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A dimensão rural do Brasil

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Academic year: 2021

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José Eli da Veiga

A dimensão rural do Brasil

Introdução

No debate científico internacional sobre os possíveis destinos da ru- ralidade no mundo contemporâneo há muito tempo foi desfeito o equívoco de se identificar a agropecuária com o rural, como se algu- ma vez tivesse havido coincidência entre tal grupo de atividades e- conômicas e o espaço (físico e social) no qual elas necessariamente mais ocorrem. Além disso, a dinamização de muitas áreas rurais por atividades que pouco ou nada têm a ver com a agropecuária faz com que se discuta intensamente as características e tendências do que tem sido chamado de “nova economia rural”. Nos países mais de- senvolvidos chega a ser comum que tal ruralidade seja caracterizada como “pós-industrial”, “pós-moderna” ou “pós-fordista”.

A imensidão territorial do Brasil e a profunda desigualdade de seu desenvolvimento fazem com que abrigue situações rurais extrema- das. Se, por um lado, foi possível preservar nas vastas florestas ama- zônicas formas de pressão antrópica que mantêm um metabolismo pré-neolítico com a natureza, por outro, várias manifestações de uma

José

Eli da Veiga é professor do Departamento de Economia (FEA/USP).

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economia rural das mais avançadas já ocorrem em algumas áreas de clima temperado do domínio da mata atlântica e, sobretudo, dos campos e florestas meridionais. Não há motivo, portanto, para que o caso brasileiro seja excluído desse crucial debate sobre os possíveis destinos da ruralidade.

Todavia, há pelo menos duas questões que o precedem e lhe são bá- sicas: o que é ruralidade e como ela deve ser medida. Duas questões que já são suficientemente complicadas para que este artigo a elas se restrinja. Assim, antes de propor uma maneira de avaliar a importân- cia relativa do Brasil rural (seção 3) e de chamar a atenção para al- gumas implicações teórico-históricas do problema (seção 4), o presen- te texto aborda a dicotomia urbano-rural, procurando explicações para a surpreendente inércia dessa maneira de pensar o espaço e a- presentando os principais expedientes alternativos que vêm sendo adotados em outros países (seção 2).

Tentativas de superar a inércia da dicotomia urbano-rural

A ascensão das cidades na Europa, entre os séculos X e XII , foi um

ponto de mutação na história ocidental e, portanto, do mundo. To-

davia, já nos subseqüentes séculos XIII e XIV , suas relações com o en-

torno passaram a ser radicalmente alteradas, rompendo-se, assim, as

marcas da “dicotomia cultural urbano-versus-rural”, nas palavras do

historiador Carlo M. Cipolla (1976). Seu colega Georges Duby (1973)

situa ainda mais precisamente nas duas últimas décadas do século XII

o início do domínio da economia urbana naquele continente. Por isso,

uma pergunta parece inevitável: qual seria a razão da sobrevivência

de tal dicotomia nas estatísticas demográficas até o início do século XXI ?

Mesmo que sua agonia já dure uns seis ou sete séculos, a dicotomia

urbano-rural continua nas estatísticas porque alguns de seus signifi-

cados permaneceram válidos até meados do século XX . Por exemplo,

no que se refere à saúde. Quando a ONU publicou sua primeira análi-

se sobre as características e tendências da urbanização – no Demogra-

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phic Yearbook for 1952 – dois fatos marcantes pareciam confirmar que a dicotomia mantinha todo o seu sentido: tanto a fertilidade quanto a mortalidade infantil eram bem distintas entre as populações urbanas e rurais. Em 1940, a fertilidade rural ainda chegava a ser o dobro da urbana em países tão diferentes quanto Finlândia e Panamá. E a mor- talidade das crianças rurais era superior em mais de 80% dos países que dispunham de estatísticas razoáveis. Cinqüenta anos depois, o Demographic Yearbook mostra que a fertilidade permanece sistemati- camente inferior entre as populações urbanas, embora o mesmo já não ocorra com a mortalidade infantil (Champion e Hugo, 2003).

No Brasil, um dos indicadores que mais parecem confirmar a atuali- dade estatística da dicotomia é a razão de sexo. Nas regiões Nordes- te, Sudeste e Sul, são poucos os casos em que ocorre predominância masculina entre populações urbanas. E em todas as regiões o número de homens é sistematicamente superior ao número de mulheres entre as populações rurais. O Atlas do Censo Demográfico de 2000, recen- temente publicado pelo IBGE , traz em sua página 42 um gráfico que só pode ser visto como um poderoso exemplo das razões que justifi- cam a inércia estatística da dicotomia urbano-rural.

No entanto, o fato de fenômenos como a fertilidade e a predominân-

cia masculina permanecerem sistematicamente superiores entre os

rurais não pode ser razão suficiente para que se continue a pensar

que esta seja a principal fronteira espacial entre categorias popula-

cionais. Diferenças internas às populações urbanas (ou rurais) podem

se mostrar até mais significativas. Estudos recentes indicam, por e-

xemplo, que a fertilidade também varia na razão inversa do tamanho

populacional das cidades. Por estas e outras razões foram crescendo

nas últimas décadas as insatisfações com a simples dicotomia urba-

no-rural. O que não quer dizer, entretanto, que tais diferenças espa-

ciais (ou territoriais) possam ser irrelevantes. Por isso, é fundamental

examinar as outras opções de abordagem demográfica dos territórios

que surgiram no final do século XX .

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Durante os anos 1970 foram feitas insistentes recomendações interna- cionais para a população passar a ser classificada em quatro categori- as: “metropolitana urbanizada”, “metropolitana rural”, “não-metro- politana urbanizada” e “não-metropolitana rural” (Champion e Hugo, 2003). No entanto, essa disposição de aprofundar a dicotomia acabou dando resultados heterogêneos e bem diferentes da intenção original.

Nos Estados Unidos coexistem duas classificações oficiais: a do U. S.

Census Bureau e a do Office of Management and Budget ( OMB ). Para o primeiro, as áreas urbanas são as mais adensadas, mas não corres- pondem a divisões político-administrativas. E podem ser de dois as- pectos: áreas urbanizadas ou “clusters” urbanos. Numa área urbani- zada deve haver mais de 50 mil pessoas (mesmo que não haja uma cidade específica com esse número de habitantes) e um núcleo (“co- re”) com densidade superior a 386 habitantes por quilômetro qua- drado (hab/km2), podendo ter uma zona adjacente com um mínimo de metade dessa densidade (193 hab/km2). Já os “clusters” urbanos – noção adotada somente a partir do censo de 2000 – são localidades com população inferior (entre 50 mil e 2,5 mil), mas que atinjam os mesmos níveis de densidade demográfica. Assim, para o Census Bu- reau, a população rural é a que está fora, tanto de áreas urbanizadas, quanto de “clusters” urbanos. Em 2000, 68% da população americana viviam em 452 áreas urbanizadas, 11%, em 3.158 “clusters” urbanos e os 21% restantes nas imensas áreas rurais (59 milhões).

Contrariamente ao que ocorre com essa classificação censitária, cujos

dados são decenais, a do OMB fornece estimativas anuais de popula-

ção, emprego e renda. Ela é de ordem político-administrativa e sepa-

ra essencialmente condados metropolitanos (“metro”) e não-metro-

politanos (“nonmetro”). Um condado é considerado economicamente

ligado a uma aglomeração metropolitana se 25% dos trabalhadores

residentes estiverem ocupados nos condados centrais, ou se 25% de

seus empregados fizerem o movimento pendular inverso (“reverse

commuting pattern”). Além disso, os condados “nonmetro” são ago-

ra subdivididos em duas categorias: as “micropolitan áreas”, centra-

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das em núcleos urbanos com mais de 10 mil habitantes, e “noncore”

para o restante dos condados.

Para propósitos analíticos, o Serviço de Economia Rural, vinculado ao Departamento de Agricultura ( ERS/USDA ), utiliza um híbrido que resulta de uma mescla das duas classificações normativas oficiais. Os últimos resultados dessa abordagem estão nas Tabelas 1 e 2.

Tabela 1. Comparação dos padrões de residência, EUA , 2000

Rural Urbano Total

Milhões % Milhões % Milhões %

“Nonmetro” 29,0 49,2 20,2 9,0 49,2 17,4

“Metro” 30,1 50,8 202,2 91,0 232,3 82,6 Total 59,1 100,0 222,4 100,0 281,5 100,0 Fonte: Cálculos do ERS/USDA com dados do Censo de 2000.

Tabela 2. Participação dos residentes “metro” e “nonmetro” vivendo em áreas rurais e urbanas, EUA , 2000 (porcentagens)

Rural (%) Urbano (%) Total (%)

“Nonmetro” 58,9 41,1 100,0

“Metro” 12,9 87,1 100,0

Total 21,0 79,0 100,0

Fonte: Cálculos do ERS/USDA com dados do Censo de 2000.

Em resumo, pode-se dizer que o caso dos Estados Unidos é bem am-

bíguo. Por um lado, a dicotomia urbano-rural foi substituída pelo

Census Bureau por uma interessante tricotomia formada pelas catego-

rias “áreas urbanizadas”, “clusters urbanos” e “áreas rurais”. Por ou-

tro, o OMB preferiu uma nova dicotomia – “metro” versus “nonme-

tro”. E, para efeitos analíticos, o ERS/USDA intensificou a visão dico-

tômica ao propor uma mescla que faz desaparecer a tricotomia recen-

temente introduzida pelo Census Bureau.

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Bem diferente foi a solução encontrada pela OCDE . Após minuciosa análise das estatísticas referentes a 50 mil comunidades das 2 mil mi- crorregiões existentes nos 26 países-membros, a equipe de seu Servi- ço de Desenvolvimento Territorial passou a distinguir dois níveis analíticos. Ao nível local, foram classificadas apenas como urbanas ou rurais as menores unidades administrativas ou as menores unida- des estatísticas. Por exemplo: kreise na Alemanha, municípios na Es- panha, counties nos EUA , cantons na França, comuni na Itália, concelhos em Portugal e districts no Reino Unido. Numa segunda etapa, de ní- vel microrregional, agregações funcionais – como províncias, commu- ting zones ou Local Authority Regions – foram classificadas como mais urbanas, mais rurais ou intermediárias.

A OCDE considera rurais as localidades que tenham densidade popu- lacional inferior a 150 hab/km2 (ou, no caso específico do Japão, 500 hab/km2). Conforme esta definição, cerca de um terço (35%) da po- pulação da OCDE vive em espaços rurais que cobrem mais de 90% de seu território. Claro, essas participações variam bastante conforme o país considerado. Os habitantes de comunidades rurais são menos de 10% em países como a Holanda e a Bélgica e mais de 50% nos países escandinavos.

Todavia, como as opções e oportunidades abertas para essas locali- dades rurais dependem essencialmente do relacionamento que pos- sam manter com centros urbanos, o que realmente importa é a abor- dagem microrregional. Assim, para os propósitos analíticos da OCDE , suas 2 mil microrregiões foram classificadas em três categorias, con- forme a participação da população que vive em comunidades rurais.

Em regiões consideradas predominantemente rurais essa participa- ção é superior a 50%. Nas consideradas significativamente rurais ela fica entre 15% e 50%. E nas regiões predominantemente urbanas a po- pulação que vive em comunidades rurais deve estar abaixo de 15%.

Cerca de um quarto (28%) da população da OCDE vive em regiões

predominantemente rurais, em geral bastante remotas, nas quais a

maioria das pessoas pertence a pequenas povoações pulverizadas

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pelo território. No extremo oposto, cerca de 40% da população da OCDE estão concentrados em menos de 3% do território, nas regiões predominantemente urbanas. O terço restante (32%) vive nas regiões da categoria intermediária que são chamadas de significativamente ou relativamente rurais. Enfim, cada um dos três tipos de regiões contém comunidades rurais e urbanas, só que em diferentes graus.

Enquanto em alguns países escandinavos as participações relativas das regiões predominantemente ou significativamente rurais são su- periores, ocorre exatamente o contrário em países como a Bélgica, o Reino Unido ou a Alemanha. Em 1996, só 30% da população ameri- cana viviam em commuting zones predominantemente urbanas. As predominantemente rurais abrigavam 36% dos habitantes e 34% es- tavam nas de tipo intermediário. Além disso, 44% da população ame- ricana vivia em condados rurais, com menos de 150 hab/km2 ( OCDE ,1996).

Resumindo, pode-se dizer que a dicotomia urbano-rural foi mantida ao nível local pela OCDE como uma etapa a ser superada ao nível mi- crorregional por uma tricotomia formada por áreas essencialmente urbanas, ambivalentes e essencialmente rurais.

O peculiar caso brasileiro

O entendimento do processo de urbanização do Brasil é atrapalhado por uma regra que é única no mundo. O país considera urbana toda sede de município (cidade) e de distrito (vila), sejam quais forem su- as características estruturais ou funcionais. O caso extremo está no Rio Grande do Sul, onde a sede do município União da Serra é uma “cida- de” na qual o Censo Demográfico de 2000 só encontrou 18 habita ntes.

Nada grave se fosse extravagante exceção. No entanto, é absurdo su-

por que se trate de algumas poucas aberrações, incapazes de atrapa-

lhar a análise da configuração territorial brasileira. De um total de

5.507 sedes de município existentes em 2000, havia 1.176 com menos

de 2 mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil e 4.642 com menos de

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20 mil, todas com estatuto legal de cidade idêntico ao que é atribuído aos inconfundíveis núcleos que formam as regiões metropolitanas ou que constituem evidentes centros urbanos regionais. E todas as pes- soas que residem em sedes, inclusive em ínfimas sedes distritais, são oficialmente contadas como urbanas, alimentando esse desatino se- gundo o qual o grau de urbanização do Brasil teria atingido 81,2%

em 2000.

Muitos estudiosos procuraram contornar esse obstáculo pelo uso de uma outra regra. Para efeitos analíticos, não se deveriam considerar urbanos os habitantes de municípios pequenos demais, com menos de 20 mil habitantes. Por tal convenção, que vem sendo usada desde os anos 1950, seria rural a população dos 4.024 municípios que ti- nham menos de 20 mil habitantes em 2000, o que por si só já derrub a- ria o grau de urbanização do Brasil para 70%.

A grande vantagem desse critério é a simplicidade. Todavia, há mu- nicípios com menos de 20 mil habitantes que têm altas densidades demográficas e uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras aglomerações. Dois indicadores dos que melhor caracterizam o fenômeno urbano. Ou seja, para que a análise da configuração terri- torial possa de fato evitar a ilusão imposta pela norma legal, é preciso combinar o critério de tamanho populacional do município com pelo menos outros dois: sua densidade demográfica e sua localização. Não há habitantes mais urbanos do que os residentes nas 12 aglomerações metropolitanas, nas 37 demais aglomerações e nos outros 77 centros urbanos identificados pela pesquisa que juntou excelentes equipes do Ipea, do IBGE e da Unicamp (Nesur) para produzir a Série Caracteriza- ção e Tendências da Rede Urbana do Brasil (1999 e 2002). Nessa teia ur- bana, formada pelos 455 municípios dos três tipos de concentração, esta- vam 57% da população em 2000. Esse é o Brasil inequivocamente urbano.

O problema, então, é distinguir entre os restantes 5.052 municípios

existentes em 2000 aqueles que não poderiam ser considerados urba-

nos dos que se encontravam no “meio-de-campo”, em situação am-

bivalente. E para fazer este tipo de separação, o critério decisivo é a

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densidade demográfica. É ela que estará no âmago do chamado “ín- dice de pressão antrópica”, quando ele vier a ser construído. Isto é, o indicador que melhor refletiria as modificações do meio natural que resultam de atividades humanas. Nada pode ser mais rural do que as áreas de natureza praticamente inalterada e não existem ecossistemas mais alterados pela ação humana do que as manchas ocupadas por megalópoles. É por isso que se considera a “pressão antrópica” como o melhor indicador do grau de artificialização dos ecossistemas e, portanto, do efetivo grau de urbanização dos territórios.

A maior dificuldade não está, contudo, na seleção desse critério. A principal incógnita é a “dose”. Como saber qual seria o melhor corte (ou os melhores cortes)? Isto é, qual seria, por exemplo, o limite de densidade demográfica a partir do qual um território deixaria de per- tencer à categoria mais rural e passaria a alguma outra categoria?

Durante muito tempo foi considerado razoável 60 hab/km2 como um bom critério de corte. Foi a convenção adotada por Davidovich e Lima (1975) à luz dos dados do Censo de 1970. No entanto, um exa- me dos dados do Censo de 2000 parece justificar uma atualização dessa convenção para 80 hab/km2.

Quando se observa a evolução da densidade demográfica conforme

diminui o tamanho populacional dos municípios, não há como deixar

de notar duas quedas abruptas. Enquanto nos municípios com mais

de 100 mil habitantes, considerados centros urbanos pela citada pes-

quisa Ipea/ IBGE // Unicamp , a densidade média é superior a 80

hab/km2, na classe imediatamente inferior (entre 75 e 100 mil habi-

tantes) ela desaba para menos de 20 hab/km2. Fenômeno semelhante

ocorre entre as classes superior e inferior a 50 mil habitantes (50-75

mil e 20-50 mil), quando a densidade média torna a cair, desta vez

para 10 hab/km2. São esses dois “tombos” que permitem considerar

de pequeno porte os municípios que têm simultaneamente menos de

50 mil habitantes e menos de 80 hab/km2 e de médio porte os que têm

população no intervalo de 50 a 100 mil habitantes, ou cuja densidade

supere 80 hab/km2, mesmo que tenham menos de 50 mil hab itantes.

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Com a ajuda desses dois cortes, estima-se que 13% dos habitantes, que vivem em 10% dos municípios, não pertencem ao Brasil indiscu- tivelmente urbano, nem ao Brasil essencialmente rural. E que o Brasil essencialmente rural é formado por 80% dos municípios, nos quais residem 30% dos habitantes. Ao contrário da absurda regra em vigor – criada no período mais totalitário do Estado Novo pelo Decreto-lei 311/38 – esta tipologia permite entender que só existem verdadeiras cidades nos 455 municípios do Brasil urbano. As sedes dos 4.485 municípios do Brasil rural são vilarejos e as sedes dos 567 municípios intermédios são vilas, das quais apenas uma parte se transformará em novas cidades.

O principal, contudo, não é a abordagem instantânea da configuração territorial do Brasil. Mais importante é ressaltar uma tendência que não deveria ser tão ignorada. Mesmo que se acrescente ao Brasil ur- bano todos os municípios intermédios, considerando-os como vilas de tipo ambivalente que poderão se transformar em centros urbanos, chega-se a um total de 1.022 municípios, nos quais residiam em 2000 quase 118 milhões de pessoas. Nesse subconjunto ampliado, o au- mento populacional entre 1991 e 2000 foi próximo de 20%, com des- taque para as aglomerações não-metropolitanas e para os centros ur- banos. Em ambos houve crescimento demográfico um pouco superi- or. Mas não se deve deduzir daí, como se faz com extrema freqüên- cia, que todos os outros municípios – de pequeno porte e característi- cas rurais – tenham sofrido evasão populacional. Isto ocorreu na me- tade desses municípios. Todavia, em um quarto deles houve um au- mento populacional de 31,3%, bem superior, portanto, aos que ocor- reram no Brasil urbano e mais do que o dobro do crescimento popu- lacional do Brasil como um todo, que foi de 15,5% no período inter- censitário de 1991-2000.

Muito pouco se sabe sobre os fatores que levaram esses 1.109 muni-

cípios com características rurais a terem um crescimento populacio-

nal tão significativo. Há casos que se explicam pelo dinamismo eco-

nômico de pequenas empresas do setor de serviços, principalmente

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nas regiões Sul e Sudeste. Há casos que se explicam pelo dinamismo político de Prefeituras, particularmente no Nordeste. Mas se está muito longe de uma interpretação satisfatória sobre esse fenômeno, espalhado por todo o território nacional.

Mesmo assim, o que já se sabe é suficiente para que se rompa com a visão de que todo o Brasil rural é formado por municípios que estão se esvaziando. Não é admissível que se considere a maior parte do território brasileiro, 80% de seus municípios e 30% de sua população como mero resíduo deixado pela epopéia urbano-industrial da se- gunda metade do século XX . Pior, não é possível tratá-lo como se nele existissem milhares de cidades imaginárias.

Resumindo, essa primeira abordagem propõe que os municípios bra- sileiros sejam separados em cinco escalões, dos quais os três primei- ros correspondem exatamente à caracterização da rede urbana feita pelo estudo do Ipea/ IBGE / Unicamp e os dois outros distinguem os municípios que ficaram fora da rede urbana como “ambivalentes” e

“rurais”, mediante combinação do tamanho e da densidade popula- cionais. Resultam, portanto, cinco tipos de municípios cuja classifica- ção decorre do cruzamento de três critérios: a localização, o tamanho e a densidade. Estimou-se, assim, que algo como 4,5 mil sedes de municípios brasileiros sejam cidades imaginárias, o que parece ser agora confirmado pelos indicadores funcionais da Tabela 3.

Até seria possível aceitar que, no Brasil de 2001, um autêntico núcleo

urbano ainda não tivesse sua página na Internet, não dispusesse de

provedor, não oferecesse ensino superior e só escutasse rádio FM .

Mas será que faz algum sentido imaginar que eram cidades as sedes

de município que não tinham sequer lei de zoneamento, plano dire-

tor, coleta de lixo domiciliar, IPTU progressivo, varredura de ruas,

manutenção de vias e esgoto (para nem falar de museu ou casa de

espetáculo)? Será possível que seja apenas uma mera coincidência o

fato desses municípios terem poucos e esparsos habitantes, além de

estarem distantes de aglomerações?

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Tabela 3. Número de municípios que não dispõem de selecionadas funções urbanas, Brasil, 2001

Municípios Número Sem serviço de esgotamento sanitário terceirizado 4.837

Sem manutenção e estradas e vias terceirizadas 4.749 Sem varredura de ruas e limpeza terceirizadas 4.680

Sem museu 4.598

Sem plano diretor 4.577

Sem guarda municipal 4.549

Sem teatro ou casa de espetáculo 4.515

Sem IPTU progressivo 4.512

Sem instituição de ensino superior 4.467 Sem estação de rádio AM 4.415 Sem coleta de lixo domiciliar terceirizada 4.317 Sem provedor de Internet 4.297 Sem lei de zoneamento ou equivalente 4.293 Sem página na Internet 4.215

Média 4.502 Fonte: IBGE – Perfil dos Municípios Brasileiros 2001.

Mesmo que essa hierarquia em cinco andares permita concluir que o Brasil rural está concentrado em cerca de 4,5 mil municípios, nos quais residem pouco mais de 30% de seus habitantes, isso ainda não é suficiente para que se tenha uma boa visão da configuração territo- rial do país. Para tanto, parece ser bem melhor a hierarquia de suas microrregiões.

É simples perceber que as 12 aglomerações metropolitanas afetam

diretamente 22 microrregiões, que as 37 outras aglomerações afetam

diretamente 41 microrregiões e que os 77 centros urbanos estão loca-

lizados no interior de 75 microrregiões. Bem mais difícil é estabelecer

distinções no interior das outras 420, isto é, de 75% das microrregi-

ões. É inevitável que se pergunte, então, qual poderia ser um bom

critério de classificação desse oceano de microrregiões que não abri-

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gam sequer um centro urbano. Provavelmente nunca haverá resposta consensual a esta questão, pois ela depende dos inevitáveis pressu- postos que condicionam qualquer construção de tipologia. O funda- mental, então, é que tais pressupostos sejam bem explicitados na jus- tificação do critério adotado.

Essa estimativa admite que a densidade demográfica também é um critério razoável para diferenciar essas microrregiões que sequer a- brigam um centro urbano. Por isso, no exercício proposto mais adian- te será usado o mesmo critério de corte – 80 hab/km2 – para separar essas microrregiões que não contêm sequer um centro urbano. Isto é, diferenciar as 420 microrregiões distantes de aglomerações e de cen- tros urbanos em duas categorias separadas por esse corte de densi- dade demográfica. Disso resulta uma tipologia das microrregiões que está apresentada na Tabela 4.

Tabela 4. Tipologia das microrregiões do Brasil e crescimento popu- lacional 1991-2000

Tipos de MRG

Núme- ro

População 1991 (milhões)

População 2000 (milhões)

Variação

%

Metropolitanas 22 48,1 57,0 18,5

Não-

metropolitanas

41 21,7 26,1 19,9

C/centros urbanos 75 23,5 27,7 18,0 Mais de 80

hab/km2

32 5,6 6,4 14,8

Menos de 80 hab/km2

388 47,9 52,4 9,3

Total 558 146,8 169,6 15,5

Fonte dos dados brutos: Censos demográficos, IBGE.

Todavia, a última coluna dessa tabela mostra que o comportamento

populacional do quarto tipo (formado por microrregiões que não têm

centros urbanos, mas que têm mais de 80 hab/km2) é mais próximo

do constatado para os anteriores, onde há centros urbanos e aglome-

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rações. Ou seja, essas poucas 32 microrregiões certamente têm signi- ficativo grau de urbanização, mesmo na ausência de um município com mais de 100 mil habitantes, critério usado pelo estudo Ipe- a /IBGE/ Nesur -IE/Unicamp para definir centro urbano. Parece mais razoável, portanto, que a estratificação das microrregiões agrupe es- ses cinco tipos em apenas três grandes categorias: a) microrregiões com aglomeração (metropolitana ou não); b) microrregiões significa- tivamente urbanizadas (com centro urbano ou com mais de 80 hab/km2); e c) microrregiões rurais (sem aglomeração, sem centro urbano e com menos de 80 hab/km2). A Tabela 5 resume os resulta- dos desse exercício, mostrando que o peso populacional relativo do Brasil rural estava, em 2000, em torno de 30%, como também havia indicado a abordagem anterior de caráter municipal. Enfim, o que parece poder variar é o peso das outras categorias, a depender dos crité- rios que se utilize para hierarquizar o Brasil urbano. Mas o lado rural do Brasil tende, nos dois casos, a se situar em 30% da popul ação.

Tabela 5. Configuração territorial básica do Brasil, 2000 Tipos

de MRG

Núme- ro

População 2000 (milhões)

Variação 1991- 2000 (%)

Peso relativo em 2000 Marcadas por a-

glomerações

63 83,1 19,0 49,0

Significativamente urbanizadas

107 34,1 17,4 20,1

Predominantemen- te rurais

388 52,4 9,3 30,9

TOTAL 558 169,6 15,5 100,0

Fonte dos dados brutos: Censos demográficos, IBGE.

É preciso enfatizar que o uso dessa tricotomia para visualizar a con-

figuração territorial do Brasil se baseia numa hierarquia que combina

vários critérios funcionais e estruturais. Começa pelo reconhecimento

de que as aglomerações são fatores marcantes – tanto em termos fun-

cionais como estruturais – e que este é um critério suficiente para de-

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finir o topo da hierarquia. O extremo oposto é definido pela menor pressão antrópica, razoavelmente detectada pelo critério da densida- de populacional e, de certa forma, também pelo menor crescimento populacional. Finalmente, na categoria intermediária estão as micror- regiões que atingiram um grau ainda ambivalente de urbanização ou, o que dá no mesmo, mantêm-se relativamente rurais.

Ao insistir na oposição entre os pontos de maior artificialização ecos- sistêmica e as áreas de menor pressão antrópica, esta abordagem tri- cotômica evita uma ingenuidade tão comum quanto traiçoeira: a de se basear exclusivamente no critério do tamanho municipal. No Mé- xico, por exemplo, o Indesol (Instituto Nacional de Desarrollo Social) diferencia os municípios em quatro categorias definidas exclusiva- mente pelo tamanho populacional. Considera urbanos todos os mu- nicípios com mais de 50 mil habitantes; como “semi-urbanos” os que ficam na faixa entre 10 mil e 49.999; como “semi-rurais” os que ficam na faixa entre 2.500 e 9.999; e como rurais os que têm menos de 2.500 habitantes. No entanto, um pequeno município de poucos milhares de habitantes, mas que seja adjacente a uma aglomeração, pode ser muito mais urbano que um município com população bem maior, mas que tenha baixíssima densidade populacional e que esteja distan- te das aglomerações e dos centros urbanos. Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente que 61% dos municípios mexicanos fiquem na categoria rural e 19% na categoria “semi-rural”.

Enfim, esse critério de tamanho populacional nem de longe reflete o que mais interessa: as alterações dos ecossistemas provocadas pela espécie humana. E já estão disponíveis estimativas que permitem que se agregue mais uma dimensão – a espacial – a esta estimativa da im- portância relativa do Brasil rural. A Tabela 6 traz uma comparação entre os dados continentais e os brasileiros.

A primeira observação a ser feita é sobre o contraste entre o grau de

artificialização dos ecossistemas da Europa e do resto do mundo. Es-

tão intensamente alterados uns 65% do território europeu (tanto por

assentamentos humanos quanto por agropecuária intensiva). Nos

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demais continentes essa fração não chega a um terço e atinge míni- mos 12% na América do Sul e na Australásia. Em seguida, é impor- tante notar que mais de 50% dos territórios das Américas e da Aus- tralásia foram considerados praticamente inalterados, pois mantêm a vegetação primária, com baixíssimas densidades demográficas. Fi- nalmente, pode-se dizer que metade da área planetária permanece praticamente inalterada e mais uma quarta parte parcialmente alte- rada com formas extensivas de exploração primária. Ou seja, apenas uma quarta parte da área global está mais artificializada pela urbani- zação e pelas formas mais intensivas de agropecuária.

Tabela 6. Habitat e alteração humana por continente e no Brasil

Área total Milhões

de km2

Praticamente inalterada (1)

%

Parcialmente alterada (2)

%

Fortemente artificializa-

da (3)

%

Europa 5,8 15,6 19,6 64,9

Ásia 53,3 43,5 27,0 29,5

América do Norte 26,2 56,3 18,8 24,9

África 34,0 48,9 35,8 15,4

América do Sul 20,1 62,5 22,5 12,0

Australásia 9,5 62,3 25,8 12,0

Total s/Antártica 148,8 49,7 26,6 23,8

Antártica 13,2 100,0 0,0 0,0

Total Mundo 162,1 53,8 24,4 21,8

Brasil 8,5 63,0 18,0 19,0

1. Praticamente inalterada: áreas com vegetação primária e com baixíssimas densidades humanas.

2. Parcialmente alterada: áreas com agropecuária extensiva, vegetação secun- dária e outras evidências de alteração humana, como pastoreio acima da capacidade de suporte ou exploração madeireira.

3. Artificializada: áreas com agropecuária intensiva e assentamentos humanos

nas quais foi removida a vegetação primária, ou com desertificação e outras

formas de degradação permanente.

(17)

Fonte: Hannah et al. (1994), para os continentes. Para o Brasil, ver Embrapa Monitoramento por Satélite:

www.cobveget.cnpm.embrapa.br/resulta/brasil/leg_br.html.

Informações recentemente disponibilizadas pela Embrapa Monitora- mento por Satélite mostram que a repartição do território brasileiro segundo essas três intensidades de alteração humana está a meio ca- minho, entre as situações da América do Sul e da América do Norte.

A parte das áreas inequivocamente artificializadas (urbanas e agro- pecuárias) não chega a 20%. Outros 18% ficam na categoria interme- diária, constituída essencialmente por mosaicos de vegetação altera- da, outras formas ultra-extensivas de lavouras e pastoreios (mas também por rochas e solos nus ou com vegetação dispersa, e corpos d’água). E nos demais 63% estão as florestas úmidas (43,2%), flores- tas secas (6,4%), florestas inundáveis (1,7%), florestas de transição (2,9%) e campos ou savanas (8,6%).

Enfim, juntando-se todas essas observações sobre a configuração ter- ritorial do Brasil é possível chegar à síntese aprese ntada na Tabela 7.

Tabela 7. Síntese da hierarquia urbano-rural do Brasil

Blocos % da População

% do Território

% das Microrre-

giões

% dos Municí- pios

Urbano 50 20 10 10

Ambivalente 20 20 20 10

Rural 30 60 70 80

Total 100 100 100 100

Fonte: Estimativas do autor com base nos dados das tabelas an- teriores.

Implicações teórico-históricas

Apesar da separação urbano-rural ter começado a se dissolver na Eu-

ropa a partir do ano 1180, essa dicotomia não perdeu seu poder cog-

nitivo até finais do século XX , quando começaram a desaparecer con-

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trastes básicos (sanitários) entre populações residentes no interior e no exterior das cidades (pelo menos no que se refere ao punhado de países nos quais o capitalismo realmente se desenvolveu). Hoje, tais diferenças até podem permanecer idênticas em países do mundo pe- riférico, mas já não são tão marcantes nos países ditos “emergentes”, isto é, que não conseguiram se tornar desenvolvidos, mas que já não podem ser confundidos com a maioria dos países do chamado “Sul”.

Como se viu, as alternativas à dicotomia são classificações que não eliminam os pólos que a constituem. Podem ser até mais dicotômicas, ao subdividirem as classes originais em outras duas, como quer o ERS/USDA ao cruzar urbano/rural com “metro”/”nonmetro” ou co- mo se fez no México com as noções de “semi-urbano” e “semi-rural”.

Ou podem ser ímpares, como são os casos dos exercícios aqui apre- sentados sobre o Brasil, que utilizam três ou cinco estratos hierárqui- cos. No entanto, em nenhuma dessas várias formas empíricas de a- bordar a configuração territorial foi possível prescindir do contraste urbano/rural. Nenhuma das opções apresentadas conseguiu “se li- bertar” do jugo dessa oposição. Tudo se passa como se a dicotomia resistisse a todas as tentativas de superá-la, permanecendo onipre- sente, mesmo que criticada e rejeitada.

É que há aqui uma questão básica de lógica. Dicotomia é uma divisão em dois ramos ou a divisão de um gênero em duas espécies que ab- sorvem o total. É uma classificação em que se divide cada coisa ou cada proposição em duas, subdividindo-se cada uma destas em ou- tras duas e assim sucessivamente. Contradição não é subdivisão e sim oposição entre duas idéias ou duas proposições. Para o senso comum, em qualquer oposição entre duas proposições contraditórias, uma delas exclui necessariamente a outra. E, neste sentido, de fato, contradição e dicotomia seriam expressões sinônimas. Se a dicotomia é uma divisão em dois ramos, cada um exclui o outro, sendo, pois, também uma contradição.

Todavia, a noção de contradição sempre foi algo bem diferente na

filosofia ocidental. Pelo menos desde que Heráclito – há cerca de 2,5

(19)

mil anos – transformou em solução o que até ali parecia um grande mistério. Para ele, o mundo deveria ser entendido justamente pela unidade dos contrários, tese que só foi ganhar mais consistência com Kant e Hegel, há menos de duzentos anos. E no século XX ela gerou um imenso e confuso debate – que está longe de se encerrar – sobre a chamada relação Marx/Hegel e seus eventuais desdobramentos so- bre os marxismos e seu declínio. Como um aprofundamento desse tema foge ao escopo do presente artigo, o leitor mais interessado cer- tamente tirará muito proveito de uma consulta comparativa a três livros recém publicados no Brasil: Tambosi (1999), Giannotti (2000) e Holloway (2003). Mas isso não impede que ela seja aqui brevemente retomada sob um prisma distinto, proposto por Nicholas Georgescu- Roegen (1971), o pesquisador que, sem dúvida, mais contribuiu para o esclarecimento daquilo que Marx chamava de “metabolismo” que os seres humanos mantêm com a natureza e entre si.

Desde logo é preciso lembrar que muitos conceitos podem ser dife- renciados de forma discreta, no sentido matemático dessa palavra.

Entre os conceitos de círculo e de quadrado não há qualquer “zona cinzenta”. São conceitos que simplesmente não se sobrepõem. Porém, não é desse tipo a relação entre o quadrado e o retângulo. É quase impossível ter certeza de que um retângulo concreto seja de fato um quadrado concreto. Além disso, o quadrado é “Um” no âmbito das idéias, mas “Muitos” no âmbito dos sentidos. Até os conceitos de

“vida” e de “morte” já escaparam da relação binária desde que os

biólogos afirmaram que certos vírus/cristais estão na penumbra en-

tre os reinos animado e inanimado. E praticamente todos os grandes

conceitos que envolvem julgamento ou que são valores (como justiça

ou democra-cia) pertencem à segunda categoria. Como diz Georges-

cu-Roegen, não há entre eles fronteiras “arithmomórficas”, pois são

cercados por uma penumbra na qual estão sobrepostos aos seus con-

trários. O autor os chama de conceitos “dialéticos”, fazendo questão

de registrar que sua abordagem é bem diferente das de Hegel e

Marx, muito embora inspirada na lógica do primeiro. E não há neces-

(20)

sidade alguma de esticar este raciocínio para afirmar que as noções de urbano e rural são desse tipo, mesmo que possam ter sido real- mente “arithmomórficas” na Europa dos séculos X a XII .

Como movimento dos contrários, a relação urbano-rural evoluiu tan- to nos países mais avançados que na década de 1970 o grande filóso- fo e sociólogo marxista Henri Lefebvre foi levado a sustentar a hipó- tese teórica de que a sociedade pós-industrial seria completamente urbana. Ou seja, que o pólo rural da contradição tenderia a desapare- cer. No entanto, as tendências mais recentes indicam o quanto pode ser equivocado tratar o rural como sinônimo de agrário, o tropeço básico de Lefebvre. Encantos como paisagens silvestres ou cultiva- das, ar puro, água limpa, silêncio, tranqüilidade etc., muito valoriza- dos por aposentados, turistas, esportistas, congressistas e alguns ti- pos de empresários, já constituem a principal fonte de vantagens comparativas da economia rural (Galston e Baehler, 1995).

Claro, em qualquer lugar a qualidade de vida se refere, em última instância, ao acesso de seus habitantes a alternativas de emprego, serviços sociais públicos essenciais, facilidades educacionais e médi- cas, a um conjunto amplo de serviços culturais e comerciais e à natu- reza, ou seja, espaços abertos para recreação. Para todos os critérios, exceto o último, o acesso é, normalmente, maior nos grandes com- plexos metropolitanos. Entretanto, também são vistos com crescente inquietação os aspectos negativos da concentração da população – muito tempo gasto em transporte, congestionamentos, unidades de serviços públicos desnecessariamente grandes e impessoais, estresse, alienação individual e do grupo, e poluição (Pred, 1979).

Além disso, o crescimento econômico não poderá se basear por mui-

to mais tempo na extração da baixa entropia contida no carvão, gás e

petróleo. Logo deverá se basear em formas mais diretas de explora-

ção da energia solar, com destaque para a biomassa. Não há como

imaginar futuras formas de compensação entrópica sem considerar

que as biotecnologias terão papel crucial em propiciar, por um lado,

um aumento na produtividade da biomassa e, por outro, uma expan-

(21)

são do leque de produtos delas derivado, que costuma ser chamado de “4-F”: alimento (food), combustível (fuel), fertilizantes (fertilizers) e ração animal industrializada (feedstock). Na busca de uma moderna civilização da biomassa serão decisivos os esforços direcionados em favor da viabilização de uma “química verde”, no início como com- plemento e mais tarde como substituta da petroquímica, trocando-se energia fóssil por biocombustíveis (Sachs, 2002).

Quando se evoca a necessidade de conservação da biodiversidade, o mais comum é que se pense em espécies que estão mais ameaçadas de extinção e nas conseqüentes perdas de informação genética. Con- tudo, além de não serem esses os únicos prejuízos impostos pela re- dução da biodiversidade, talvez nem sejam os principais. Bem pior é o enfraquecimento dos ecossistemas que os torna vulneráveis aos choques. Isto é, uma diminuição da capacidade de enfrentar calami- dades ou destruições provocadas pelas sociedades humanas sem que desapareça seu potencial de auto-organização. É o que se chama de resiliência: a capacidade de superar o distúrbio imposto por um fe- nômeno externo (Dasgupta, 2001: 127-131).

Em resumo, há muitas razões para se afirmar que está em curso uma forte revalorização da ruralidade, em vez de sua supressão por uma suposta completa urbanização. São rurais as amenidades que já sus- tentam o novo dinamismo interiorano dos países mais avançados. E também são rurais, tanto as fontes de baixa entropia, quanto a biodi- versidade, das quais dependerão as futuras gerações. O valor do es- paço rural está cada vez mais ligado a tudo o que o distingue do es- paço urbano.

Conclusão

O Brasil é mais rural do que oficialmente se calcula, pois a essa di-

mensão pertencem 80% dos municípios e 30% da população. Um a-

tributo que nada envolve de negativo, já que algumas das principais

vantagens competitivas do século XXI dependerão da força de eco-

(22)

nomias rurais. São estas as duas principais conclusões a que se chega quando se analisa a atual configuração territorial do país tendo pre- sente os mais recentes indicadores sobre o destino da ruralidade nas sociedades humanas mais avançadas. Para isso é preciso superar a abordagem dicotômica, mas sem cair na ilusão de que estaria desa- parecendo a histórica contradição urbano-rural.

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(24)

Resumo: O Brasil surge menos urbano do que oficialmente se calcula quando se analisa a atual configuração territorial do país tendoem corte: a) metodologias recentemente adotadas no primeiro mundo e b) indicadores disponíveis sobre o destino da ruralidade nas socie- dades humanas mais avançadas. Adotando-se procedimentos inspi- rados na contribuição do Serviço de Desenvolvimento Territorial da OCDE - mas que realmente superem a visão dicotômica - nota-se que 80% dos municípios e 30% da população pertencem ao lado essenci- almente rural do país. E, ao contrário do que se pensa, isso nada tem de negativo, já que algumas das principais vantagens competitivas do século XXI dependerão da força das economias rurais.

Palavras-chave: ruralidade, Brasil, hierarquia urbana, território, de- senvolvimento, dicotomia, contradição.

Abstract: (The Rural Dimension of Brasil). Brazil is less urbanized than the official data shows, if its present situation is analyzed with: a) methodologies recently adopted in developed nations, b) indicators of rural development trends in the most structured human societies.

By adopting procedures based on the work of OECD ’s Territorial De- velopment Service, and incorporating additional factors that go be- yond the urban-rural dichotomy, it is possible to realize that, in Bra- zil, 80% of the municipalities and 30% of the population make up the rural regions of the country. Contrary to what is commonly believed, there is nothing wrong with this panorama, since some of the main competitive advantages of the 21st Century will depend upon the strength of rural economies.

Key words: rurality, Brazil, urban hierarchy, territory, development, dichotomy, contradiction.

VEIGA, José Eli da. A dimensão rural do Brasil. Estudos Sociedade e

Agricultura, abril 2004, vol. 12, n. 1, p. 71-94. ISSN 1413-0580.

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