figura  como  um  recurso  didático  no  contexto  do  ensino  e  da  aprendizagem  das  ciências:  na  escola,  faz  parte  do  repertório  didático  de  muitos  professores,  contudo,  sua  utilização  tem  se  restringido  à  busca  pelo  interesse  dos  estudantes  ou  pela  ampliação  da  ludicidade  nas  aulas.  A  FC  tem  esse  potencial,  entretanto  não  tem  sido  explorada  como  uma  forma  de  contextualização  e  problematização dos temas e conceitos científicos. 

  Os  temas  científicos  se  materializam  por  diferentes  textos  e  leituras,  embora  na  escola venham, predominantemente, sendo utilizados textos curtos e áridos, com poucas  referências  a  elementos  próximos  aos  alunos.  Desse  modo,  os  sentidos  dos  conceitos  mínguam e os estudantes passam a ver o conteúdo científico escolar como um apanhado  de regras, equações e esquemas abstratos desconexos da realidade. 

  Diante  desse  quadro  de  simplificação  do  ensino  de  ciências,  a  FC  pode  ser  um  contraponto  importante.  Nas  aulas,  ela  pode  auxiliar  na  contextualização  e  problematização dos conceitos científicos escolares, ou seja, a aproximação entre a FC e 

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o  ensino  de  ciências  pode  representar,  dentro  e  fora  da  escola,  um  favorecimento  da 

mediação didática, no sentido dialético apontado por Lopes (1999, p. 209): “processo de 

constituição  de  uma  realidade  a  partir  de  mediações  contraditórias,  de  relações  complexas, não imediatas. Um profundo sentido de dialogia”. 

  A partir da análise dos contos de FC, produzidos no âmbito do projeto PIBID, para  o  contexto  didático  das  aulas  de  ciências  e  biologia,  busco  compreender,  pelo  prisma  teórico‐metodológico  da  Análise  de  Discurso  de  linha  francesa,  como  se  caracteriza  a  relação  entre  o  discurso  científico  e  o  discurso  ficcional  nessas  produções.  Realizo  também  um  estudo  sobre  o  processo  de  assunção  da  autoria  (ORLANDI,  2012),  uma  função  medular  do  sujeito  do  discurso,  sobretudo  na  posição  de  professor‐autor  em  formação (OLIVEIRA, 2006). 

 

1. Referencial teórico‐metodológico 

  Tenho  como  referencial  teórico‐metodológico  a  Análise  de  Discurso  de  linha  francesa,  representada  no  Brasil  pelos  trabalhos  de  Eni  Orlandi,  com  matriz  teórica  na  obra  de  Michel  Pêcheux.  Para  Pêcheux  (2009),  discurso  é  efeito  de  sentidos  entre  locutores, e a língua – falada e escrita, por exemplo – é uma condição de possibilidade do  discurso.  Sendo  “mediação  necessária  entre  o  homem  e  a  realidade  natural  e  social”  (ORLANDI, 2012, p. 15), a linguagem não é transparente; tem materialidade histórica: “a  linguagem só faz sentido porque se inscreve na história” (ORLANDI, 2012, p. 25). 

  Por  não  ser  neutra,  uniforme  e  nem  natural,  em  sua  opacidade,  a  linguagem  se  constitui  como  um  campo  propício  para  a  manifestação  da  ideologia.  Assim,  é  pelo  discurso que o sujeito exerce sua filiação a determinadas formações discursivas, dispondo  de  conjuntos  de  enunciados  que,  pelo  funcionamento  da  linguagem,  materializam  sistemas de ideias e representações (formações ideológicas). 

  Nos estudos discursivos, a língua não é somente compreendida como estrutura. É  acontecimento.  Todo  discurso  acontece  sob  determinadas  condições  de  produção,  seja  no  seu  sentido  estrito  (contexto  imediato  da  enunciação),  seja  no  seu  sentido  amplo  (contexto sócio‐histórico e ideológico). Na atividade discursiva, as condições de produção 

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são acionadas por uma memória ou interdiscurso: “o saber discursivo que torna possível  todo  dizer  e  que  retorna  sob  a  forma  do  pré‐construído,  o  já‐dito  que  está  na  base  do  dizível, sustentando cada tomada de palavra” (ORLANDI, 2012, p. 31). O interdiscurso (de  ordem  social)  determina  o  que  pode  ou  não  pode  ser  dito  pelo  sujeito  em  uma  dada  conjuntura  sócio‐histórica,  ou  seja,  a  produção  do  discurso  sempre  se  dá  em  relação  a  uma  memória,  a  um  já‐dito  que  recortará  o  dizer  de  acordo  com  a  formação  discursiva  (regionalização do interdiscurso) em que se inscreve o sujeito. 

  Segundo  Pêcheux  (2009,  p.  147),  “os  indivíduos  são  ‘interpelados’  em  sujeitos‐ falantes  (em  sujeitos  de  seu  discurso)  pelas  formações  discursivas  que  representam  ‘na  linguagem’  as  formações  ideológicas  que  lhes  são  correspondentes”.  O  sujeito  do  discurso,  atravessado  pela  linguagem  e  pela  história,  é  uma  dispersão  constituída  por  diferentes materialidades: 

ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se  constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim  determinado,  pois  se  não  sofrer  os  efeitos  do  simbólico,  ou  seja,  se  ele  não  se  submeter  à  língua  e  à  história  ele  não  se  constitui,  ele  não  fala,  não produz sentidos (ORLANDI, 2012, p. 49, grifos meus). 

 

  Pelo  efeito  da  ideologia,  o  sujeito  acredita  ser  a  origem  de  seu  dizer  quando,  na  realidade,  retoma  sentidos  preexistentes  de  discursos  que  já  estavam  em  processo.  No  campo da enunciação, os sujeitos do discurso estabelecem uma relação “natural” entre  palavra  e  coisa.  Ilusoriamente,  “pensamos  que  o  que  dizemos  só  pode  ser  dito  com  aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim” (ORLANDI, 2012, p. 35). Essas duas  características  (da  ordem  ideológica  e  da  ordem  enunciativa)  constituem‐se,  na  Análise  de  Discurso,  como  esquecimento  número  um  e  esquecimento  número  dois,  respectivamente.  Nessa  perspectiva,  o  esquecimento  é  estruturante  e  está  na  base  da  constituição dos sujeitos e dos sentidos. É condição fundamental para o funcionamento  da linguagem (ORLANDI, 2012). 

  Para Pêcheux, a relação do sujeito com a história é dinâmica: o sujeito reveste‐se  de  uma  forma‐sujeito  histórica.  A  forma‐sujeito  da  contemporaneidade  delineia  um  sujeito  “capaz  de  uma  liberdade  sem  limites  e  uma  submissão  sem  falhas:  pode  tudo  dizer, contanto que se submeta à língua para sabê‐la” (ORLANDI, 2012, p. 50). O sujeito 

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do  discurso  questiona e  intervém na  ordem  dos  sentidos  que  se  cristalizam juntamente  com as práticas no interior das formações discursivas. 

  A partir do enfoque do materialismo histórico e dialético sobre as práticas políticas  constituídas  no  seio  da  luta  de  classes,  com  relações  contraditórias  de  reprodução/transformação  das  relações  de  produção,  Pêcheux  (2009)  distinguiu  três  modalidades de subjetivação, isto é, os modos como o sujeito se apropria subjetivamente  dos saberes políticos e científicos de sua forma‐sujeito sócio‐histórica (sujeito universal):  1)  identificação  (metáfora  do  “bom  sujeito”:  assujeitamento  pleno  e  ideal,  sem  questionamento);  2)  contraidentificação  (o  “mau  sujeito”  desconfia  e  luta  contra  as  evidências dos saberes “inquestionáveis” de determinada formação discursiva, mas não  há,  necessariamente,  ruptura);  3)  desidentificação  (a  prática  revolucionária  que  desmonta/remonta  a  forma‐sujeito  e,  nessa  ruptura,  passa  a  sustentar  outra  formação  discursiva  e  ideológica).  O  processo  de  desidentificação  explica  as  grandes  transformações da sociedade. 

  A Análise de Discurso abrange práticas discursivas de diferentes naturezas (ícone,  letra,  imagem,  som  etc.),  sendo  o  texto  (escrito,  verbal,  audiovisual  etc.),  a  unidade  de  origem  para  o  trabalho  do  analista.  Neste  trabalho  e  nesta  delimitação  de  corpus,  analisarei algumas relações e efeitos de sentidos presentes nos contos de ficção científica  produzidos  por  licenciandos  no  âmbito  do  ensino  de  ciências.  Tomarei  o  texto  escrito  como  base  material,  levando  em  consideração  os  contextos  linguístico,  textual  e  situacional da aproximação entre o discurso científico e o discurso ficcional. 

  Da  relação  entre  texto  e  discurso  emerge,  na  Análise  de  Discurso,  a  importante  distinção  entre  autor  e  sujeito.  Como  contraparte  da  noção  de  sujeito  do  discurso  se  apresenta a ideia de autoria (relação do autor com o texto). O autor, função própria do  sujeito, representa unidade lógica, disciplina e organização. Conforme diz Orlandi (2012, p,  75‐76): 

Se o sujeito é opaco e o discurso não é transparente, no entanto o texto  deve  ser  coerente,  não  contraditório  e  seu  autor  deve  ser  visível,  colocando‐se na origem de seu dizer. É do autor que se exige: coerência,  respeito  às  normas  estabelecidas,  explicitação,  clareza,  conhecimento  das  regras  textuais,  originalidade,  relevância  e,  entre  outras  coisas, 

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unidade,  não  contradição,  progressão  e  duração  de  seu  discurso,  ou  melhor, de seu texto. 

 

  Os  contos  de  FC  analisados  também  manifestam  a  distinção  entre  o  real  do  discurso (sujeito) e o imaginário (função‐autor). Na instância do real do discurso, marcas  como  a  descontinuidade,  a  incompletude,  a  dispersão,  o  equívoco  e  a  contradição  são  constitutivas do sujeito e do sentido. Por outro lado, na ordem do textual e do imaginário  – nesse caso, os contos de FC com intentos didáticos – é flagrante a busca por coerência  textual, unidade e progressão, características do processo de autoria. Importa distinguir a  função‐autor  (discursiva)  de  outras  duas  funções  (enunciativas)  do  sujeito:  locutor,  quando  o  sujeito  se  representa  como  “eu”  no  discurso;  enunciador,  quando  o  sujeito  assume a perspectiva que esse “eu” produz (ORLANDI, 2012). 

  Da  distinção  entre  sujeito  e  função‐autor,  Oliveira  (2006)  define  o  conceito  de 

professor‐autor,  uma  importante  posição  do  sujeito,  sobretudo  no  campo  da  prática 

docente. A autora trata esse processo como um trabalho de deslocamento dos efeitos de  sentido dos já‐ditos de uma memória discursiva. O professor‐autor, além de romper com  o instituído, norteia sua prática por questões como: “para quem” é o meu discurso?; “por  que”  o  meu  discurso?;  “como”  é  o  meu  discurso?  (OLIVEIRA,  2006).  Em  sintonia  com  Oliveira  (2006),  vejo  o  professor‐autor,  posição  de  contraidentificação,  como  o  “mau  sujeito”  que  questiona  os  pré‐construídos  e  resiste  às  “evidências”  dos  saberes  cristalizados em determinada formação discursiva.   

2. Ciência e ficção científica em uma perspectiva discursiva 

  Para Bachelard (1990) não há uniformidade ou linearidade no desenvolvimento do  conhecimento científico, e sim um pluralismo de racionalidades e processos de ruptura. A  descontinuidade na cultura científica está firmada na noção de ruptura que “se apresenta  tanto  entre  conhecimento  comum  e  conhecimento  científico,  a  partir  do  que  se  constituem  os  obstáculos  epistemológicos,  quanto  no  decorrer  do  próprio  desenvolvimento  científico”  (LOPES,  1999,  p.  121).  Os  obstáculos  epistemológicos  constituem‐se  nas  contradições  entre  o  conhecimento  comum  e  o  conhecimento  científico,  ou  seja,  o  conhecimento  comum  configura‐se  como  um  obstáculo  ao 

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conhecimento científico que, por sua vez, é constantemente questionado e debatido pela  comunidade  científica  (BACHELARD,  1996).  Conforme  diz  Lopes  (1999,  p.  124),  esse  conceito “fundou positivamente a obrigação de errar”. 

  No  aspecto  discursivo,  pode‐se  dizer  que  a  ciência  é  um  discurso  com  pretensão  de verdade, mas sob fundo de erro (BACHELARD, 1977, apud LOPES, 1999, p. 112). Nessa  esteira, Coracini (2007, p. 89) assinala: 

As  formas  canônicas  do  discurso  científico,  camufladoras  da  origem  enunciativa,  nada  mais  são  do  que  instrumentos  válidos,  socialmente  aceitos  (e  impostos  pela  comunidade  científica),  de  persuasão  e,  nessa  medida, índices de subjetividade. 

 

  Por  essas  e  outras  marcas,  o  discurso  científico  está  aberto  ao  equívoco  e,  segundo Bachelard, à retificação de erros ao longo da história. Se, por um lado, o discurso  científico se constitui com efeitos de evidência empírica e estabilidade lógica, por outro,  são  as  contradições,  rupturas  e  reformulações  que  garantem  o  desenvolvimento  do  conhecimento científico, nessa perspectiva bachelardiana. 

  Os discursos científico e ficcional (DC e DF, respectivamente) apresentam‐se com  marcas  muito  específicas  e,  sob  condições  de  produção  distintas,  são  constituintes  do  processo de construção e descrição da realidade. Não obstante, são discursividades que  acionam  de  maneira  dessemelhante  a  tensão  entre  paráfrase  e  polissemia,  processo  intrínseco do funcionamento da linguagem. Na tensão entre paráfrase e polissemia, “os  sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam” (ORLANDI,  2012, p. 36). “A paráfrase é a matriz do sentido”, constituinte do caráter de produtividade  da língua, enquanto “a polissemia é a fonte da linguagem”, relacionada à criatividade e à  ruptura do processo de produção – e cristalização – da linguagem (ORLANDI, 2012, p. 37‐ 38). 

  A  princípio,  parece  plausível  a  hipótese  de  que  a  paráfrase  está  para o discurso científico, assim como a polissemia está para o discurso  ficcional, isto é, enquanto o DC reveste‐se do caráter de produtividade e  repetibilidade  da  língua,  o  DF  está  no  campo  da  criatividade,  do  escapismo  e  da  transgressão  do  DC.  Cumpre  destacar  as  recorrentes  tentativas  de  definição  desses  discursos  sob  a  ótica  da  vericondicionalidade,  em  que  a  distinção  entre  “fatual”,  “não‐fatual”  e  “ficcional” é lugar comum. Segundo Lopes (2000, p. 13), 

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com frequência, nos deparamos com uma noção de não‐fatual que seria  muito  próxima  da  noção  de  ficção.  Esta  última,  por  sua  vez,  se  torna  bastante  indefinida  em  alguns  momentos.  Em  outros,  o  fatual  e  o  ficcional estão de tal forma amalgamados que não poderíamos distinguir  um do outro. 

 

  Ao  DC,  “verdadeiro”  por  tratar  de  objetos  tangíveis,  opõe‐se  o  DF  configurado  como um discurso “falso”, sobre o universo onírico destituído da realidade. No que tange  à  pretensa  dessubjetivação  e  aos  efeitos  de evidência  do  DC,  assinala  Coracini  (2007,  p.  89): 

percebe‐se  o  desejo  (e  esse  é  um  efeito  de  sentido)  de  criar  no  enunciatário  a  ilusão  da  evidência  empírica:  a  sequência  linear  dos  eventos,  a  tentativa  de  apagamento  do  enunciador  que  se  distancia  de  seu  enunciado,  constituem,  dentre  outros,  alguns  dos  fatores  responsáveis  pela  ilusão  de  uma  reprodução  objetiva  e  imparcial  do  experimento.  Desse  modo,  tenta  o  enunciador  interferir  em  seu  enunciatário,  em  suas  representações  ou  convicções,  provocando  transformações. 

 

  Adotando‐se o critério da vericondicionalidade, a distinção entre o DC e o DF falha,  pois  ambos  os  discursos  são  duais:  se,  na  perspectiva  bachelardiana,  a  ciência  é  um  discurso  com  pretensão  de  verdade,  mas  sob  fundo  de  erro,  a  ficção  científica  é  um  discurso  voltado  ao  devaneio  e  à  imaginação,  mas  amalgamado  aos  sentidos  do  DC.  A  relação  entre  essas  discursividades  é  complexa:  pode  haver  complementaridade  e,  no  contexto do ensino de ciências, o discurso pedagógico tem papel central nessa mediação.  Mesmo  isento  dos  critérios  de  validação  científica  e  do  intento  de  efeitos  de  evidência,  próprios do DC, o DF funciona reciprocamente constituindo‐se como ponto de apoio para  a ciência. A significação de um requer sentidos do outro, seja por complementação, seja  por contraste: “se os sentidos – e os sujeitos – não fossem múltiplos, não pudessem ser  outros, não haveria necessidade de dizer” (ORLANDI, 2012, p. 38). A Análise de Discurso  questiona  a  “evidência  do  sentido”,  ou  seja,  o  sentido  não  é  fixo  e  está  sempre  “em  relação a”. 

  Como  último  ponto  dessa  reflexão  sobre  o  DC  e  o  DF,  quero  ressaltar,  concordando  com  Orlandi  (2012),  que  o  discurso  é  caracterizado,  sobretudo,  pelo  seu  modo  de  funcionamento.  Os  tipos  de  discurso  (científico,  ficcional,  político,  jurídico,  pedagógico  etc.)  derivam  de  funcionamentos  cristalizados,  visíveis  sob  determinados 

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apriorismos que não consideram os elementos constitutivos das condições de produção  do discurso. 

  Orlandi  (2011)  considerou  a  interação  e  a  polissemia,  propriedades  internas  do  funcionamento  discursivo,  para  estabelecer  uma  tipologia  de  discurso:  discurso  lúdico, 

discurso  polêmico  e  discurso  autoritário.  No  discurso  lúdico  há  total  reversibilidade 

(possibilidade de “troca de papéis” entre locutor e ouvinte que determina a dinâmica de  interlocução)  e  a  polissemia é  aberta  (múltiplos  sentidos  em  jogo). “O  exagero  é  o  non 

sense”  (ORLANDI,  2011,  p.  154).  No  discurso  polêmico,  a  reversibilidade  é  condicionada, 

pois os interlocutores procuram direcionar o objeto do discurso, ou seja, a polissemia é  controlada (possibilidade de múltiplos sentidos). “O exagero é a injúria” (ORLANDI, 2011,  p. 154). A reversibilidade tende a zero no discurso autoritário e o dizer oculta o objeto do  discurso (pretenso sentido único): há “um agente exclusivo do discurso e a polissemia é  contida. O exagero é a ordem no sentido militar, isto é, o assujeitamento ao comando”  (ORLANDI, 2011, p. 154). 

  Tomando  essa  perspectiva  da  Análise  de  Discurso  de  linha  francesa  como  referencial teórico‐metodológico, passo agora à análise de dois contos de FC produzidos  por dois licenciandos. Cumpre destacar que o PIBID, âmbito de atividades formativas no  qual  o  projeto  se  desenvolveu,  faz  parte  das  condições  de  produção  desses  textos  (discursos). 

 

3. Gestos de análise 

  A partir da Análise de Discurso francesa, busco uma compreensão dos processos  de constituição dos sentidos e dos sujeitos e, nesse ínterim, realizo o percurso do texto  ao  discurso,  no  contato  com  o  material  empírico,  dois  contos  de  FC:  A  História  Da 

Contracepção e Um Futuro Incerto, produzidos, respectivamente, por Trinity e Ellie, nomes 

provenientes  de  personagens  da  ficção  científica  e  atribuídos  aos  sujeitos  da  pesquisa.  Entre uma série de propostas de utilização de múltiplas linguagens em aulas de ciências e  biologia de duas escolas da rede pública de Curitiba, essa produção dos licenciandos do  curso de ciências biológicas se deu no âmbito do PIBID. 

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3.1. A História Da Contracepção (Trinity) 

  Como  já  dito  anteriormente,  os  contos  foram  produzidos  com  a  finalidade  de  utilização em sala de aula. Não foram estipuladas regras ou normas para essa produção  textual,  desde  que  seu  conteúdo  se  relacionasse  aos  conceitos  científicos  dos  temas  propostos. A História Da Contracepção, escrito por Trinity, foi abordado no segundo ano  do  Ensino  Médio,  nas  aulas  de  biologia  que  tematizavam  os  métodos  contraceptivos  (apresentação, classificação, funcionamento e história dos métodos contraceptivos). 

3.1.1. Resumo de A História Da Contracepção 

No  ano  de  2313,  em  um  cenário  pós‐guerra  mundial  que  dizimou  mais  de  dois  terços  da  população do globo terrestre, o Governo Mundial, instituído como representante das nações  remanescentes,  aboliu  o  uso  de  anticoncepcionais  com  a  finalidade  de  restabelecer  a  população humana no planeta. A situação ficou caótica, pois a população cresceu de maneira  exorbitante,  o  que  desencadeou  um  consumo  desenfreado  de  recursos  naturais  e  gerou  fome,  miséria  e  epidemias.  O  Governo  Mundial  passou  a  investir  em  pesquisas  sobre  a  eficiência  dos  métodos  contraceptivos  esquecidos  no  passado.  Coube  ao  Dr.  Alexandre  Andrade  a  missão  de  pesquisar  sobre  a  contracepção  e  entregar  um  relatório  final  ao  Governo Mundial para que medidas fossem tomadas. 

3.1.2. Análise 

  O  conto  apresenta  uma  sociedade  distópica  que  anseia  por  mudanças  (esforço  humano/científico‐tecnológico).  Na  perspectiva  dos  pólos  temáticos  para  a  FC  (PIASSI;  PIETROCOLA,  2007a),  Trinity  realiza  uma  adesão  à  ciência  no  plano  material‐econômico,  ou seja, a ciência é associada ao conforto e bem‐estar, à superação de dificuldades e ao  domínio da natureza. 

  Nesta  trajetória  analítica,  na  passagem  da  superfície  linguística  para  o  objeto  discursivo,  distinguem‐se  dois  núcleos  de  significação:  efeitos  de  ficção  (discurso  ficcional)  e  efeitos  de  evidência  (discurso  científico).  No  núcleo  ficcional,  o  par  locutor‐ enunciador  é  facilmente  localizado  e  há  linguagem  informal,  conteúdo  adversativo, 

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distopia,  caos,  cientificismo  etc.  A  seguir,  apresento  alguns  trechos  ilustrativos  dessas  marcas textuais e enunciativas1

Estamos no ano de 2313, nosso planeta está muito diferente do que um  dia  já  foi.  Passamos  pela  3ª  Guerra  Mundial  [...]  A  paz  não  reinou  totalmente,  mas  os  países  já  não  brigam  tanto  [...]  Todas  as  pílulas  e  camisinhas  do  mundo  foram  incineradas,  e  o  povo,  incentivado  a  ter  filhos.  Entretanto,  o  tiro  saiu  pela  culatra,  a  população  aumentou  de  forma exorbitante, o que gerou grandes problemas [...] 

 

  A  partir  desse  material  empírico,  procurei  observar  uma  discursividade  e  desnaturalizar  a  relação  palavra‐coisa:  “de  que  outras  formas  isso  poderia  ser  dito?”;  “como se relacionam as formações discursivas e as formações ideológicas que sustentam  essa discursividade?”; “por que foi usada a expressão ‘o tiro saiu pela culatra’ ao invés de  ‘o plano falhou’, por exemplo?”. Questões como essas povoam essa instância da análise.  A  produção  discursiva  nesse  corpus  pode  ser  compreendida  se  compararmos  os  dois  núcleos  de  significação  delimitados  anteriormente.  O  próximo  trecho  é  exemplar  do  funcionamento do discurso científico no conto: 

[...] ‐ Então, Dr. Alexandre. ‐ Disse o Governador Mundial. ‐ O senhor teve  uma  semana  para  estudar  os  métodos  contraceptivos.  Qual  é  a  sua  conclusão?  Será  possível  desenvolver  uma  maneira  realmente  eficaz  de  diminuir a natalidade humana? 

‐  Com  certeza,  senhor  Governador.  ‐  Respondeu  Alexandre.  ‐  Através  da  minha  pesquisa  eu  descobri  que  existem  diversos  métodos  contraceptivos, sendo que vários podem ser muito eficazes. Os métodos  se  dividem  em  reversíveis  e  irreversíveis.  Sendo  que  os  irreversíveis  são  intervenções  cirúrgicas  no  sistema  reprodutor  feminino  e  masculino,  chamadas  laqueaduras  tubárias  e  vasectomia.  A  laqueadura  tubária  consiste no isolamento das tubas uterinas, por meio de um pequeno corte,  a  fim  de  impossibilitar  que  os  espermatozoides  encontrem  os  óvulos.  A  primeira  operação  foi  realizada  em  1823,  na  cidade  de  Londres.  Já  a  vasectomia  é  um  procedimento  que  visa  isolar  os  canais  deferentes  do  homem,  para  que  os  espermatozoides  não  sejam  eliminados.  Ela  também  foi  realizada  pela  primeira  vez  em  1823,  porém  em  um  cachorro.  Só  depois a cirurgia ficou popular [...] 

 

  Na  sequência  da  narrativa,  o  personagem  Dr.  Alexandre  também  apresenta  e  descreve os métodos contraceptivos reversíveis. Como a linguagem não é transparente,  os  dois  blocos  de  significação  funcionam  distintamente,  no  que  diz  respeito  à  tensão 

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entre  paráfrase  e  polissemia,  à  reversibilidade  e  aos  deslocamentos  de  efeitos  de  sentidos. 

  O  núcleo  científico  também  é  marcado  por  características  extradiscursivas  (as  orações  assertivas,  a  incessante  classificação  e  descrição  dos  elementos,  o  uso  de  metalinguagem científica, o eixo histórico etc.). Há um efeito de apagamento, ao menos  parcial,  do  par  locutor‐enunciador  e  essa  já  é  uma  característica  do  modo  de  funcionamento  do  discurso  científico.  Pela  ação  da  ideologia  e  sob  determinadas  condições  de  produção  (elaboração  e  implementação  do  conto  no  contexto  didático), 

Trinity  se  apropria  dos  saberes  de  sua  forma‐sujeito  sócio‐histórica  e  “cede  a  voz”  ao 

sujeito universal da ciência (PÊCHEUX, 2009). Em sintonia com Coracini (2007), vejo esse  apagamento do enunciador como uma tentativa de criar no enunciatário (leitor) a ilusão  de  evidência  empírica,  de  objetividade  e  imparcialidade.  Nesse  contexto,  o  discurso  científico não permite que “o tiro saia pela culatra”. 

  Nessa aproximação entre o discurso científico e o discurso ficcional, Trinity ocupa  a posição professor‐autor e desloca sentidos à medida que produz uma narrativa híbrida,  com  funcionamentos  discursivos  diferentes.  A  ilusão  de  unidade  da  obra,  própria  do  princípio  de  autoria,  camufla  diferentes  modos  de  tensão  entre  paráfrase  e  polissemia.  No  contexto  da  tipologia  discursiva  (ORLANDI,  2011),  é  predominante  a  variação  do  discurso  polêmico:  ora  tende  ao  lúdico  (efeitos  de  ficção),  ora  tende  ao  autoritário  (efeitos  de  evidência).  A  meu  ver,  essas  e  outras  características,  discursivas  e  extradiscursivas, são importantes no funcionamento do discurso pedagógico regido pela  voz professoral. O professor, na posição professor‐autor, tem a possibilidade de romper  com os pré‐construídos de algumas práticas institucionalizadas e cristalizadas no campo  de atuação docente.  3.2. Um Futuro Incerto (Ellie)    Ellie produziu o conto com a finalidade de sua utilização em aulas de biologia do 

terceiro  ano  do  Ensino  Médio  sobre  o  tema  mutação  (conceitos,  tipos,  causas  e  consequências  nos  seres  vivos,  evolução  etc.).  Diferentemente  do  conto  anterior,  Um 

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livremente.  A  única  condição  para  essa  complementação  dos  estudantes  foi  o  embasamento nos conhecimentos sobre a temática adquiridos em sala de aula. 

3.2.1. Resumo de Um Futuro Incerto 

Dr.  Richard  Simon,  um  cientista  que  sonhava  sobreviver  décadas  sem  envelhecer,  enfim  realiza tal façanha se submetendo a um processo de criogenia. Cem anos haviam se passado  quando  o  cientista  foi  despertado  por  Kevin  Jones  e  encontrou  uma  sociedade  em  pânico:  mutações  genéticas  dos  mais  variados  tipos  estavam  se  manifestando  na  população  de  maneira  descontrolada.  A  destruição  do  meio  ambiente  e  a  inconsequente  interferência  genética nos alimentos trouxeram sérios danos à espécie humana. Para Kevin, as pesquisas  do competente Dr. Simon podem reverter esse quadro crítico. 

3.2.2. Análise 

  Um  Futuro  Incerto,  assim  como  o  conto  anterior,  apresenta  uma  sociedade  em 

crise à espera de novas conquistas científico‐tecnológicas. Ellie concebe a ciência no plano 

material‐econômico, conforme a categorização de Piassi e Pietrocola (2007a). 

  Os  dois  núcleos  de  significação  delimitados  na  análise  do  conto  anterior  (efeitos  de ficção e efeitos de evidência) não são facilmente discerníveis no texto/discurso de Ellie.  Em  termos  da  tipologia  de  discurso  de  Orlandi  (2011),  o  discurso  polêmico  é  predominante,  contudo,  no  funcionamento  discursivo  deste  conto  há  maior  reversibilidade  e  a  polissemia  é  mais  aberta  (maior  possibilidade  de  constituição  de  múltiplos  sentidos).  O  discurso  tende  menos  ao  autoritário  (menos  asserções,  menos  metalinguagem, não apagamento do par locutor‐enunciador etc.). À guisa de exemplo: 

O  sangue  começa  a  fluir  levemente  quente  pelo  corpo.  É  uma  sensação  estranha.  Lentamente  o  cérebro  começa  a  reavivar  as  memórias,  lembranças que parecem ser irreais [...] 

[...]  Meu  nome  é  Richard  Simon,  mais  um  cientista  que  sonhava  sobreviver décadas sem envelhecer [...] eu não estava buscando nenhum  elixir da juventude, mas sim testando uma técnica antes presente apenas  nos filmes de ficção científica, o congelamento de pessoas [...] 

[...]  Absurdas  mutações  que  vem  ocorrendo  na  população,  com  uma  frequência  cada  vez  maior.  Não  se  parece  com  nada  que  algum  dia  tenhamos  observado  na  natureza.  Está  levando  a  nossa  espécie  a  extinção! [...] 

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  Conforme os excertos destacados, o conto exibe numerosos elementos ficcionais  carregados  de  polissemia,  portanto  há  uma  tendência  ao  pólo  lúdico:  “sensação  estranha”; “parecem ser irreais”; “eu não estava buscando nenhum elixir da juventude”;  “é  um  verdadeiro  mistério”  etc.  De  um  modo  geral,  Um  Futuro  Incerto  indica  um  funcionamento  discursivo  com  maior  abertura  polissêmica  do  que  A  História  Da 

Contracepção,  inclusive  no  próprio  título,  com exceção  da  polissemia própria  da  palavra 

“contracepção”. 

  A  reversibilidade  (dinâmica  da  interação  entre  os  interlocutores)  é  garantida  exatamente  pelas  características  acima  mencionadas,  ou  seja,  autor  e  leitor  deslocam  sentidos do referente discursivo pela ação polissêmica. Isso fica claro no seguinte trecho: 

[...]  Sem  dúvida,  as  mutações  que  estavam  ocorrendo  não  eram  tão  incríveis  e  fantásticas  como  as  dos  filmes  da  minha  época.  As  crianças  agora nasciam com síndromes desconhecidas ou com um ou mais genes  deletados,  o  que  poderia  significar  a  morte  para  elas.  Algumas  até  nasciam com mutações que não pareciam fazer muita diferença em suas  vidas,  às  vezes  até  davam  a  elas  algumas  pequenas  habilidades  a  mais,  mas  nada  que  pudesse  superar  as  mutações  maléficas  que  ocorriam  na  maioria da população [...] 

 

  Aqui  temos  um  jogo  em  que  Ellie  vai  negociando  sentidos  com  o  seu  leitor  idealizado (o aluno). Um dos pressupostos da Análise de Discurso é que a interlocução (e  a  disputa  dos  sujeitos  pelos  sentidos)  se  dá  sempre  sob  a  ação  de  um  mecanismo  de  antecipação  fundado  no  campo  das  formações  imaginárias,  isto  é,  o  sujeito,  ao  dizer,  projeta  imagens  (do  interlocutor,  do  objeto  do  discurso,  de  si  mesmo  etc.)  que  o  permitem  passar  do  lugar  empírico  para  as  posições  do  sujeito  no  discurso  (ORLANDI,  2012). 

  Ellie projeta inúmeras imagens (imagem do aluno, imagem de si mesma, imagem 

do tema abordado, imagem da relação do aluno com o tema etc.) para ocupar, no caso  em  questão,  a  posição‐sujeito  professor.  Merece  atenção  a  imagem  que  Ellie  tem  da  relação aluno‐tema, pois todas as referências às “mutações fantásticas” das histórias de  FC  (presentes  no  imaginário  dos  alunos)  são  cercadas  de  ressalvas  que  tencionam  o  sentido  de  mutação  para  o  campo  científico.  Pelo  mecanismo  de  antecipação,  o  sujeito  produz sua argumentação nesse jogo das formações imaginárias e, intencionalmente ou 

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não,  diz/escreve  segundo  os  efeitos  que  pensa  produzir  em  seu  imaginado  leitor.  Todo  esse  processo  enunciativo  e  discursivo  realizado  por  Ellie  sinaliza  a  ação  do  professor‐ autor, respeitadas as suas condições de produção. 

  A inconclusão intencional do conto corrobora esse funcionamento discursivo. No  último parágrafo, o personagem Dr. Simon reflete: 

[...] Eu gostaria de estar sonhando, mas é preciso ajudar, talvez seja esse  o motivo  para  eu  ter sobrevivido  ao envelhecimento  e a morte durante  todos esses anos. É por isso que devo iniciar agora uma nova pesquisa e  continuar pensando, pensando... 

 

  A  reversibilidade  entre  autor  e  leitor  tem  seu  ápice  quando  o  aluno  é  convidado  para  conduzir  a  narrativa.  Ellie,  na  posição‐sujeito  professor‐autor,  oferece  condições  favoráveis  para  que  o  estudante  assuma  o  processo  de  autoria  e  mobilize,  em  sua  produção,  os sentidos dos conceitos científicos estudados. Como a assunção da autoria  “implica  uma  inserção  do  sujeito  na  cultura,  uma  posição  dele  do  contexto  histórico‐ social” (ORLANDI, 2012, p. 76), o professor‐autor também contribui para a formação do  aluno‐autor, sujeito imerso em um amplo universo científico‐cultural. 

 

Considerações finais 

  A  partir  da  análise  de  dois  contos  de  ficção  científica  produzidos  por  futuros  professores no contexto do ensino de ciências e biologia, busquei, pelo viés da vertente  francesa da Análise de Discurso, propiciar uma reflexão sobre a formação de professores‐

autores (OLIVEIRA, 2006). Além disso, mostrei como a relação entre o discurso científico 

e o discurso ficcional pode se dar no ensino de ciências, principalmente na perspectiva da 

mediação  didática  (LOPES,  1999).  A  abordagem  da  FC  como  uma  forma  de 

contextualização e problematização do conhecimento científico, além de potencializar o  aprendizado  científico,  pode  representar  uma  ampliação  do  universo  cultural  de  professores e alunos. 

  Bachelard  (1977,  p.  21)  atesta  que  “o  hábito  da  razão  pode  converter‐se  em  obstáculo  da  razão”,  isto  é,  o  formalismo  racional  pode  degenerar‐se  em  um  automatismo contrário à razão. Nessa perspectiva, o discurso ficcional, além de funcionar 

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contextualizando  os  objetos  da  ciência,  mostra‐se  importante  como  uma  forma  de  problematização, desautomatização e mobilização dos sentidos do discurso científico. 

  Convém  sublinhar  que,  na  sala  de  aula,  o  discurso  científico  já  não  tem  um  funcionamento  primário  (CORACINI,  2007),  isto  é,  o  professor  não  dirige‐se  a  um  especialista  da  área  para  tentar  convencê‐lo  da  validade  e  do  rigor  científico  de  uma  pesquisa.  Na  instituição  escolar,  o  discurso  científico  está  amalgamado  ao  discurso  pedagógico de tal modo que as posições “professor” e “cientista” se sobrepõem. Nesse  funcionamento  discursivo  particular,  o  professor‐autor,  atento  à  necessidade  de  seu  papel  como  voz  mediadora,  não  atua  como  um  simples  portador  do  discurso  pretensamente  autossuficiente  da  ciência;  o  professor‐autor  estabelece  um  discurso  polêmico.  De  acordo  com  Orlandi  (2011,  p.  32),  “uma  maneira  de  se  colocar  de  forma  polêmica é construir seu texto, seu discurso, de maneira a expor‐se a efeitos de sentidos  possíveis, é deixar um espaço para a existência do ouvinte como ‘sujeito’”. 

  Nos  dois  casos  analisados  neste  trabalho,  os  sujeitos  Trinity  e  Ellie  realizaram  a  assunção  da  autoria  na  perspectiva  discursiva  defendida  por  Orlandi  (2012).  De  acordo  com as categorias teórico‐metodológicas estabelecidas nesta análise, inclusive a tipologia  de  discurso,  os  dois  contos  tiveram  funcionamentos  discursivos  distintos,  entretanto  ambos  mostraram  alguns  indícios  de  atuação  do  professor‐autor.  Seja  com  maior  abertura  polissêmica  (tendência  ao  discurso  lúdico),  seja  com  mais  injunção  à  paráfrase  (tendência  ao  discurso  autoritário),  os  sujeitos  evocaram  o  discurso  pedagógico  e  deslocaram sentidos no processo de mediação. 

  Vale  frisar  as  condições  de  produção  da  prática  discursiva  dos  referidos  sujeitos,  das  quais  as  atividades  no  âmbito  de  um  projeto  do  PIBID  fizeram  parte,  mas  que  poderiam compreender outras instâncias formativas, institucionalizadas ou não. Ainda a  respeito das condições de produção, esta análise não focalizou contos de FC como os de  Isaac  Asimov  ou  de  Arthur  Clarke,  por  exemplo;  abordou  produções  de  futuros  professores  que  buscam  novas  formas  de  ensinar,  aprender  e  ampliar  seu  universo  científico‐cultural, assim como o de seus alunos. 

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  O professor‐autor não é somente a voz que materializa o discurso pedagógico; ele  se  apropria,  interfere  e  reconfigura  o  discurso  pedagógico.  O  professor‐autor  não  é  somente  um  reprodutor  do  pretenso  sentido  unívoco  e  estabilizado  da  ciência;  ele  desloca  sentidos  conforme  o  complexo  movimento  didático.  Finalmente,  o  professor‐ autor não é refém de práticas e saberes discursivos cristalizados; ele reflete na/sobre sua  relação  com  práticas,  linguagens,  discursos  e  ideologias  em  sua  materialidade  sócio‐ histórica.       

Referências 

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