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A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834): o povo e as elites

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António Manuel Monteiro Cardoso

A REVOLUÇÃO LIBERAL EM TRÁS-OS-MONTES (1820-1834).

O POVO E AS ELITES

Dissertação de Doutoramento em História Moderna e Contemporânea, na especialidade de História Económica e Social no Período Contemporâneo, apresentada ao Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, orientada pela Professora Maria de Fátima de Sá e Melo Ferreira

ISCTE

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ÍNDICE

AGRADECIMENTOS ... 1

SIGLAS E ABREVIATURAS ... 4

INTRODUÇÃO ... 6

PARTE I – TRÁS-OS-MONTES NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO DE 1820 ... 21

Cap. 1: A Terra e as Gentes ... 21

Cap. 2: Magistrados e poderes locais ... 32

Cap. 3: A Vida Económica ... 41

3.1. A viticultura duriense. Do apogeu à crise... 41

3.2. Um desenvolvimento agrícola limitado ... 44

3.3. Agricultura e gados. Coexistência e conflito ... 47

3.4. Ascensão e declínio da indústria ... 49

3.5. A circulação dos produtos ... 55

Cap. 4: A propriedade agrícola ... 60

4.1. Um regime senhorial pouco pesado ... 60

4.2. Comunitarismo e individualismo agrário ... 68

Cap. 5: A sociedade transmontana ... 75

5.1. O mundo do trabalho manual ... 75

5.2. O mundo das elites ... 79

5.2.1. As elites municipais ... 79

5.2.2. Nobreza antiga e nobreza recente ... 82

Cap. 6: A Vida Religiosa ... 91

6.1. Aculturação cristã e contra-reforma ... 93

6.2. Religiosidade beata e “jacobeia” ... 97

6.3. Iluminismo e regalismo ... 99

6.4. A reacção ultramontana. O “bispo santo” ... 103

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PARTE II – O TRIÉNIO CONSTITUCIONAL EM

TRÁS-OS-MONTES ... 127

Cap. 1: A Revolução de 1820 ... 127

1.1. O envolvimento das lideranças transmontanas ... 127

1.2. Os Silveiras ... 138

1.3. Os Sepúlvedas ... 145

Cap. 2: A emergência de uma nova elite política. Os deputados às Cortes constituintes ... 151

Cap. 3: A difusão de uma nova cultura política ... 169

3.1. A acção dos magistrados ... 172

3.2. A mobilização do clero ... 177 3.2.1. A hierarquia episcopal ... 179 3.2.2. A pregação constitucional ... 183 3.3. A propaganda constitucional ... 193 3.3.1. Os juramentos ... 194 3.3.2. As festas constitucionais ... 195 3.3.3. A simbologia constitucional ... 204

3.3.4. Felicitações, cartas de adesão e memórias ... 210

3.3.5. A imprensa constitucional ... 213

Cap. 4: O movimento peticionário ... 216

Cap. 5: Os “frutos” do sistema constitucional ... 233

5.1. A Lei dos Cereais ... 239

5.2 A reforma da Companhia ... 250

5.3. A Lei dos Forais ... 270

5.4. As reformas eclesiásticas ... 276

5.5. As reformas militares ... 285

5.6. As câmaras constitucionais ... 295

5.7. O combate à criminalidade ... 300

Cap. 6: O declinar do regime vintista ... 310

(4)

6.2. As primeiras movimentações absolutistas ... 318

6.3. Os desterrados para Trás-os-Montes ... 324

6.4. As notícias de Espanha ... 325

6.5. As eleições para as Cortes ordinárias ... 327

6.6. O agudizar da crise ... 335

Cap. 7: A revolta do Conde de Amarante ... 338

7.1. A conspiração ... 341

7.2. A eclosão da revolta ... 344

7.2.1. A proclamação do absolutismo em Vila Real ... 344

7.2.2. A sublevação das tropas de Chaves ... 347

7.2.3. Insucesso no Minho e na Beira ... 349

7.2.4. A sublevação das tropas de Bragança ... 350

7.2.5. A revolta noutras povoações transmontanas ... 352

7.3. Uma rebelião encurralada ... 354

7.4. Razões de um fracasso ... 356

7.5. Os chefes rebeldes... 358

7.6. A mobilização constitucional ... 362

7.7. O combate de Santa Bárbara ... 365

7.8. A Lei Marcial ... 367

7.9. O combate de Amarante ... 369

7.10. A retirada final ... 372

7.11. A pacificação da província ... 378

7.12. A mobilização absolutista... 382

PARTE III – A RESTAURAÇÃO DO ABSOLUTISMO ... 394

Cap. 1: A Vila-Francada ... 394

1.1. O triunfo efémero dos moderados ... 394

1.2. Os tumultos restauracionistas em Trás-os-Montes ... 409

Cap. 2: A Abrilada ... 426

2.1. Afirmação e derrota dos ultra-realistas ... 426

(5)

2. 3. A mobilização ultra-realista em Trás-os-Montes ... 444

PARTE IV – A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA CARTISTA ... 458

Cap. 1: As rebeliões contra a Carta ... 458

1.1. As deserções para Espanha ... 458

1.2. A invasão de 1826-27 ... 475

1.3. A mobilização absolutista... 487

1.4. A difícil pacificação ... 493

1.5. À espera de D. Miguel ... 504

Cap. 2: A tomada do poder por D. Miguel ... 507

2.1. A “aclamação” popular ... 507

2.2. A revolta liberal de 1828 ... 515

2.3. A rebelião em Trás-os-Montes ... 519

2.4. A mobilização miguelista ... 528

PARTE V – O REINADO DE D. MIGUEL ... 532

TÍTULO I – O MIGUELISMO TRIUNFANTE ... 532

Cap. 1: O miguelismo no poder. Moderados e ultras ... 534

Cap. 2: A repressão dos constitucionais ... 562

2.1. As devassas de rebelião ... 562

2.1.2. As devassas em Trás-os-Montes ... 571

a) A comarca de Vila Real... 571

b) A comarca de Bragança ... 580

c) A comarca de Miranda ... 586

d) A comarca de Moncorvo ... 589

2.1.3. Um balanço das devassas ... 594

2.1.4. A punição dos réus. Natureza da repressão miguelista ... 608

2.3. A depuração dos empregados públicos ... 614

2.4. A depuração dos militares ... 617

Cap. 3: A construção de uma identidade miguelista ... 622

3.1. As festividades realistas ... 626

(6)

3.3. O papel da imprensa ... 635

3. 4. A simbologia miguelista ... 638

Cap. 4: Os voluntários realistas ... 641

Cap. 5: A “recristianização” ... 662

Cap. 6: Mobilização realista e insubmissão popular ... 679

Cap. 7: A resistência liberal ... 684

TÍTULO II – O MIGUELISMO AMEAÇADO ... 694

Cap. 1: Os efeitos das jornadas de Julho ... 694

1.1. Um regime acossado ... 707

1.2. À espera da expedição liberal ... 721

TÍTULO III – A GUERRA CIVIL ... 731

Cap. 1: Impasse no cerco do Porto ... 731

1.1. Os primeiros combates ... 731

1.2. O ataque do dia de S. Miguel ... 738

Cap. 2: Trás-os-Montes na retaguarda da guerra ... 743

2.1. A mobilização para a guerra ... 743

2.2. A acção do bispo Rebelo na diocese de Bragança ... 751

Cap. 3: A viragem final ... 760

3.1. Declínio da causa miguelista ... 760

3.2. A guerra civil no sul do país ... 769

Cap. 4: A libertação de Trás-os-Montes ... 775

4.1. A guerrilha constitucional de Alcanices ... 775

4.2. O assalto final ... 782

4.3. O novo poder liberal ... 789

4.4. A débil resposta miguelista ... 791

Cap. 5: A atitude do clero transmontano ... 798

5.1. O clero regular... 801

5.2. O clero secular ... 814

a) O clero capitular ... 816

(7)

c) Os reitores ... 823

d) Os curas amovíveis ... 824

CONCLUSÃO ... 828

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1

AGRADECIMENTOS

A tese que agora apresento representa o culminar de uma longa caminhada iniciada há cerca de 25 anos, que só foi possível levar a termo, graças ao auxílio e boa vontade de um conjunto variado de pessoas e de instituições.

Esses apoios revelaram-se decisivos, tanto mais que iniciei a minha actividade de investigação fora do âmbito universitário, em acumulação com o trabalho na área jurídica, correspondente à minha formação académica. Nessas condições, necessariamente precárias, publiquei os meus primeiros trabalhos sobre as lutas liberais e a contra-revolução absolutista, mas estava fora de questão abalançar-me a um estudo mais aprofundado.

A integração no Departamento de História como doutorando e o amável convite que recebi posteriormente para integrar o Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa do I.S.C.T.E. permitiram-me quebrar o isolamento em que trabalhava, facultando-me o acesso a espaços imprescindíveis de discussão de ideias e de intercâmbio de conhecimentos.

Por tudo isto, agradeço ao Departamento de História do ISCTE e ao CEHCP todo o apoio que me prestaram e, em particular, ao primeiro, o ter considerado o meu currículo científico como suficientemente relevante para me habilitar ao grau de doutor.

Um trabalho com um objecto tão vasto, quer no tempo, quer no espaço, não teria sido possível sem a colaboração amiga de um conjunto de pessoas, que me auxiliaram, não só com conselhos, críticas, informações e sugestões de toda a ordem, mas também com palavras de incentivo, bem necessárias nos inevitáveis momentos de desalento.

Entre essas pessoas, devo destacar a Professora Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, que há mais de 20 anos acompanha as minhas investigações sobre a contra-revolução, ouvindo-me com a maior paciência, quer nos tempos difíceis de dúvida e impasse, quer nos momentos de euforia suscitada por novas descobertas. Como orientadora desta tese, muito devo à sua constante

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2

disponibilidade, bem como aos seus conselhos avisados, fruto de longos anos de estudo e reflexão.

Não posso deixar de igualmente destacar o apoio que recebi da Professora Ana Mouta Faria, a qual, ainda antes de ter apresentado a sua tese de doutoramento, me facultou, sem reservas, o acesso aos resultados da sua investigação, o que muito me aproveitou na análise da atitude do clero face à revolução liberal.

Agradeço igualmente aos Professores Nuno Gonçalo Monteiro, Conceição Andrade Martins, Maria Alexandre Lousada, Isabel Tiago de Oliveira, Manuel Vilaverde Cabral, Maria Inácia Rezola, bem como aos meus colegas juristas, Drs. Alexandre Pinheiro e Rui Guerra, que com a maior simpatia me deram indicações e forneceram elementos de grande utilidade. À Professora Miriam Halpern Pereira agradeço o interesse que manifestou pela elaboração deste trabalho, designadamente ao proporcionar-me a possibilidade de fazer uma apresentação do tema, numa fase preliminar da elaboração da tese.

Tratando-se de um trabalho sobre Trás-os-Montes, não me faltaram auxílios dos meus comprovincianos. Ao Dr. Belarmino Afonso, director do arquivo distrital de Bragança, agora reformado, devo um especial agradecimento, sobretudo pela forma como me facultou as páginas da revista “Brigantia”, de que era director, para ir divulgando os resultados das minhas primeiras investigações. Os meus agradecimentos também ao Dr. Hirondino da Paixão Fernandes, autor de exaustivos levantamentos de fontes, que me pouparam muitas horas de trabalho nos arquivos. Tanto de um como de outro recebi sempre palavras calorosas de incentivo, a par de informações de inestimável valor, apenas ao alcance de quem conhece bem a sua terra. O padre José de Morais, dos marianos de Balsamão, falecido há cerca de dois anos, deixa-me a memória da sua inexcedível simpatia, quando me ouvia falar sobre o liberalismo dos frades, seus antecessores, nas jornadas culturais que todos os anos promovia naquele convento. Expresso também os meus agradecimentos ao Dr. Carlos Abreu e ao Sr. António Júlio Andrade, do arquivo municipal de

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Torre de Moncorvo, pelos elementos informativos que me facultaram. Não posso esquecer a amabilidade da D. Maria Alice Vaz das Neves Taborda, que me emprestou o interessante espólio documental de um seu antepassado, capitão de milícias de Miranda, no tempo das lutas liberais.

Na pesquisa que efectuei aos periódicos existentes na Biblioteca Nacional contei com a gentileza do meu amigo, Dr. João Boaventura, que me forneceu múltiplas referências e fotocópias de materiais de interesse para esta tese. Os meus agradecimentos também ao Professor António Vasconcelos de Saldanha e ao Dr. Fernando Egídio Reis, pelas úteis informações que me facultaram.

Embora alheios às lides historiográficas, os meus amigos de longa data Alberto Arons de Carvalho e Maria Gilda Macedo Costa merecem os meus agradecimentos, pelo incentivo que deram à concretização deste trabalho. À Luísa Tiago de Oliveira agradeço o precioso auxílio que me prestou, lendo cuidadosamente esta tese, o que muito me ajudou na fase sempre penosa das correcções e melhoramentos, quando começam a faltar as forças para o remate final.

À Paula Godinho devo um reconhecimento muito especial, pelo interesse que manifestou por este estudo, prestando-me um apoio inestimável nalgumas incursões pelos terrenos da Antropologia, tão importantes para a compreensão das movimentações sociais em Trás-os-Montes. Aos seus conselhos oportunos, fruto de um conhecimento profundo da província, devo a atenção que procurei prestar às questões da reprodução social na sociedade rural transmontana.

Finalmente, não posso deixar de agradecer aos funcionários do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, principalmente aos que prestam serviço na sala de leitura, pelo modo solícito e atencioso com que sempre me atenderam, ao longo dos meses em que ali trabalhei quase diariamente.

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SIGLAS E ABREVIATURAS

ARQUIVOS E NÚCLEOS ARQUIVÍSTICOS ADB - Arquivo Distrital de Bragança ADVR – Arquivo Distrital de Vila Real AHM – Arquivo Histórico Militar

AHPAR - Arquivo Histórico-Parlamentar da Assembleia da República ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo

ATC - Arquivo do Tribunal de Contas DP - Desembargo do Paço (ANTT)

IGP - Intendência Geral da Polícia (ANTT)

IGP, Com. Correspondência dos corregedores das comarcas e dos juízes de fora

IGP, Corr. Correspondência das autoridades militares, civis e eclesiásticas IGP, LC Livros confidenciais

IGP, LRS Livros de registo de secretaria MJ - Ministério da Justiça (ANTT) MR - Ministério do Reino (ANTT)

PERIÓDICOS MAIS CITADOS AL - Astro da Lusitânia

BC - Borboleta Constitucional / Borboleta dos Campos Constitucionais BD - Borboleta Duriense

BO - Borboleta

CCL - Crónica Constitucional de Lisboa CCP - Crónica Constitucional do Porto CP - Correio do Porto

DC - Diário das Cortes DG - Diário do Governo DR - Diário da Regência

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EL - Estrela Lusitana GL - Gazeta de Lisboa IMP - Imparcial

PBR - Periódico para os Bons Realistas PPP - Periódico dos Pobres no Porto VEP - O Verdadeiro Eco de Portugal

OBRAS MAIS CITADAS

CVS - Correspondência do Visconde de Santarém

DBP - Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva DHCG - Documentos para a História das Cortes Gerais da Nação Portuguesa, de

José Clemente dos Santos

DV - Dicionário do Vintismo, direcção de Zília Osório de Castro MAH - Memórias Arqueológico-Históricas, de Francisco Manuel Alves MMFA - Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna

PAM - Portugal Antigo e Moderno, de Pinho Leal

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INTRODUÇÃO

Mais de século e meio volvido após o fim das lutas entre liberais e absolutistas, que culminaram na guerra civil de 1832-34, ainda se encontra em aberto a questão de saber qual foi o comportamento da população portuguesa naquele conflito1.

Para tal contribuiu, sem dúvida, uma cultura histórica acerca do processo de implantação do liberalismo, centrada na legitimação ou deslegitimação da revolução liberal e dos seus momentos fundadores, de acordo com as concepções ideológicas e políticas dos diferentes autores2. Neste contexto, as

representações sobre a atitude das camadas populares naqueles acontecimentos integraram-se em discursos ideológicos, informados por juízos apriorísticos sobre o seu papel na história, sem recurso a qualquer estudo ou sequer demonstração.

Assim, não obstante as divergências profundas que marcaram a cultura histórica oitocentista, acabou por se tornar dominante a ideia, perfilhada não apenas pelos absolutistas, mas também por destacados autores situados no campo liberal, de que o partido vencido gozara do apoio da maior parte, senão mesmo da quase totalidade do povo português.

A tese de que os absolutistas representavam o país em peso, enquanto os liberais não passavam de uma minoria ínfima, radicou, em última análise, numa aceitação acrítica da propaganda desenvolvida em favor de D. Miguel, no sentido de o apresentar como uma causa nacional.

Essa propaganda correspondia a uma necessidade fulcral de legitimação do infante, pelo facto deste ter assumido o poder contra as normas da legitimidade dinástica e com quebra dos juramentos prestados.

1 Num balanço da historiografia contemporânea sobre o século XIX, Miriam Halpern Pereira

chamou a atenção para a ausência de um estudo aprofundado sobre a guerra civil de 1832-34 e para o deficiente conhecimento do condicionamento sociológico da vitória liberal (1991: 103).

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Na verdade, o esforço para legitimar a “usurpação” não se limitou ao plano jurídico, através da reunião dos Três Estados do Reino e da publicação de numerosas obras justificativas, passando também pela invocação de uma alegada vontade nacional, expressa numa vaga unanimista de entusiasmo popular pela causa miguelista3.

Com essa finalidade, os partidários de D. Miguel desenvolveram uma orquestração propagandística do apoio de grande parte da população, visando apresentá-lo como unânime e nacional, num processo em muitos aspectos precursor das experiências ditatoriais do século seguinte.

Embora também fosse importante para os liberais a invocação de consideráveis apoios no interior do país, até como forma de concitar auxílios e elevar o moral, tal não correspondia a uma necessidade tão imprescindível, pois a causa liberal tinha a seu favor a legitimidade dinástica. Acresce que, encontrando-se exilados e sem poder de facto sobre a população, dificilmente a poderiam mobilizar e muito menos promover qualquer encenação amplificadora dos apoios de que dispunham.

Por isso, a propaganda liberal vai centrar-se acima de tudo na denúncia do terror miguelista, o que, além de desqualificar gravemente a causa miguelista, comprovava o apoio de que gozava a causa de D. Maria4. Os impressionantes

testemunhos das vítimas liberais, publicados no final da guerra civil, trouxeram a lume as atrocidades praticadas, não apenas pelas autoridades, mas também pela “baixa plebe”, arregimentada pelos miguelistas5. Desta forma, reconhecia-se

um certo alcance à mobilização absolutista, limitando-a contudo à chamada

3 Fazendo-se eco dessas duas formas de legitimação, Oliveira Martins valorizava deste modo a

aclamação popular: “a legitimidade de D. Miguel está para nós na unanimidade com que foi aclamado. É a legitimidade do Mestre de Aviz” ou “O carácter nacionalmente legítimo da «usurpação» é incontestável; o carácter jurídico é discutível” (1976, I: 106-107 e 112).

4 Destacou-se a divulgação das listas dos réus perseguidos pela alçada do Porto, que começou a

ser publicada em 1833 por Pedro da Fonseca Serrão Veloso, com o objectivo de desmentir os escritores “vendidos ao Partido Apostolico”, segundo os quais, a “heroica contra-revolução” de 16 de Maio de 1828 fora obra de uma “Facção Militar”.

5 Vejam-se, entre outros, um folheto anónimo sobre a “Horrorosa mortandade...” dos presos no

castelo de Estremoz e a “Historia do captiveiro dos presos d´estado na Torre de S. Julião da Barra...” de João Baptista da Silva Lopes, publicados em Lisboa em 1833-34.

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“ralé”, o que representava mais um crime do miguelismo, ao ter armado as classes mais baixas e perigosas da sociedade.

A ideia do apoio popular generalizado à causa miguelista acabou por se firmar durante décadas, ao ser avalizada pela voz autorizada de Alexandre Herculano. Opositor declarado da revolução de Setembro e do papel que a “plebe” nela assumira, Herculano invocou várias vezes o fanatismo miguelista da “populaça”, como ilustração dos malefícios da “democracia”6.

Também Luz Soriano, na sua obra monumental sobre a guerra civil, seguiu um caminho semelhante, de acordo com a sua posição liberal conservadora, caracterizada pelo desprezo do povo, encarado como sinónimo de “plebe” desordeira e anárquica. De resto, os primeiros estudos monográficos sobre esta época centraram-se na reconstituição dos grandes acontecimentos políticos e militares, numa perspectiva de valoração do papel neles desempenhado pelas principais figuras do liberalismo7.

O desencanto de alguns autores em relação ao regime liberal conduziu a abordagens bastante críticas do passado recente, que tiveram como expressão mais acabada a publicação em 1881 do “Portugal Contemporâneo” de Oliveira Martins, uma grande narrativa de conjunto sobre o processo de implantação do liberalismo e os seus efeitos na sociedade portuguesa, abrangendo o período compreendido entre 1826 e 1870.

Escrita com notável brilho literário, que lhe confere grande poder persuasivo, aquela obra exerceu uma poderosa influência na época, veiculando uma visão tão convincente da revolução liberal que em muitos aspectos perdura até à actualidade.

6 Herculano desprezava a população assalariada, quer a rural, fanatizada por D. Miguel, quer a

urbana, obreira da revolução de Setembro, em contraste com a sua heroicização da “classe média”, ver Ana Pina (2003: 154-155).

7 António Ferrão descrevia assim as parcialidades que atravessavam esta historiografia: “ A

história deste período tem sido escrita a golpes de paixão, em favor de uns e contra outros. Os próprios memorialistas e historiadores classificados liberais têem os seus ídolos ou, pelo menos, os seus taumaturgos. Para José Liberato só vale Saldanha e Pinto Pizarro; para Luz Soriano é Sá da Bandeira, contra todos os chefes liberais, quem marca; para Fronteira é Vila Flor (Terceira); para o conde de Lavradio e, depois, D. Maria Amália só se assinala Palmela; para Enriques da Carnota) e Colen só vale Saldanha, etc.” (1940: 433-434).

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Porém, a despeito da sua qualidade literária, a narrativa de Oliveira Martins não constitui o resultado de uma investigação histórica, mas acima de tudo uma tentativa de demonstração, com recurso ao passado, da tese do autor sobre a inadequação do liberalismo individualista à organização das sociedades8.

Fortemente influenciado pelas correntes organicistas, Oliveira Martins sustenta que, à semelhança dos seres biológicos, também as sociedades evoluíam, de acordo com uma alma colectiva, definida em função da raça e da religião9. Dentro destes parâmetros, a história de Portugal é explicada à luz de

uma alma colectiva, caracterizada pela violência bruta do povo português, cujo comportamento decadente se retrata, através do recurso metafórico a um conjunto de enfermidades.

Deste modo, para Oliveira Martins, a população portuguesa estava tomada por uma “febre” de antiliberalismo e de adoração por D. Miguel, que condensava em si “toda a violência bruta da alma portuguesa”10. Em contrapartida,

os liberais não passavam de uma minoria não representativa da Nação11, a

quem a vitória sorriu, somente devido à “decomposição interna”, aos “movimentos políticos da Europa” e a uma série de “acasos imprevistos”.

Como o autor previa, a publicação do “Portugal Contemporâneo” suscitou algumas críticas, sobretudo de Teófilo Braga e de Rodrigues de Freitas, que consideraram demasiado pessimista o retrato do povo e da sociedade portuguesa12. Nessa orientação se inscreve o republicano José de Arriaga, que

8 Essas ideias são desenvolvidas sobretudo no capítulo intitulado “Crítica do liberalismo”, bem

como na introdução à 1.ª e à 2.ª edição do “Portugal Contemporâneo”.

9 Sobre as concepções filosóficas de Oliveira Martins, ver Carlos Coelho Maurício (1995) e

Carmo Salazar Ponte (1998).

10 O que levava o autor a concluir: “Ninguém era mais nosso do que D. Miguel, e por isso foi o último

dos que o povo compreendeu e amou” (1976, I: 62).

11 Esta tese é desenvolvida no capítulo “As classes”, que remata desta forma: “ E a favor dele [o

regime da Carta] quem se via? Ninguém: assim é mister confessá-lo, porque não valem por uma Nação uma dúzia de próceres despeitados e outra dúzia de demagogos estóicos, talvez outra dúzia de boas pessoas ingénuas” (1976, I: 95-96). O autor nada refere, por exemplo, quanto à atitude dos bacharéis e dos militares. Embora reconheça a simpatia do baixo clero pelo liberalismo, tal não o impede de concluir pela unânime oposição do clero à Carta.

12 No prefácio à 2.ª edição, em 1883, o autor responde a Teófilo Braga, o qual, reconhecendo a

“dissolução do regime monárquico parlamentar”, entendia que se devia responsabilizar a “realeza” e os “políticos vendidos” e não o “organismo da Nação”. Rodrigues de Freitas invoca as perseguições

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criticou Oliveira Martins, por ter sido excessivamente severo com o povo português, uma vez que não se podia “afirmar em absoluto que os portugueses não têm o instinto de liberdade dos povos europeus”13. Para o demonstrar, Arriaga

debruçou-se sobre as revoluções de 1820 e de 1836, exaltando o papel do povo e das figuras liderantes daqueles movimentos, nos quais procura entroncar as raízes do regime republicano. Contudo, ao evitar ocupar-se do governo de D. Miguel e da guerra civil, que desvaloriza como um mero conflito dinástico, em nada desmente a visão martiniana do unanimismo miguelista14.

Coube a António Sérgio, num artigo publicado em 1955, a primeira crítica de fundo às ideias expostas por Oliveira Martins, em especial à tese da “paixão miguelista do País inteiro”15. Para a refutar, Sérgio explora as próprias

contradições da obra, onde, contra a tese do autor, não faltam asserções sobre a penetração do liberalismo na sociedade portuguesa e o carácter orquestrado de certas manifestações miguelistas16.

Subjacente à análise sergiana, descobre-se em última análise a experiência do unanimismo salazarista, bem patente quando, referindo-se ao miguelismo, denuncia os “safanões a tempo” e as “manifestações de reclame a favor de poderosos que dispõem do mando, da polícia política, dos tesouros do Estado”17.

As dificuldades começam quando se trata de apresentar uma análise alternativa à posição de Oliveira Martins, problema que Sérgio contorna habilmente, ao aventar a tese da “despolitização” (expressão nossa) da grande maioria da população portuguesa, que não seria liberal, nem miguelista, porque nada percebia sequer dessas “questões longínquas”. Quanto à minoria que se interessava pela discussão política, Sérgio acaba por não se afastar muito de

miguelistas para afirmar que as ideias liberais tinham algumas raízes, pelo que não se podia sustentar que D. Miguel tivera por ele a unanimidade dos portugueses (1881: 23).

13 José de Arriaga, 1886-1887, I: 8.

14 Martins de Carvalho refere que Arriaga tencionava escrever toda a história da revolução

política em Portugal, abrangendo os períodos de 1820, 1836, 1846 e 1851, “pondo de parte a guerra civil, ou a luta entre D. Pedro e D. Miguel, por ter um carácter essencialmente dinástico” (1979, I: 114).

15 Ver António Sérgio (1981, V: 219-267).

16 Veja-se, por exemplo, o relato de Oliveira Martins sobre os desmandos dos caceteiros, a soldo

de miguelistas ricos, como o célebre contratador do tabaco João Paulo Cordeiro.

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Oliveira Martins, limitando-se a sublinhar que “os partidários do liberalismo não eram assim tão raros”. Acaba até por convergir nalguns pontos, como por exemplo, quando Sérgio aponta como miguelistas “ (como está bem de prever) os muito poderosos e os gigantões da pecúnia, os componentes da classe da pequena aristocracia, os altos eclesiásticos e todo o clero regular (o secular bem menos) ”18.

Somente em 1940, com a publicação do “Reinado de D. Miguel. O Cerco do Porto (1832-1833) ”, da autoria de António Ferrão, deparamos com uma obra, que contradita as teses de Oliveira Martins e dos historiadores que o precederam19, com base numa investigação de arquivo20.

Como conclusão fundamental do seu trabalho, Ferrão considera que o regime miguelista não tinha a seu favor a unanimidade da população portuguesa e que, ao invés, “ a parte mais esclarecida e progressiva do País era-lhe inteiramente hostil”21. Sustenta ainda que grande parte do clero, mormente o

secular, nunca fora absolutista, pelo que centenas dos seus membros tinham sido vítimas das perseguições miguelistas. Contra a tese da aceitação do regime de D. Miguel pela população portuguesa, Ferrão demonstra igualmente que, apesar do terror miguelista, se mantiveram sempre em actividade no país focos revolucionários e núcleos conspirativos liberais.

As circunstâncias desfavoráveis da época em que esta obra veio a lume, em pleno auge do Estado Novo, terão contribuído para o seu rápido esquecimento,

18 Sérgio, 1981 V: 227. A inclusão dos “gigantes da pecúnia” no campo miguelista dever-se-à a

uma aceitação acrítica das alusões generalizantes de Oliveira Martins acerca de alguns monopolistas e contratadores apoiantes de D. Miguel e porventura a uma certa analogia anacrónica entre o miguelismo e o salazarismo.

19 Ferrão contradita com veemência, tanto Luz Soriano, que considera um historiador oficial

pago pelo Ministério da Guerra, como Oliveira Martins, a quem não poupa epítetos depreciativos, como “historiador de fontes em segunda mão”, um “político a fazer história”, “coleccionador de galgas” e outros semelhantes.

20 Ferrão explorou sobretudo o arquivo do Ministério da Justiça, que fora transferido para a

Biblioteca Nacional. A dedicatória do livro à cidade do Porto, “bastião dos imorredoiros princípios da Independência e da Liberdade Pátrias (1385, 1628, 1808, 1820, 1832-33, 1846 e 1891) ”, atesta as convicções republicanas do autor.

21 Como apoiantes do liberalismo, aponta, por exemplo, “professores, médicos, juristas, oficiais do

exército e da marinha”. Quanto ao povo, “na humildade da sua inteligência e da sua crassa ignorância”, encarou D. Miguel como um salvador, até ao fracasso da tentativa de assalto ao Porto no dia de S. Miguel de 1832 (1940: 177, 643 e 647).

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mantendo-se dominante a visão da unanimidade miguelista, que melhor quadrava com a ideologia do regime, alimentada em boa parte pelas concepções tradicionalistas e integralistas, inimigas do liberalismo22.

As condições adversas criadas pela ditadura levaram a uma redução considerável da produção historiográfica sobre o século XIX, que começou a ser retomada, principalmente a partir da década de cinquenta, através de trabalhos efectuados em Portugal à margem das instituições universitárias e no estrangeiro em universidades e centros de investigação.

A par do estudo da evolução do capitalismo, mereceram especial atenção as revoluções de 1820 e de 1836, cujo carácter democrático explicava a preferência de uma historiografia em larga medida de oposição e exílio23.

Destacou-se pelo seu carácter inovador a obra de Piteira Santos, “Geografia e Economia da Revolução de 1820”, escrita em 1951, mas somente publicada na totalidade em 1962, na qual se salienta o papel da burguesia comercial na instauração do regime vintista.

Também Victor de Sá se ocupou das revoluções de 1820 e 1836, tendo em vista procurar as primeiras manifestações das ideias socialistas, à luz das quais critica os liberais, que acusa de “falta de vigor revolucionário”, valorizando as movimentações populares urbanas, que encara como precursoras das lutas operárias subsequentes.

Se é certo que destas e de outras obras resultou um melhor conhecimento das movimentações urbanas, a verdade é que a ausência de estudos semelhantes sobre o comportamento da população camponesa veio reforçar a ideia de uma mobilização liberal, confinada a Lisboa, ao Porto e a alguns centros urbanos do litoral, face a um mundo rural desconhecido, encarado como território de eleição da contra-revolução.

22 Precisamente em 1940, João Ameal publicava a sua “História de Portugal”, obra premiada pelo

regime, na qual se qualificava a revolução liberal como uma “revolução satânica”. É provável que a não publicação do 2.º volume da obra de Ferrão, intitulado “Decadência e fim do governo absolutista”, anunciado como estando no prelo, se tenha devido a razões ideológicas, tanto mais que seria editado pela Comissão de História Militar.

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Somente com os trabalhos pioneiros de Albert Silbert, o interesse dominante pela burguesia urbana, comercial e industrial, se desloca para o estudo do meio rural. Para aquele autor, a revolução fora liderada pela burguesia agrária, como resposta à conjuntura de baixa que afectava os seus interesses, o que a leva a impor uma política proteccionista nas Cortes. Ao invés, a queda dos preços favorecia os assalariados e as classes populares, o que poderia explicar a dissociação entre a massa camponesa e a burguesia. Assim, na esteira dos trabalhos de Jacques Godechot, admite que as origens da contra-revolução popular se poderiam explicar como uma reacção camponesa hostil à burguesia, cuja penetração nos campos lhe parecia importante24.

Continuou, porém, sem se saber qual o alcance e características dessa contra-revolução popular, dada a ausência de estudos sobre a mobilização rural absolutista e sobre o miguelismo em geral, o que representava um autêntico “tabu intelectual”, como lhe chamou Miriam Halpern Pereira.

Refira-se, como excepção, um artigo sobre D. Miguel, da autoria de Joel Serrão, o qual, na senda de António Sérgio, aponta o “erro histórico” de Oliveira Martins, ao sustentar a tese da unanimidade miguelista da Nação, sem compreender que o terror do seu regime evidenciava à saciedade que uma parte do país lhe era adversa.Porém, tal como sucedera com Sérgio, Serrão não logrou apresentar uma visão alternativa da atitude política da população portuguesa, dada a inexistência de trabalhos de investigação em que se pudesse basear25.

A instauração da democracia e a abertura das instituições universitárias ao estudo do século XIX traduziu-se numa abundante produção historiográfica

24 Silbert, 1968: 39. Salientando o carácter popular dos movimentos absolutistas em Portugal,

Espanha e Nápoles, Silbert sustentou que miguelistas, carlistas e sanfedistas eram camponeses revoltados, devido à preponderância agrária da burguesia, como também o tinham sido os camponeses da Vendeia (1998: 290).

25 Por isso, tal como Sérgio, Joel Serrão adopta a tese da despolitização da grande massa da

população, constituída por camponeses analfabetos, que não poderia estar interessada e activamente empenhada nos diferendos entre o duque de Cadaval e o duque de Palmela. Entre outros méritos, o artigo alerta para a necessidade de se considerar, na análise do problema, a circunstância dos absolutistas disporem do governo efectivo, com os respectivos meios de acção e coacção, o que lhes permitira reunir um numeroso exército (1971, IV: 291).

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sobre a revolução liberal, que passou a ser analisada no plano económico, político e da história das ideias.

Neste contexto, a movimentação popular absolutista foi pela primeira vez objecto de trabalhos de investigação, rompendo com a anatemização lançada pela historiografia oitocentista sobre o miguelismo e a contra-revolução.

As tentativas de mobilização miguelista, após a Convenção de Évora-Monte, mereceram uma atenção inédita, de que são exemplo a publicação em 1981 de “A Guerrilha do Remexido”, da nossa autoria, juntamente com António do Canto Machado e o artigo publicado em 1982 por Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira sobre o “cisma dos mónacos” e a questão dos enterros nas igrejas. Também no mesmo ano, Maria Alexandre Lousada e Nuno Gonçalo Monteiro debruçaram-se sobre as revoltas absolutistas de 1826-1827 e as suas relações com a mobilização rural, tendo em vista o estudo do chamado “miguelismo popular”.

Esta vaga de interesse pelo miguelismo, mormente na sua componente popular, teve o mérito de chamar a atenção para importantes fenómenos, omitidos ou menosprezados pela historiografia oitocentista, lançando as bases para um melhor conhecimento do comportamento da população face à revolução liberal26.

Contudo, por se tratar de uma temática em grande parte por desbravar, exigindo uma laboriosa investigação documental, o estudo do miguelismo traduziu-se num conjunto de trabalhos parcelares sobre acontecimentos distanciados no tempo, dificultando uma visão de conjunto.

Assim, se as resistências ao liberalismo depois de 1834 estão hoje razoavelmente estudadas27, o mesmo não sucede com a mobilização popular

durante o reinado de D. Miguel e no contexto das revoltas absolutistas dos anos anteriores.

26 O rigor das perseguições sofridas pelos vencidos após a guerra civil, as guerrilhas

miguelistas, a eclosão do problema dos enterramentos desde 1835 e o movimento de rejeição, como “cismáticos”, dos párocos nomeados pelo governo constitucional, contam-se entre os principais factos postos em evidência nestes estudos.

27 Em grande parte, graças aos trabalhos de Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira (2002), José

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Por outro lado, ao tomar-se como tema dominante o apoio popular à contra-revolução, esquecendo por vezes a movimentação liberal28, corre-se o risco de

exagerar a sua importância, caucionando implicitamente as antigas teses de sentido unanimista, tanto mais que a atenção se centra quase sempre nos momentos altos da mobilização.

Ora, por estranho que pareça, o estudo da mobilização promovida pelos liberais, mormente o papel das suas elites no mundo rural, encontra-se por fazer, não obstante a existência de excelentes fontes para o efeito, constituídas pelas relações de pronunciados nas devassas de rebelião e pelos processos políticos instaurados durante o reinado de D. Miguel29.

Por tudo o que expusemos, estamos persuadidos de que se torna necessário proceder a uma análise dos comportamentos políticos num quadro cronológico amplo, que permita acompanhar a génese e a evolução do fenómeno de cisão, que atravessou a sociedade portuguesa ao longo de quase toda a primeira metade do século XIX.

Porém, o estado actual de conhecimentos torna quase impossível a realização de um trabalho desta natureza a nível nacional, a não ser numa perspectiva de mera reconstituição factual, sem grandes veleidades interpretativas.

Optámos, por isso, por circunscrever o nosso estudo à escala mais limitada de uma província, um âmbito ainda assim bastante vasto, numa temática que exige um trabalho minucioso de reconstituição, em que o pormenor aparentemente irrelevante assume tantas vezes uma importância inesperada.

Poderíamos ter escolhido uma área mais reduzida, como a comarca, que além de corresponder a uma circunscrição administrativa, permitiria decerto uma análise mais detalhada. Só que as comarcas abrangiam territórios descontínuos e heterogéneos, o que dificultaria o estudo dos comportamentos

28 Como tentativa de estudo comparado da mobilização miguelista e da liberal na comarca de

Vila Real, ver Nuno Monteiro (1990).

29 Entre as excepções, ver Rui Cascão (1985), António Monteiro Cardoso (1984-1986) e José

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na sua relação com os contextos geográficos e as respectivas estruturas económicas, sociais e culturais.

Acresce que, apesar de não terem significado político-administrativo, excepto como circunscrições militares, as províncias constituíam áreas com uma individualidade muito vincada, sendo a partir delas que se pensava o território nacional e se estruturavam importantes identidades e solidariedades30.

Deste modo, elegemos como objecto de estudo a província de Trás-os-Montes, que por ter sido palco das revoltas absolutistas de 1823 e de 1826-27, permite situar a análise no quadro cronológico amplo, que reputamos indispensável para uma adequada compreensão dos comportamentos políticos. Devido em grande parte a esse protagonismo, é principalmente em relação a Trás-os-Montes que as teses de pendor unanimista assumiram maior verosimilhança, tendo-se tornado de algum modo consensual a ideia de um apoio quase total da população transmontana à contra-revolução absolutista.

A influência “mágica” dos Silveiras, tão glosada pelos historiadores oitocentistas, constituiria uma evidência indesmentível do apego dos transmontanos ao absolutismo, a tão exaltada “Heróica Fidelidade Transmontana”. Ao traçar o retrato psicológico-político da população das diferentes províncias, Oliveira Martins incluiu os transmontanos na família meridional portuguesa, o que explicaria o seu “decidido absolutismo”, que partilhavam com o alentejano e o estremenho, em contaste com o minhoto liberal31.

A imagem martiniana da devoção popular por D. Miguel encontrava o seu equivalente em Trás-os-Montes nas figuras do marquês e da marquesa de Chaves, personagens meio heróicas, meio burlescas, adequadas para impressionar “um povo forte, bom, mas cretinizado pela educação histórica portuguesa”, que os encarava como “chefes naturais”32.

Esta imagem de um Trás-os-Montes, inteiramente dominado pela contra-revolução, encontrava-se de tal modo firmada que Albert Silbert encarou o

30 Ver Silva, 1998: 53-54 e Silva e Hespanha, 1993: 19-37. 31 Oliveira Martins, 1976, I: 114.

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escasso número de petições enviadas daquela província às Cortes constituintes sobre matéria agrária, à luz de um provável distanciamento da população transmontana em relação ao regime vintista33.

No entanto, uma análise da revolução liberal naquela província obrigaria a questionar a imagem dominante acerca do comportamento político da população transmontana.

Assim, nas Cortes constituintes, tal como nas que se lhe seguiram, afirmou-se uma elite constitucional transmontana muito influente, em que afirmou-se destacaram figuras como Bernardo Sepúlveda, Claudino Pimentel, Manuel Gonçalves de Miranda, Francisco de Morais Pessanha, o abade de Medrões e António Barbosa Girão, depois visconde de Vilarinho de S. Romão.

As movimentações absolutistas ocorridas em 1823, 1826-27 e 1828 depararam sempre em Trás-os-Montes com a resistência de grupos de liberais, que se armaram em defesa da causa constitucional.

As devassas de rebelião levadas a cabo em Trás-os-Montes pronunciaram um número elevado de réus, sobretudo na comarca de Vila Real, que apresenta uma das maiores percentagens de processados de todo o país34.

No final da guerra civil, as tropas constitucionais entraram em Trás-os-Montes, acompanhadas por voluntários naturais da província, sem terem encontrado qualquer resistência relevante ao seu avanço.

Nos anos que se seguiram à vitória liberal, a província de Trás-os-Montes manteve-se relativamente pacífica, sem que se tivessem levantado guerrilhas miguelistas ou outras formas de resistência armada, ao contrário do que sucedeu noutras regiões.

Tudo isto evidencia a necessidade de um estudo mais aprofundado, a que decidimos meter ombros, recorrendo acima de tudo à investigação de arquivos, que contêm abundante documentação ainda não explorada, a partir da qual se

33 Silbert, 1968: 17.

34 Nuno Monteiro considera a repressão miguelista na comarca de Vila Real, que atingira quase

um milhar de pronunciados liberais, como “a mais intensa perseguição política da História Contemporânea portuguesa” (1985: 85).

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poderá confrontar a leitura dos factos estabelecida pela historiografia relativa a esta época.

O vasto núcleo arquivístico da Intendência-Geral da Polícia revelou-se essencial, destacando-se a assídua correspondência trocada com os juízes de fora e os corregedores das comarcas de Trás-os-Montes, que além de abranger todo o período considerado, nos oferece um retrato bastante rico, não apenas dos eventos políticos, mas também da vida quotidiana local.

Os núcleos documentais do Ministério do Reino, do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça e o Arquivo Histórico Parlamentar, este sobretudo quanto ao período vintista, constituíram igualmente fontes inesgotáveis para o objecto deste trabalho.

A consulta da documentação do Arquivo Histórico Militar, tanto no que se refere aos processos individuais dos oficiais, como aos mapas e livros-mestres dos corpos e à correspondência das autoridades militares, revelou-se imprescindível para o estudo de uma época marcada por elevada conflitualidade, que veio a culminar numa guerra civil.

Recorremos igualmente aos dois arquivos distritais de Trás-os-Montes e a dois arquivos municipais, onde colhemos informações importantes, para um melhor conhecimento da actividade municipal e da vida local.

A imprensa periódica, que então se afirma com grande pujança, representa um complemento indispensável das fontes oficiais, no seu duplo papel de testemunha e participante no desenrolar dos acontecimentos.

A par das memórias mais conhecidas, legadas pelos principais protagonistas do conflito, recorremos também a registos memorialísticos inéditos ou pouco divulgados, escritos por pessoas de menor destaque, que nos oferecem por vezes uma perspectiva mais distanciada.

Como o próprio subtítulo deste trabalho indica, propomo-nos analisar o comportamento político do “povo” e das “elites”, conceitos imprecisos e discutíveis como todas as categorizações sociais.

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Não obstante, a própria sociedade da época distinguia claramente dois grandes grupos, em que os indivíduos se integravam, consoante exerciam ou não trabalho manual. Deste modo, em cada concelho, deparamos com um grupo restrito, que não se dedicando a trabalhos “mecânicos”, desempenhava funções de liderança, tanto nos cargos camarários, como no comando das ordenanças, os quais no essencial constituíam as elites locais35. Nesse sentido,

procuraremos conhecer a atitude dessas elites ao longo do processo que conduziu à instauração do regime liberal e de que forma se cindiram entre as forças políticas em conflito.

Mais difícil se torna analisar o comportamento do “povo”, uma grande massa heterogénea, que integrava, em última análise, todos os que trabalhavam manualmente, o que desde logo os excluía da “governança”.

O predomínio esmagador das fontes oficiais e dos testemunhos de pessoas letradas, em geral com uma visão preconceituosa em relação à imensa massa popular analfabeta, constitui uma dificuldade quase intransponível. Rejeitando a visão clássica, que encara o povo como uma entidade passiva e inconsciente, cujas acções são determinadas por outros, devido ao seu analfabetismo e fanatismo religioso, procuraremos avaliar de que forma as mensagens políticas foram recebidas e em que medida se poderá falar de “politização”. Assim, haverá que examinar o relacionamento entre o povo e as elites e em que medida o poder de que estas dispõem permite condicionar os comportamentos políticos, nomeadamente através das ordenanças.

Tendo optado por um estudo de âmbito regional, tal exige uma articulação, nem sempre fácil, com o que ocorria a nível nacional, pelo que procuraremos estabelecer comparações e apontar especificidades. Deste modo, dedicaremos especial atenção às províncias vizinhas, em especial às zonas confinantes com

35 Devendo, contudo, levar-se em conta que as casas mais ricas se escusavam, por vezes, a

desempenhar cargos municipais, mesmo em concelhos importantes. Também nos pequenos concelhos, as elites locais resistiam, por vezes, a integrar as instituições camarárias, que nada acrescentavam em termos de prestígio social. Ver Nuno Monteiro (1997: 335-368).

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Trás-os-Montes, com destaque para as povoações beirãs da margem esquerda do Douro.

Propondo-nos estudar a revolução liberal, concluiremos a nossa análise com a derrota miguelista em 1834, deixando de fora a instauração do regime liberal e as resistências que suscitou. Não deixaremos, porém, de fazer algumas incursões nessa época, especialmente para averiguarmos o destino subsequente de algumas figuras, que preponderaram no período anterior.

Iniciando embora este trabalho com a revolução de 1820, torna-se indispensável uma digressão introdutória sobre a situação da província nas vésperas daquele acontecimento, dentro do que o actual estado da investigação sobre Trás-os-Montes permite avançar.

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PARTE I – TRÁS-OS-MONTES NAS VÉSPERAS DA REVOLUÇÃO

DE 1820

Cap. 1: A Terra e as Gentes

“ Mergulhado no isolamento das suas montanhas e vales profundos, privado de estradas e caminhos acessíveis, à margem da circulação que animava o litoral do País, de natureza rude, clima excessivo, solo em regra pouco fértil, habitado por uma grei rural que, mantendo uma tradição comunalista vivaz, praticava uma agricultura primitiva e criava os seus gados, bastando-se a si própria, Trás-os-Montes oferece desde cedo uma fisionomia peculiar que o distingue das outras regiões de Portugal”

Esta excelente descrição, da autoria do geógrafo transmontano Vergílio Taborda, fixa de uma forma impressiva os traços geralmente associados à província de Trás-os-Montes36. A própria denominação da província, que desde

os séculos XIV e XV surge designada como “aquém dos montes” (1355, 1396), “tralos montes” (1387, 1460) ou “tralos montes e riba de tâmega” (1435), a individualiza como uma terra distante e montanhosa.

No entanto, sob a aparente uniformidade, que os planaltos e as altas montanhas lhe conferem, descobre-se uma terra de profundos contrastes, tanto quanto às condições geográficas de solo, relevo e clima, como aos factores de ordem humana: a actividade económica, a organização social e as práticas culturais da população.

Da unidade histórica constituída pela província de Trás-os-Montes, destaca-se com nitidez e de certo modo autonomiza-destaca-se a região do Alto Douro37,

correspondente à parte do vale do Douro e dos vales terminais de alguns dos seus afluentes, onde se produz o vinho do Porto38. Embora já se usasse

anteriormente, aquela denominação tornou-se oficial com a criação em 1756 da

36 Vergílio Taborda, 1932: 1.

37 Essa autonomização está implícita na denominação “Trás-os-Montes e Alto Douro”, adoptada

na reforma administrativa de 1936 e ainda hoje bastante divulgada.

38 O Alto Douro abrange também parte da margem esquerda do Douro, que integra os actuais

distritos de Viseu e da Guarda. Embora não nos ocupemos especificamente daquela zona, fora da província de Trás-os-Montes na época, não deixaremos de lhe fazer numerosas referências, dada a profunda afinidade e interpenetração entre as povoações das duas margens do Douro.

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Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, à qual adiante nos referiremos abreviadamente por Companhia.

Enquanto o limite ocidental do Alto Douro sempre se situou junto à povoação de Barqueiros, o oriental variou à medida que a cultura da vinha se foi expandindo para montante. Se na época pombalina o Alto Douro não passava do rio Pinhão, no reinado de D. Maria I já chegava ao Tua, atingindo a fronteira somente em princípios do século XX, através das demarcações de 1907 e 1908.

Não obstante a unidade que a cultura da vinha lhe confere, podem distinguir-se no Alto Douro três sub-regiões: o Douro Superior, entre a fronteira e o Tua, o Cima-Corgo, entre o Tua e o Corgo e o Baixo-Corgo, entre este rio e a povoação de Barqueiros. Porém, na época de que nos ocupamos, a cultura da vinha apenas dava os primeiros passos no Douro Superior, pelo que o Alto Douro se resumia então essencialmente ao Baixo-Corgo e ao Cima-Corgo39.

Um solo formado por xistos bastante permeáveis, terrenos fortemente inclinados, com uma excelente exposição aos raios solares e um clima quente e seco de tipo mediterrânico, conferem ao Alto Douro uma inegável especificidade, que encontra o traço individualizador decisivo na cultura da vinha e nas profundas alterações que esta acarretou à paisagem, à composição social das povoações e ao sistema de relações e quadros culturais.

Na verdade, a expansão da vinha levou ao abandono crescente da criação de gado, da produção cerealífera e de outras culturas, como o linho e o sumagre, alterando os laços de solidariedade tradicionais, em consequência da especialização e mercantilização da agricultura.

O vinho impôs transformações radicais: alterou as formas de povoamento, fazendo surgir casais e quintas dispersas pelas encostas vinhateiras, criando e desenvolvendo povoados ribeirinhos; acentuou a proletarização e a mobilidade

39 Preferimos utilizar “Cima Corgo”, em vez de “Alto Corgo”, por ser a terminologia empregada

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das gentes; fomentou a circulação de produtos e capitais com o Porto, que passa a constituir o centro económico dominante da região duriense40.

Nada de mais contrastante com a rudeza e o isolamento das terras altas do norte transmontano, de solo granítico pobre, excepto nos vales, clima rigoroso de longos Invernos frios e Verões quentes, onde domina uma economia agro-pastoril de mera subsistência. Uma agricultura quase limitada ao centeio, à castanha e mais tarde à batata e uma população pouco densa, fechada às influências exteriores, representam os traços gerais da região norte transmontana, apelidada de “Terra Fria”.

No entanto, como Vergílio Taborda apontou, tal designação não se pode aplicar com propriedade ao conjunto da região norte transmontana, que engloba diversas áreas de “terra quente”41. Na verdade, as características do

relevo, constituído por altas montanhas e uma sucessão de planaltos, cortados pela rede de vales profundos do Douro e dos seus afluentes, determinam diferenças de clima e de vegetação, que conferem grande variedade à província42.

Deste modo, por toda a parte surgem enclaves de terra quente em terra fria e vice-versa, expressões com um alcance local, referido às diferenças resultantes do relevo, da exposição ao sol e aos ventos e consequentemente ao clima e à vida vegetal, que coexistem por vezes no espaço limitado de um concelho ou até de uma freguesia43. Por isso, a par do binómio “terra fria ”/ “terra quente”, o

40 Ver Gaspar Martins Pereira, 1987: 14.

41Como as que se situam na bacia média do Tua, compreendendo Mirandela, parte dos

concelhos de Valpaços e Murça, bem como a zona mais baixa de Alfândega da Fé, onde a vinha e a oliveira assumem um lugar de relevo, graças ao clima quente e seco, semelhante ao duriense (Taborda, 1932: 65-66 e 113-114).

42Admiravelmente retratada por Miguel Torga: “ Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a

montanhas. Nos intervalos, apertados entre os lapedos, rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta aridez. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Veigas que alegram Chaves, Vila Pouca, Vilariça, Mirandela, Bragança e Vinhais. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista” (1993: 31).

43O povo distinguia as terras quentes das frias, consoante dominasse a oliveira ou o castanheiro

e a batata. Mirandela, Vila Flor, Alfândega da Fé, Carrazeda de Anciães, Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta integravam-se na terra quente, enquanto Vinhais, Bragança, Vimioso, Miranda

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povo usa também as expressões “serra” ou “montanha”, contrapondo-as a “vale” ou “ribeira”44. Por todas estas razões, Vergílio Taborda propôs o abandono da

expressão “terra fria”, comummente usada pelos agrónomos para designar a região norte transmontana, preferindo chamar-lhe “Alto Trás-os-Montes”.

Planalto e montanha, de um lado, vales e terras baixas, por outro, tendem a diferenciar-se não apenas pelas respectivas produções agrícolas, mas também pela estrutura social e pelas práticas culturais dominantes45.

A montanha representa quase sempre um espaço mais pobre, mais isolado, mais comunitário e menos desigual, onde velhos ritos e costumes assumem um papel primordial. O próprio tempo é diferente na montanha, marcado pela lenta germinação das plantas46 e pelos longos Invernos de frio e de neve, uma

época de repouso quase absoluto, em que se celebram festas solsticiais vindas do fundo dos tempos.

Ao longo do extremo norte transmontano, entre o Minho e a raia oriental com Espanha, deparamos com uma sucessão de montanhas e planaltos, cortados por vales cavados pelos rios, habitados por uma população com fortes traços comuns, conferidos pela mesma matriz agro-pastoril, traduzida em rebanhos, fornos, moinhos e outros equipamentos comunitários, geridos por assembleias de vizinhos, que decidem os assuntos locais. Não obstante, a cada uma dessas áreas de planalto ou de montanha correspondem gentes com identidades bem vincadas, expressas em denominações por que se conhecem e são conhecidos, como “barrosões”, “mirandeses” ou “lombardeses”47.

faziam parte da terra fria. Mogadouro, Macedo de Cavaleiros, Chaves, Alijó, Sabrosa tinham terras incluídas nas duas zonas (MAH, X: 643-644; Vasconcelos, 1980, III: 109-116).

44No Barroso, entende-se por “ribeira” qualquer região produtora de vinho e de mimos vegetais

(Vasconcelos, 1980, III: 128-131 e 201).

45Como refere Belarmino Afonso, por todo o Trás-os-Montes, o vale ou a montanha geraram

“formas específicas de estar na vida. São matriz onde o homem deixa as sementes que irão gerar e caracterizar determinada cultura. Formas linguísticas próprias de Vinhais ou Miranda do Douro, correspondem a um habitat específico” (1989: 47).

46A ceifa fazia-se, na região de Mirandela, com antecipação de 40 dias em relação às terras mais

altas do Norte (Taborda, 1932: 65-66, 86 e 219).

47 Assim se chamam, tanto os habitantes do planalto da Lombada, como os da Lomba. Segundo

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Na transição entre o Baixo-Minho e o Trás-os-Montes mais ocidental, numa zona de altas montanhas, o Barroso é desde longa data o berço de uma identidade bem característica. A criação de gado, sobretudo bovino, favorecida pelos extensos pastos naturais, constitui a actividade principal, já que o solo pobre e o clima rigoroso limitam a agricultura a uma escassa produção de centeio, a que mais tarde se juntaram o milho e a batata. O “boi do povo”, as “chegas de bois” e os telhados de colmo representam traços inconfundíveis da cultura das gentes do Barroso, que conservaram até tempos recentes importantes elementos de organização de trabalho de feição comunitária.

Caminhando para oriente até ao extremo nordeste, sucedem-se os planaltos montanhosos, habitados por populações de vincada identidade. A Lomba, no concelho de Vinhais, a Lombada nas cercanias raianas de Bragança e a terra de Miranda apresentam o mesmo fundo comum agro-pastoril de base comunitária, marcado por um conjunto de festividades próprias, com destaque para a “festa dos rapazes”, com as suas máscaras e rituais característicos. A terra de Miranda, com a dança dos “paulitos” e um idioma próprio, representa um caso sobejamente conhecido de marcada diferenciação cultural.

Em contraste com a aspereza destas terras de montanha, deparamos com um conjunto de vales férteis e de clima ameno, como os de Chaves, de Mirandela e da Vilariça48. A cultura da vinha e da oliveira tornam-se dominantes, a par do

linho cânhamo e de toda a espécie de fruta e produtos hortícolas. À maior riqueza agrícola corresponde uma maior desigualdade social, traduzida em propriedades de certa dimensão, detidas por morgados e fidalgos poderosos, como os Távoras no vale de Mirandela. A fertilidade dos vales, mais acessíveis e abertos à influência exterior, incentiva o individualismo agrário e o recuo da organização comunitária. Os traços identitários da população dos vales tendem a esbater-se, de tal modo que não existem nomes para designar os seus habitantes, ao contrário do que sucede na montanha.

influência da palavra “lombardo”, conhecida do povo, para designar certas espécies de couves e de touros, além de referências ao duque da Lombardia em romances populares (1980, III: 162).

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Contudo, apesar das suas diferenças, povos de montanha e de vale constituem mundos interligados e complementares, onde os homens se influenciam mutuamente, trocando produtos e partilhando um mesmo fundo cultural.

De facto, à excepção da zona ocidental, correspondente à bacia média do Tâmega, onde as povoações se dispersam como no Minho, em todo o Alto Trás-os-Montes predomina um povoamento de tipo aglomerado, que fomenta a coesão interna e reforça a identidade das terras49. Deste modo, o lugar

identitário em Trás-os-Montes não é a freguesia, como no Minho, em que as manifestações de campanilismo congregam os indivíduos de diferentes lugares da mesma e a exogamia só é considerada fora dos seus limites, mas sim a povoação, por vezes com grandes rivalidades com a sede de freguesia.

Por toda a província encontramos o mesmo tipo de manifestações religiosas, em que se mistura o sagrado com o profano, refeições comunitárias e um conjunto de rituais contra as irregularidades do clima (a secura ou a chuva excessiva, as trovoadas e as geadas devastadoras), que lançavam a fome e a mortandade entre a população pobre.

Pouco visíveis, mas sempre presentes, também os cristãos-novos conferem uma feição peculiar às terras transmontanas, pela posição que assumem, sobretudo no comércio, na indústria e como rendeiros da cobrança de foros e tributos. A expulsão dos judeus de Espanha levara à fixação de um grande número nas terras fronteiriças de Trás-os-Montes, que se vieram juntar aos que já ali existiam. A repressão inquisitorial que se seguiu provocou a fuga de um número considerável de judeus transmontanos, alguns dos quais se celebrizaram na Europa do século XVIII50. O fim da perseguição inquisitorial e

49 Vergílio Taborda explica o povoamento aglomerado, em função do clima inóspito e do solo

montanhoso pouco fértil, que dificultava a exploração isolada. Também o sistema de aforamentos colectivos terá contribuído para aquele tipo de povoamento (1932: 200-202).

50Henrique (depois Jacob) de Castro Sarmento nasceu em Bragança em 1691. Formado em

medicina em Coimbra, fixou-se em Inglaterra, onde se destacou pelos seus estudos médicos e filosóficos. Inventou um dos vários preparados farmacêuticos à base de quinino, então designados por “Água de Inglaterra”, utilizados no combate ao paludismo. Jacob Rodrigues

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da discriminação dos cristãos-novos, determinadas por Pombal, permitiu-lhes consolidar a sua posição económica, franqueando-lhes o caminho para o exercício de cargos locais e para a nobilitação, o que despertou reacções anti-semitas51. Como veremos, durante as invasões francesas, desencadearam-se

motins contra os judeus de Bragança, que controlavam grande parte da actividade económica da cidade.

Com uma longa fronteira com Espanha, grande parte da qual de raia seca, não se pode entender Trás-os-Montes sem considerar o relacionamento com o país vizinho.

Correndo entre penedias escarpadas, numa torrente impetuosa, o Douro, que serve de fronteira a leste, representava um obstáculo de vulto à comunicação transfronteiriça, uma vez que não existia ali qualquer ponte e rareavam as barcas de passagem52. Tal não impediu um activo comércio e um

estreito relacionamento, por exemplo, entre Miranda e as terras vizinhas de Leão, bem como de Freixo de Espada à Cinta com as povoações raianas próximas de Salamanca, cuja universidade, frequentada por numerosos estudantes transmontanos, exerceu uma marcada influência53.

Já a raia seca do norte e nordeste representava uma zona de fácil travessia e mesmo de indefinição fronteiriça, como sucedia no couto misto de Rubiães, Santiago e Meãos, que pertenceu simultaneamente aos dois países até ao tratado de limites de 186454.

Pereira (1715-1780), filho de judeus transmontanos, notabilizou-se em França pela invenção de novos métodos de ensino dos surdos-mudos (MAH, V: XCVII-CIII; Salgueiro, 2003).

51Em 1756, o juiz do lugar de Sendim, de Miranda, pediu que se reafirmasse que “em tempo

algum” podiam ser admitidas naquele cargo “pessoas de infecta nação” (DP, Mç. 10, 95 e Mç. 17, 126). Sobre a hostilidade que aquelas medidas suscitaram em terras como Vila Nova de Foz Côa, onde em 1777 se registou uma amotinação contra os judeus, ver Tengarrinha (1994, I: 169).

52 Por isso, em locais, como Vilarinho dos Galegos, ainda há pouco tempo se atravessava o rio,

através de um arrepiante sistema de cordas suspensas a grande altura sobre o Douro, ver (PAM, XI: 1358-1360).

53Angel de Dios contabiliza cerca de 10.000 estudantes portugueses, grande parte dos quais

transmontanos, matriculados entre 1580 e 1640 (1984: 569).

54Estas povoações ficaram a pertencer a Espanha, tendo Portugal recebido os povos

“promíscuos” de Soutelinho, Cambedo e Lama de Arcos, que eram atravessados pela linha de fronteira. Os moradores do couto misto gozavam de isenção de serviço militar, de direitos

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