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Escrita de guerra : uma abordagem sociodiscursiva da relação entre inimigo e esforço de guerra nas correspondências e num diário íntimo durante a guerra colonial portuguesa 1961-1974

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Escrita de Guerra: uma abordagem sociodiscursiva da relação entre inimigo e esforço de guerra nas correspondências e num diário íntimo durante a guerra colonial portuguesa 1961-1974

Stefania Gatta

Orientadora: Prof.ª Doutora Rita Marquilhas

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em Linguística, na especialidade de Análise do Discurso

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS

Escrita de Guerra: uma abordagem sociodiscursiva da relação entre inimigo e esforço de guerra nas correspondências e num diário íntimo durante a guerra colonial portuguesa

1961-1974

Stefania Gatta

Orientadora: Prof.ª Doutora Rita Marquilhas

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em Linguística, na especialidade de Análise do Discurso

Júri:

Presidente: Doutora Maria Inês Pedrosa da Silva Duarte, Professora Catedrática e Membro do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Vogais: - Doutora Ana Luísa da Piedade Melro Blazer Gaspar Costa, Professora Adjunta Escola Superior de Eduçação do Instituto Politécnico de Setúbal;

- Doutora Maria Inácia Rezola Y Palacios Clemente, Professora Adjunta Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa; - Doutor Luís Nuno Valdez Faria Rodrigues, Professor Associado com Agregação ISCTE-UL-Instituto Universitário de Lisboa;

- Doutora Maria Inês Pedrosa da Silva Duarte, Professora Catedrática Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

- Doutor Carlos Alberto Marques Gouveia, Professor Associado com Agregação Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

- Doutora Maria Rita Braga Marquilhas, Professora Associada Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientadora.

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Resumo

Esta dissertação ocupa-se da análise da escrita num contexto de guerra, mais concretamente, da escrita de soldados durante a Guerra Colonial portuguesa. O material analisado é constituído por mais de dois milhares de cartas e por um diário íntimo. As cartas pertencem a seis correspondências e foram trocadas com pais, namoradas, familiares e soldados. O diário foi escrito por Etelvino da Silva Batista, soldado em 1961-1963, que o viria a publicar em 2000. Os autores são pessoas com pouca prática de escrita, muito mais acostumadas à comunicação oral. No entanto, todos contribuíram numa pequena parte para a produção de um discurso sobre a guerra, que seria muito mais amplo, veiculado por cartas, comunicados, jornais, etc., num espaço fechado e com regras. Perante um material tão diversificado, considerámos importante selecionar uma das razões mais profundas da guerra: a existência de um Inimigo. Perguntámo-nos: em que termos a presença de um Inimigo se evidencia na escrita dos soldados? Quisemos perceber, sobretudo, se a criação de um Inimigo é suficiente para manter o esforço de guerra. Para o nosso propósito, apoiámo-nos em instrumentos que pudessem esclarecer os múltiplos mecanismos que sustentam a escrita de guerra. Socorremo-nos da abordagem da pragmática linguística (Austin, Searle, Ducrot, Krieg, Charaudeau), considerando a função e o uso dos textos no contexto bélico. Adotando também a perspetiva da linguística do texto, observámos os textos nas suas hierarquias de sequências (Adam). Finalmente, já no âmbito da análise do discurso, concentrámo-nos nas representações sociais (Serge Moscovici, Doise, Jodelet e Abric) que determinam um discurso e um conhecimento (Teun Van Dijk) sobre a mesma guerra.

Palavras-chave: Cartas, diário, discurso da guerra, representações sociais, sequências textuais, Guerra Colonial.

Riassunto

L'argomento principale della tesi è l'analisi della scrittura in un contesto di guerra. Si tratta della scrittura di soldati durante la Guerra Coloniale portoghese. Il materiale analizzato è composto da più di duemila lettere e di un diario intimo. Le lettere fanno parte di 6 corrispondenze: esistono lettere inviate ai genitori, alla fidanzata, alla famiglia e ad altri soldati. Il diario è stato scritto da Etelvino da Silva Batista, soldato tra il 1961-1963 e che pubblicherà nel 2000. Parliamo, quindi, di

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persone poco abituate alla scrittura, che si muovono soprattutto nella comunicazione orale. Ciononostante, tutti hanno partecipato a un discorso sulla guerra (attraverso lettere, comunicati, giornali, ...) in uno spazio chiuso e regolamentato.

Avendo tra le mani un materiale di tale estensione abbiamo pensato che era importante risalire a una tra le ragioni più profonde della guerra: l'esistenza di un nemico. In che modo si evidenzia la presenza del nemico nella scrittura dei soldati? Ma soprattutto, la creazione di un nemico è sufficiente a mantenere lo sforzo di guerra?

Per il nostro intento, abbiamo cercato degli strumenti che potessero chiarire i multipli meccanismi che appoggiano la scrittura di guerra. Abbiamo scelto strumenti della pragmatica linguistica, considerando la funzione e l'uso dei testi nel contesto considerato. Abbiamo usato gli atti linguistici (Austin, Searle, Ducrot, Krieg, Charaudeau), la tipologia dei testi basandoci sulla teorie delle sequenze (Adam) e le rappresentazioni sociali (Serge Moscovici, Doise, Jodelet e Abric) determinanti nella costruzione del discorso e della conoscenza (Teun Van Dijk) della guerra.

Parole chiave: Lettere, diario intimo, discorso di guerra, rappresentazioni sociali, sequenze testuali, Guerra Coloniale.

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ÍNDICE GERAL

1. Introdução.………...7

1.1. Objetivos………...11

1.2. O corpus em análise………...………...…..13

1.3. Resumo do enquadramento teórico...………...19

1.4. Organização dos capítulos………...…22

2. A escrita………...25

3. A carta na história………...38

3.1. O género epistolar e o registo conversacional………...44

3.2. A correspondência e a guerra………...…...51

4. O diário………...58

4.1. O diário ao longo dos séculos………...64

5. O diário e as cartas………...72

5.1. O suporte: o diário e as cartas enquanto objetos………...74

5.2. O conteúdo: a repetição e a questão do tempo………...77

5.3. A receção: a leitura e o Outro enquanto destinatário………...84

6. O que sabemos da guerra………...87

6.1. A Guerra Colonial e seu contexto: o Portugal dos anos 60...………...104

6.2. Os três teatros de operações………...109

6.2.1. Angola………...110

6.2.2. Moçambique………...114

6.2.3. Guiné Bissau………...118

7. Enunciado, texto e discurso………...121

7.1. Os usos da linguagem enquanto ação: os enunciados………...125

7.2. Tipos de texto………...142

7.2.1. Estrutura textual das cartas e do diário: sequências narrativas e dialogais…....….146

8. Discurso e guerra...182

8.1. O contexto...182

8.2. As representações sociais...189

9. A retaguarda. Para quê este sacrifício?...194 5

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9.1 O início. Estar todos no mesmo barco…………...………...207

10. Na primeira linha. O combate………...…...216

10.1. Na primeira linha. O Inimigo………...………...233

10.1.1. Feridos e mortos...234 10.1.2. Os Prisioneiros...240 10.1.3. O Amigo...244 10.1.4. O Inimigo...……...245 11. O regresso………...253 Conclusões………....259 Bibliografia………...264 6

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1. Introdução

Come si può raccontare una vita che della morte assunse le sembianze, nascondendosi dalla vita? Non è possibile, mi son detto, forse si può

solo raccontare il dove, ma mai il come e il perché. Antonio Tabucchi, Si sta facendo sempre più tardi

Ça a débuté comme ça. Moi, j'avais jamais rien dit. Rien. Louis-Ferdinand Céline, Voyage au bout de la nuit

Ho sempre l’ossessione di essere ridotto a una epistolografia convenzionale e, ciò che è peggio del convenzionalismo, ridotto a una epistolografia convenzionalmente carceraria.

Antonio Gramsci, Lettere dal carcere

Lundi: Moi. Mardi: Moi. Mercredi: Moi. Jeudi: Moi. Witold Gombrovicz, Journal

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A caracterização mais sucinta possível do objetivo desta dissertação é a seguinte: quisemos analisar o significado social contido no discurso de várias correspondências privadas e de um diário cuja escrita decorreu no período da Guerra Colonial, travada em Angola, Moçambique e Guiné Bissau entre 1961 e 1974. A guerra abre um espaço à escrita para onde convergem elementos de vária natureza, e foi nesse espaço que nos fixámos, examinando o seu interesse histórico, linguístico e cultural.

As cartas e os diários de gente comum são textos muitas vezes adjetivados de secundários, menores, borderline, convencionais, híbridos, polimorfos, um leque de rótulos que se tornam mais opacos do que elucidativos. No entanto, são textos que conseguem captar o interesse de estudiosos de vários campos do conhecimento, como antropólogos, linguistas, sociólogos, historiadores e psicólogos, enfim, todos os que concordam em reconhecer que as histórias de vida constituem fontes de conhecimento ímpares. Pela nossa parte, quisemos abordá-los numa perspetiva sociodiscursiva, interrogando o que estes textos nos dizem, explicitamente e implicitamente, sobre a relação dos respetivos autores com a guerra, por um lado, e com a escrita quotidiana, por outro. Interrogámo-los, por conseguinte, quanto às estratégias discursivas que testemunham. São propostas de abordagem que julgamos bem espelhadas nas quatro citações que abrem o nosso trabalho e que nos sugerem as seguintes observações preliminares:

• O contexto é inseparável da produção e receção dos enunciados, desdobrando-se em componentes textuais, sociais e cognitivas. Ora num contexto onde a disciplina — no sentido do comportamento disciplinado e controlado do soldado — exerce um protagonismo essencial, a escrita de um diário ou de cartas é a concretização de um espaço de liberdade? E qual é a liberdade que o indivíduo consegue atingir e explicitar enquanto protagonista de um acontecimento coletivo como a guerra?

• Reconhecendo ainda a importância do contexto, podemos falar de uma escrita convencionalmente

guerreira, partilhando a inquietude de Gramsci em relação à sua escrita convencionalmente carcerária? Podemos falar de uma escrita de guerra, com os seus tópicos, os seus scripts? Existe

um 'cânone' da escrita de guerra?

• Qual é o lugar do 'eu' na escrita de um diário de guerra? Estamos realmente perante uma escrita íntima? Confirma-se a provocação de Gombrovicz, segundo o qual o 'eu' é o único e repetitivo tema do dia-a-dia? Como se relaciona externamente o 'eu' de uma escrita individual, mas ao mesmo

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tempo coletiva, já que a guerra constitui a razão da sua existência?

• 'Moi, j'avais jamais rien dit. Rien'. Com essas simples palavras, Louis-Ferdinand Céline abria a cortina sobre o mundo aterrador da 1 ª Guerra Mundial. Começava o testemunho por parte de quem fez a guerra no terreno, de quem efetivamente combateu e que, nas palavras de Rui Azevedo de Teixeira, está representado na 'ponta das setas dos mapas do Estado-Maior' (Teixeira 2013, p. 137). Também os autores do nosso corpus nada tinham deixado dito, no sentido em que tinham vivido no mundo direto e fluido da comunicação oral, e é muito provável que, sem a guerra, deles não tivéssemos conservado nenhum documento escrito. Da mesma maneira que o livro Viagem ao fim

da noite revelou a Grande Guerra através do prisma do seu autor, as cartas e o diário são

documentos que integram a ponderosa textualidade originada pela guerra.

Foram estas as reflexões que serviram de ponto de partida para o nosso trabalho. A riqueza e a quantidade de material disponível impuseram, depois, a concentração temática na figura do Inimigo. Tal escolha justifica-se por várias razões: em primeiro lugar, o Inimigo configura-se como um elo que liga milhares de pessoas de diferentes proveniências culturais, sociais e económicas, veiculando uma adesão coletiva enquanto ameaça a uma ordem conhecida, reconhecida e partilhada. Em segundo lugar, o Inimigo, enquanto ameaça, é um recurso para o reforço da identidade. Num contexto de guerra, essa identidade coincide sobretudo com uma identidade nacional, baseada em crenças, representações e valores, recuperados principalmente de uma memória que a propaganda procura manipular de maneira hábil, evitando contradições e possíveis desmentidos. Em terceiro lugar, e muito obviamente, se bem que obrigatoriamente, tem de se reconhecer que sem Inimigo não há guerra. Por último, na guerrilha e contra-guerrilha, tão definidoras da Guerra Colonial, o mais difícil não é o combate mas sim encontrar o Inimigo. Impõe-se, portanto, a questão da 'invisibilidade' do Inimigo e das suas consequências na relação de alteridade no seio do grupo e no entendimento da guerra. Daqui o nosso interesse em perceber como a figura do Inimigo encaixa no esforço de guerra entre o início e o fim de cada comissão individual e como vai constituir a raison d’être da guerra.

O nosso corpus de análise é constituído por cartas e por um diário, testemunhos do discurso produzido pela gente comum durante a Guerra Colonial. Os autores (e alguns destinatários) eram, à época, jovens que deram 2 anos da sua vida, e num caso a própria vida, e aceitaram a probabilidade de uma morte violenta como sacrifício pedido na defesa da Paz e da Ordem. Trata-se de um material que apresenta interesse histórico, linguístico e cultural, permitindo a compreensão do homem no plano das representações sociais sobre a guerra, suas regras e valores. Veremos a vários níveis, por

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conseguinte, como as produções textuais originadas em tempos de guerra criam, através da aceitação ou do afastamento das representações sociais, uma interação que nos permite entender atitudes individuais inscritas em eventos coletivos.

Queremos lembrar que todos os textos foram transcritos respeitando a ortografia e a sintaxe dos originais.

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1.1. Objetivos

Postulamos que estamos perante uma escrita de necessidade, obedecendo a parâmetros tanto linguísticos como extralinguísticos. Depois de estabelecidos tais parâmetros, vamos perseguir o objetivo de verificar quais são, no corpus, as estratégias discursivas que se utilizam para uma representação muito específica, a representação do Outro, concretizado na figura central do Inimigo. Vamos olhar para o léxico e para a organização e conteúdo das proposições dentro dos textos. Interessa-nos o léxico associado à identificação e atributos do Outro e o conteúdo das proposições que tematizam esse Outro. Interessa-nos, portanto, saber de que maneira o uso da linguagem sustenta a reprodução, conservação e divulgação de um conhecimento coletivo: o das representações sociais face à noção de Outro, que no nosso trabalho incorpora os traços do Inimigo.

Admitindo que as representações sociais estão na base da construção de ideologias e de conhecimento de um grupo, a guerra, enquanto fenómeno coletivo, representa um contexto privilegiado para estabelecer e manter um discurso orientado essencialmente para a distinção entre Nós e o Outro. Mas temos de perguntar-nos em que termos é mantida esta distinção, se ela é essencial para legitimar o esforço de guerra e se vai apoiar e manter tal esforço ao longo dos dois anos de cada comissão individual. Para isso, temos de apurar se as representações sociais, inseparáveis das guerras, inseparáveis de uma 'narrativa' de guerra, criadas e partilhadas pelo discurso, fixam mesmo as raízes mais profundas dessa mesma guerra, tornando-as difíceis ou mesmo impossíveis de eliminar.

Por outro lado, é também na prática discursiva sobre a guerra que se devem procurar as possíveis dissensões, dúvidas ou desânimo que a mesma guerra engendra. A existência de um discurso 'dominante', divulgado essencialmente pela propaganda, cria teoricamente os instrumentos que permitem aos grupos 'dominados' desafiar ou resistir discursivamente ao controlo. Sendo assim, é na mudança de representações sociais que temos que encontrar as modalidades de dissensão?

Finalmente, constituindo a guerra uma situação extrema, onde a probabilidade de perder a própria vida é alta, ela cria condições para a produção de um discurso de si e do outro que garante fenómenos de adesão, facto que exige a definição da identidade própria e alheia. Longe de ser inocente, essa produção discursiva está altamente centrada na figura do Inimigo, ou pelo menos parece em algumas fases centrada nele. E dado o número relevante de guerras que foram combatidas, e que hoje em dia ainda se combatem, parece ainda interessante estudar as relações que se estabelecem entre as guerras e a manutenção de ideologias como a do racismo ou a do sexismo.

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Assim, e considerando a guerra na sua dimensão cultural, podemos partilhar a teoria de M. R. Davie (cit. in Audoin-Rouzeau 2008, p. 173) que considera a guerra uma questão identitária:

Aussi longtemps que l'ethnocentrisme aura le dessus, la paix sera l'exception et la guerre sera la règle.

Concluímos sintetizando o objetivo do nosso trabalho na seguinte pergunta:

Construir e partilhar um Inimigo é essencial para manter o esforço de guerra, tornando-se na sua 'raison d’être' ou na sua motivação mais profunda?

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1.2. O corpus em análise

O corpus escolhido para o nosso trabalho pertence às chamadas 'histórias de vida'. É um material que, pela sua beleza e singularidade, nos convenceu de que valia a pena consagrar-lhe afeição, respeito e tempo de reflexão. Estamos cientes de que também apresenta limitações, já que as correspondências de só alguns militares e o diário de um só soldado, Etelvino da Silva Batista, não soam exatamente como as dos mais de 800.000 soldados que combateram na Guerra Colonial nem representam todas as opiniões, medos, desconfortos, alegrias dos que participaram nesse momento dramático da história portuguesa. E tal consideração é válida tanto para o lado dos que combateram como para o dos que ficaram e dedicaram anos da própria vida a dar conforto, esperança e coragem aos filhos, maridos, amigos...

Os soldados falam da sua guerra, como escrevia um camarada paraquedista a J. F.:

Nacala City 27-1-68 [carta recebida por J. F. de um camarada] «Tenho a dizer-te que já fiz a minha guerra...».

O próprio J. F., ao mudar de assunto numa carta, escreve estas palavras à mãe, que indicam como a guerra pode ser encarada pelo soldado como um evento da biografia pessoal:

Beira Moçambique 1966 Junho [carta enviada por J. F. à mãe] «Mas fechando a porta há minha guerra...».

É a experiência de cada um deles, na sua individualidade e nas suas emoções, que lemos nas cartas que mandaram para a família, a namorada ou outros soldados. Mas não podemos esquecer que essa subjetividade se encaixa, ocorre e tem origem num movimento coletivo. Assim, o Diário de Etelvino da Silva Batista é também um fragmento individual de uma história coletiva. Isto porque as histórias singulares também podem ser vistas, em história, como a 'fachada de processos em desenvolvimento', como assinalou Antonio Gibelli na preciosa obra L'officina della guerra:

Molto più utile sembra invece procedere a una storia di singoli uomini e verificare su queste esperienze singolari, internamente complesse, tra loro diverse, la portata generale dei processi in

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atto. La storia di Carlo Verano, un contadino ligure di cui useremo il diario di guerra, non è la storia della guerra e neppure dei contadini in guerra. Ma la storia della guerra non può fare a meno di quella di Carlo Verano. Storia di un evento e storie di singoli, storie di gruppi sociali e storie di individui non si possono appiattire l'una sulle altre, vanno correlate mantenendo ferma la distinzione tra i due piani.

(Gibelli 2007, p. 7)

As cartas escritas e recebidas pelos soldados e o diário de Etelvino vão integrar e complementar, com as suas palavras e experiências narradas, a guerra combatida no Ultramar entre 1961 e 1974. Os seus testemunhos representam a importante voz de quem esteve lá e o olhar que se fixou no momento: permitem-nos entrever o mundo complexo e multifacetado da guerra através das produções textuais ligadas à experiência direta.

As correspondências

Um arquivo pode ser um simples lugar fechado de conservação da história, de estantes empoeiradas que preservam documentos, filmes, vidas. Ou então pode aparecer como um lugar aberto aos estímulos e a novos percursos, onde é possível ler, estudar e refletir sobre o tempo e os homens. Para nós, foi o inesperado hífen entre os grandes acontecimentos da Guerra Colonial e a realidade dos homens que a viveram. Foi assim que num arquivo, o da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico Militar (LAAHM) de Lisboa, utilizaram-se 2.296 cartas pertencentes às seguintes correspondências:

- M. V., 1.º cabo que combateu em Angola de 1963 até 1965. São quase 1.000 as cartas que M. V. escreveu e recebeu de familiares e amigos. M. V. nasceu o dia 18 de dezembro de 1942 em Massarelos. Em 1967 casou com M. T., a namorada das cartas, da qual viria a ter um filho. Trabalhou sempre numa loja de materiais de construção no Porto. Durante a comissão, foi o guarda-redes de uma equipa de futebol.

- A. R., marinheiro fogueiro, mobilizado entre 1962 e 1969, fez comissão em Cabo Verde e Angola. Nasceu em 22 de março de 1942, na freguesia de Massarelos, Porto. De profissão, era maleiro. Em 5 de Dezembro de 1965, casou com E.R. Em 1964, nasceu a sua filha A. R. Foi mobilizado em 19

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de setembro de 1962 por quatro anos, que se vieram a converter em sete. De 1963 a 1964, tirou o curso de fogueiro marinheiro de 1.º grau com a classificação de 13,37. Deixou no arquivo cartas e fotografias, além da caderneta militar que nos facultou estas informações. Escreveu quase 200 cartas para a mulher, E. No espólio, existem também 66 cartas escritas pela mulher, 17 ditadas pela mãe, analfabeta, 20 cartas de amigos e 10 cartas escritas por irmãos e sobrinhos.

- A. N., 1.º cabo que combateu entre 1964-1967 em Moçambique. Foi 1.º cabo no distrito de Tete na companhia de Artilharia 638. A correspondência é constituída pelas cartas que trocou com a noiva, M. O., que vivia em Leça do Balio, em São Mamede da Infesta. São cartas tanto manuscritas como datilografadas. A noiva escreveu-lhe 37 cartas e mais 7 aerogramas. Do lado de A. N., há 27 cartas e 11 aerogramas. Mas a correspondência deve ter sido bem mais importante porque A. N. costumava inserir o número da carta, e, no dia 15 de janeiro de 1966, a carta que enviou a M. O. tinha a nota: n.º 117.

- J. F., paraquedista que combateu entre 1964-1968 em Angola e Moçambique. Nasceu a 4 de maio de 1946 na freguesia de Ventosa, Alenquer. Concluiu os seus estudos na Escola Comercial de Torres Vedras e, em 1964, ingressou no Corpo de Tropas Paraquedistas. A sua correspondência é de familiares (mãe, irmãos, sobrinhos, tios e primos), bem como de duas namoradas: há uma primeira correspondência, que vai de 1964 a 1968 e que abrange 141 cartas, e uma segunda, que vai de 1965 a 1969, com 159 cartas. Recebeu mais de 700 cartas e aerogramas nos anos da comissão. Os aerogramas (cerca de 200) foram enviados pelos familiares (tios, irmãos, primos...) e amigos, enquanto a mãe e as duas namoradas optaram sempre pelas folhas de papel de carta. A mãe de J. F. era analfabeta e as suas as cartas foram escritas tanto por M. F., a primeira namorada, como por M. J., uma amiga de J. F. Em 2005, J. F. publicou um livro sobre a sua experiência enquanto paraquedista. Transcrevemos de seguida a nota do autor:

Como soldado paraquedista participei na Guerra Colonial em Angola e Moçambique. Nela, vivi cenas dramáticas e momentos de muita alegria. Foi lá que aprendi a amar estes povos e estes países. Apesar de alguns acontecimentos e nomes serem fruto da minha imaginação, resolvi neste livro, mostrar a vivência dos paraquedistas dos anos 60 e o muito orgulho que cada um sentia em fazer parte deste corpo de elite militar.

OS SOLDADOS SEMPRE TIVERAM VOZ

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Este orgulho e sentimento de liberdade, foi transmitido a todos os que usaram ou usam a Boina Verde. E assim, através de cinco décadas, cresceram e se tornaram na família mais unida de Portugal.

- M. G., soldado sapador que combateu na Guiné de 1965 até 1967 e continuou a receber cartas até 1972. Deixou 164 cartas no arquivo, das quais 136 são aerogramas. Nas cartas e aerogramas recebidos, descobre-se que a família era de Vieira do Minho e que tinha uma relação particularmente difícil com a sua mulher, E., a qual, por razões económicas, entrava frequentemente em conflito com a mãe do soldado. A mãe, se bem que analfabeta, era, ao lado da mulher de M. G., a sua correspondente mais constante. Deixou no arquivo um diploma, datado do dia 8 de janeiro de 1969, que atesta o apreço da instituição militar pelo seu valor.

- D. C. B., alferes comando que combateu em Moçambique de 1969 até 1970 e veio a falecer numa operação no dia 14 de setembro do mesmo ano. Nasceu em Lourenço Marques, de uma família abastada. O pai era funcionário na administração colonial. A mãe, ao contrário das mães das outras correspondências, era alfabetizada e tinha carta de condução. Tinha um irmão mais jovem que se 'safou' da tropa por problemas de saúde. O espólio, deixado pela mãe, inclui: 50 cartas enviadas e recebidas dos pais, e, depois da morte, umas cartas de um camarada comando, amigo de D. C. B. Além das cartas, ficou um álbum de fotografias com recortes de jornais referentes à morte de D. C. B.

A escolha das correspondências fez-se com base no volume de cartas enviadas e recebidas pelos autores e destinatários, selecionando-se as que cobriam os anos de comissão de maneira a se obter uma ideia consistente da vivência no Ultramar. Tentou-se também ter uma visão, através das diferentes correspondências, dos 13 anos de Guerra Colonial, faltando, infelizmente, correio relativo aos últimos anos, que vão de 1970 a 1974. Além disso, a nossa escolha, também se limitou, forçosamente, às correspondências de acesso livre, já que há vários espólios na LAAHM ainda sob sigilo.

Como se percebe pelas breves identificações supra, temos muitas cartas enviadas e recebidas de familiares, fossem eles a mãe, a mulher, a noiva, o irmão, o pai, os sobrinhos ou o padrinho. Temos cartas recebidas dos amigos e camaradas, também mobilizados num dos três cenários de guerra. Temos cartas recebidas por madrinhas de guerra, e mesmo por pessoas desconhecidas. Gente que se agarrou à caneta durante anos porque nada mais podia fazer quanto a

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notícias, facto bem demonstrado na carta do 1.º cabo A. N., que escrevia à namorada essas palavras cheias de aflição:

1966 Moçambique [carta enviada por A. N. à namorada]

«Sinto-me agarrado a esta caneta e nada mais posso fazer, ó Meu Deus levai-me até junto de ti, não posso escrever mais».

Num contexto onde a morte era omnipresente, estas cartas demonstram ter sido um precioso meio de vida e uma saída de um mundo desprovido dos mais simples e básicos valores humanos.

O Diário de guerra

Etelvino da Silva Batista nasceu a 7 de fevereiro de 1939, no lugar de Penedo, freguesia de Colares, tendo crescido na Praia das Maçãs, onde frequentou o ensino básico até à 4ª classe, na Escola Primária das Azenhas do Mar. Foi mobilizado e embarcou para Angola no paquete Vera Cruz em 28 de Junho de 1961, para uma guerra que tinha tido início a 15 de Março do mesmo ano. Por lá esteve 28 meses, quase sempre em zonas de intervenção, tendo regressado a Portugal a 26 de outubro de 1963.

O Diário de guerra de Etelvino da Silva Batista foi escrito entre o dia 28 de junho de 1961 e o de 15 de maio de 1963, sendo que os últimos 6 meses do diário se perderam. Foi publicado em 2000 pela Editora 3 Sinais.

O Diário, mais do que um livro, parece um álbum. Ao longo das suas 150 páginas, podemos ler as notas do autor, acompanhadas de fotografias. São fotografias de Etelvino da Silva Batista, da sua estadia em Angola, das cubatas, dos soldados, fotografias da amada namorada, imagens que aparentam ser, efetivamente, um 'mezzo ausiliario della fatale testimonianza' (Gibelli 2007, p. 6). Escolhemos este Diário de Guerra por duas razões, além das associadas à sua força e beleza: porque tivemos a possibilidade de trabalhar sobre a versão original, tal como foi deixada pelo autor na LAAHM, e também por ser o único diário deixado nesse arquivo.

Etelvino partiu no dia 28 de junho de 1961, embarcando no paquete Vera Cruz, e começou logo a viver e a gravar acontecimentos radicalmente novos e aterradores. Sobre simples folhas de papel e sobre cadernos de dimensões reduzidas, o autor deixaria um testemunho de grande importância sobre o dia-a-dia da sua guerra.

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Recentemente, em janeiro de 2016, Etelvino publicou um livro, O Soldado 82/60 e Suas

Memórias de Guerra de Angola, na Chiado Editora. Esse livro é particularmente interessante

porque permite estabelecer uma relação entre o diário escrito durante a comissão e uma narrativa, posterior em mais de 50 anos, mas ancorada nos mesmos acontecimentos. Os dias fixados no diário, trabalhados pela memória e a reinterpretação, conduzem, muito esperavelmente, a uma reescrita da experiência de guerra. Veja-se este exemplo, um registo do dia da Páscoa tal como foi fixado no diário e no livro:

22 de Abril de 1962 [Diário Etelvino]

Hoje é Domingo de Páscoa. Um dia diferente dos outros, pois faz lembrar-nos muito da nossa família. Como a avioneta não trouxe correio, ainda nos sentimos mais abandonados. Da parte da manhã ainda me entreti a jogar à bola mas, de tarde, a nostalgia venceu-me, fazendo-me passar por uns momentos de grande tristeza. São 21.00 horas. Vou-me deitar.

Já no livro publicado em 2016, lê-se isto:

O dia de Pascoa de 1962

«Este dia foi especialmente triste para todos os militares da CC-164, assim como para os camaradas do pelotão de morteiros 27, porque não recebemos o correio que esperávamos há mais de duas semanas.

Compreendo que os jovens de hoje possam ter alguma dificuldade em entender porquê em Zala, e seguramente noutros lugares do imenso Norte de Angola, as cartas de pais e esposas, namoradas ou amigos eram tão importante para o equilíbrio emocional dos soldados.

Nos anos 60 eram as cartas o único elo de ligação com os militares colocados meses seguidos em zonas isoladas».

(Batista 2016, p. 99)

Estes documentos - correspondências e diário - que tivemos o privilégio de analisar deram-nos a noção das crenças, das mentalidades, da vida e da escrita de pessoas que participaram na atividade 'mais antiga do mundo'. Tendo em consideração acontecimentos nossos contemporâneos, este é um tema que continua e continuará a exigir muito estudo e reflexão.

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1.3. Resumo do enquadramento teórico

Ao longo do nosso trabalho, convocaremos as noções de enunciado, texto, contexto, discurso e representações sociais. Se bem que no início dos sucessivos capítulos e subcapítulos da tese se desenvolva a apresentação das teorias mobilizadas, incluímos aqui um seu abreviado resumo.

Para o estudo dos enunciados das cartas e do Diário de guerra, socorremo-nos das reflexões de autores como J. L. Austin (1970 [1962]) e John Searle (1981 [1969]), os quais explicaram a dimensão de ação contida no comportamento dos falantes nos seus usos de linguagem. A abordagem pragmática destes autores e a sua visão performativa da linguagem ajudam-nos quando queremos examinar até que ponto as condições de uso das palavras são constitutivas do sentido dos enunciados e da sua apreensão por parte dos interlocutores.

Para a abordagem daqueles mesmos objetos — cartas e diário — na sua faceta de texto, afigurou-se-nos essencial a utilização dos trabalhos de Jean-Michel Adam (1997; 2011) sobre sequências textuais. Ultrapassando algumas teorias que viam os textos como um todo narrativo, dialogal ou argumentativo, Jean-Michel Adam dá importância à heterogeneidade dos textos e à inserção de sequências diferentes dentro de cada texto uno. As cartas e o diário respeitam um modelo geral prévio, mas existe no interior dos seus moldes uma alta mobilidade e arbitrariedade: é onde entram os indivíduos com suas competências textuais próprias. De entre as sequências textuais identificadas pela teoria, escolhemos as duas que nos pareceram de maior pertinência para o nosso estudo: precisamente, as sequências narrativas e dialogais.

Encontrámos, por conseguinte, nas disciplinas da Pragmática Linguística e da Linguística do Texto os instrumentos que usámos para perceber com que estratégias linguísticas se jogou, nos nossos escritos de guerra, para definir a figura do Inimigo.

Por outro lado, as noções de contexto e discurso que aqui usaremos, recebemo-las de estudiosos da área da Análise do Discurso. Compreendemos contexto (de uma produção linguística, obviamente) com a ajuda de Teun Van Dijk (1985; 1997; 1998; 1999; 2001; 2005; 2010), que nos fala de como há conhecimentos prévios, individuais e sociais, que dirigem os enunciados segundo critérios de relevância e de pertinência. A nível global, a atividade verbal surge e depende destas situações comunicativas, onde fatores de vária natureza interagem entre si.

Para o conceito de discurso, que entendemos como uma produção linguística que procede de um determinado contexto cultural e histórico e se torna o reflexo e o veículo de certas crenças,

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seguimos também Teun Van Dijk, autor que tem desenvolvido um pensamento sustentado sobre discurso, contexto, conhecimento e ideologia. Veremos que aquilo que o mesmo autor designa de 'modelos mentais' (Van Dijk 2005) integra, no caso do discurso da guerra, valores, opiniões e crenças de extrema complexidade. Para entendermos como atuam, socorremo-nos do conceito de 'representações sociais', um conceito que, se bem que devedor do de 'representações coletivas' de Durkheim, foi fixado por Serge Moscovici (1961), Jodelet (1989; 1994) e Doise (1986) e em seguida enriquecido pelos estudos de Jean-Claude Abric (1998), sobretudo à custa da noção de núcleo central.

Segundo Moscovici, as representações sociais caracterizam-se por:

- permitirem a compreensão e o conhecimento dos objetos, das pessoas ou dos acontecimentos que encontramos de novo, criando um modelo partilhado e aceite em comunidade ou num grupo de pessoas;

- decorrerem de conhecimentos prévios; existe um modelo ao qual os novos elementos, adaptando-se, se juntam e sintetizam nele.

As representações sociais serão geradas por dois processos básicos: a ancoragem e a objetivação, que vão usar a memória, a linguagem, as imagens e os valores para criarem um saber familiar. Estas representações, ainda segundo as teorias de Moscovici, podem ser encaradas como o

senso comum: ao se tornar familiar algo não-familiar, procura-se um universo consensual no qual as

pessoas queiram ficar, evitando assim o conflito. O processo de representação e as dinâmicas de relações serão assim, afinal, uma confirmação das crenças e das interpretações adquiridas.

É importante sublinhar dois pontos das teorias de Moscovici sobre representações sociais; a primeira é que elas são dinâmicas, continuamente atualizadas segundo a situação comunicativa. Em segundo lugar, o consenso que as representações sociais procuram não será essencial ao seu funcionamento, defendendo o autor que não há contradição entre regulação e diversidade de opiniões e afirmações. Ou seja, a multiplicidade de tomadas de posição é produzida a partir de princípios organizadores comuns:

Il est entendu que sens commun n'égale nullement consensus, tout comme l'adhésion à une idéologie commune n'entraîne pas nécessairement une uniformité au niveau des opinions.

(Doise 1986, p. 90) 20

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A guerra configura-se para os autores dos textos aqui analisados como o novo, o estranho o não-familiar. O seu conhecimento, por conseguinte, vai depender de representações sociais constituídas por um conjunto organizado e estruturado de informações, crenças, opiniões e atitudes, integrando aspetos funcionais e normativos (Abric 1998). Em suma, vai depender de toda esta interface entre os indivíduos e a realidade.

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1.4. Organização dos capítulos

De maneira a tornar mais claro o uso dos vários elementos escolhidos para o nosso trabalho, decidimos optar pela seguinte subdivisão: começaremos por um enquadramento histórico do género epistolar e diarístico. Desde os tempos mais remotos que se escrevem cartas, e, apesar do grande leque cronológico abrangido pela história da epistolaridade, podemos ainda encontrar analogias entre as cartas do passado e as de hoje. A carta será também analisada no papel essencial que tem nas guerras, sobretudo a partir da 1ª Guerra Mundial, quando, segundo Antonio Gibelli, a escrita popular confirmou, pela primeira vez, a mudança antropológica e social que a guerra provoca1. Aí falaremos das principais teorias que tentaram definir o sistema epistolar, sobretudo no eixo pragmático-literário, mas usaremos também trabalhos que provêm da reflexão sociológica e histórica.

Segue-se a secção consagrada à análise do diário e da escrita diarística. A nossa intenção é a de traçar o percurso histórico e social do diário através de uma análise da prática diarística ao longo dos séculos. A descrição linguística terá paralelismo com a que, entretanto, se fez para as cartas, concentrada agora na recolha das estruturas presentes no diário. Analisaremos, confrontando os dois géneros, alguns tópicos compartilhados que evidenciam as peculiaridades das duas modalidades textuais.

A partir do capítulo 6, depois de introduzidas algumas considerações sobre a guerra e o seu conhecimento, bem como sobre o enquadramento social da Guerra Colonial no Portugal dos anos 60, concentramo-nos no estabelecimento de um enquadramento teórico e na apresentação dos conceitos usados para analisar o nosso corpus: os enunciados, as sequências textuais, o contexto e o discurso (capítulo 7). Fechamos com uma secção sobre representações sociais enquanto forma de transmissão e partilha de conhecimentos que influencia e direciona o desenvolvimento e a manutenção das práticas discursivas (capítulo 8).

A partir do capítulo 9, centramos o nosso interesse no conceito de Inimigo, querendo perceber se a razão principal de uma guerra gera um discurso possível de apreender em determinadas sequências textuais e se tais sequências ajudam a veicular representações sociais. Estas não são construídas ex nihilo: aparentemente, originam-se nos discursos oficiais e militares e 1 “Una delle constatazioni su cui si basa questo libro è che non solo la produzione di scrittura da parte di «illetterati»

divenne nel corso della guerra particolarmente copiosa, ma che questo stesso ricorso alla scrittura (epistolare, diaristica e memorialistica) da parte di uomini che fino allora ne erano rimasti largamente esclusi, costituisce un indizio e un aspetto non secondario della trasformazione antropologica e sociale che la guerra concorse a produrre”. (Gibelli 2007, p. 5)

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passam daí para a opinião coletiva, participando da produção textual que definimos como escrita de

guerra. Tal escrita precisa de moldes recursivos que permitam recuperar conhecimentos ou crenças

precedentes. Portanto, é uma escrita parcialmente criada a partir de conhecimentos preexistentes. Uma vez confirmada a existências de tal influência discursiva, é preciso delinear quais são as estruturas textuais que exercem esse controlo.

Nesses capítulos, mais interdisciplinares, vamos abordar o nosso corpus enquanto discurso de guerra que conceptualiza o Outro enquanto Inimigo. A integração do arquétipo da superioridade Eu/Nós face ao Outro confronta-se com situações que fogem a limites claros e seguros, previamente definidos. A divisão maniqueísta entre 'bom' e 'mau' será suficiente como justificação e legitimação da guerra? Achamos que a definição do Outro é um conjunto sincrético de representações que muda segundo a situação comunicativa.

Os dados serão analisados segundo três momentos essenciais e distintos da guerra:

● A retaguarda. Antes

● Na primeira linha. Durante ● O arquivo. Depois

A divisão pode ser explicada da seguinte maneira: é na retaguarda que se constrói tanto a figura do Inimigo como a da correspondente ameaça. Por essa altura, o Inimigo é o 'invisible man' da propaganda e dos poderes que o desumanizam, personificação do mal absoluto. Mas aos 'gritos' da propaganda e da escrita oficial responde uma produção textual mais 'silenciosa', criada na primeira linha, onde o Inimigo se converte num adversário. Nessa segunda fase, o 'invisible man' torna-se um ser concreto, e o objetivo da sua eliminação é uma realidade. Entre a fragilidade da vida e a brutalidade de uma possível morte, própria ou dos outros, instala-se uma almofada de milhares de folhas, fixando o testemunho direto da mesma guerra. Guardadas durante anos, as folhas são um dia oferecidas a um arquivo dedicado aos conhecimentos e às vivências de guerra, à recuperação de um lugar na história e à construção da memória de um país. Assim, o terceiro momento é representado pelos espólios deixados em arquivo. É nessa terceira fase que intervêm questões como a memória, a descolonização, a liberdade. Tenta-se uma 'saída honrosa' da guerra, apagando ou esquecendo a construção de um Inimigo que foi a razão de 13 longos anos de sofrimento e da perda, neste caso, de 8.831 soldados2. O Inimigo, agora, assume facetas opostas 2Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, publicada pelo Estado-Maior do Exército, 1.º Vol., Lisboa, 1988.

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para que se possa iniciar uma outra fase da história.

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2. A escrita

The most significant elements of any human culture are undoubtedly channeled through words, and reside in the particular range of meanings and attitudes which members of any society attach to their verbal symbols.

Jack Goody, The consequence of literacy

Ce que Dieu a déposé dans le monde, ce sont des mots écrits; Adam, lorsqu'il a imposé leurs premiers noms aux bêtes, n'a fait que lire ces marques visibles et silencieuses; la Loi a été confiée à des Tables, non pas à la mémoire des hommes; et la vraie Parole, c'est dans un livre qu'il faut la retrouver. Michel Foucault, L'Archéologie du Savoir

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Abrimos aqui um capítulo sobre um tema excecionalmente vasto, por isso vamos confinar a nossa análise, a da história da escrita, ao espaço do Ocidente e ao tópico do acesso à literacia por parte das classes subalternas. Os estudos que seguimos são os de Jack Goody (1963; 1986; 1988; 2007), Armando Petrucci (2008) e Castillo Gómez (1997; 2002; 2003). Apresentando abordagens diferentes, são no seu conjunto autores que permitem uma análise social e histórica da 'conquista' da escrita pelas classes menos favorecidas da escala social.

A primeira ligação entre a escrita e as dimensões da vida em sociedade a ser assinalada por todos os estudiosos é a sua ligação à religião. Nesse sentido, veja-se como Jack Goody (1986) chama a atenção para o facto de todas as religiões de conversão serem essencialmente religiões letradas:

As religiões letradas são religiões de conversão. Podem espalhar-se como geleia. E podem persuadir ou forçar as pessoas a abandonar um conjunto de crenças e práticas para adoptarem outro conjunto.

(Goody 1986, p. 21)

São religiões que se auto-representam como 'superiores', não apenas por os seus sacerdotes serem letrados e poderem ler bem e ouvir a palavra de Deus, mas também por poderem fornecer à sua congregação 'a possibilidade de ela própria se tornar letrada' (ibid., p.21). A escrita promoveu, com efeito, a autonomia de organizações que desenvolveram os seus próprios modos de proceder, as suas próprias compilações da tradição escrita e os seus próprios especialistas. Com a difusão de uma religião, o que acontecia, ao mesmo tempo, era que se dotavam as pessoas de um instrumento capaz de traduzir e conhecer as suas regras.

Mas não foram só as religiões que usaram a escrita para difundir e organizar a sua doutrina. Da mesma forma, as nações modernas tornaram-se rapidamente dependentes desta tecnologia para estruturarem a administração interna e as relações externas, mas sobretudo para organizarem a memória e o conhecimento. Com efeito, na teorização da escrita, o que se ressalta sempre é o reconhecimento do seu papel fulcral de instrumento organizador e de meio de conservação da memória. Goody destaca tal questão dividindo sociedades com e sem escrita e identificando as consequências da possibilidade, aberta pela escrita, de se 'armazenarem' conhecimentos:

Le premier est le pouvoir qu'il donne aux cultures qui possèdent l'écriture sur celles qui sont

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purement orales, pouvoir qui permet aux premières de dominer les secondes de diverses manières, dont la plus importante est le développement et l'accumulation de connaissances sur le monde. Ce processus implique un changement de certaines de nos opérations cognitives (les façons dont nous comprenons le monde et agissons sur lui).

(Goody 2007, p.17)

A escrita, assim, sempre foi essencial na organização da ação social e das instituições religiosas, económicas, políticas e legais. Com efeito, sempre serviu a promoção da autonomia estrutural das 'grandes organizações' tanto através dos escritos literários como dos corpos de conhecimento especializado. Dito de outro modo, as estruturas organizacionais, se são significativamente vastas, também são largamente dependentes do uso da escrita, do seu modo de comunicação fundamental e da sua grande influência na evolução da sociedade:

O que a introdução da escrita ajuda a fazer, contudo, é a tornar explícito o implícito e, ao fazê-lo, a ampliar as possibilidades da acção social, [...] também criando tipos mais precisos de transacção e relação, mesmo entre parentes de confiança, que dão a estas sociedades a força para suportar circunstâncias mais complexas, mais «anónimas».

(Goody 1986, p. 197)

Passando a uma breve resenha histórica, sabe-se que foi com o aparecimento de uma cultura de contabilidade na Suméria que se criou o mais antigo sistema de escrita de que há notícia. O sistema inicial, parcialmente pictográfico e que se tornou conhecido como 'escrita cuneiforme', foi adotado e adaptado na maior parte do oriente antigo. Esta é a escrita que se encontra em Uruk por volta de 3300 a.C. Segundo Castillo Gómez (2002, p. 33), cerca de 80% destes textos eram de caráter prático, associados aos planos económico (registo de transações de bens rurais rural) e administrativo:

Esta es una de las razones para que un acontecimiento sea puesto por escrito: tener un valor documental que sirva en un futuro, lo que hace que se recoja desde la venta de un terreno a un contrato matrimonial, y ello para prevenir una futura situación sobre la propriedad de tierras u otros recursos y preservar así la propriedad familiar.

(ibid., p. 39)

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A escrita esteve também desde cedo associada a outros usos concretos, com destaque para os usos políticos e os religiosos. Era a escrita que permitia aos sacerdotes ler e interpretar um mito, demonstrar as ações do governo perante os deuses, garantir e legitimar um poder, levando a que o domínio dessa tecnologia fosse sinónimo de posição social e económica. O privilégio que, na Antiguidade, os exíguos grupos de escreventes alcançavam através da escrita manifestava-se, por exemplo, no poder mágico reconhecido aos objetos com conteúdo escrito:

En Egipto la fuerza de la palabra es mayor incluso que la representación. En los Textos de Execración se dice que no basta con representar al enemigo, sino que su nombre debe ser escrito para que al destruir la figurilla su eliminación resulte completa.

(ibid., p. 50)

Em Roma, na Idade Imperial, assistiu-se a uma difusão do alfabetismo para além da elite social e intelectual: o domínio da escrita chegou a comerciantes, escravos ou libertos ao serviço de aristocratas, militares, mulheres. Para referirmos tal panorama de penetração social, os termos de 'alfabetizado', 'analfabeta' e 'semialfabetizado' assumem contornos cada vez menos claros, dada a variedade de uso que se podia fazer da escrita e da leitura. A relação que essa massa de indivíduos mais ou menos alfabetizada podia manter com a escrita fica bem caracterizada nas palavras seguintes:

Ciertamente, todos estos individuos, aunque en niveles cualitativos o cuantitativos diferentes, eran capaces de escribir las cuentas de sus gastos, una imprecación salaz, el recibo de una suma recebida, una invocación religiosa, el apunte de un negocio, la frase obscena o el nombre del candidato a un cargo, así como de leer los carteles, los rótulos y los avisos escritos com pincel, las inscripciones commemorativas, los chascarrillos esgrafiados, las tesserae militares.

(ibid., p. 91)

O alargamento da prática da escrita na Roma Imperial veio coincidir, também, com um alargamento da leitura: foi nesse período que começou a aparecer a menção ao 'prazer do texto', com a difusão de uma literatura para simples alfabetizados a ser distinguida da literatura para doutos. A primeira era uma literatura de entretenimento, com temas como a culinária, o desporto, a interpretação dos sonhos, textos eróticos, histórias de aventura, etc. Foram séculos, estes, os

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primeiros do Império, em que a alfabetização nunca terá sido exclusiva de uma determinada classe social nem um sinal de uma particular distinção de uma elite, identificando-se leitura e escrita como práticas abertas.

No entanto, com a Antiguidade Tardia, a situação parece ter mudado:

En la Antiguidad Tardia tienden [lectura y escituras] a convertirse en práticas cada vez más «cerradas», reservadas a determinadas categorías sociales que, fundamentalmente, son dos: por un lado, la que, en un sentido amplio, desempeña las funciones judiciales y administrativas; y por otro, las jerarquías eclesiásticas. Para ambos grupos, los instrumentos de la cultura escrita son ahora útiles para el ejercicio autoritario del poder. La decadencia de las estructuras urbanas determina la desaparición de cualquier escuela que no sea la de la educación dispensada en el seno de los círculos burocráticos y profesionales o de las instituciones religiosas, episcopales y monacales.

(ibid., p.96)

A partir daí, a escrita atravessa um período em que se fecha no mundo severo dos conventos medievais, considerada uma fadiga e uma penitência mais do que uma forma de instrução.

Paralelamente, o par templo-palácio, com suas diferentes instituições socioculturais e os respetivos interesses, marca ininterruptamente, ao longo das Idades Antiga, Média e Moderna, as grandes culturas escritas, definindo as regras da sua difusão e utilização. A esse nível, a escrita acrescenta uma dimensão importante a grande parte da ação social, criando ligações entre a economia, o domínio político e o jurídico. A Igreja, além de usar a escrita como meio de fixar os textos sagrados, vai desenvolvê-la como um instrumento de administração e de gestão de todos os seus bens e domínios. Mas entre os séculos XI e XIII, pode-se fixar uma alteração, no sentido de mudança qualitativa da prática da escrita, sem substituição, todavia, do modo tradicional de transmissão da cultura, que se manteve, por excelência, o modo oral:

Basta para advertirlo con pensar en el método escolástico, en las predicaciones, en los pregones o en ciertas formas de lectura en voz alta. Letras, palabras e imágenes formaban el triángulo de la comunicación en la Baja Edad Media [...].

(ibid., p. 180)

Entre as transformações políticas, económicas, sociais e culturais que definiram o chamado 29

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'Renascimento' do século XII e influenciaram as relações entre sociedade e cultura escrita, é preciso apontar as seguintes:

• O desenvolvimento das monarquias feudais;

• As convulsões na estrutura da Igreja e o aparecimento de várias ordens religiosas que alteraram a maneira de ver e entender a religião;

• As modificações nas rígidas estruturas sociais e económicas causadas pelo aumento do peso das atividades artesanais e comerciais;

• As migrações do campo para a cidade;

• A conversão da cidade num espaço de vida característico da Baixa Idade Média. Com as universidades, concretamente, nasceram hábitos diferentes e surgiram novos grupos urbanos que sentiam a necessidade de aprender a ler e a escrever.

No fundo, desencadeou-se um processo em que a cultura escrita se foi tornando mais laica graças à consolidação das línguas vulgares enquanto línguas de escrita e línguas de alfabetização, imediatamente úteis para certos fins práticos como os das anotações e contas. Os livros de contas (livre de raison, libros de cuentas,...), sobretudo, além da utilidade prática de auxiliares de memória, permitiram criar um espaço de construção de recordações pessoais e familiares, adquirindo por esta forma um valor mais íntimo e pessoal:

Por lo común se trata de libreta o cuaderno normalmente de papel, aunque existen algunos de membrana, de dimensiones variables, entre el cuarto y el folio, cosidos y protegidos por una cubierta de pergamino, como si con ello se quisiera preservarlos y convertirlos en una suerte de objeto-memoria. [...] La más inmediata práctica era, sin duda, la anotación de las cuentas; pero, una vez adquirida la competencia de escritura, los escribientes pronto se sirvieron de ella para construir un producto más elaborado, una suerte de memoria personal destinada a perpetuarse en el futuro.

(ibid., pp. 199-200)

O último acontecimento que marcou esse processo de consolidação da escrita no ocidente foi sem dúvida o da invenção e difusão da imprensa a partir da segunda metade do século XV. Ao lado do espaço manuscrito medieval, surgiu um outro espaço, também de relevo, ocupado agora pelo libro da bisaccia, ligado aos novos públicos de leitores, os illitterati da Alta Idade Média. Não

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conhecendo o latim, eram até então incapazes de aceder à cultura escrita, monopolizada por essa língua. E assim se assistiu à constituição de uma verdadeira sociedade da escrita:

[...] la época histórica que podemos delinear entre mediados del siglo XV e idénticas fechas del XVI se inscribe, con elementos propios y heredados, en el devenir de una dilatada mutación que conduce desde las sociedades hegemonizadas por los usos de la oralidad hasta aquellas otras vertebradas en mayor medida por la centralidad de las actividades de escritura.

(ibid., p. 37)

Quanto à época moderna, ela iria sobretudo ser marcada pelas novas relações que a escrita criaria com a cultura, a aprendizagem e a transmissão do saber, os hábitos de leitura, o livro e a sociabilidade em seu torno gerada, assim como a problemática da invenção literária. Nos séculos XVI, XVII e XVIII assistiu-se definitivamente à imposição da escrita como meio de registo, conhecimento, aprendizagem e domínio exercido pelas autoridades civis e eclesiásticas. Lembre-se o Concílio de Trento, que fixou as regras de comportamento e de costumes nas sociedades católicas, ao mesmo tempo que determinava a obrigatoriedade de registos paroquiais. Lembre-se também o surgimento do Estado Moderno, que garantiu um aumento da capacidade de se controlarem as relações nos grupos graças à criação de registos administrativos. A escrita configurava-se, finalmente, como um 'sistema total de comunicação', como sublinhado por Castillo Gómez (1997, p. 19).

Este predomínio da escrita coincidiu com o desenvolvimento de uma civilização cortesã e de novos sentidos para os conceitos de público, de privado e de indivíduo. Foi a época da afirmação dos valores humanistas, do crescimento dos exemplos de criação intelectual e artística, de uma maior produção de livros eruditos e populares, destinados a um crescente número de leitores, à medida que a literacia se disseminava pela classe média. Nas cidades, cuja dimensão se expandia, passou a haver cada vez mais instituições escolares, mais organização administrativa à custa de mais burocracia e mais infraestruturas para a circulação da correspondência epistolar. Todos estes elementos são a clara indicação de que a sociedade tradicional se estava a alterar, porque nela se difundia, segundo as palavras de Daniele Marchesini (1992), uma mentalità alfabeta o letterata:

Un processo, cioè, che determina una realtà in cui la circolazione funzionale di scritture di ogni tipo si accompagna alla coscienza della effettiva urgenza e necessità di tale circolazione, e in cui è

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maturata l'interiorizzazione del valore d'uso del mezzo di comunicazione e di scambio che la scrittura rappresenta.

(Marchesini 1992, Introd. XII)

Este processo, apoiado em mudanças espaciais, sociais, económicas e institucionais, integrou o fim do Antigo Regime e o início de um novo tipo de governo da sociedade em que a escrita passou a ocupar um lugar essencial:

Da una realtà di scrittura poco presente e visibile si arriva ad una in cui lo scritto invade e informa le strutture della vita individuale e collettiva, diventa un dato costante cui far riferimento, destinato a mutare il quadro delle esigenze, dei valori, delle abitudini, della mentalità delle persone.

(ibid., Introd. XIII)

Só no século XIX, contudo, quando também se concretizou efetivamente o processo de alfabetização das classes médias e subalternas, é que o envolvimento geral com a escrita se converteu numa fatalidade decidida pelos Estados, como transparece desta caracterização feita pelo historiador italiano Antonio Gibelli:

[…] toda una serie de fenómenos desde los nombres de las calles a su numeración, del nacimiento de los servicios de empadronamiento a las obligaciones fiscales, militares y de control social de los estados en el trascurso del siglo XIX acaban por conceder a la escritura un papel y un peso cada vez más extenso, más frecuente y más relevante, de modo que las personas, pertenezcan a la clase social a que pertenezcan, se encuentran abocadas a hacerse entender con ella de manera mucho más amplia queen el pasado.

(Gibelli 2002, p. 195)

Um processo burocrático de particular relevância para o tema deste nosso trabalho, o dos recenseamentos obrigatórios de mancebos para efeitos de recrutamento para a guerra, teve neste sentido um papel assinalável: veiculou, através da produção de registos escritos estatais oitocentistas e novecentistas, a entrada da engrenagem da guerra, em particular da I Guerra Mundial, nas casas dos indivíduos:

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Prima manifestazione della presenza capillare dello Stato in rapporto all'esistenza dei singoli, la coscrizione generale obbligatoria introduce vincoli periodici e forme di controllo regolari nelle comunità, in contrasto con la mobilità territoriale e con l'anonimato della popolazione, in quanto presuppone la fissazione dell'identità anagrafica e la certezza del domicilio. Lo Stato si afferma anche attraverso queste procedure, di cui la leva è un passaggio non secondario.

(Gibelli 2007, p. 77)

É também esta dimensão da escrita enquanto instrumento das instituições que vai fixar certo léxico para os conceitos da vida coletiva. No nosso caso, interessa-nos o léxico que inclui termos como Pátria, Heroísmo, Inimigo, Terrorismo, Paz. Quando, no contexto da guerra, os soldados começam a precisar de se referir eles próprios a ela, é no repertório da autoridade que se vão inspirar. Com efeito, as guerras produzem também sempre o discurso bem sustentado que as legitima, que as condena ou as termina; um discurso sobre a identificação de quem ganha ou perde, de quem merece ser recordado ou deve ser esquecido. Todo esse material, que fixa ou apaga um passado, uma história ou uma identidade, é também ele veiculado pela escrita.

A escrita da guerra não é, no entanto, desprovida de variação. Emana de posições diferentes, como as dos políticos, dos oficiais, dos soldados ou dos civis. E é extremamente prolífica: em tempo de guerra, quase tudo fala dela ou a representa, a justifica, a defende. Tudo se tematiza em discursos, canções e filmes. Do lado do registo eufórico, surgem a mobilização, a preparação das tropas, a reorganização económica, os sacrifícios e os deveres. Por outro lado, já em termos de registo disfórico, surgem os discursos sobre o cobarde, o traidor, as infâmias da derrota e da rendição. A função é comum e é a de enaltecer o sentimento coletivo de apoio à guerra de maneira a nunca debilitar o esforço bélico. São representações que, no seu conjunto, Procacci, apoiando-se sobre as teses de Audoin-Rouzeau e A. Becker, define como cultura de guerra:

L'insieme delle rappresentazioni della guerra che la società nel suo insieme all'interno e al fronte, nel vocabolario, nella pratica e nella mentalità fa proprie ancor prima dell'inizio del conflitto, e che perfeziona lungo l'esplicarsi di esso un corpus di rappresentazioni cristallizzatosi in un vero e proprio sistema che dà alla guerra il suo senso profondo.

(Procacci 2006, p. 109)

Referimo-nos acima aos modelos que presidem à escrita da guerra feita pelos soldados. Prosseguimos agora com a referência efetiva, ilustrada já com exemplos do nosso corpus, aos textos

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que os mesmos soldados produzem.

Dois fenómenos de massas muito característicos do século XX, a emigração e a guerra, são dois acontecimentos muito apoiados no lado mais prático e necessário da escrita. Em ambiente de emigração ou guerra, as pessoas com pouca escolarização foram 'atiradas' para a prática da escrita como único meio de manter o dinamismo das suas relações interpessoais, se bem que à custa de profundas modificações no suporte dessas mesmas relações. Como a comunicação familiar se realiza essencialmente de forma oral, estas dramáticas experiências, que convertem forçosamente tal comunicação em contacto escrito, vão afetá-la a nível tanto individual como coletivo.

É nesse coletivo e nesse individual que se encontram as razões para a grande quantidade de cartas escritas e recebidas pelos autores do nosso corpus, para as quase 1.000 de M. V., para as 13 correspondentes do paraquedista J. F., que lhe escreveram centenas de cartas, bem como para a correspondência que o mesmo continuou a manter, apesar de ter acabado os dois anos de comissão, assim como para a devoção que Etelvino revelou na escrita do seu diário. Se por um lado esta escrita foi uma necessidade, também demonstrou ser uma defesa e uma salvaguarda da identidade própria e do grupo. Tal impulso fica patente na quantidade e rapidez da troca epistolar, na minúcia da datação, na escolha do léxico e na criatividade do uso da escrita (poesia, rimas, desenhos), tudo meios de que os soldados se apropriaram para tornar a escrita mais eficaz e mais pessoal.

A prolixidade não significa, no entanto, ausência de regulação, a qual está presente em normas que organizam o discurso epistolar. Em relação aos modelos, segundo Petrucci (2008), a sua natureza é dupla. A classe média-alta e os intelectuais procuram modelos ligados ao seu próprio grupo social, enquanto as classes mais baixas seguem os modelos sugeridos pela escola, pelo contexto familiar e pela administração.

Os autores mais populares das cartas aqui estudadas mostram a consciência de que este objeto de troca é regulado por normas de aceitabilidade, válidas tanto para o conteúdo como para a apresentação. Para quem tem escassa literacia, o resultado pode ser até o do grande distanciamento em relação ao que seria uma formulação oral, facto muito tangível, por exemplo, nas aberturas das cartas:

Luanda, 11- 5 -1964 [carta recebida por M. V. de um camarada]

«Presado amiguinho e camarada M. do meu coração faço os meus mais vivos votos para que estas minhas simples letrinhas o vá encontrar pela mais viva saúde e repleto de felicidades em colaboração das pessoas que lhe forem mais queridas, que eu cumo sempre optimista».

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As normas que se interiorizam sobre a escrita, sempre falando dos autores menos letrados, transparecem no constante juízo estético sobre a produção de cada carta:

1.11.63 [carta recebedia de M. V. dum amigo]

«...e para terminar pesso-lhe desculpa de ir um pouco mal escrita mas foi um pouco á pressa, e por hoje passo a dar fim».

Porto 20-12-63 [carta recebedia de M. V. dum amigo]

« Não repares este aerograma ir tão mal escrito, mas descuidei-me um pouco, e agora tenho que responder a 5 duma vez, e tem que ser a despachar o mais depressa possivel».

Este tópico do 'mal escrito' é de tal maneira interiorizado que até a mãe do 1.º cabo M. V., analfabeta, o repete:

28.8.63 [carta recebida de M. V. da mãe]

«Meu querido filho a carta que te mandei foi escrita muito a pressa nem sei se iria bem escrita».

À representação popular da carta 'bem escrita' junta-se uma outra, também muito reiterada, sobre a escrita ser um aborrecimento:

Sem data [carta escrita por J. F. à mãe]

«P.S.: Agradeço muito gentilmente à J. pela maçada que tem em me escrever e a ler as cartas que não vai ser fácil pois se eu quase que não consigo lela».

O desconforto é sempre de ordem estética, no sentido de gráfica e caligráfica, e raramente de ordem linguística ou ortográfica. A nível de conteúdo, encontrámos um único caso em que o autor sublinhava o 'mau gosto' e a falta de educação patentes na escolha de expressões linguísticas marcadas:

15.7.1966 [carta recebida por J. F. dum amigo]

«Vejo que o teu calão está muito adiantado, mas a frase de (partir a moca a rir) é muito ordinária não sabias? Quando li fiquei tão envergonhado !..que quase não conseguia acabar de ler».

(36)

A importância dada ao conteúdo é sobretudo revelada pelos autores que justificam o facto de não escreverem por terem pouco ou nada para dizer:

1-5-65 [carta recebida por M. V. da prima]

«Primo M. tu tens muita razão em mandares dizer o que mandas-te ao meu namoro mas olha eu desde já te peço desculpa por não te ter respondido eu na altura em que tu escreveste tinha pouco que te mandar dizer sabes como é tu aí sempre tens mais que mandar dizer e eu estava a ver se tu voltavas a escrever...».

13-11-66 [carta recebida por J. F. da irmã dum camarada]

«Olha F. se quer que eu lhe diga a verdade nem se o que lhe hei-de mandar dizer».

T. Vedras 17 /12/ 66 [carta recebida por J. F. dum amigo]

«F. já há 2 ou 3 meses que não te escrevo não levas a mal, apesar de estares longe nunca será esquecido, viverá na nossa ideia como fosses família nossa e como ia dizendo às vezes nem sempre há assunto...».

Se bem que presos a convenções, os autores das cartas não esquecem que existe uma certa distinção epistolar3 marcada por um 'afastamento' das regras convencionais, e que os sentimentos devem ser organizados nas cartas de uma maneira mais pessoal. É o caso de algumas cartas da mãe do soldado M. V. que, sendo analfabeta, pede à namorada do filho para escrever em seu nome. No início, são textos que giram unicamente em torno das informações dadas e pedidas. Com o passar dos meses, contudo, passam a ser ornamentadas de quadras, demonstrando uma sensibilidade nova perante a escrita, com crescente diversificação dos modos de expressão. Eis, por exemplo, uma quadra a propósito do aniversário de M. V. (16.12.1963):

Vai carta feliz voando vai indo ao som do vento vai ver o meu querido filho

e vai festejar o aniversário do dia 18 de Dezembro.

3 «La distinction épistolaire se marque par le mépris des règles qu'on enseigne et que personne ne veut ou ne peut

appliquer». (Boureau 1991, p. 127)

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Ou esta outra, feita para o Natal:

Vai carta feliz voando nos biquinhos de um pardal vai ver o meu querido filho

que em Angola vai passar o primeiro Natal

É também em verso que J. F. escreve à mãe no dia 8 de dezembro (Dia da Mãe) como testemunho dos seus sentimentos, unidos aos valores dos militares e da sua unidade:

Perdoa mãe, os verços que te faço Mas desejo que sejas recordada Sobre as nuvens do Céu nesta abalada Pelos caminhos rápidos do espaço Quando te dei o derradeiro abraço Ficaste de alma triste e alvoraçada E até eu me senti embaraçado Para te dizer que não temesses nada Agora crê: Saltando no espaço Com montes e florestas a meus pés E o Sol a prumo a arder em pleno brilho Salta! Não tenhas medo. É livre o ar Atirate dos espaços sobre as casas

Quando perto dos astros tremem os Pára-Quedas O que apetece é saltar, saltar, saltar

Cada Pára-Quedas é um berço de embalar Se queres dorme sobre as nuvens rasas Ou nas ansias das alturas em que saltas Esquece a vida e deixa-te sonhar

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Referências

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