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DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL São Paulo 2013

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Edson Holanda Lima Barboza

A hidra cearense

Rotas de retirantes e escravizados entre o Ceará e as

fronteiras do Norte (1877-1884)

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

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Edson Holanda Lima Barboza

A hidra cearense

Rotas de retirantes e escravizados entre o Ceará e as

fronteiras do Norte (1877-1884)

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História Social sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Antonieta Martines Antonacci.

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Banca Examinadora

________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Maria Antonieta Martines Antonacci

(Orientadora

PUC/SP)

________________________________________________

Prof. Dr. Frederico de Castro Neves

(Examinador externo

UFC)

________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Zélia Lopes da Silva

(Examinadora externa

UNESP)

________________________________________________

Prof. Dr. Ênio José da Costa Brito

(Examinador interno

PUC/SP)

________________________________________________

Prof. Dr. Amailton Magno Azevedo

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RESUMO

Analisamos interferências exercidas por retirantes cearenses na composição de rotas migratórias em direção às províncias do extremo Norte – Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Interpretamos repercussões das Diásporas da população cearense, entre os anos de 1877 e 1880, em decorrência da seca, e como foram percebidas por parte de trabalhadores escravizados do Ceará e de províncias vizinhas, enquanto oportunidades para reverter suas identificações e modos de vida, possibilitando a cativos ou clandestinos acessos a projetos de mobilidade e inserção social até então negados. As trajetórias conflituosas, envolvendo cativos insubordinados e pobres livres, percorreram centros administrativos provinciais, frentes de trabalho e colônias agrícolas. Neste percurso, escravizados, colonos nacionais e estrangeiros formaram zonas de contato em que foi possível a troca de experiências e solidariedades. Um dos principais pontos de convergência foi o Núcleo Colonial de Nossa Senhora do Carmo de Benevides, nas proximidades de Belém, espaço planejado pelas elites locais para fomentar a produção agrícola no Pará, contudo, inesperadas articulações de alianças transformaram este núcleo em palco de motins e foco de lutas abolicionistas.

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ABSTRACT

We will analyze interferences exerted by refugees from Ceará in the composition of migratory routes towards the provinces of the far North - Piauí, Maranhão, Pará and Amazonas. It interprets the impact of Diaspora of Ceará, between the years 1877 and 1880, due to drought, and how it was perceived by enslaved workers from Ceará and neighboring provinces as opportunities to reverse their identities and lifestyles, enabling captives or criminals to access denied projects of mobilization and social inclusion. The conflicting trajectories involved unruly captives and free paupers traversing provincial centers, public works and agricultural colonies. In this way, enslaved, national and foreign settlers formed contact zones in which it was possible to exchange experiences and solidarities. One main zone was the Núcleo Colonial de Nossa Senhora do Carmo de Benevides, next to Belém, a space planned by local elites to boost agricultural production in Pará, which, however, was a place of unexpected alliances joints that turned this core in place of riots and in focus of abolitionist struggles.

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Do rio que tudo arrasta se

diz que é violento

Mas ninguém chama violentas as

margens que o comprimem

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À CAPES e ao CNPq pela bolsa de estudos que permitiu o desenvolvimento e a conclusão da pesquisa.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em História Social da PUC/SP, especialmente à Prof.ª Dr.ª Maria Odila, pelos instigantes debates em Seminário Temático.

À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Maria Antonieta Antonacci, por toda generosidade em compartilhar sua experiência como pesquisadora. Desde que acolheu o desafio proposto na seleção, ofereceu contribuições acadêmicas, materiais e emocionais inestimáveis. Obrigado!

Aos professores Dr. Ênio Brito e Dr. Amailton Azevedo pelas críticas, leituras precisas e apreciações valorosas apresentadas na banca de qualificação.

Aos professores da Universidade Federal do Ceará, onde iniciei minha vida acadêmica, em particular ao Prof. Dr. Fred Neves, tutor, na época do PET, pelo incentivo na elaboração dos projetos de pesquisa com que concorri ao mestrado e ao doutorado.

Aos amigos que acompanharam e torceram por minha sanidade mental nos dias mais

difíceis de “retiro intelectual’: Gustavo, Tyrone, Ilana, Emiliano, Carol Ruoso, Carolzinha, Carlinha, Joelma, Geórgia, Geísa, Clarissa e Josberto.

Aos colegas de trabalho da Universidade Estadual do Piauí, Professora Rosineide Candeia, diretora do Campus de Parnaíba, e os Professores Roberto Kennedy, Samara Oliveira e Clódson Silva, pelo apoio e companheirismo na reta final da redação.

A todos os funcionários das instituições de pesquisa percorridas, representados pela figura da Dona Vilma, do Arquivo Público do Maranhão, exemplo de dedicação ao que faz.

Aos colegas da turma do doutorado, especialmente aos amigos Danielle Rocha, Patrícia Mechi e Nilo Dias, companheiros de reflexões, tensões e atividades lúdicas.

A Danielle, Beto e Dimi, agradeço a acolhida calorosa em seu lar na rua dos Ingleses. Aos amigos do Ceará que estudavam na USP, e que partilhamos o mesmo teto em algumas temporadas - Wilson e Daniel; e às pessoas queridas que conheci por intermédio desta zona de contato - Mariella, Alfred e Érica.

Às minhas irmãs (Rita, Regina e Edna), que sempre estiveram aos seus modos apoiando minha trajetória.

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AN – Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)

APEC – Arquivo Público do Estado do Ceará (Fortaleza)

APEPI - Arquivo Público do Estado do Piauí (Teresina)

APEM - Arquivo Público do Estado do Maranhão (São Luís)

APEP - Arquivo Público do Estado do Pará (Belém)

APEA - Arquivo Público do Estado do Amazonas (Manaus)

BN – Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro)

BPMP –Biblioteca Pública Menezes Pimentel (Fortaleza)

BPBL –Biblioteca Pública Benedito Leite (São Luís)

CENTUR – Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (Belém)

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (on-line)

IC - Instituto Histórico do Ceará (Fortaleza)

IHGA Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas (Manaus)

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Mapa 1 – Província do Ceará em 1861...43

Mapa 2

Ceará: divisão político-administrativa em 1872...44

Tabela - Saída de escravos do porto de Fortaleza. 1874-1879...73

Anúncio de Escravo Fugido. Pedro II, Fortaleza, 07/03/1878...83

Mapa 3

Piauí. 1868/atual...85

Mapa 4

Colônias Agrícolas do Maranhão...107

Mapa 5

Quilombos Maranhenses

Século XIX...117

Tabela

Extensão territorial e quadro populacional (Ceará, Piauí, Maranhão,

Pará e Amazonas)...145

Mapa 6: Região Bragantina/PA e Colônia Benevides...157

Mapa 7: Pará.Atual...157

Tabela

Retirantes matriculados em Benevides (abril de 1878 a fevereiro de

1879...162

Tabela

Colônias agrícolas e povoações. Amazonas, 1878...172

Mapa 8

Ferrovia Madeira-Mamoré...178

Tabela

Pará: habitantes classificados por raça em 1872...191

Mapa 9

Principais mocambos do Pará. Séculos XVIII e XIX...193

Tabela

Cearenses sepultados em Belém (Janeiro de 1879)...196

Anúncio de Escravo Fugido. A Constituição, Belém, 24/08/1878...200

Anúncio de Escravo Fugido. A Província, Recife, 28/04/1878...207

Trecho de ofício do subdelegado de polícia em Benevides 03/07/1884...219

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Introdução...11

Capítulo 1 - A hidra retirante: migrantes e escravos na Diáspora cearense...41

1.1- A Diáspora cearense: migrações e destinos...45

1.2 - O Governo do caos: o domínio da (des)ordem em sertões e portos cearenses...57

1.3 A fuga de escravos em anúncios de jornais cearenses...69

Capítulo 2 - Da Ibiapaba ao Gurupi: rotas de migração e fuga em direção ao Piauí e Maranhão...85

2.1 - Trânsitos pelo Piauí ...86

2.2 - Cenas da escravidão e da resistência negra no Piauí... 93

2.3 Trabalho e migrações no Maranhão Oitocentista ...102

2.4 Fujões em circuitos e rotas maranhenses... 109

2.5 - Nas matas e pântanos do Gurupi/Turiaçu: Limoeiro/Prado Quilombo de pretos e brancos...119

Capítulo 3 - Nem tudo era seringal: trabalho e colonização na fronteira norte...128

3.1-Fazer a Amazônia: trânsito, trabalhos e conflitos...132

3.2-Benevides e região bragatina: semente da colonização ou da sedição?...152

3.3-Entre Manaus e a Madeira-Mamoré: fim de linha?...172

Capítulo 4 - Em campos mestiços: transgressões, deslocamentos e abolicionismos... 185

4.1- Negros e retirantes no Pará Oitocentista...185

4.2 Benevides: Quilombo abolicionista?...208

Considerações finais...225

Fontes...229

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Essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.1

As visões hegemônicas impostas por elites vinculadas à produção da borracha tem

realizado um trabalho de “enquadramento” das memórias da migração cearense, sempre associada à atividade do extrativismo, aprisionando outras expectativas e projetos. Parte desta tradição se encontra soterrada por uma historiografia que vincula os deslocamentos aos atrativos econômicos, desconsiderando outras possibilidades em curso, omitindo também a composição plural das populações. Acompanhando as perspectivas propostas por Michael Pollak, buscamos trazer à superfície elementos das memórias subterrâneas de migrantes, por muito silenciadas, e que, pela análise das crises provocadas por ações insubordinadas de retirantes e escravos em fins do século XIX, podem emergir.

Desta forma, em diálogo com as obras A hidra e os pântanos2 e A hidra de muitas cabeças, utilizamos a metáfora da hidra, uma vez que as ações das multidões que tentavam ser neutralizadas em Fortaleza ressurgiram em São Luís, Belém ou nas matas e rios de Turiaçu ou do Marajó, enquanto Flávio Gomes articula a formação de quilombos e fugas de escravos na Amazônia Colonial e Imperial. Linebaugh e Rediker apontam como o comércio marítimo e de feitorias, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, colocou em contatos diversos agentes que questionavam, em letras ou atos, as estruturas do escravismo. O navio, primeiro laboratório do sistema de fábrica, permitia não apenas a comunicação entre continentes,

também era “o primeiro lugar onde pessoas trabalhadoras de continentes diferentes se comunicavam”3. Os autores destacam a metáfora da hidra moderna como sendo a persistente resistência de marinheiros, escravos, poetas, piratas e desertores aos antigos e novos meios de exploração do trabalho. Assim como a mitológica hidra de Lerna regenerava suas cabeças ao serem cortadas, a hidra moderna também tinha suas cabeças regeneradas: a cada experiência de resistência abatida, outras tantas entravam no circuito da contestação. A hidra cearense, traz em sua composição uma população mesclada entre povos e culturas, com significativa

1 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos. Vol. 2 Rio de Janeiro: 1989. p. 4 . 2 GOMES, Flavio. A Hidra e os Pântanos: Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil.

(séculos XVIII-XIX). São Paulo: Unesp, 2005.

3 LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidrade muitas cabeças: Marinheiros, escravos e rebeldes no

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presença de descendentes de africanos, embora tenha em sua configuração outras matrizes étnicas - indígenas e europeias. Trata-se de uma hidra que possuía muitas cabeças e várias cores.

Partindo destes pressupostos, esta tese pretende analisar as relações estabelecidas a partir de experiências de migração de trabalhadores pobres e livres, de origem rural e urbana; negros escravos e libertos que partiram do Ceará nas décadas finais do Império. Tais deslocamentos tinham, como elementos de incentivo, as políticas de controle social impostas pela Província do Ceará, após a grande seca de 1877, e projetos de colonização implantados pelas Províncias do Maranhão e Pará, com o objetivo de impulsionar e modernizar a produção da agricultura com a presença de trabalhadores nacionais.

Estigmas e hierarquias sociais, contudo, com a manutenção de relações de trabalho mais próximas de uma permanência mascarada do escravismo, foram combustíveis para a formação de zonas de contato entre migrantes cearenses e setores da população pobre das províncias que serviam de porta de acesso à Amazônia, especialmente aqueles de origens africanas. Nosso objetivo central é mapear rotas e sujeitos que constituíram essas jornadas em direção à fronteira Norte.

Consideramos que havia uma ideia clara de oposição entre a percepção dos destinos tomados em momentos conturbados e tensos de secas, e que trabalhadores livres e escravos não tiveram um comportamento de completa inércia, enquanto passagens eram concedidas nos palácios ou termos de venda eram negociados.

Em 1877, Fortaleza, Província do Ceará, a “capital de pavoroso reino”, viu sua

população multiplicar de aproximadamente 20 mil almas para mais de 100 mil4, situação que colocou em xeque as tentativas de seguidos presidentes de província em manter o controle social por meio de diversas ações: frentes de trabalho (obras de estradas de ferro, calçamentos de ruas, construção e reforma de igrejas, praças, cadeias, câmaras), concentrações de retirantes em alojamentos improvisados fora dos limites da cidade e a concessão de passagens para fora da Província. Ao mesmo tempo, proprietários e comerciantes vendiam a última reserva econômica - seus escravos.

E foram exatamente as grandes circulações e aglomerações de retirantes que dificultavam o policiamento e a hierarquização social de multidões, condição observada por muitos sujeitos com objetivo de romper laços com poderes locais: seja ante a ameaça de recrutamento militar; contratos ou antigas lealdades que os prendiam ao proprietário de terras;

4

(14)

a autoridade abusiva dos pais; ou a possibilidade de serem jogados nas redes do tráfico interprovincial. Homens e mulheres, muitas vezes classificados de “criminosos”, “ociosos” ou

“fujões,” encontravam nos alistamentos e embarques de retirantes possibilidades de “assumir”

novas condições e projetar novos rumos em suas vidas. Era o momento de decidir. O que fazer? Que direção tomar na ocorrência de outros horizontes e oportunidades?

Os portos do Sul, principalmente Santos e Rio de Janeiro, recebiam desembarques de escravos comprados em províncias do Norte, além de trabalhadores pobres livres, destinados às grandes lavouras de café. Era um ambiente de trabalho bastante rígido, com referência de disciplina ainda do escravismo, em que a expectativa de um roceiro livre, de tornar-se um pequeno proprietário, tornava-se muito difícil em razão da política de fechamento de terras, adotada desde a década de 1850. Para os cativos, pior expectativa: ser vendido para uma grande propriedade fragilizava espaços de autonomia e solidariedade que poderiam permitir a compra da alforria, além da separação de membros da família. Para livres ou escravos, as margens de transgressão eram mais restritas, pois, apesar de o corpo policial ser frágil em todo Império, quanto mais perto da Corte, mais infraestrutura teria a polícia para conferir passaportes, documentos ou passagens, gerenciar portos, fronteiras e estradas.

Em contrapartida, as províncias do Norte, há anos implorando por projetos de colonização e povoamento, ofereciam terras para a fundação de colônias agrícolas. E, o mais importante, desde o período colonial, foram palco do surgimento de comunidades de foragidos da lei: desertores, condenados e escravos fugidos; um campo aparentemente mais propício para recomeçar a vida, considerando também que a falta de estradas e comunicações, com terras cortadas por pântanos e rios, atraíam aqueles que queriam ficar longe de autoridades policiais.

Pensar o problema das migrações para as províncias do Norte e dos desdobramentos abertos por tal experiência torna-se uma tarefa fundamental de historiografia, que busca visibilizar não apenas as forças de atração e repulsão comuns às migrações em geral, ou ao protagonismo de agentes públicos e da elite econômica, como expectativas e campos de possibilidades vislumbrados pelos próprios migrantes, que, no contexto apresentado, são identificados pela alcunha de retirantes - termo que comporta aparente homogeneidade a grupos diversos de origens (rural e urbana) e ocupações (agricultor, artesão). Se falar

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primeiro porque até aqui se costuma pensar a experiência de escravos e homens livres de forma apartada, ou escravo ou retirante, ignorando conexões criadas pelos próprios sujeitos em suas trajetórias. Trata-se de um terreno ainda movediço, mas não menos sugestivo, pois pode contribuir para a compreensão de configurações do mercado de trabalho em zonas periféricas do Império, as fronteiras do Norte, bem como problematizar a precoce abolição da escravidão no Ceará, além de perceber como setores das camadas populares subvertiam práticas do escravismo e suas hierarquias.

Por onde os retirantes passavam abalavam as estruturas do trabalho servil, fosse

porque o “trabalhador nacional” poderia substituir a carência de mão de obra (correspondendo a interesses das elites provinciais), ou porque, ao chegarem em multidão, muitos mestiços - caboclos, cabras, pardos ou negros - sufocou o poder de controle das frágeis polícias provinciais. Retirante passou a ser identificação assumida por alguns escravos fugidos do Ceará, Piauí e Maranhão para burlar controles do poder instituído. Também foram em colônias, criadas para retirantes cearenses no Maranhão e Pará, que escravos das províncias vizinhas buscavam “acoitamento”5. Nestas experiências de conexão entre retirantes e

escravos, vamos deter atenções.

Para prosseguir, outra observação é importante. A historiografia produzida sobre e na Amazônia, ao abordar a questão das migrações, geralmente a associa automaticamente à exploração da borracha, atividade que ficou conhecida por um sistema de dependência ao aprisionar por dívidas o seringueiro ao patrão. Apesar de não ignorar as atividades extrativistas, na primeira grande onda de migração (1877/1880), a borracha ainda não tinha atingido o monopólio econômico. Colônias agrícolas e o trabalho urbano em obras públicas, comércio e oficinas eram espaços que concorriam com os seringais por “braços cearenses”, sendo nestes espaços que as conexões retirantes-escravos podem ser melhor captadas. O importante é não cair na armadilha de dicotomizar a fronteira Norte, espaço que para alguns foi exibido como El dorado, podendo ser, para outros, o Inferno Verde. Consideramos as duas representações como faces da mesma moeda. A migração, por ser experiência humana, está repleta de conflitos e contradições, não podendo ser reduzida à busca do paraíso perdido ou à condenação ao inferno terrestre. Rios, vales e caminhos para a Amazônia estavam abertos a muitas possibilidades.

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Ainda há a dificuldade associada à falta de estudos que pensem os problemas ligados ao tráfico interno, à escravidão e às mutações no mercado de trabalho, de maneira articulada. Pesquisadores do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas abordam o tema, relacionando experiências de cada localidade, tomando como referência interesses e transformações ocorridas no Centro-Sul, ignorando as relações com as províncias vizinhas. Escravos, retirantes e pobres livres em geral, no entanto, que circularam por estas províncias, não ficaram limitados por ideias de fronteiras geográficas e identidades fixas. Por isso, ao encarar sujeitos que viviam experiências entre-lugares e identidades móveis, mobilizadas com suporte em posições situacionais, historiografias locais buscam particularidades de homens

livres e escravos “cearenses”, “maranhenses” ou afins, perdendo de vista experiências em que critérios raciais e de identidade de origem são diluídos nos cotidianos de camadas populares.

Os estudos recentes sobre o declínio do escravismo no Brasil e nas províncias Norte do Império consideram o papel do tráfico interno. Não obstante, analisando as redes do tráfico em si e os interesses de traficantes, senhores e elites letradas, fica mais evidente a atenção às conjunturas políticas e econômicas. Dos traficados, suas experiências e expectativas, temos menos dados.

Para este debate, merecem destaque o trabalho de Chalhoub6, que aponta para a participação de negros nas lutas pela conquista da alforria, enfatizando suas projeções sobre a ideia de liberdade; e o de Flávio Gomes7, que articula a fronteira Norte como campo de

refúgio para negros e criminosos durante a Colônia e o Império. Constituem referências iniciais para os argumentos que levantamos no decorrer desta tese, sobre a atuação de negros que resistiram ao comércio interno de escravos e remaram contra a corrente do tráfico-interprovincial. Mais rarefeita ainda é a reflexão sobre conexões que escravos em fuga estabeleceram com outros grupos da sociedade. O quadro é agravado pelo senso comum criado em torno da visão de que a abolição precoce do Ceará, em 1884, foi fruto da benesse de elites locais.

Encontramos, porém, nas barreiras interpostas às ações de sujeitos comuns, uma fenda aberta durante as migrações após a grande seca de 1877. Pretendemos contribuir neste debate, indicando associações ocorridas entre roceiros e trabalhadores urbanos pobres e escravos, que tinham em comum a condição de despossuídos e encontraram, desde as secas, rotas de fuga. Analisamos a importância da fronteira Norte do Império em suas trajetórias,

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CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

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evidenciando que o abolicionismo e o combate ao escravismo têm alicerces nas ações dos de baixo e que os migrantes não possuíam uma máscara tão branca quanto a que lhes foi atribuída.

Não consideramos a migração um comportamento neutro, em que sujeitos errantes se comportariam como fantoches das forças de repulsão e atração, geralmente movidos exclusivamente por determinações econômicas nos polos de partida e chegada. Sem ignorar as tensões econômicas e políticas, levantamos a necessidade de tornar visíveis ações de agentes envolvidos diretamente nos deslocamentos: os migrantes, que, mesmo com limitações, exerciam seu poder de participação, ao escolherem destinos e formas de interação com outras coletividades e culturas.

Desta forma, para falarmos de experiências de migração, temos que estudar o “faz er-se migrante”, avaliando o horizonte de possibilidades situado à sua frente. Daí a importância de analisarmos as rotas que seguiram e as conexões que estabeleceram em suas trajetórias.

Trazemos elementos para refletir sobre a migração de trabalhadores rurais, urbanos e escravos de origens africanas, que deixaram o Ceará em direção às Províncias do Maranhão ou Pará, passagens e portais de acesso à Amazônia em movimentos de interações entre províncias que estavam à margem da economia e da política imperiais. Se as províncias do Centro-Sul já centralizavam poderes graças à sua proximidade com a Corte, o protagonismo no Norte estava nas mãos dos fazendeiros do Norte açucareiro de Pernambuco e da Bahia. Assim, Ceará, Maranhão e Pará estavam nas fronteiras da periferia do poder imperial. Este é o campo em que circularam milhares de trabalhadores nos últimos anos da década de 1870. Buscamos constituir formas de identificá-los, partindo de associações que encontramos entre migrantes e escravos, no intuito de contribuir para o debate sobre o declínio do escravismo e a formação dos mundos do trabalho nas províncias do Norte.

Questionamos ainda o silêncio8 em relação a essa presença africana em processos migratórios entre o Ceará (localizado atualmente na Região Nordeste) e a Amazônia. Quanto às particularidades daquelas migrações de cearenses, desde Antônio Bezerra9, há a procura

8 Michel-Rolph Trouillot, ao analisar como a Revolução Haitiana foi silenciada pela historiografia ocidental,

teceu considerações importantes: “O impensável é aquilo que não pode ser concebido dentro do leque de alternativas disponíveis, aquilo que subverte as respostas, pois desafia os termos dos quais foram feitas as perguntas.” Apud LANDER, Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: A colonialidade do saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p.41. Desta forma, a perspectiva universalista do saber eurocentrado conduz ao descarte de cosmologias e vivências que confrontam suas suposições.

9 Antônio Bezerra de Menezes, jornalista, abolicionista e membro de vários clubes literários e científicos no

Ceará. Em seus estudos para localizar a gênese do povo cearense, chega a atribuir o zelo pela liberdade e a disposição constante para novas viagens à presença do “sangue cigano”. Os Ciganos a que se refere foram degredados portugueses que acabaram se miscigenando com a população indígena no início do século XVIII.

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por uma “identidade cearense” original. Sua versão mais comum é estática, fruto da miscigenação previsível de portugueses e índios. Entre os migrantes, visualizamos alguns com descendência africana, encontrando elementos que apontam mais para a imprevisibilidade e composição. Trabalhamos com sujeitos que tiveram que recompor, recriar e ressignificar modos de viver, ao experimentarem deslocamentos pressionados por secas, explorações do latifúndio, estruturas de poderes hierarquizadas, além da procura por espaços de liberdade com novas expectativas de vida. Percebemos que, junto à chegada de retirantes, as estruturas de controle social fragmentavam-se, abrindo espaços para rotas de fuga de negros das províncias que estavam em reconfiguração.

Investigamos, principalmente, as rotas em direção às províncias situadas no extremo Norte do Império; espaço hoje conhecido por Amazônia, que é uma das regiões do Brasil onde melhor se expressam as contradições do processo de constituição do Estado Nacional. Além de berço de um dos ecossistemas mais ricos do mundo, infelizmente também é de denúncias da permanência de trabalho escravo e degradação ambiental, seja pela inserção do cultivo da grande lavoura, tais como soja e arroz, ou pela pecuária. Somam-se a este conjunto de problemas, as iniciativas do Governo Federal com a construção de barragens e hidrelétricas, modificando o curso dos rios, destruindo a flora e a fauna, interferindo na vida de comunidades ribeirinhas que durante gerações interagiram com a floresta. Em nome do dito

“progresso” e “desenvolvimento”, entretanto, percebemos os escombros da natureza aliados a descaracterização de culturas locais frente a projetos globais.

Assim, refletir a respeito do processo histórico de invenção da região amazônica e das experiências e conflitos travados naquele tempo/espaço, é importante para podermos avaliar as ações em andamento. Hoje nos referimos à Amazônia como um bloco unificado, o que é problemático, pois naturaliza a percepção de um espaço regional historicamente forçado por escolhas, embates e elaborações. Embora a floresta tropical esteja lá desde tempos

“imemoriais,” o mesmo não pode ser dito das representações que criamos em relação a ela. Pensar na constituição do dito espaço nacional desde o século XIX e o papel da Amazônia em tal processo é um esforço que traz alguns agravantes. Transpondo as características especificas da colonização da América Portuguesa, que privilegiou as áreas do

litoral em detrimento dos sertões, boa parte do que chamamos de “Amazônia” nem sequer

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fazia parte do Estado do Brasil. O Estado do Grão Pará e Maranhão (séculos XVII e XVIII) era completamente desvinculado do restante das terras portuguesas na América e, durante um bom tempo, ainda no século XIX, manteve relações mais intensas com Lisboa e depois Londres, do que com o Rio de Janeiro.

No período imperial, a divisão geográfica do Brasil tinha a seguinte configuração: Norte – composto pelas Províncias situadas acima da Bahia, e o Sul - composto pelas demais províncias da parte meridional. A concentração econômica e política com a centralização no Rio de Janeiro deixou, desde o inicio da experiência imperial, marcas de descontentamento nas províncias do Norte (berço da colonização portuguesa); a Confederação do Equador, a Balaiada e a Cabanagem seriam sintomas de descontentamentos que sopravam os ventos do Norte.

Com efeito, na segunda metade do sec. XIX, esforços pela reconfiguração do poder, contenção de calamidades climáticas e sociais, retomada de projetos federalistas e as potencialidades de exploração econômica, apontaram para novas representações do Espaço Nacional. Durval Muniz fala de como a imagem da região Nordeste foi inventada nas primeiras décadas do sec. XX, recorrendo às incorporações feitas da experiência da grande seca de 1877 por parte de elites locais de províncias/estados atingidos pela ausência de chuvas, um movimento que foi consolidado quando as imagens do “Norte seco” ecoaram na

literatura e na música pós 1920.10

É necessário apontar a situação que o “Norte molhado” enfrentava na ocasião em que

as bases para a “invenção do Nordeste” foram semeadas. Consideramos que a representação da Amazônia que temos foi gerada exatamente neste momento. E só foi possível graças às vantagens econômicas propiciadas pelo monopólio da borracha, ao menos para os setores dirigentes locais, quando o incremento comercial e a arrecadação fiscal abriram oportunidades de inventar um discurso comum; estratégia que atribui a estes setores uma relativa autonomia em relação à centralização saquarema, e depois ao republicanismo paulista, além de camuflar antigas rivalidades entre os Estados do Pará e Amazonas, como podemos perceber na fala de Lauro Sodré, governador do Estado do Pará:

Tamanha é a identidade de interesses, tantos e tantissimos os pontos de contacto, que um com o outro tem os dois Estado, tão igual é o solo, tão similiares são os produtos, tão de harmonia os hábitos e costumes, que a opinião expontaneamente já creou para symbolisar a união de ambos elles a

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palavra Amazonia, com que se costuma falar, fundindo em um só corpo os dous grandes, ricos e futurosos Estados do Norte11

Lauro Sodré deixa de citar, em seu relatório, as antigas rivalidades entre os “dous grandes” e os embates que opunham projetos agrícolas e de colonização ao avanço das atividades de extrativismo. Exatamente estas dimensões de projetos e representações outras do espaço regional é que buscamos trazer, apontando as expectativas contraditórias sobre a(s) Amazônia(s), ocultadas pelo discurso hegemônico da borracha naquele momento.

A mira desta outra lente aponta para as rotas de migração entre o Ceará e a Amazônia, considerando outras espacialidades em evidência, como as rotas terrestres de passagem e fuga do Piauí e Maranhão, além das tradicionais rotas por mares e rios que tinham em Belém o grande portal que daria acesso à floresta.

Os cruzamentos entre elementos da natureza e da cultura podem apontar formas que permitam melhor compreender a ocupação e a colonização regional. Efetivamente, é lugar comum referir-se ao papel exercido por “nordestinos” e especialmente “cearenses” na ação

colonizadora. Em geral, a historiografia produzida sobre as migrações de cearenses para a Amazônia aprisiona o migrante em uma camisa de força. Ante a necessidade de denunciar as opressões dos seringais, os sujeitos sempre surgem como vitimas: enganados, explorados e escravizados são alguns adjetivos ainda comuns para classificar trabalhadores e trabalhadoras que desde as décadas finais do século XIX vêm se integrando à região.

Não é nosso objetivo negar tal realidade. Não precisamos, porém, jogar a criança junto com a água suja da bacia, ou seja, para denunciar as opressões do sistema seringalista, não é preciso reduzir os migrantes à condição meramente passiva, “vitimizados” pela natureza rebelde ou pelo patrão opressor. Buscamos, em contrapartida, dar visibilidade a outras experiências de migrantes que estavam à margem do contexto do seringal: a atuação em obras públicas, nas colônias agrícolas, em disputas pela ocupação de espaços na cena urbana, nos encontros e/ou confrontos com outros grupos étnicos e imigrantes de outras nacionalidades.

Algumas pontos aqui suscitados surgiram durante a pesquisa de mestrado12, em que estudamos o recrutamento estatal de migrantes para os seringais amazônicos durante a Segunda Guerra Mundial. Tais trabalhadores receberam o epíteto de Soldados da Borracha. Cerca de 30 mil migrantes partiram do Ceará com a expectativa de receberem lotes de terras e

11PARÁ, Mensagem dirigida pelo Senr. Governador Dr. Lauro Sodré ao Congresso do Estado do Pará em sua

primeira reunião, em 30 de outubro de 1891. Belém: Typ. do Diario Official, 1891. p. 11.

12 BARBOZA, Edson Holanda Lima. Ida ao Inferno Verde: Experiências da migração de trabalhadores

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lucros com a extração de borracha, mas de fato foram separados de suas famílias e esquecidos pelo governo. Tudo poderia se encaixar em um esquema facilmente compreendido: trabalhadores pobres, ludibriados pelo Estado, cumpriam seu papel de marionetes das elites. Os indícios apontam, porém, para caminhos diversos. A onda migratória promovida durante o Estado Novo não teria assumido a mesma repercussão sem a expectativa latente, entre amplos setores de camadas de trabalhadores rurais e urbanos, de percorrer o trajeto rumo à Amazônia. Alguns utilizaram o projeto estatal para conseguirem passagens gratuitas do governo, irem ao encontro de parentes ou a procura de trabalho nas zonas urbanas. Enfim, o Estado não era o único agente capaz de controlar corações e mentes na hora de decidirem pela migração.

Na época do mestrado, entretanto, algumas indagações não puderam avançar: qual o trajeto percorrido na produção dos discursos a respeito da fronteira Norte? Como circularam pelo Ceará e através de que meios? Quais interesses e em que condições se constituíram as províncias do Norte como alternativa de migração em contraste com a grande lavoura do Centro-Sul?

Como já afirmamos, as imagens a respeito da Amazônia situam-se em polos opostos, a região era expressa ora como El dorado, ora como Inferno Verde.13 Pareciam imagens irreconciliáveis, mas cremos fazerem parte de um mesmo jogo de formulação de representações.

Para avançar a análise, é preciso mesmo questionar: como surgiu o discurso que identificou e produziu a Amazônia como uma região? Pretendemos problematizar o debate, tentando perceber o jogo de contradições travado na passagem do século XIX ao XX, em que

do espólio ou das ruínas do “Norte” do Império podemos perceber emergir a imagem de duas regiões: a seca inventou o Nordeste como uma unidade geográfica e social que precisaria de uma atenção especifica de combate à calamidade - recursos financeiros para a construção de barragens e açudes, o que logo esteve associado à consolidação da indústria da seca. Já o monopólio da borracha, com a integração direta do Norte ao mercado mundial, centralizou interesses de elites locais do Pará ao Acre: a borracha foi uma liga que consolidou a perspectiva da Amazônia como uma região. Neste sentido, poderemos compreender as tensões entre setores que defendiam o extrativismo ou a agricultura, o Inferno Verde ou o El dorado. Importa analisar e desconstruir este discurso regionalista, pois o conceito de

13 Tal oposição é bem evidente na analise das obras de: Nery, Frederico de Santa-anna (Barão). O Pais das

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identidade com origem na noção de região foi montado para substituir o papel de diferentes projetos colocados em disputa, dos conflitos socioculturais e de modos de vida.

A identidade regional foi constituída tendo como fundamento a base territorial, os elementos da natureza e não os grupos étnicos que já estavam presentes ou os que a ocuparam a seguir. O critério de identificação teve como retórica o espaço e não o povo que o habita.14 Assim, a naturalização do papel exercido pela borracha na produção da Região Amazônica obscurece a ação de sujeitos sociais diversos.

Se para nossa compreensão contemporânea parece estranho fazer referência à

Invenção da Amazônia15, a sensibilidade no fim do século XIX parecia ser outra. Em 1888, na Corte do Rio de Janeiro, Mâncio Ribeiro, deputado pelo Pará, mencionou os “vastos horizontes da Amazônia” em um discurso na Câmara, causando alvoroço entre seus pares. Um colega mineiro afirmou na ocasião não saber “onde é essa Amazônia de que o deputado tanto tem falado.” Coelho Rodrigues, lente da Faculdade de Direito do Recife, foi mais

enfático: “ultimamente vai-se acentuando, em algumas de nossas províncias, certa tendência separatista que traduz-se nas novas denominações de ‘pátria paulista’, ‘Amazônia’, etc., que

me fazem recear também a divisão do Brasil se mudar a forma de governo”16

Consideramos importante situar este debate, uma vez que a tradição de migração entre o Ceará e as antigas províncias do Norte - Maranhão, Pará, Amazonas e depois o Acre - foi edificada partindo deste jogo de oposições entre realidades regionais contrastantes. Embora foco na análise somente no “discurso regional” possa correr o risco de obscurecer contradições e hierarquias de poder existentes tanto na “Amazônia”, no “Nordeste” ou no “Ceará”, o discurso em torno da identidade(s) “amazônica” ou “cearense” não pode mascarar

as tensões e profundos confrontos travados no processo de produção destas regiões. Assim, as relações culturais e elementos da cultura popular só podem ser compreendidos ao serem situados dentro de interesses e conjunturas especificas, senão cairíamos no vazio das abstrações estruturalistas, ou, ainda pior, no tão radical quanto inofensivo discurso dito pós-moderno que confraterniza com setores hegemônicos da sociedade, produzindo um discurso

de “empatia com o vencedor,” como denunciou Waltter Benjamin (1994).

14

MORAES, Antonio Carlos Robert. “Notas sobre identidade nacional e institucionalização da geografia no Brasil.”IN:Estudos Históricos. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1991. p.169

15 A Amazônia teria sido produto de imaginários e representações produzidas por “peregrinos, missionários, viajantes e comerciantes”. GONDIM, Neide.A invenção da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. p.12; Uma abordagem mais contemporânea sobre o tema, privilegiando as crônicas de viagem: PIZARRO, Ana. Amazônia as vozes do Rio – imaginário e modernização. Belo Horizonte: Humanitas, 2012.

16

(23)

O estabelecimento do discurso regional será uma referência, mas o elemento primordial da problemática de pesquisa centra-se na constituição de hibridismos culturais, vivenciados pelos sujeitos envolvidos na ação migratória: agentes públicos, trabalhadores e

trabalhadoras pobres livres ou escravizados, “nacionais” ou estrangeiros – africanos ou europeus. Ao falar em culturas hibridas, não estamos supondo a ausência de tensões, mas da interseção, geralmente conflituosa, de saberes eurocêntricos e subalternos.17

Desta forma, não buscamos retirar o migrante cearense da condição de vítima e alçá-lo ao estatuto de herói da ação colonizadora, como fez Cassiano Ricardo ao expressar a ideia de que o cearense reeditou a missão do bandeirante na conquista do Acre. Buscamos perceber sua condição humana repleta de contradições, impregnada de modos de vida emergentes, onde nas experiências de contatos apreendemos tais agentes incorporando, constantemente, outras práticas culturais, em incessante movimento de tradução subversiva, ou seja, procuramos captar sua continua transformação em que se produziram identidades múltiplas: cearense, roceiro, sertanejo, amazônida, ribeirinho, seringueiro, operário. Os estudos culturais, a exemplo do que faz Stuart Hall, questionam as noções de identidades culturais fixas e monolíticas.18 A diversidade de experiências, vivências e conexões apontam para a necessidade de que o indivíduo assuma sempre novas posições, selecione ativamente modos de ser e viver, interpretando subversivamente as culturas.

Vale ressaltar que não se trata da perspectiva de híbrido apontada por Gilberto Freyre, que aposta na harmonia entre diferentes. Consideramos que os sujeitos têm habilidades para, ante conflitos, de forma pessoal ou comunitária, selecionar meios próprios para superar as adversidades ou conviver com elas, mesmo que para isso tenham que aprender a manipular armas que a principio não tenham produzido. Isto sugere que pensemos o hibrido como algo que “é semelhante e diferente ao mesmo tempo – como viveres e pensares fronteiriços –, configura-se como estranho, como ameaça de equilíbrio.”19 Desta forma, a possibilidade de

17“Os saberes subalternos são aqueles que se situam na intersecção do tradicional e do moderno. São formas de

conhecimento híbridas e transculturais, não apenas no sentido tradicional de sincretismo ou mestizage, mas no sentido das ‘armas milagrosas’ de Aimé Césaire ou daquilo que chamei de ‘cumplicidade subversiva’ (Grosfoguel, 1996) contra o sistema. Estas são formas de resistência que reinvestem de significado e transformam as formas dominantes de conhecimento do ponto de vista da racionalidade não-eurocêntrica das subjetividades subalternas, pensadas a partir da epistemologia de fronteira.”Cf: GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p..478.

18 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

19ANTONACCI, Maria Antonieta. Decolonialidade de corpos e saberes: ensaio sobre a diáspora do

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manipular cosmogonias pluriversais20 torna o hibrido um inimigo capaz de tomar ações imprevisíveis, oferecendo riscos aos projetos de poder estabelecidos, daí a necessidade de monitorar, controlar e silenciar a diferença cultural.

Para dialogar com a diferença e os pluriversalismos é preciso pensar em várias esferas. Entre elas, a diversidade cultural e as muitas formas de relação com a natureza. Perspectiva que nos estimula a refletir sobre a necessidade de realizar análises situadas. O sociólogo argelino Abdelmalek Sayad sugere estudar a imigração, levando em consideração três polos distintos: os interesses da sociedade de emigração, as vantagens para a sociedade de imigração e a expectativa dos próprios i/emigrantes21. É preciso, portanto, para seguir os problemas propostos, gravitar entre tais polos.

Analisemos o (des)equilíbrio do desenvolvimento da lavoura nas décadas finais do Império, quando estava na ordem do dia articular as políticas de trabalho e acesso à terra. Tanto durante a ordem imperial, como na republicana, as unidades provinciais ou da Federação, situadas acima da Bahia, estavam excluídas das políticas públicas que emanavam do Rio de Janeiro. A política econômica do Império estava voltada para os interesses da grande lavoura, leia-se o café, em regiões fluminenses ou do oeste paulista. Desta forma, o ano de 1878 foi emblemático: entre janeiro e junho de 1878 foi convocado, pelo Gabinete Sinimbu, o Congresso Agrícola, realizado no Rio de Janeiro, para discutir os problemas ligados diretamente às plantações de café, mobilizando as Províncias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Em desagravo, no mesmo ano, em Pernambuco, a

Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco convocou o Congresso Agrícola do Recife22, que voltou a preocupação para a decadência da produção açucareira. Em ambos percebemos uma preocupação objetiva de setores do governo e das elites agrícolas, dirigida a opções para a estruturação da grande lavoura no Norte e no Sul.

Não houve perspectivas, no entanto, para debater a questão da pequena propriedade, a diversificação da produção, o extrativismo ou a pecuária. Esta constatação é fundamental, pois possibilitou que setores no Norte do Império ficassem fora de políticas oficiais do Estado, permitindo uma ingerência de elites locais na condução da política de mão de obra.

20

Grosfoguel ao questionar o fundamentalismo cientificista, critica a “tradição epistêmica a partir da qual pode alcançar-se a verdade e a universalidade.” Em oposição a um universalismo abstrato, que na prática justificava a expansão de poderes e saberes europeus, propõe “um diálogo crítico entre diversos projetos críticos políticos/éticos/epistetémicos, apontados a um mundo pluriversal e não a um mundo universal”. Cf: GROSFOGUEL, Ramón. “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: ... Op. Cit. p..457.

21

SAYAD, Abdelmalek.A Imigração ou os paradoxos da alteridade.São Paulo: Edusp,1998.

22 SOCIEDADE AUXILIADORA DA AGRICULTURA DE PERNAMBUCO. Congresso Agrícola do Recife.

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Em contraposição, todavia, acreditamos que esta ausência do poder estatal também foi percebida pelas camadas populares. Assim, o percurso rumo ao Norte, à fronteira verde, expressava perspectiva de reconstituir a vida longe do poder central, com seus impostos, recrutamentos forçados e centralização econômica; enfim, estratégias de sobrevivência distantes da direção saquarema, das oligarquias do café ou das oligarquias tradicionais do norte agrário.

Em razão do debate, pretendemos mapear e compreender o percurso do fazer-se migrante; buscamos rastrear pegadas deixadas pelos sujeitos envolvidos nestes capítulos importantes da história social das migrações entre o Ceará e a Amazônia, especificamente do período que vai dos anos 1870 e 1889, quando a seca no sertão e a extração da borracha no vale Amazônico consolidaram o divórcio entre nortistas, vulgarizando as representações de duas regiões distintas: o Nordeste e a Amazônia.

O fausto da borracha deixou marcas na arquitetura e na memória das capitais da floresta, Manaus e Belém, abrindo espaço para uma “belle époque Amazônica”, como apontou

Ana Maria Daou (2000). Já aspectos da cultura material produzida por migrantes nacionais, em projetos de colonização, parecem ter sido associados a conexões culturais marginalizadas pelo discurso hegemônico em defesa da civilização e do progresso, geralmente comprometidos com a consolidação de hierarquias, classificações raciais e sociais.

Um conceito importante para orientar nosso olhar é o de zonas de contato, proposto por Mary Louise Pratt: “espaços de encontros coloniais, no qual pessoas geográfica e historicamente separadas entram em contato umas com as outras e estabelecem relações contínuas, geralmente associadas a circunstâncias de coerção, desigualdade radical e

obstinada”23

A autora canadense apresenta um exercício de desconstrução de relatos de viajantes europeus produzidos desde meados do XVIII. Avalia como a preocupação de nomear,

catalogar e incorporar o “resto do mundo” ao projeto de expansão do capitalismo eurocêntrico foi intermediado por processos de trocas culturais, transculturação e incorporações seletivas conduzidas por relações de poder assimétricas, mascaradas pela ação “pacífica” e “progressista” praticada por intelectuais ilustrados. Era o caso de naturalistas e outros viajantes que compunham uma série de comissões de explorações cientificas nas Áfricas e Américas. Enquanto a Europa buscava “batizar” e dominar o mundo colonial, lapidou a

23

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representação dela própria: uma sociedade branca, industrial, civilizada e masculina, o “norte” a ser seguido.

Proposições de Pratt nos ajudam a refletir sobre o processo continuo de “interiorização da metrópole”24 e das encruzilhadas onde a Amazônia foi inventada, entre o esforço de

centralização política do Rio de Janeiro e a integração de elites locais à expansão do mercado

mundial no fim do XIX. Portanto, devemos analisar como o “olhar eurocêntrico” foi

incorporado por jornalistas, intelectuais e cientistas nos trópicos. Nosso esforço deve ir além de simplesmente reproduzir discursos gestados por Euclides da Cunha, Barão de Santa-anna Nery, Alberto Rangel, Antonio Bezerra ou Rodolfo Teófilo. Devemos desconstruí-los, contextualizá-los para interpretá-los e identificar fronteiras culturais, redes de poderes e saberes que possibilitaram edificá-los. Até mesmo para entender a interferência (mesmo que negativa, do ponto de vista europeu) exercida também por setores das camadas populares para definir as margens de encontro e confronto de expectativas e necessidades antagônicas.

No esforço de garantir a visibilidade da ação dos de baixo, aproximações entre estudos históricos e antropológicos indicam para a análise de particularidades, de singularidades, do incomum e do inesperado no trabalho com as fontes. Algumas perspectivas, como a da micro-história, propõem a valorização dos dados qualitativos- um convite à descrição densa, à interpretação de elementos culturais em detrimento do “número e do anonimato” das

abordagens seriais.

É nesse sentido que a obra de historiador Carlo Ginzburg fornece parâmetros para a análise da documentação que aqui reunimos e com o qual dialogamos, tanto pela natureza das fontes, como também por suas opções teóricas que valorizam os estudos culturais, sem perder a dimensão dos conflitos sociais. Ao trabalhar com a experiência de vida ou a trajetória de camadas populares, não se perde a intenção de compreender a sociedade na qual estes sujeitos estão inseridos. Valoriza-se, com efeito, de um lado, a liberdade de ação dos indivíduos e, ao mesmo tempo, as intervenções culturais, como podemos perceber nas palavras do próprio

historiador italiano, para quem a cultura “oferece ao individuo um horizonte de possibilidades

24Maria Odila Leite da Silva Dias , em estudos sobre a formação da elite letrada luso-brasileira que promoveu a

(27)

latentes – uma jaula flexível e invisível dentro da qual se exercita a liberdade condicionada de cada um.”25

Seria possível perceber, todavia, escolhas e expectativas de indivíduos que habitam outros tempos/espaços, outras visões de mundo e imaginários, outras sensibilidades e, portanto, outro universo cultural a que não temos acesso direto? Esse é o grande desafio de nossa prática profissional. A ilusão de reconstituir o passado “tal qual ele aconteceu”, já foi diluída pelas inovações historiográficas desde o século passado. Sabemos hoje que as fontes, os documentos, significam apenas fragmentos das ações do homem no passado, sendo, em vista disto, indícios. Ginzburg faz inclusive a analogia entre as atividades do caçador, médico, detetive e do historiador. Durante muito tempo, os médicos não dispunham de equipamentos para detectar a causa das enfermidades em seus pacientes, precisavam analisar os sintomas que iriam ser associados às origens da doença; os detetives, da mesma forma, vasculham pistas indiretas, rastros, pegadas, sem ter contato concreto com os alvos de sua investigação. Assim, na prática de pesquisa em História, temos acesso a sinais do passado: indiretos, indiciários e conjecturais.26

Esta indeterminação, contudo, longe de deslegitimar a história como disciplina que produz conhecimento, representa exatamente a sua lógica. Thompson, ao discutir sobre a validade do saber histórico, já apontava que este era provisório e incompleto, seletivo (porém

não inverídico) e limitado pelas “perguntas feitas à evidência (e os conceitos que informam

essas perguntas), e, portanto, só ‘verdadeiro’ dentro de um campo assim definido.”27 É nesta

medida que analisamos as fontes, não na perspectiva de ilustrar determinações prévias da pesquisa, mas de propor abordagens sucessivas de trabalho que sempre estarão sendo questionadas, apontando para novas indagações, investigando outros indícios e perguntas.

Trabalhamos, essencialmente, com documentos oficiais produzidos por agentes públicos28. A coleta de fontes para esta pesquisa completou uma década, já que iniciamos levantamentos no Arquivo Publico do Ceará para a pesquisa de mestrado, material que foi descartado na ocasião em virtude a redução no recorte temporal. A retomada das investigações impôs que a noção de entre-lugares ultrapassasse qualquer sentido abstrato, de

25

GINZBURG, Carlo. O queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Cia das letãs, 1998. p.25

26

GINZBURG, Carlo. “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. ” In: Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras, 1989

27

THOMPSON, E.P. A Miséria da Teoria – ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. p.49

28 Pesquisas realizadas entre 2002 e 2012 em Arquivos Públicos do Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Amazonas; e

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modo que realizamos investigações em centros de documentação nacionais, do Norte e do Nordeste do país.

Da massa documental, podemos destacar: Avisos Ministeriais, Relatórios de Presidentes de Província, correspondências do executivo provincial com os chefes de policia, sendo que os ofícios produzidos por delegados e subdelegados de polícia são peças centrais da nossa pesquisa. Ao inquiri-los, fazemos o trabalho básico de todo historiador: analisar o lugar social de produção de seus autores, o público a que ele se dirigia e as argumentações, dados, fatos, projetos ali presentes, cruzando com outras fontes.

Em relação aos Relatórios de Presidentes de Província, esses documentos são mais complexos do que os do período republicano. Primeiro, em razão daquilo que Visconde de Uruguai chamou de “Teia de Penélope”29, quando as ações e decisões políticas no Império

eram conduzidas pela instabilidade dos poderes e os reveses dos gabinetes ministeriais, como por interesses privados, deixando perceber uma grande circularidade de cargos e políticos entre as províncias, dificultando a continuidade de políticas públicas dos projetos do Estado. Há casos de províncias que em um único ano tiveram mais de três gestores diferentes e de partidos distintos, o que interferia nas políticas de migração: duração de contratos de parceria, apoio ou oposição aos núcleos coloniais, valorização da migração estrangeira ou nacional,

estimulada ou “espontânea”.

São aspectos que devem ser considerados no processo de análise, pois constituem material bastante rico, inclusive pelas visões contraditórias presentes e na documentação juntada em anexo: ofícios das câmaras municipais, correspondências com os ministérios, relatórios de chefes de policia e a reprodução de trechos de jornais da Corte e das províncias. Os relatórios ou falas eram sempre apresentados na abertura dos trabalhos da Assembleia Legislativa Provincial e nos casos de transmissão de cargos, por isso há anos contendo mais de um relatório. Os relatórios trazem os projetos e debates legislativos, as ações do governo provincial e monárquico e um quadro geral de fatores econômicos e sociais (agricultura, instrução publica, colonização, justiça, policia, milícias, obras publicas etc.). Na vasta documentação policial, em correspondências internas ou às autoridades de outras províncias,

29 Visconde do Uruguai observou: “cada mudança de Ministério e de administradores, como são os nossos

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pudemos mapear trajetórias de escravos e migrantes, suas expectativas em relação aos deslocamentos, além de projetar os desdobramentos da pesquisa.

Dialogamos com os seguintes jornais publicados no Ceará:30Cearense,identificava-se

como “Orgão Liberal”; Pedro II, ligado ao partido conservador; o Echo do Povo,“Orgão da

Opinião Publica” e O Retirante,“Orgão em defesa das vitimas da secca”. Todos os jornais

traziam seções especificas: noticiário, noticias das províncias ou “transcripção” com informações vinculadas em jornais de outras províncias, que os editores consideravam

importantes, com atenção especial para as “noticias do norte” no período posterior à seca de 1877.

A pesquisa encontrou obstáculos no estado de conservação e disponibilidade de periódicos para consulta. Ainda assim, levantamos dados nos jornais: A Época (Piauí), Diário do Maranhão e o Paiz (Maranhão); Constituição e Diário de Notícias (Pará) e Jornal do Amazonas (Amazonas)31. Quando possível, filtramos a leitura dos jornais partindo da lente de periódicos ligados aos partidos conservadores, uma vez que durante boa parte do período da seca as províncias estavam sob administração de políticos do Partido Liberal, fazendo com que as folhas liberais assumissem um caráter oficial, enquanto os conservadores faziam a contraposição, mostrando denúncias e falas de setores descontentes. Foram em periódicos conservadores como o cearense Pedro II, o piauiense a Epoca e o paraense a Constituição, onde encontramos os mais marcantes pontos de vista de setores ligados ao escravismo e às publicações de venda e perseguição a escravos em fuga.

Ainda consideramos a literatura como fonte de pesquisa importante. Segundo argumentação de Raymond Williams32, ela também é uma das várias dimensões possíveis para constituir o “real”, por ser linguagem impregnada de historicidade, representando resíduos do passado e projetos de sociedade defendidos por seus autores, mesmo que não tenham sido hegemônicos, pois interferiam na percepção do vivido e forneciam arsenal para noticias divulgadas pelos jornais.

Analisamos, assim, a obra de Rodolfo Teófilo, caracterizada pela estética do realismo-naturalista. Farmacêutico, cronista, poeta e integrante da Padaria Espiritual,33Teófilo foi um

30 Jornais Cearenses consultados na BPMP (Fortaleza), Instituto do Ceará (Fortaleza) e Biblioteca Nacional (Rio

de Janeiro).

31 Jornais do Piauí foram pesquisados na Casa Anísio Brito (Teresina); do Maranhão na Hemeroteca do APEM e

na BPBL (São Luís); do Pará, no CENTUR (Belém) e, do Amazonas, na Hemeroteca do IHGA (Manaus). Por apresentarem descontinuidade nas coleções ou problemas de conservação nos acervos locais, complementamos as consultas nos acervos da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).

32 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

33 Agremiação literária (1892-1898) que conseguiu “com rara felicidade, aliar talento e irreverência, competência

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dos inimigos mais enfáticos das migrações de cearenses para o Norte. Em seu maior libelo de combate à emigração, o romance O Paroara, o destino de João das Neves pode caracterizar as cores com que o Norte era visualizado:

O paludismo foi o único provento que tirara do Amazonas e que o flagelaria o resto da vida, de parceria com a pungente magoa que nele haviam produzido as ultimas palavras da esposa, grande mártir do amor e do dever. Nunca mais deixaria de ouvir estas inolvidáveis e terríveis palavras -

morreram todos de fome34.

Em uma de suas últimas obras, porém, agora com caráter de crônica histórica, as tintas foram outras: “O Cearense considera aquela região como um prolongamento da sua terra”. A solidão não impera mais, pois o cearense lá “ Vai conviver com os seus, com quem possa

lembrar o seu Ceará, a sua vida, e juntos curtirem as saudades desta sua tão amada terra de céu azul e de areias brancas.” E a Amazônia, apesar de ainda insalubre, não é tão diferente do Ceará: “Em Fortaleza há tanta muriçoca como no Amazonas.”35 Como interpretar essa virada

de opiniões a respeito da Amazônia em Rodolfo Teófilo? Diferente de Antônio Bezerra, que passou cerca de três anos em Manaus, Teófilo jamais foi à Amazônia. Qual o diálogo estabelecido entre estes dois importantes intelectuais cearenses acerca das migrações para o Norte? O trabalho de interpretação de fontes que tratam das migrações para o Norte pode ajudar a entender a multiplicidade de sujeitos e de imagens que foram produzidas a respeito do que entendemos hoje por Amazônia.

Walter Benjamin, nas Teses Sobre o conceito de História (1994), levanta uma série de críticas às abordagens tradicionais da historiografia, fossem de matrizes positivistas, social-democratas ou marxista ortodoxas. Ao romper com a ideia de tempo como uma tradição linear, Benjamim nos alerta para outras possibilidades de percepção de experiências humanas até então desvalorizadas: costumes, metáforas literárias, artes, moral, cultura, expressões que podem alavancar “lampejos”, indícios, sinais, evidências das experiências de domínio e de transgressões que constituem o mundo presente e que são cultuados como monumentos da

divulgação de ideias foi o jornal O Pão, que forneceu alimento aos espíritos descontentes na capital cearense. Seu Programa de Instalação possuía 48 artigos, o 26º determinava: “São considerados, desde já, inimigos da Padaria – os padres, os alfaiates e a polícia. Nenhum padeiro deve perder ocasião de patentear o seu desagrado a esta gente.” A edição do primeiro aniversário do jornal demonstrou o apreço dos “padeiros” à burguesia local: “Um ano de vida (incrível) / Contempla hoje a Padaria / A inimiga mais terrível / Que possui a burguesia / .../ Devemos mais uma vez / Fazer nosso protesto forte:/ Votar a todo burguês / O Nosso ódio de morte.” Cf:

PONTE, Sebastião Rogério. “A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e conflito.” In: Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.177. A Padaria reuniu em seus quadros jovens e intelectuais de destaque no Ceará, tais como: Antonio Sales, Antonio Bezerra, Rodolfo Teófilo e Adolfo Caminha.

34

TEÓFILO, Rodolfo.O Paroara – Romance. Fortaleza: Secretaria de Cultura, 1974. p. 236.

35

(31)

“cultura”, mas que de fato são representações da barbárie, uma vez que as esferas do dominante e do dominado não podem ser separadas, e só há um vencedor hoje porque diversas visões de mundo e projetos de vida foram derrotas no passado.

As linguagens que podem ser trabalhadas são diversas, desde a oralidade (mesmo que de forma indireta, por vias de suas marcas que impregnam textos escritos), a literatura,

imagens que perpassam velozes”, em referência a arte do cinema. O importante, assim como para Brecht, são posturas comprometidas com lutas que no passado foram derrotadas e descaracterizadas. Desta forma, ideias de verdade e objetividade não podem mais ser vistas como dados acabados, mas como elaborações baseadas no campo das disputas e conflitos sociais e culturais.

Os elementos apontados por Benjamin são fundamentais para reler rastros de memórias produzidas na Amazônia sobre o período da borracha, marcados por nostalgias dos tempos de enriquecimento, ostentação de luxo e integração à civilização europeia – praças, museus, obras públicas ainda hoje marcam o período que trouxe a “tempestade do progresso”

para o Norte. Tal discurso saudosista produzido pelas elites locais não considera nem os danos ambientais que a Modernidade trouxe para as “cidades floresta”, muito menos as condições de

trabalho e os destinos daqueles que construíram as grandes obras.

Parodiando Brecht: “Quem edificou as paredes do Teatro da Paz? Quem calçou as ruas e praças na Belle Époque Amazônica? Foram somente engenheiros e dirigentes políticos homenageados e que dão nome a elas?” Certamente, não! Cultura e barbárie estão de braços dados durante o chamado “Ciclo da borracha”, e as memórias produzidas nos dizem algo sobre os de cima, mas quase nada sobre trabalhadores que, literalmente, colocaram as mãos na massa. Uma leitura a contrapelo da documentação oficial, periódicos, crônicas literárias e de memorialistas pode indicar faces da barbárie ocultas na produção de representações da dita

Belle Époque amazônica.

Em diálogo com as proposições de Benjamin, Beatriz Sarlo, em artigo intitulado A História contra o esquecimento, analisou o filme Shoah, de Claude Lanzmann. Sarlo se propõe debater as estratégias do diretor, buscando compreender algo aparentemente irracional - a experiência do holocausto:

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