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ARTE, CIÊNCIA E GÊNERO: MARIE-ANNE, LAVOISIER E A ANÁLISE DO RETRATO DE UM CASAL CIENTÍFICO

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REVISTA DEBATES EM ENSINO DE QUÍMICA – ISSN: 2447-6099

ARTE, CIÊNCIA E GÊNERO:

MARIE-ANNE, LAVOISIER E A ANÁLISE DO

RETRATO DE UM CASAL CIENTÍFICO

Paloma Nascimento dos Santos

1 E 2 (pns.paloma@gmail.com)

1. Secretaria de Educação de Pernambuco (SEDUC-PE) 2. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

08

Paloma Nascimento dos Santos é Doutoranda em Educação e Ensino de Ciências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora de Química da Secretaria de Educação de Pernambuco, pesquisa nas áreas dos Estudos Culturais, Ciência e Gênero, Ciência, Gênero e Negritude e História das Ciências.

RESUMO

Em Antoine Laurent Lavoisier (1743–1794) and His Wife (Marie Anne Pierrette Paulze, 1758–1836) de Jacques-Louis David tem-se um casal científico como protagonista. O pintor, para além de retratar uma cena casual de afeto, imprimiu a trajetória científica do casal no retrato. Este texto parte da obra de Louis David para promover um diálogo eentre ciência, história, arte e as teorizações sobre as relações de gênero, centradas na pessoa de Marie-Anne Paulze Lavoisier.

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ART, SCIENCE AND GENDER:

MARIE-ANNE, LAVOISIER AND A SCIENTIFIC

COUPLE PORTRAIT ANALYSIS

ABSTRACT

Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) and His Wife (Marie Anne Pierrette Paulze, 1758-1836), by Jacques-Louis David has a scientific couple as protagonist. The painting, more than portraying a casual scene of affection, imprinted the couple's scientific trajectory. This article takes as starting point a Louis David's work to promote a dialogue between science, history, art and theorizations on gender relations, centered in Marie-Anne Paulze Lavoisier‟s cientific trajectory.

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1 INTRODUÇÃO

As paredes de mármore indicam um aposento imponente, não parece ser nem um laboratório, nem um ateliê. As colunas e a mesa coberta por um tecido de veludo nos fazem inicialmente desistir da ideia de que é um local de trabalho. Vemos um casal em uma pintura que é sobre uma troca de olhares. Ele olha para ela, que olha para o pintor – o pintor também somos nós, espectadoras e espectadores amalgamados –, ela sorri. É, sim, um local de trabalho, com objetos dispostos sobre o fazer dos dois: na cadeira vemos algo semelhante a um caderno grande com desenhos, que pertence a ela; e na mesa e no chão, objetos vários que pertencem a ele. Ambos estão elegantemente vestidos e há um destaque para a pessoa dela, a disposição de seu corpo e o fato de ocupar quase um terço do quadro demonstram importância. Ela nos vê com seus cabelos longos e cacheados e se apoia delicada e displicentemente em seu companheiro, que interrompe a escrita para contemplá-la. A cena congelada: companheiros? Colaboradores? Apenas mais um clássico retrato de casal?

A obra Antoine Laurent Lavoisier (1743–1794) and His Wife (Marie Anne Pierrette Paulze, 1758–1836) de Jacques-Louis David é o objeto de estudo deste artigo. Este texto parte da pintura para refletir sobre seu contexto histórico e artístico e analisá-la como símbolo de representação da ciência da época. A três personagens retratadas (Marie-Anne, Lavoisier e o pintor) estão presentes para promover um diálogo sobre ciência, história, arte e as teorizações sobre as relações de gênero. O quadro será analisado em detalhes, apresentando seu contexto histórico, focalizando especificamente nos estudos do casal Lavoisier sobre oxigênio e na organização da Química como ciência no século XVIII.

Tomam-se, ainda, como perguntas balizadoras das discussões de gênero promovidas a partir da análise da pintura, as seguintes

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questões: como podemos analisar o retrato e correlacioná-lo com a participação de Marie-Anne na trajetória científica de Lavoisier? Qual a importância de Marie-Anne e como sua figura dialoga com os estudos sobre gênero e ciência? A pintura centraliza sua figura, mas a história apaga ou reduz sua trajetória? Neste artigo, a relação entre ciência e arte e gênero se dá pelo protagonismo das próprias personagens do quadro: cientistas, artistas, mulher.

2 A HISTÓRIA DE UM RETRATO E DE UM PINTOR

Jacques-Louis David foi um pintor parisiense, filho de uma abastada família francesa que desejava uma carreira de arquiteto para dar continuidade aos trabalhos de seus tios, com quem foi criado. Nascido em 1748, estudou na Royal Academy de pintura e escultura de Paris e, também na Itália, pesquisando as obras de Caravaggio e Nicolas Poussin. David se tornou o principal representante do neoclassicismo francês e foi o pintor oficial da corte francesa e de Napoleão Bonaparte. Suas principais obras são: A Morte de Marat (1793), Napoleão no Passo de São Bernardo (1801), Paris e Helena (1788) e A Coroação de Napoleão (1805). Louis David realizou inúmeros retratos por encomenda e, é no seu trabalho como retratista, que sua vida se cruza com a do casal Lavoisier. Diferente de suas pinturas históricas, os retratos produzidos por David são peças em que personagens e poucos objetos dialogam para deixar em evidência a pessoa retratada (BORDES, 2005).

A pesquisadora Mary Vidal discute, em artigo de 2005, que as conexões entre os Lavoisier e David vão mais longe do que uma contratação para pintar um quadro. O artista, como Lavoisier, estudou no Collège Mazarin (Collège des Quatre Nations) onde poderiam ter cruzado pela primeira vez. Para a autora, é possível que ter compartilhado a mesma escola tenha aproximado o pintor do cientista. Além disso, em 1785, Antoine Lavoisier, já uma figura pública de destaque na França, fez comentários públicos favoráveis ao quadro O

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Julgamento dos Horácios (1784) de David, e, conta-se que Marie-Anne Lavoisier recebeu aulas de desenho do pintor em 1786 (VIDAL, 2005).

Análise do quadro

O quadro (Figura 1), finalizado em 1788, é uma pintura em óleo sobre tela. Considerado um dos mais famosos retratos já feitos de um cientista, mostra o casal em um aposento, cercado por seus instrumentos de trabalho.

Figura 01: Antoine Laurent Lavoisier and His Wife, de Jacques-Louis David, 1788.

Fonte: Public Domain, Metropolitan Museum of Art [US]. Disponível em: https://goo.gl/Dnpz6s

Estudiosos (VIDAL, 1995; BERETTA, 2005) da obra de Louis David afirmam que o retrato do casal Lavoisier dialoga com um quadro

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pintado anteriormente por David, intitulado Paris e Helena (Figura 2). Para além das semelhanças estéticas, estes comentaristas comparam também as rimas narrativas feitas por David nas duas obras. Para Mary Vidal (1995):

Embora sejam gêneros diferentes que mostram dois tipos aparentemente diferentes de amor, um adúltero, o outro mais leal. Paris and Helen e o retrato do casal Lavoisier são muito mais parecidos em sua apresentação do amor do que geralmente se supõe. Seus padrões composicionais e poses figurativas têm sido frequentemente estudados. No entanto, a atenção de David às relações afetivas de seus sujeitos nos diz muito sobre as preocupações estéticas e sociais formuladas nas imagens. Paris e Antoine Lavoisier estão sentados, posicionados à direita, com a cabeça erguida para contemplar com ternura e admiração suas parceiras; e ambos os homens são mostrados com seus instrumentos: Lavoisier, o químico, com sua caneta, papel e frascos de laboratório; Paris, o pastor-poeta, com sua lira. Quanto às mulheres, elas se inclinam para perto deles, deixando um braço deslizar pelo ombro dos companheiros. Uma sensualidade "natural" nessas mulheres é sugerida pelos tecidos finos e suaves de suas roupas e pelos cabelos soltos. (VIDAL, 1995, p. 606).

Finalizados no mesmo período, o quadro Paris e Helena retrata o casal, personagens da Ilíada de Homero, responsáveis pelas tramas de amor, traição, rapto e guerra em Tróia.

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Fonte: Department of Paintings of the Louvre [FR]. Disponível em: https://goo.gl/4SCECk

Nas duas pinturas as mulheres são retratadas com centralidade, ainda que as narrativas históricas as desloquem para outro papel. No retrato do casal Lavoisier, os elementos dispostos são ferramentas para entender o contexto histórico e trajetória, tanto de Antoine quanto de Marie-Anne Lavoisier.

No canto esquerdo da pintura é possível observar, disposto em uma cadeira, algo como um portfólio dos desenhos produzidos por Marie-Anne Lavoisier (Figura 03). Marie-Marie-Anne recebeu aulas de desenho e pintura e uma das contribuições mais importantes para a agenda de pesquisa de Antoine Lavoisier foi a participação da esposa como tradutora, ilustradora e editora de suas obras.

Figura 03: Detalhes do quadro mostrando o provável portfólio com desenhos de Marie-Anne Lavoisier.

Fonte: Public Domain, Metropolitan Museum of Art [US]. Disponível em: https://goo.gl/Dnpz6s

Seus desenhos são de especial interesse, pois o trabalho de Lavoisier na Química estava centrado na quantificação acurada de todos os procedimentos experimentais, que incluía o planejamento e uso de

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diversos instrumentos, alguns pioneiros na época. Seu trabalho e sua presença como mulher na organização das pesquisas de Lavoisier será discutido de forma mais aprofundada nas próximas seções.

Importante destacar, porém, que Madame Lavoisier já tinha experiência como artista, pois tivera lições de desenho com o próprio David. Há indícios de que Madame Lavoisier continuou interessada em artes mesmo após a morte do marido. Preparou desenhos para os livros Traité Élémentaire de Chimie e Mémoires de Physique et Chimie, de Lavoisier e teve sua assinatura como artista eternizada nessas obras. Para Beretta (2002), ao retratar Madame Lavoisier como o símbolo encarnado da mediação entre arte e ciência em seu retrato, David estava ilustrando uma qualidade que havia sido reconhecida pela comunidade parisiense: Marie-Anne era uma artista envolta em ciência. Os dados biográficos sobre a formação artística de Madame Lavoisier nos ajudam a esclarecer as circunstâncias que levaram o casal a pedir a David que produzisse um quadro tão rico.

Já Lavoisier, o Paris do retrato, está elegantemente vestido, não só como um cientista, mas como um homem que pertencia à burguesia parisiense. Cercá-lo, como personagem, de instrumentos químicos que contam a história de sua pesquisa, segundo Marco Beretta (2002), demonstra a intencionalidade de Jacques-Louis David de nos contar uma narrativa histórica das pesquisas de Lavoisier. Os instrumentos na pintura podem ser organizados em ordem cronológica, indicando a revolução científica que emergia na época.

Começando pelo areômetro localizado no canto direito da pintura. Este instrumento, utilizado desde a antiguidade, servia para medir a densidade de fluidos. Lavoisier começou a usar sistematicamente os areômetros durante sua viagem com Jean Etienne Guettard entre 1763 e 1767 (BERETTA, 2002). Nesta época, Lavoisier iniciava sua carreira no campo da geologia, onde aperfeiçoou técnicas de medidas de precisão. Neste período também passou a se envolver com pesquisas

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sobre o suprimento de água de Paris, que o levou a realizar experimentos para desaprovar a ideia que a água se tornava em terra quando aquecida (RONAN, 1983). Utilizando este instrumento eles quantificaram diferentes quantidades de sal contidos em águas minerais e Lavoisier continuou trabalhando com aerômetros (Figura 04) em seus estudos com gases. Testando, inclusive, adaptações para que pudesse obter resultados quantitativos mais apurados, base de sua nova proposta científica.

Figura 04: Detalhes do quadro mostrando equipamentos utilizados por Lavoisier.

Fonte: Public Domain, Metropolitan Museum of Art [US]. Disponível em: https://goo.gl/Dnpz6s

Outro objeto presente na pintura dialoga com as pesquisas sobre as reações químicas que Lavoisier vinha fazendo com os “ares”: ao lado do areômetro, um balão de vidro que serviria para coletar e pesar os gases nas reações químicas (Figura 04). Finalmente, a mesa e seus três objetos que encerram a cronologia das pesquisas de Lavoisier disposta no quadro. Ao lado das penas observamos a presença de um gasômetro de mercúrio, um eudiômetro e uma campânula de vidro.

Figura 05: Detalhes do quadro mostrando equipamentos utilizados por Lavoisier

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Fonte: Public Domain, Metropolitan Museum of Art [US]. Disponível em: https://goo.gl/Dnpz6s

O gasômetro ganhou visibilidade com os estudos do próprio Lavoisier, que, no terceiro capítulo do Tratado Elementar de Química, descreveu técnicas e aparatos de laboratório, incluindo uma parte para a Química Pneumática. Neste trecho do Tratado, Lavoisier descreveu o gasômetro em detalhes: um instrumento para estocar gases e medir seus volumes. O gasômetro utilizado nas pesquisas com os ares, foi desenvolvido por Lavoisier, junto com o engenheiro Jean Baptiste Meusnier. Era um instrumento caro e de complexa construção, estando inacessível para grande parte da comunidade científica da época. Lavoisier, abastado, pôde trabalhar com tecnologia de ponta, mas ao final do século XVIII, o uso do aparelho já havia se disseminado (TOMORY, 2012).

Ao lado do gasômetro (Figura 05), um cilindro contendo mercúrio semelhante a um eudiômetro, aparelho utilizado para medir mudanças de volume em reações químicas com gases ou misturas de gases. Em artigo que destaca a iconografia de Lavoisier, Marco Beretta (2002) afirma que o aparato pintado por Louis David seria mais semelhante a

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um instrumento para medição da absorção de gases inventado por Felice Fontana, um naturalista italiano. Lavoisier conhecia os trabalhos e instrumentação de Fontana trabalhos e utilizou adaptações delas em seu projeto de revolução científica. O último instrumento pintado, uma campânula de vidro parcialmente cheia de água, também era utilizada em experimentos para a medição de volume de gases, principalmente em reações de combustão e fermentação. Lavoisier, então, seria eternizado no quadro por David ao lado daqueles instrumentos que fizeram o mundo se deslocar de um cotidiano de ares, espíritos e éteres para um mundo normatizado e organizado de gases, ácidos e nomenclaturas padrão.

3 A ARTE DA DESCOBERTA DE UM GÁS: O CASAL

LAVOISIER E O OXIGÊNIO

Em 1748, Lavoisier organizou uma série de experimentos que resultou em um conjunto de gravuras feito por Marie-Anne, que oferece um interessante objeto de estudo sobre o processo de colaboração do casal e a importância dela para a pesquisa. As imagens foram feitas a partir dos experimentos que Lavoisier empreendeu sobre respiração e transpiração, acompanhados de perto por Madame Lavoisier (WEST, 2013). A primeira delas (Figura 06) mostra um sujeito sentado respirando em uma máscara feita de cobre. Este homem é, provavelmente, Armand Séguin, colaborador de Lavoisier nestas seções experimentais (BERETTA, 2012). Seu pulso está sendo monitorado e, o homem à sua direita que está dirigindo o experimento e ditando os resultados, provavelmente é Lavoisier. O gás expirado entra na grande jarra central da ilustração e o gás efluente também é coletado em um contêiner com líquido. Nota-se, na extremidade direita da figura, a pessoa de Anne-Marie Lavoisier tomando notas.

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Figura 06. Desenho de Marie-Anne Lavoisier para um experimento sobre consumo de oxigênio.

Fonte: BERETTA, 2012

Em uma segunda ilustração, pode-se verificar a execução de um experimento semelhante, mas dessa vez o homem com a máscara está realizando um pequeno movimento, como é possível observar por causa do pedal em seu pé por baixo da mesa. Novamente, Marie-Anne Lavoisier se auto-retrata observando o experimento e tomando notas à direita da ilustração (Figura 07).

Figura 07. Desenho de Marie-Anne Lavoisier para o experimento de consumo de oxigênio com o sujeito realizando trabalho.

Fonte: BERETTA, 2012

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observar e registrar os resultados. Estas ilustrações serviriam também para reforçar, não só o caráter colaborativo do casal, mas também o trabalho coletivo do grupo, evidenciando o processo de construção científica, que não é individual. Para Vidal (1995), Marie-Anne reconhecia a esfera privilegiada que o laboratório tinha no processo de construção de novos saberes científicos e concebeu seu papel artístico como parte do evento, registrando-se.

A recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino é apontada por Joan Scott (1995) como uma estratégia que historiadoras e historiadores vem utilizando para reescrever a história das mulheres e reagrupar os interesses, que antes eram mínimos, e trazer para o centro uma história que sempre esteve às margens. Para entender as intersecções entre as relações de gênero na história e na história das ciências, deve-se, em primeiro lugar, considerar o gênero como elemento constitutivo de relações sociais e uma forma primária de dar significado às relações de poder. Para Joan Scott (1995, p. 88), “o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas ele parece ter sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas”. Em sequência, lidar com o sujeito social (mulher, em nosso caso) inserido em organizações sociais e articular a natureza de suas interrelações admitindo que a estrutura social não é unificada, mas disperso e capilar. Em terceiro lugar, incluir uma concepção de política e uma referência às instituições e organização social, expandindo o conceito de gênero para além do parentesco (família e parentesco) examinando as relações de trabalho, educação e sistemas políticos. O quarto e último aspecto analítico a utilizar é o que Joan Scott chama de identidade subjetiva e sugere que sejam examinadas historicamente as formas pelas quais as identidades generificadas são construídas relacionando atividades, organizações e representações sociais historicamente específicas. A autora, inclusive, reforça que algumas

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das melhores tentativas de aplicação desse último aspecto se deram por meio da análise de biografias (SCOTT, 1995). Uma das contribuições mais importantes de Marie-Anne Lavoisier foi sua participação como tradutora, ilustradora e editora das obras de Lavoisier. Seus desenhos são de especial interesse, pois o trabalho de Lavoisier na Química estava centrado na quantificação acurada de todos os procedimentos experimentais, que incluía o planejamento e uso de diversos instrumentos, alguns pioneiros na época. No seu livro Traité Élémentaire de Chimie, de 1789, há um conjunto de 13 pranchas ilustradas por Marie-Anne. Seus desenhos destacam-se pela riqueza de detalhes e dimensões (Figura 08).

Figura 08. Desenhos de Marie-Anne Paulze para um calorímetro (plate VI) e equipamentos para medição de gases (plate VIII).

Fonte: WEST, 2013

Além de ilustrar o Traité, Marie-Anne trabalhou em um conjunto de oito volumes intitulado Mémoires de Physique et Chimie, obra que foi interrompida por causa da execução de Lavoisier.

Outra importante contribuição de Marie-Anne foi a tradução do inglês para o francês do texto Ensaio sobre o Flogisto de Richard Kirwan que tratava da teorização sobre o flogisto, substância existente na natureza cujo trânsito para dentro e para fora dos corpos e estruturas durante

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processos de queima explicava boa parte dos processos químicos e biológicos da época. Marie-Anne era fluente em inglês e latim e sua tradução foi importantíssima para que Lavoisier e seus colegas de pesquisa pudessem apresentar refutações ao flogisto. Ao discutir sobre o trabalho em colaboração feito por Marie-Anne Lavoisier, Cassandra Eagle e Jennifer Sloan (1998) afirmam que ela era assistente de laboratório, assistente de publicação, confidente científica, ilustradora, editora e tradutora de artigos científicos. As autoras, no entanto, passam a se referir ao casal como “os Lavoisiers”, eclipsando a Marie-Anne, considerando-os como algo único. O trabalho científico do casal inclui o estabelecimento de uma nomenclatura sistemática para elementos e compostos, o entendimento da combustão e a relação entre o “ar inflamável” (hidrogênio) e o “ar vital” (oxigênio), o uso de um método científico para realizar medidas mais acuradas para o estabelecimento de leis de conservação a partir de pesquisas sobre respiração, fermentação e combustão, todos eles tendo sido assistidos, documentados e ilustrados pela Madame Lavoisier (EAGLE & SLOAN, 1998).

John West (2013) defende que “Marie-Anne foi única no sentido de que suas colaborações com seu famoso marido foram importantes para seu sucesso. Certamente nenhum outro grande cientista teve apoio de seu cônjuge” (WEST, 2013, p. 778). As contribuições dela estariam divididas, historicamente, em três grandes áreas: traduções, criação gráfica e editoração. Seus trabalhos de tradução foram fundamentais pois muito do trabalho sobre a química dos gases na época estava sendo desenvolvido na Inglaterra e Lavoisier se recusava a aprender inglês, tarefa que coube a Marie-Anne. Além do livro sobre o flogisto citado e das muitas traduções de artigos, foi por meio do trabalho da esposa que Lavoisier teve contato com o trabalho de Joseph Priestley cujas discussões tiveram corpo no acontecimento do oxigênio. Em sua função como editora, concentrava-se em organizar um conjunto de Memórias do trabalho do marido, uma extensa descrição de todos os

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trabalhos na área de química e física do casal, e Marie-Anne apareceria como co-autora. Após a morte de Lavoisier e confusão sobre autoria com um assistente de pesquisa, a publicação foi abortada (WEST, 2013).

A colaboração entre maridos e mulheres foi estudada por historiadores da ciência que demonstraram que, especialmente para as mulheres, o casamento serviu como um caminho informal para a ciência. As mulheres trabalhavam ao lado de seus maridos, numa divisão sexual que imprimia fortemente um “trabalho de mulher” nas ciências. Esses trabalhos geralmente eram repetitivos e tediosos (nos lembra as horas mexendo um caldeirão de amostras de minério que foi trabalho de Marie Curie durante muito tempo), a atuação em equipes técnicas invisíveis, “apoiando o homem no centro do palco” (p. 71).

Os trabalhos de desenhar durante horas excertos botânicos (nos lembra a Marie-Anne que desenhava durante horas os repetitivos experimentos de Lavoisier), meditar sobre chapas estelares astronômicas, catalogar coleções de história natural, mensurar rastros em filmes e calcular equações antes do advento dos computadores era trabalho de mulher (SCHIEBINGER, 2001). A consequência de uma divisão binária exclui ou coloca as mulheres das ciências em um outro lugar, e afeta todo o tecido humano a partir da operação do gênero. Observa-se que essas relações de força organizadas a partir de um discurso de complementaridade escapa para as relações, das mais simples como as de casa, para as maiores como as das instituições da ciência. Às mulheres eram relegadas as atividades de menor prestígio e ainda que elas tivessem papel e participação fundamental em acontecimentos revolucionários na história das ciências, ainda estavam inscritas como parte de um casal, inscritas por um apagamento a partir de um sobrenome.

Marie-Anne Lavoisier circulava em um espaço aparentemente “permitido”. Os salões franceses eram reuniões organizadas por uma anfitriã ou um anfitrião que juntava artistas, escritores, filósofos e

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cientistas para promover debates e diversão. A organização dos salões era restrita à aristocracia e muitos salões famosos eram capitaneados por mulheres. Nesses lugares as mulheres, além de organizarem o aparato físico para recepcionar convidadas e convidados, também eram responsáveis pelos debates, pela produção literária, filosófica e artística, funcionando como ponto de confluência dos saberes que circulavam pelo salão. Um dos temas de debate nos salões dizia respeito a querela das mulheres, nome pelo qual é conhecido o debate histórico, filosófico, teológico, científico e político sobre as questões que buscavam demonstrar a “inferioridade natural” das mulheres em contraposição à “superioridade natural” dos homens. Esse discurso era utilizado para valorar homens e mulheres além de determinar quais lugares ocupar na sociedade. Marie-Anne Lavoisier também era dona e anfitriã de um salão consagrado à discussão política da época que em seguida vai se transformado em um salão dedicado à nova química (PATIÑO & BARRAL, 2011).

Muitos dos protagonistas das ciências da época estavam presentes nas reuniões: Jean Baptiste Bucquet, que era defensor do flogisto e foi convencido por Marie-Anne a abandonar essas ideias, oferecendo perguntas de pesquisa para Lavoisier, Claude Louis Berthollet, médico que introduziu Lavoisier ao círculo de cientistas ingleses que já estavam pesquisando os gases, Louis Bernard Guyton de Morveau, químico que colaborou com Marie-Anne na elaboração de refutações ao flogisto, Pierre Simon Laplace, colaborador de Lavoisier e inventor do calorímetro publicado no livro Memórias sobre o calor e ilustrado por Marie-Anne e Armand Séguin, químico experimental cobaia dos experimentos sobre respiração e redator, junto com Marie, das memórias sobre os experimentos realizados. Nos salões é possível deixar de ser esposa de alguém e passar a ser aquela que movimenta debates e articula ações dentro da pesquisa científica da época (PATIÑO & BARRAL, 2011). Apesar disso, Marie-Anne Lavoisier é retratada na história como uma mulher sedutora, sensual e ardilosa em

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prol da ciência. Sobre seus salões, Xoana Pintos Barral e Manuel Bermejo Patiño (2011) escrevem que:

O laboratório do Arsenal transformou-se, pouco a pouco, en lugar de encontro todos os homes eminentes nas ciencias. Marie-Anne facía á vez de “dona nova da casa” e de secretaria. O seu encanto atraía aos máis ilustres; Laplace tivo para ela un sentimento tenro e Dupont de Nemours sairá de alí perdidamente namorado. O físico Magalhaens, o descendente do navegante portugués, buscou para ela libros esgotados nos libreiros de vello londinienses (PATIÑO & BARRAL, 2011).

O perfil de submissão, recato e discrição parece não fazer parte das narrativas que envolvem a vida de Marie-Anne Lavoisier, muitas vezes desabonada por seus dois casamentos, e pelo perfil comunicativo. Na peça Oxigênio, texto de Carl Djerassi e Roald Hoffmann sobre as disputas em torno do acontecimento do gás, Antoine Lavoisier, Joseph Priestley e Carl Wilhem Scheele participam de uma disputa velada para ser o pioneiro a publicar os experimentos que acabariam por mostrar ao mundo o famoso gás. A participação das esposas Marie-Anne Lavoisier, Mary Pristley e Sara Pohl é fundamental para a trama, que se passa entre saunas, jantares e salões. São elas que movimentam os diálogos, escutam à espreita e reportam a seus maridos.

Marie-Anne Lavoisier é retratada na peça como fundamental para que Lavoisier se lance na frente nas pesquisas sobre o oxigênio por causa da sua fluência em inglês, mas é retratada como ardilosa, provocadora, indiscreta e responsável pelo roubo de informações. A escrita da história confere a mulheres diferentes o não lugar. Quando é possível circular nos lugares das ciências, os interditos lembram que se é mulher, portanto, indesejável para aquele espaço. Quando se é dona do espaço, a inscrição na história se dá por controversas perspectivas, reafirmando que as mulheres, ainda que sejam protagonistas da promoção de debates nas ciências ou participantes do processo da construção de seus saberes, são interditadas por relações operadas pelo gênero.

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Ao final, a análise do retrato do casal Lavoisier acrescenta mais do que uma experiência artística. O amálgama pessoas espectadoras-pintor do quadro observam uma trajetória científica que não foi individual e a centralidade da posição de Marie-Anne Lavoisier. Ela não só estava ao lado do marido como musa, não estava atrás dele, ela está presente na área de trabalho como participante.

Essa presença nos faz lembrar não só de arte e de ciência, mas da importância das mulheres nas histórias das revoluções, inclusive das revoluções científicas. O retrato de Jacques-Louis David aqui utilizado nos serve como ferramenta de pesquisa, mas também como um alento. Em períodos em que mulheres são invisibilizadas e desumanizadas, enxergar a troca de olhares do retrato é libertador.

É libertador pensar que a imagem também nos desloca a pensar no fazer científico como algo colaborativo, não idealizado, possivelmente transparente e, porque não, afetivo, afastando-nos da ideia de genialidade individual que só exclui aquelas que sempre estão às margens: as mulheres.

REFERÊCIAS

ANDERY, Maria Amália et al. Para compreender a ciência: uma perspectiva histórica. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: São Paulo: EDUC, 1996.

BERETTA, Marco. Imaging a Career in Science: The Iconography of Antoine Laurent Lavoisier, 2002.

BERETTA, Marco. Imaging the experiments on respiration and transpiration of Lavoisier and Séguin: two unknown drawing by Madame Lavoisier. Nuncius, n. 27, p. 163-191, 2012.

BERMEJO, Manolo R.; BARRAL, Xoana, P. Marie Anne Paulze: muller de casa, salonniere, científica ou que? Boletín das ciencias, n. 73, p. 139-140, 2011.

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BORDES, Philippe. Jacques-Louis David: Empire to exile. Yale University Press, 2005.

DAVID, JACQUES-LOUIS. Antoine Laurent Lavoisier and His Wife, de Jacques-Louis David, 1788. Disponível em: <https://goo.gl/Dnpz6s>. Acesso em: 29 de março de 2018.

EAGLE, Cassadra T.; SLOAN, Jennifer. Marie Anne Paulze Lavoisier: The Mother of Modern Chemistry. The Chemical Educator, v. 3, n. 5, 1998.

RONAN, Colin. História Ilustrada da Ciência da Universidade de Cambridge. Volume III (da Renascença à Revolução Científica). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983.

SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru, SP: EDUSC, 2001.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, n. 20, v. 2, p. 71-99, 1995.

TOMORY, Leslie. Progressive Enlightenment: The Origins of the Gaslight Industry 1780-1820. The MIT Press, Cambridge: London, 2012.

VIDAL, Mary. David among the moderns: art, Science and the Lavoisiers. Journal of the History of Ideas, Vol. 56, No. 4 (Oct., 1995), pp. 595-623.

WEST, John B. The collaboration of Antoine and Marie-Anne Lavoisier and the first measurements of human oxygen consumption. AJP Lung Cellular and Molecular Physiology.

Imagem

Figura 01: Antoine Laurent Lavoisier and His Wife, de Jacques-Louis  David, 1788.
Figura 02: Paris e Helena, de Jacques-Louis David, 1788.
Figura 03: Detalhes do quadro mostrando o provável portfólio com  desenhos de Marie-Anne Lavoisier
Figura 04: Detalhes do quadro mostrando equipamentos utilizados por   Lavoisier.
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