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Gil Vicente – Humanista?

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Academic year: 2021

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GIL VICENTE

– HUMANISTA?

GIL VICENTE

– HUMANIST?

Francisco Maciel Silveira

Universidade de São Paulo

Resumo: Discute-se nessa intervenção o

fato de os manuais de história literária portuguesa considerarem Gil Vicente humanista, sobretudo, o que me sempre intrigou foi Gil Vicente como Humanista. Ainda mais considerando que escreveu uma Exortação à Guerra, os autos da

Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória. Em seguida a intervenção

discutirá A Farsa de Inês Pereira, sob o título Inês a que caiu do cavalo e deu com

os burros n água. Construída com base no

dito popular mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube, a peça será construída sobre 3 elementos: eu, experiência, sociedade, defendendo a imobilidade da estrutura medieval da sociedade em Portugal do século XVI.

Palavras-chave: Humanismo; Gil

Vicente; Século XVI

Abstract: This paper will discuss the fact

that disturbs me. The fact of considering, Gil Vicente as humanist, above all when everybody forgets he wrote Exortação a

Guerra e o Auto da Barca do Inferno, do Purgatório e da Glória, three plays the

final judgement. The intervention will then discuss Gil Vicente´s A farsa de Inês

Pereira under the title Inês a que caiu do cavalo e deu com os burros n´água. Built upon the dictum mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube, the play will be built above three elements - I, Experience, Society, defending imobility of medieval structure of Society in Portugal of sixteenth century.

Keywords: Humanism; Gil Vicente;

Century XVI.

Sempre me intrigaram os manuais de história literária portuguesa ao colocarem Gil Vicente como humanista. Ainda mais considerando que Gil Vicente escreveu uma Exortação a Guerra em tudo contrário ao pacifismo Humanista, a fim de compreendermos o dilema Humanismo/Igreja em que Gilviveu.

Dedicada a D. Manuel, aquando da partida para Azamor do Duque de Bragança e Guimarães, em 1513, Exortação à Guerra, tendo Deus por capitão [sic], convoca Aquiles, Aníbal (puxando o coro da exortação), Heitor, Cipião para dirigirem-se às damas da corte que deveriam doar suas joias e rendas para o triunfo de Portugal contra a moirama.

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Abre a cena um Clérigo nigromante, logo abordado pelos diabos Zebron e Danor. Em seguida surge Policena com profecias de casamento entre nobres e descrição do bom galante. Segue-se Pantasileia, rainha das Amazonas.

Sabe-se que o Humanismo se opôs ao teocentrismo da cultura medieval, que atacou a escolástica, sua mentalidade e a interpretação alegórica dos textos. Sabe-se também que procurou deSabe-senterrar a genuinidade do magistério de Cristo e sempre criticou a hierarquia feudal. Em Portugal, a ideologia expansionista feudal e guerreira é, lembramos, umbilicalmente católica.

Quinhentos anos completa o Auto da Barca do Inferno, obrinha de devoção dedicada a D. Maria, enferma do mal que faleceu em 1517. E cujo sucesso até hoje se deve à figura do Parvo e dos demônios.

Sabe-se que, no enredo do Auto, desfilam, em procissão, diante da barca do Inferno e da barca do Anjo dez tipos sociais, personificando os sete pecados capitais. São eles luxúria, avareza, roubo, pecado contra a castidade, relaxação conventual, soberba, orgulho, arrogância e vaidade A título de exemplo, lembremos que o frade com mania de cortesão, a ensaiar golpes de esgrima, traz a moça Florença; afinal o hábito não faz o monge, já dizia Erasmo. Ou ainda não adianta também morrer comungado e confessado, como alega o sapateiro, ritualismos não contam no verdadeiro magistério cristão – o que soa como mais uma lição humanista.

Há também pecados sociais: usura (agiota), venalidade (corregedor), lenocínio (alcoviteira), dolo no exercício da profissão (sapateiro), relaxação na vida clerical (frade). O lenocínio está representado por Lianor Vaz, que cria meninas para os cônegos da Sé (antecipadora pedofilia eclesiástica)? A venalidade do corregedor, que, tal como certos juízes de nosso STF está apostada em facilitar solturas de presos pelas propinas (espero que assim não seja!) que recebem. O procurador, encarregado da defesa dos réus, mais preocupado com habeas corpus, também é, além do salário, acusado do recebimento de propinas, triste imagem do Brasil.

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Num braço de mar, espera-nos a barca de Caronte para a travessia final, insipiência de sua formação humanista. Trata-se obviamente do Juízo Final, quando vão a julgamento pelos mal-feitos cometidos.

Mal abre a peça, a rubrica diz tratar-se de uma prefiguração que os inimigos fazem a todas as almas humanas no ponto que per morte de seus terrestres corpos se partem.

Chamo a atenção para a palavra prefiguração, pois se trata de terminologia encontrada nos conceitos predicáveis, na Escolástica, a falar de coisas futuras, alegoricamente projetadas no futuro, afinal nada mais certo que nossa morte. Estamos diante do Juízo Final.

No desfile ante a barca do inferno passeiam o fidalgo, Dom Anrique, com sua cadeira (trono de sua tirania); o onzeneiro, que deseja retornar para recuperar seus juros; o sapateiro; o parvo (definido como Ninguém e cuja simpleza só essa lhe abastou, ou seja, não é dúplice = hipócrita); o sapateiro com suas formas; a alcoviteira, que criava meninas para os cônegos da Sé; o judeu com seu bode às costas; o corregedor; o procurador.

Naturalmente só os quatro cavaleiros de Cristo que pelejaram em África pela fé católica contra os infiéis estão livres do mal e do pecado. Acrescente-se que os cavaleiros de Cristo atuam por vontade própria, ou seja, por livre arbítrio.

Concebida como uma trilogia, não devemos amputá-la, sob o risco de não entendermos a cosmovisão vicentina. Assim prossigamos na análise das partes restantes.

O Auto da Barca do Purgatório diz claramente que nosso purgatório é feito com o suor de nosso rosto. Donde a escolha de trabalhadores como o Lavrador, a Lavradora, o Pastor menino. Estamos no âmbito de sofredora humanidade, a trilhar esse vale de lágrimas e lamentações.

Sugere-nos Gil que pela vida que levam estarão salvos, ao contrário do taful, garrido, levado pelo Diabo, a tafularia deve ser evitada por Gil. Afinal, o Gil, o curinga de Reis Vicente quer ter a simpleza do Parvo, como Bobo da Corte ou inocência do menino que será salvo, levado pelos Anjos.

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Já na Barca da Gloria, nosso Gil Vicente da Igreja revela toda sua devoção medularmente católica, pondo Cristo da ressurreição a repartir os remos das chagas, salvando todos. Duque, Rei, Imperador, Bispo, Arcebispo, Cardeal, Papa, tudo acompanhado por lições (6) e responsos (6), tudo muito doutrinal. Todos salvos, com devidas lições, além de beatos responsos. Quatro são os anjos encarregados da salvação, com cinco remos figurando as cinco chagas de Cristo. Verdadeiro deus ex machina ao final, quando se despem de suas máscaras sociais.

O final da trilogia explicita o cunho teocêntrico da lição vicentina. Afinal, Deus assim o quer, assim reza o breviário, na Páscoa.

Outro final desejaríamos para a trilogia das Barcas. Mas Gil Vicente, como Curinga de Reis e da Igreja, misturando humanismo e teocentrismo, sem conseguir desvincular-se de sua formação beata nos impinge tal moralidade. Ao cabo, obra de muita devoção.

A moralidade inscrita na trilogia das barcas é óbvia: devemos nos descartar da materialidade dos corpos, assim como do peso dos pecados, esses sim responsáveis por nossa condenação.

Aqui fico eu com sonoro Laus Deo. Sem mais fôlego da inspiração, por aqui fico.

Peço então a paciência dos leitores para essa incursão na farsa Inês, a que caiu do cavalo e deu com os burros n água.

Representada em , tendo na assistência o muito alto & mui poderoso Rei D. João o terceiro do nome em Portugal , a Farsa de Inês Pereira é, a meu ver, a mais bem construída peça de Gil Vicente. Bem estruturada, apresenta uma intriga com começo, meio e fim, fugindo, assim, do esquema de procissão , de sketches, comumente explorado por Gil Vicente.

A peça constrói-se a partir do ditado mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube , dado ao dramaturgo por certos homens de bom saber que duvidavam se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores .

Não cabe aqui discutir se os tais homens de bom saber , influenciados pelas, em Portugal, incipientes novidades clássicas trazidas pela redescoberta

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humanista dos greco-latinos, estavam a exigir de Gil Vicente uma peça mais orgânica, com maior unidade de ação em seu desenvolvimento. Assinale-se, entretanto, que por pouco Gil Vicente não transforma sua farsa num exemplo das unidades clássicas de ação, tempo e espaço.

A rigor, falta a essa peça apenas a unidade de tempo1. A de espaço reside em tudo transcorrer e evoluir na casa de Inês. A de ação está garantida pelo conflito que, não obstante dividido em três cenas, mostra-nos a evolução de Inês que, partindo do sonho casamenteiro, desengana-se com a experiência de mal-casada e desforra-se da sabedoria popular e social através do adultério.

Um exame mais detido do rifão dado a Gil Vicente ⎯ mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube ⎯ há de revelar que nele já estão contidas as três cenas, construídas, sucessivamente, a partir de cada um dos três elementos estruturadores do conflito: eu, experiência, sociedade.

Observe-se, primeiramente, que se trata de um ditado popular, ou seja, a cristalização da sabedoria social, coletiva. Uma verdade que só se cristaliza e entroniza através da experiência.

Note-se, em seguida, que há uma individualidade, um eu, que, transparente no pronome oblíquo (me) e oculta na desinência verbal de primeira pessoa, enuncia o ditado. Registre-se o teor desiderativo da frase (o verbo querer, o presente do subjuntivo). Há desejo e certa resignação no tom desiderativo. A opção, que nos fala da troca de um valor (cavalo) por outro (asno), só é possível através da experiência. Por fim, o ditado denuncia o acatamento do ditame social e coletivo.

Temos aí os três elementos estruturadores do conflito: Eu, Experiência, Sociedade, correspondendo, respectivamente, a cada uma das cenas (entenda-se por cena um momento da ação com começo, meio e fim.)

A primeira cena, correspondente ao Eu, compõe-se de seis quadros. (Numa peça teatral o quadro, segmento de um todo conflitual que é a cena, se marca usualmente pela entrada ou saída de uma personagem). Vai de Inês, sozinha a

1. Ah, se a tivesse desbancaria, aristotelicamente, a primazia de Sá-de-Miranda, aclamado, com suas peças soporíferas, como introdutor da comédia clássica em Portugal.

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lavrar, até a saída de Pero Marques, parvo vilãozinho rejeitado em seu pedido de casamento. É a cena em que um eu sonhador e fantasioso pretende um marido não só inadequado à sua posição social de filha de uma mulher de baixa sorte , como também contrário às expectativas da sabedoria coletiva. Daí o antagonismo que lhe movem a mãe e Lianor Vaz, mulheres experientes, conhecedoras da vida e das exigências estamentais. As duas se opõem a Inês, apresentando razões proferidas quase sempre através de ditados, pois ambas são porta-vozes dessa sabedoria social e coletiva.

A segunda cena corresponde à Experiência. Vai do sétimo quadro (novamente sozinha, Inês repõe seu sonho e teima em casar-se com homem avisado , que saiba tanger e cantar, e não com um vilãozinho até ao vigésimo primeiro. Quando, já casada com o Escudeiro que sabia tanger e cantar (um caça-dotes faminto ⎯ por fora bela viola, por dentro pão bolorento , diria minha sábia sogra ⎯), ei-la trancafiada em casa, sob a guarda do Moço, outro rascão faminto de ascensão social 2. A ilusão nutrida por Inês de ascender socialmente, casando-se com um fidalgo , fê-la cair do cavalo, ao maridar-se com um Escudeiro pé-de-chinelo. Mas também fê-la aprender a lição sobre quantos mestres são/ experiência dá lição de que a sociedade, sábia em seus ditames, tem razão , punindo quem deseja desrespeitá-la ou desobedecê-la no afã de conseguir um status acima de sua condição social. Punição também sofrida pelo Escudeiro: um reles caça-dotes que, sem o DNA aristocrático do sangue, deseja, também subvertendo a estratificação estamental da sociedade, nobilitar-se na quixotesca cavalaria em África contra os infiéis, e acaba morto: Sabei que indo/ vosso marido fugindo/ da batalha pera a vila,/ a meia légua de Arzila,/ o matou um mouro pastor . O cavalo folão, sonhado por Inês, não passava de um poltrão.

A terceira cena trata da adequação e/ou submissão do indivíduo aos padrões e às normas da Sociedade, vai do vigésimo segundo (Inês, novamente sozinha a lavrar, corrigirá seu engano: Por usar de siso mero/ asno que me leve

2. Versão masculina de Hera, a proteger, sob sete chaves, a virtude de um lar CCC (cama, cozinha capela)? Um marialva avant la lettre da Carta de guia de casados do seiscentista D. Francisco Manuel de Melo, esse Escudeiro saído da pena de Gil Vicente? Aí um tema interessante para mestrandos e doutorandos ⎯ Gil Vicente o tradutor inconsciente do inconsciente coletivo português.

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quero,/ e não cavalo folão até ao final da peça quando, montando o asno do marido, o parvo do Pero Marques, vai ela encontrar-se, regularmente, com el Ermitaño de Cupido , cio e sacio de sua sede de amor contrariado .

Note-se que, ao longo do auto, as cenas sempre iniciam com Inês sozinha, dando à ação um desenho circular que figura o cerco dos ditames e normas sociais sobre o indivíduo: um círculo (vicioso) cuja única saída (discutível porque implica a perdição de Inês estará na subversão dos valores e normas sociais.

Esse, aliás, é o significado do corrosivo final proposto por Gil Vicente. Montada no asno do marido (Pero Marques), fazendo-o entoar a cantilena dos maridos-cucos (ou chifrudos, em bom português), Inês cruzará o rio: ⎯ Passemos primeiro o rio,/ descalçai-vos . Isto é, ela passará para a margem oposta da sociedade: rédeas soltas, viverá o outro lado de sua experiência conjugal de ainda mal casada — as fugas adulterinas com ermitaño de Cupido , ironicamente apresentado como um mendicante de Amor, vítima de desenganos sentimentais que o motivaram a viver no ermo. Entenda-se: afastado de qualquer coerção social. Como se vê, o epílogo subverte o valor do ditame bom é o asno que leva , degradando-o pejorativamente. É a desforra de Inês contra a tirania das normas sociais. Mas desforra que é também a derrota de uma mulher cujos sonhos caíram do cavalo e deram com os burros n água.

Seria cômico, não fosse trágico?

A comicidade, ao contrário do que comumente se pensa, pode ser muito triste. Afinal, sua matéria, colhida na sociedade, reflete a feiúra das mazelas e vícios humanos ⎯ escreveu-o Aristóteles em sua Arte poética. Quão amarelo ou amargo pode ser o riso, ⎯ que o diga esta farsa de folgar vicentina, pois assim se fazem as coisas .

Quando assim se vão [Pero Marques e Inês] & se acaba a dita farsa de um casamento (Farsa de Inês Pereira), resta-nos a desalentada desconfiança — como diz Carlos Drummond de Andrade — de que O mundo não merece a gargalhada. Basta-lhe/ sorriso de descrença e zombaria 3.

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Aqui, bifronte à Jano, fica a face desse Curinga de Reis medievo-renascentista que foi Gil Vicente. Outro Juiz da Beira, julgue-o o leitor. Com o Humanismo que, no caso, lhe for possível. Afinal, como diz sábio e velho ditado, Se queres conhecer o vilão, põe-lhe uma vara na mão .

Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018

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