PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Daniel Lopes Faggiano
O T E M P O Q U E N O S R E S T A
- estudos Kamaiurá -
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - ANTROPOLOGIA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Daniel Lopes Faggiano
O T E M P O Q U E N O S R E S T A
- estudos Kamaiurá -
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANTROPOLOGIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais – Antropologia, sob a orientação da Professora Dra. Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira.
BANCA EXAMINADORA:
___________________________
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira
___________________________
Antonio Rago Filho
___________________________
Agradecimentos:
Akauã Kamaiurá
Antonio Rago Filho
Diogo Faggiano
Djara Mbya
Elaine Santos
Felipe Musetti
Felipe Rodela
Kotok Kamaiurá
Glória Lopes
Guilherme Cassis
Luciano Faggiano
Luís Felipe Martinez
Mario Frugiuele
Mayaru Kamaiurá
Michael Mary Nolan
Nelson Che
Paulo Alves Lima
Pedro Íris Paulin
Rodolfo Machado
Samuel Friedman
Taciana Vitti
RESUMO
FAGGIANO, Daniel. O Tempo que Nos Resta, estudos Kamaiurá. 2014. 131 f.
Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.
Em nosso processo de transição ao modo de produção e reprodução do capital através de uma via colonial, forjamos um capitalismo particular nos trópicos. Colonial, sim, pois se desenvolve de maneira atrófica, de modo incompleto, perpetuando e acentuando o Brasil como elo subalterno do imperialismo. Sem apagar as particularidades de cada autor, destaco os estudos de Caio Prado Jr., Francisco Oliveira, Florestan Fernandes, José Chasin, Octavio Ianni e Maurício Tragtenberg como essenciais na formulação marxista do pensamento brasileiro. O presente estudo parte da Marcha para o Oeste brasileiro, buscando adentrar na particularidade histórica brasileira. Impulsionado pela industrialização hiper-tardia do país, o mito do desenvolvimento alça violentamente todo povo brasileiro aos mandos desta causa, enquanto o lucro passa a ser concentrado, ainda mais, nas mãos de fazendeiros e empresários, nacionais ou internacionais. A dominação do valor de troca pelo valor de uso,presente contraditoriamente nas mercadorias da civilização capitalista, junto com a transformação da terra em capital-propriedade privada, chega aos limites do Parque Indígena do Xingu (MT) e, aos poucos, penetra sedutoramente no cotidiano das aldeias. Com base nos estudos realizados desde 1965 pela antropóloga Carmen Junqueira, esta obra pretende analisar criticamente a chegada de mercadorias com seus valores e do capital-relação social na aldeia Kamaiurá de Ipavu, analisando de que modo a sociabilidade do capital fragmenta a coletividade ali existente, além de apontar os arranjos e rearranjos Kamaiurá em frente ao processo desestruturante de nosso capitalismo de extração colonial. Este trabalho, contemporâneo aos tempos de crise do capital em todo globo, procura enfrentar a realidade brasileira sem perder seu horizonte humano societário, ontológico. Por fim, defende-se que o modo de exteriorização da vida Kamaiurá, ancorado no elemento coletivo de suas terras, possa se colocar, humanamente, frente ao capital e abrir, de maneira consciente, caminhos livres por entre os escombros do modo de produção e reprodução ampliada da vida sob o capital.
ABSTRACT
FAGGIANO, Daniel, The remaining time. 2014. 131 f. Dissertação
(Mestrado), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.
In our transition process to the production and reproduction of capital mode through a colonial via, we plated a particular colonial capitalism in the tropics. Colonial, since it develops itself in atrophy, not completely, keeping and reinforcing Brazil as an subaltern bond of the imperialism. Considering the particularity of each author, I remark the works of Caio Prado Jr., Francisco Oliveira, Florestan Fernandes, José Chasin, Octavio Ianni e Maurício Tragtenberg as fundamentals in the marxist formulation of the Brazilian thoughts. The current work starts from The Brazilian March to West, searching our historical particularity. Moved by a late industrialization of the country, the myth of development takes violently all Brazilian people to be submitted to this cause, while the profits pass to be concentrated, even more, in the hands of farmers, national and international dealers. The domination of value of change by the value of use, contradictory present in the products of capitalist civilization, together with the transformation of lands to capital- private property, reaches the limits of Parque Indígena do Xingu (MT) and, slowly, charmingly penetrates the daily life of the aldeias. Considering the studies made since 1965 by the anthropologist Carmen Junqueira, this work intends to critically analyze the arriving of the goods with its values and of the capital-social relation in the aldeia Kamaiurá from Ipavu, analyzing the way the sociability of capital breaks up the existing collectivity, besides pointing out the arrangements and adjustments made by the Kamaiurá when facing the destructive process of our colonial capitalism. This work, contemporary to the capital’s crisis era, searches to confront the Brazilian reality without loosing its human horizon, ontological. At last, it defends that the Kamaiurá’s way of life, anchored in the collective element of their land, may be put, humanly, against the capital and open, consciously, free paths among the rubble of the amplified production and reproduction of life under the capital.
“Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação.”
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1. Capa (Daniel Faggiano). ... p. 9
FIGURA 2. A CEIA.. ... p. 16
FIGURA 3. “VW” ... p. 30
FIGURA 4. O problema do índio e a acusação de genocídio ... p. 60
FIGURA 5. Fotografias Kamaiurá ... p. 83
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1. Setor de Negócios Agrícolas ... p. 53
QUADRO 2. O Capital estrangeiro compra nossa terra com nosso dinheiro ... p. 64
QUADRO 3. Setor de Mineração ... p. 66
QUADRO 4. Distribuição geográfica do total de conflitos e dos conflitos graves
(1976)...p.70
LISTA DE MAPAS
MAPA 1. Mapa das terras pertencentes ao Parque do Xingu vendidas pelo governo
do estado do Mato Grosso em 1954 ...p. 43
MAPA 2. Mapa do Parque Nacional do Xingu ... p. 45
MAPA 3. Usinas que impactam comunidades indígenas ... p. 77
SUMÁRIO
Carta ao Leitor. ... p. 14
Capítulo 1:A Miséria da Antropologia.
1.1. Antropologia e História ... p. 17
1.2. Antropologia e Capitalismo ... p. 25
Capítulo 2: A Flor Exótica da Via Colonial.
2.1. A Farsa do Desenvolvimento Nacional ... p. 31
2.2. Desterrados em suas Terras ... p. 41
Capítulo 3: Senhoras e Senhores de seu Trabalho.
3.1. Os Índios de Ipavu. ... p. 87
3.2. Organização do Trabalho ... p. 95
3.3. Modo de Produção Ordenado segundo o Parentesco ... p. 97
3.4. Arranjos e Rearranjos Kamaiurá ... p. 104
Considerações Finais ... p. 118
Decerto, é muito difícil dizer: mudemos as coisas, busquemos novas possibilidades, tentemos transformar os partidos, discutir, fazer análises, tentemos compreender a nova estrutura social, elaborar novos programas econômicos. Pode ser difícil: mas tudo isso é necessário, não há alternativa. Como também é necessário saber que há coisas que não
podem ser feitas do dia para a noite.1
Hoje, homens e mulheres, vivemos numa constante guerra de uns contra outros, numa violenta luta de classes sob uma constante exploração do homem pelo homem.
O capital chega aos mais distantes confins da sociedade humana, em nossas mais íntimas relações, tornando nossas próprias entranhas estranhadas, negando nossas expressões humanas e perpetuando nossa desumanização do mundo.
Qualquer sociedade que pretenda uma participação ativa de seus membros deve traduzir seu conhecimento teórico em estratégias de luta e ação popular.
A natureza da vida e seu dinamismo coloca a mudança como o cerne da nossa existência. Nossa essência é, então, entendida como resultado de conflitos dialéticos em que a humanidade já não aparece mais como um turbilhão brutal de atos de violência sem sentido. Contudo, sem o conhecimento das circunstâncias históricas, sem reconhecer-se no outro, qualquer passo será em vão. Sem tomar partido, qualquer pretensa neutralidade ruirá junto aos escombros do que um dia poderíamos ter sido e não fomos.
Numa época em que a poeira da miséria envolve a todos laçando um a um na negação humana do trabalho sob a esfinge do capital, espero que este texto renove nossas esperanças. Que a contradição do mundo adube nossa luta em prol de uma sociedade mais livre e igualitária.
Que após a leitura de nossa história, sobre os exemplos dos povos indígenas, povos dominados, mas ainda não organizados pelo capital, floresça em nossa consciência uma práxis revolucionária.
Estejamos certos de que sem uma mudança radical de nossa sociabilidade, nosso destino se encaminhará do caos ao fim da humanidade.
Boa leitura.
Daniel Faggiano
SP. 20 de junho de 2014
1
CAPÍTULO I
1.1. Antropologia e História
Quando o conceito de cultura reifica ou emancipa o pensamento
antropológico?
Ou ainda, como utilizar o conceito de cultura sem esvaziar a concretude do
objeto estudado?
O conceito de cultura desempenha um papel central na formação do
pensamento antropológico. Seja no seu questionamento crítico do modo de vida de
um determinado povo, seja na consolidação de visões estereotipadas e
preconceituosas que falsamente justificam a injustificável dominação e exploração
de povos.
Não sendo uma leitura, o conhecimento é uma construção. Portanto,
devemos sempre iniciar nossos estudos a partir de outros conhecimentos. A crítica
do conhecimento acumulado2 nos impõe um rigoroso estudo dos conceitos
previamente existentes, para que estes, uma vez confrontados com um exame
racional de seus fundamentos, nos permitam delinear suas condicionantes e limites
teóricos, ao tempo que nos permite esboçar possíveis superações, práticas e
teóricas.
Para E. B. Tylor, um dos primeiros antropólogos a conceituar este fenômeno,
“cultura, ou civilização, tomada em seu sentido amplo, etnográfico, é aquele todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e qualquer
outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”.3
Esse pensamento evolucionista atomizava uma determinada sociedade congelada
para analisar sua cultura circunscrita em relações internas fechadas e atemporais.
De lá para cá, no campo da antropologia foram formulados inúmeros
conceitos de cultura, dando margem às mais distintas interpretações. Aos poucos,
depois de superada uma fase inicial de afirmação da antropologia enquanto ciência
isolada, esta retomou ideias de outras ciências buscando ampliar seu horizonte
2
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 18. 3
conceitual.4 Evans-Pritchard, por exemplo, em 1950 criticou severamente o
estrutural-funcionalismo chegando a afirmar em sua palestra “Antropologia Social:
Passado e presente” que “seria um contrassenso acreditar que estudos sincrônicos
podiam produzir percepções da mesma profundidade que estudos históricos”.5
Cultura, tomada em seu sentido histórico, é um complexo de complexos no
qual um determinado ser (social) produz um modo de vida adquirido como membro
de uma comunidade determinada. Ou seja, a cultura não é um ente subjetivo, mas
sim um modo de vida que transforma concretamente o mundo.6
A cultura, apesar de sua tendência unificadora, não paira sobre nossas
cabeças como um manto que nos enlaça e envolve. A cultura é viva e se corporifica
materialmente nos membros de uma dada sociedade. No entanto, cultura jamais
será uma única representação homogênea de um determinado grupo de pessoas.
“Na verdade o próprio termo ‘cultura’, com sua invocação confortável de um
consenso, pode distrair nossa atenção das contradições sociais e culturais, das
fraturas e oposições existentes dentro do conjunto.”7 Justamente por fazer-se em
atos e gestos é que a cultura se faz de acordo com a posição com que determinada
pessoa se encontra na organização social de uma dada sociedade. A cultura se faz
em defesa dos mais diversos interesses e vontades, ou ainda, diferentes estratos
sociais produzem e reproduzem diferentemente a cultura de uma mesma sociedade.
A diversidade e os antagonismos das relações sociais também estão
presentes nessa atividade humana sensível que chamamos de cultura. Mistificada
por uma ideologia dominante, o estranhamento das relações de trabalho esfumaça
tanto a diversidade quanto os antagonismos. Mas não os apaga, pois jamais seria
capaz de desconectar-se de sua base material fundante. Por mais envernizada que
seja uma dada cultura, esta, em seu interior, ultrapassando sua mera aparência,
reflete em sua essência as contradições reais existentes na sociedade.
A cultura tem vida, com a vida na sociedade, dos grupos raciais, regionais, religiosos e outros da mesma forma que com a vida das classes, burguesia,
4
“Enquanto os evolucionistas descartavam um interesse pela história de determinadas sociedades e culturas, os difusionistas descartavam qualquer interesse pela matriz ecológica, econômica, social, política e ideológica na qual as formas culturais estavam sendo transmitidas no espaço e no tempo. As duas escolas de pensamento manifestavam, portanto, preocupações muito diversas. Os funcionalistas, por sua vez, rejeitavam a “história conjetural” dos difusionistas em favor da análise do funcionamento interno em um todo supostamente isolado” (WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 39).
5 EVANS-PRITCHARD, Edward Evans.
Antropologia Social. 6
Cf. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. 7
campesinato, operariado, setores médios. As palavras e as coisas, o passado e o presente, o próximo e o distante, o contrato e a prestação pessoal, a sociedade e a comunidade, o tempo e a duração, a luz do dia e a poeira do tempo, são várias as determinações históricas, sociais e outras que entram e saem na construção de valores, padrões, ideais, modos de ser, visões de mundo.8
Essa cultura viva apresentada por Ianni, nada mais é do que seres humanos
vivos produzindo e reproduzindo cultura; a natureza não se apresenta nua ante o
homem, mas humanizada.
Tempo, espaço, matéria, casualidade, relação, natureza humana e a própria sociedade são produtos criados pelo homem tanto quanto o são os diferentes tipos de ferramentas, sistemas de cultivo, roupas, casa, monumentos, linguagens e mitos que a humanidade produz desde a aurora da vida humana. Entretanto, para seus participantes, todas as culturas tendem a apresentar essas categorias como se não fossem produtos sociais, mas coisas elementares e imutáveis. E tão logo essas categorias são definidas como produtos naturais em vez de sociais, a própria epistemologia atua no sentido de ocultar a compreensão da ordem social. Tudo – nossa experiência, compreensão e explicações – passa apenas a ratificar as convenções que sustentam nosso senso de realidade, a menos que comecemos a nos dar conta de como os “blocos de construção” básicos de nossa experiência e de nossa realidade sentida são construtos não naturais, mas sociais.9
É um erro considerar a cultura como uma mera sobrevivência inerte do
passado e não observar seu caráter processual que se faz e refaz nas
cotidianidades colocando-se imperativamente como modos de vida. Somente
podemos pensar cultura se considerarmos o fluxo do passado se materializando em
formas presentes, ou seja, somente podemos pensar a cultura historicamente.
Ainda, não podemos circunscrever um povo, devemos, ao contrário, alargar
suas fronteiras, borrar seus limites e ampliar sua história em contexto. Muitas vezes,
a cultura não é um reflexo apenas interno da sociedade, mas também uma pressão
das relações externas que impõem a uma sociedade um papel e lugar no modo de
produção regional ou, até mesmo, global.
[...] o conceito de uma sociedade e de uma cultura autônomas, autoreguladoras e autojustificadas aprisionou a antropologia nos limites de suas próprias definições. Nos espaços da ciência, o âmbito da observação e do pensamento estreitou-se, enquanto fora deles os habitantes do mundo estão cada vez mais envolvidos em mudanças globais e de alcance continental. Com efeito, acaso já houve uma época em que populações humanas existiram numa situação de independência em relação a relacionamentos tão abrangentes, não afetados por tão grandes campos de força?10
8 IANNI, Octavio.
Pensamento social no Brasil, p. 167. 9
TAUSSIG, Michael T. O diabo e o fetichismo da mercadoria na América do Sul, p. 24. 10
Assim sendo, a ideia de contato cultural não pode representar um simples
ajustamento de diferenças. Para uma correta interpretação do contato cultural
devemos levar em conta não apenas os valores de cada cultura, mas também a
posição que ocupam no modo de produção regional (ou global). Por exemplo, por
mais que a classe dominante europeia chame os negócios com os povos originários
da América Latina de escambo, os indígenas continuam se reconhecendo enquanto
produtores de riqueza, enquanto trabalhadores, e sabem que sua força de trabalho,
desde o primeiro contato, é saqueada em benefício de outrem. Percebem, na
prática, os reflexos nocivos do contato colonial, independentemente do conceito
cultural que o europeu utilize para justificar suas ações na América Latina.
A antropologia, ao estudar o contato com estes povos, precisa tornar
inteligível a função de seu objeto estudado dentro de uma totalidade, dentro de uma
universalidade capitalista que é singular em cada caso concreto. A particularidade
constitui a singularidade mediatizada, ou seja, não é possível a compreensão do real
tão somente a partir dos dados imediatos.11
Dito de outra maneira: o que uma “coisa”, ou uma “entidade”, ou um “objeto” é depende do contexto não só linguístico, mas também real em que se encontra e, portanto, da função que cumpra. Isolar o objeto ou suas “propriedades” nos conduz, no melhor dos casos, a uma teoria lógica que recorre, como em Quine, à significação e aos fatos, mas que não põe o acento na transformação dos fatos, nem na relação determinada que os fatos guardam entre si e pela qual são modificados.12
Qual a falha desses postulados? Eles nos predispõem a refletir sobre as relações sociais não simplesmente como algo autônomo, mas causal por si só, à parte seu contexto econômico, político ou ideológico.13
Esse abandono das forças econômicas, políticas e ideológicas das relações
sociais humanas desvirtuou o que seria um caminho ontológico da antropologia para
colocá-la a serviço, acriticamente, justamente das forças econômicas, políticas e
ideológicas – no caso, forças dominantes. De pretensão neutra, a antropologia se
firmou como uma extensão dominante do pensamento capitalista.14
A antropologia é produto do seu tempo e do seu meio e, portanto, a serviço
de quem a criou. A antropologia não tem uma história autônoma, circunscrita
11
CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica, p. 169. 12
LABATISDA, Jaime. O Objeto da História, p. 183. 13
WOLF, Eric R. A Europa e os Povos sem História, p. 32.
unicamente no meio acadêmico, desenvolvida imparcialmente por métodos
cientificamente neutros, ao contrário, os homens, “ao desenvolverem sua produção
e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu
pensar e os produtos do seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas
a vida que determina a consciência”.15
No mesmo sentido, a antropologia ocidental desenvolveu-se ligada ao colonialismo, permitindo a emergência de um novo tipo de intelectual: o “antropólogo colonial”, a serviço da administração inglesa, holandesa ou francesa, sugerindo ao poder medidas oportunas para a manutenção do colonialismo.16
Basta pensar nos favores que a antropologia prestou à dominação colonial na
América Latina e na África. A mistificação da violenta realidade confunde a opressão
vivida pelo colonizado forjando uma falsa realidade da situação colonial.
Sartre:
Nas colônias, a verdade se mostrava nua; as “metrópoles” a preferiam vestida; era preciso que o indígena as amasse. Como mães, de certa forma. A elite europeia pôs-se a confeccionar um indigenato de elite; selecionavam-se adolescentes, marcavam-se em suas frontes, com ferro e brasa, os princípios da cultura ocidental, introduziam-lhes na boca mordaças sonoras, grandes palavras pastosas que colavam nos dentes; depois de uma breve permanência na metrópole, mandavam-nos de volta, falsificados.17
Gérard Leclerc:
A colonização clássica era, em muitos aspectos, a forma privilegiada deste monólogo. Durante um longo período a Europa apenas contemplou, nas outras culturas, a sua própria subjetividade, a matéria e o instrumento da sua vontade. Que tenha considerado o bom selvagem um tema desculpabilizante, que tenha praticado a antropologia para ficar com a consciência tranquila, tudo isso é pouco, é apenas o aspecto ideológico. Porque se trata da destruição de culturas, de sociedades. Passagem dos modos de produção pré-capitalista ao modo de produção capitalista, é certo.18
Aimé Césaire:
Não há uma colonização que destrói indígenas e atenta contra a “saúde moral dos colonizadores”, e uma outra colonização, uma colonização esclarecida, uma colonização apoiada na etnografia, que integraria, harmoniosamente e sem riscos para a “saúde moral dos colonizadores”, elementos culturais do colonizador no corpo das civilizações indígenas.19 Qualquer que seja o sentido abstrato e geral que a antropologia tente dar ao
colonialismo, se esconde seu sentido real, que outro não é senão o da expansão do
modo de produção capitalista, praticado através da exploração brutal dos povos
15 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.
A Ideologia alemã, p. 94. 16
TRAGTENBERG, Maurício. A delinquência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder, p. 10.
17 SARTRE, Jean-Paul,
Prefácio à edição de 1961, p. 23. 18
LECLERC, Gérard. Crítica da Antropologia, p. 149. 19
indígenas da América Latina. “Ignorar o drama desses povos seria associar-se ao
processo que os aniquila.” 20
A história da América Latina, desde o contato com a Europa, ou ainda desde
a invasão europeia sobre os povos astecas, maias, tupi, caribe, araucano, quéchua,
aimará e outros, tem sido uma constante luta de sobrevivência de uns e saques e
assassinatos de outros. A partir de Colombo, Vespúcio e Cabral, toda história da
América Latina tem sido uma sucessão de confrontos genocidas de europeus contra
os índios, mestiços, negros, mulatos e nativos. “Há uma luta aberta ou latente entre
raças, etnias, culturas, atravessando toda essa história.”21 Inúmeros povos indígenas
foram reduzidos ou eliminados, antes mesmo do uso da arma de fogo no novo
mundo, milhares de indígenas já haviam sucumbido pelas doenças do antigo
mundo. Ainda assim, os povos indígenas da América Latina resistem. A começar
pela primeira matança de Tlatelolco no início do século XVI, passando pelas lutas de
Tupac Amaru, em fins do século XVIII nos Andes peruanos, os Wilka, em fins do
século XIX em terras bolivianas, os Munduruku no atual século XXI nas margens do
rio Xingu no Brasil, “índios e mestiços sempre representaram outra forma de vida,
trabalho, organização social, cultura, religião, língua, mitologia”.22
Ainda hoje se mantém o “mito” de que os aborígenes, nesta parte da América, limitaram-se a assistir à ocupação da terra pelos portugueses e a sofrer, passivamente, os efeitos da colonização. A ideia de que estavam em um nível civilizatório muito baixo é responsável por essa presunção. Todavia, nada está mais longe da verdade, a julgar pelos relatos da época. Nos limites de suas possibilidades, foram inimigos duros e terríveis, que lutaram ardorosamente pelas terras, pela segurança, pela liberdade, que lhes eram arrebatadas conjuntamente.23
Desde o primeiro contato com os europeus, podemos dizer que as culturas
dos povos indígenas da América Latina, ou seja, o seus modos de vida, também são
agora, modos de luta, ou ainda, modos de resistência.
Tratar abstratamente o encontro de culturas, reduzir o prisma colonial ao feixe
único do contato cultural neutro, nos leva a entender o colonialismo como um
simples ajustamento de culturas distintas, num mecânico processo de
industrialização, urbanização, educação, etc. Ao contrário, se voltamos nossos olhos
para a cultura interpretando-a como um modo concreto de vida analisaremos o
contato cultural em seu aspecto social de expansão do modo de produção
20
JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, p. 126. 21 IANNI, Octavio.
Revolução e cultura, p. 33. 22
Ibidem,p. 33. 23
capitalista, ou seja, evidenciaremos a dimensão desumana deste contato. Falsear a
história, forjar doutrinas raciais, impor dogmas e aprisionar o pensamento local numa
educação formal, produz armas não menos genocidas do que aquelas produzidas
nas fábricas.
Os conceitos forjados por uma determinada classe dominante, com sua
pompa acadêmica, são maciçamente propagandeados no resto do globo. Essa falsa
universalidade, estabelecida por caminhos equivocados, inculcou nos povos da
América Latina o péssimo hábito de que são eles (europeus) que devem pensar por
nós.
Dessa maneira, as relações sociais no mundo colonial se transformam num
significante à espera de significados europeus. A auto definição simbólica dos povos
americanos foi arrancada pela antropologia ao passo que a expansão colonialista
arrancava o destino destes mesmos povos. Estes, ou deixavam fisicamente de ser o
que eram, ao sucumbirem a doenças e chacinas, ou lhes era infligido um novo modo
de pensar, que não o seu.
Todas estas insuficiências e implicações ideológicas das noções clássicas de mudança, de contato, etc., levaram G. Balandier a falar, de preferência, em “situação colonial”. Esta noção implica, em primeiro lugar, a necessidade de considerar o colonialismo como uma totalidade e não como um conjunto de processos que se poderiam estudar independentemente uns dos outros (monetarização da economia, difusão de um ensino europeu, evangelização, etc.). Por outro lado implica que as mudanças operadas sob o colonialismo não são as mesmas que teriam tido lugar numa outra situação, que as mudanças de origem externa, isto é, colonial, são fundamentalmente diferentes das mudanças indígenas, e sobretudo das mudanças operadas num verdadeiro “give and take”. 24
Se o colonialismo deve ser interpretado dentro de uma totalidade, o mesmo
deve acontecer com nossa concepção de história. Ou seja, inexiste uma “história
indígena” destacada da uma “história branca”. O caminho da etnohistória atinge seu
objeto de maneira alienada, pois analisa o índio isolado da problemática do colonial.
A “história indígena” é apenas uma das relações do processo histórico humano e
não pode ser destacada de suas conexões.
Se existem conexões em todos os lugares, por que insistimos em transformar fenômenos dinâmicos, interligados, em coisas estáticas, desligadas? Parte disso se deve, talvez, ao modo como aprendemos nossa própria história. Fomos ensinados, nas salas de aula e fora delas, que existe uma entidade chamada Ocidente e que se pode pensar nesse Ocidente como uma sociedade e uma civilização independentes e em oposição a outras sociedades e civilizações. Muitos de nós até mesmo crescemos acreditando que o Ocidente possui uma genealogia segundo a qual a Grécia antiga gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa
24
cristã gerou a Renascença, a renascença gerou o Iluminismo, o Iluminismo gerou a democracia política e a Revolução Industrial. A indústria, cruzada com a democracia, por sua vez produziu os Estados Unidos, encarnando o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.25
Mas então, que significado devemos subtrair dessa conexão chamada de
colonialismo? Que totalidade é essa?
O colonialismo nada mais é do que a expansão violenta do capitalismo no
globo. “O capitalismo transformou-se num sistema universal de subjugação colonial
e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da população do planeta por um
punhado de países ‘avançados’.”26 O excedente de capital acumulado na Europa
não é convertido na melhoria da condição de vida do povo europeu, pois isso
significaria uma diminuição dos lucros capitalistas, ao contrário, esse excedente, na
busca de ampliar o lucro, é exportado, sob determinadas condições, para o resto do
globo.
Veja que a subjugação colonial permanece mesmo após a onda de
independências na América Latina. O estrangulamento financeiro da imensa maioria
da população do planeta por um punhado de países “avançados” persiste nos dias
de hoje. Talvez, por estas razões, o antropólogo Balandier (1955) prefira utilizar o
termo situação colonial.
Para designar esta situação colonial que persiste, utilizaremos o termo
empregado por V. I. Lenin - Imperialismo, o estágio superior do capital. Para o autor,
esse desenvolvimento das características fundamentais do capitalismo, o qual
denomina imperialismo, pode ser interpretado como:
Uma forma de produção e reprodução da vida baseada na exploração do homem pelo homem; a concentração cada vez menor de corporações e da classe que as conduz, a burguesia; o desenvolvimento das forças produtivas com o objetivo único e exclusivo de intensificar a extração de mais-valia dos trabalhadores e, com isso, gerar mais lucros para os exploradores; a dominação dos Estados imperialistas sobre outros Estados e diferentes povos.27
Assim, se o capitalismo, em seu estágio imperialista, transformou-se em um
sistema universal, o que significa hoje, estudar a antropologia sob a expansão da
ordem dominante do capital?
25 WOLF, Eric R.
A Europa e os Povos sem História, p. 27. 26
LENIN, Vladimir Ilitch. Imperialismo, estágio superior do capitalismo, p. 27. 27
1.2. Antropologia e Capitalismo
Assim como a filosofia encontra as armas materiais no proletariado, assim o proletariado tem as suas armas intelectuais na filosofia. [...] A filosofia não pode realizar-se realizar-sem a supra-sunção do proletariado, o proletariado não pode supra-sumir-se sem a realização da filosofia.28
Entendemos a antropologia com uma dupla conexão. De um lado, liga-se à
filosofia, em seu sentido ontológico, na qual busca estabelecer uma totalidade29
concreta de suas ideias. Do outro, conecta-se ao trabalhador; por exemplo, no
indigenismo é no cotidiano prático da comunidade indígena que sua teoria deve
germinar.
Uma antropologia que se faça sem essa relação mútua corre o risco de
reduzir-se a um simplificado inventariado de bens etnográficos, uma coleção de
fatos mortos, quando não, apequena-se numa ordeira serventia colonial.
Redirecionar a antropologia não se faz apenas criticamente no espaço
acadêmico, mas principalmente com a subversão prática das relações sociais. As
transformações conceituais só fazem sentido se repousarem numa transformação
objetiva do mundo.
O trabalho etnológico deve documentar a realidade que envolve os grupos estudados, de tal forma que os resultados possam ser usados na defesa dos seus direitos: na correta definição das terras, na informação e denúncia dos interesses econômicos e atividades que exponham a comunidade a perigos, etc.30
A vasta diversidade cultural anteriormente existente no mundo está sendo
substituída pelo abismo antagônico entre pobreza e riqueza. Vemos a intensificação
dos grilhões de um capitalismo agonizante consumir sistematicamente culturas,
aldeias, povos inteiros na edificação quase infinita de mercadorias efêmeras.
A perseguição prossegue nos séculos seguintes, em novo compasso é verdade, mas no mesmo rumo de civilizar cristianizando e europeizando. Já sem o esplendor do saqueio milionário de outrora, porque despojados de todos os seus bens, os índios remanescentes se converteram em párias. São mera força de trabalho superexplorada que mal consegue sobreviver nas terras em que um dia edificaram civilizações. Ou são tribos especializadíssimas na fuga, deslocando-se incansavelmente para além da fronteira da civilização para escapar dela.31
28 MARX, Karl.
Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 156. 29
“Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue decisivamente o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” (LUKÁCS, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista, p. 21).
30
JUNQUEIRA, Carmen. A questão indígena, p. 127. 31
Por mais “isolada” que esteja uma dada comunidade, e mesmo que esta não
se constitua como classe especificamente, hoje, com a expansão capitalista no
globo, seu futuro passa a ser operado de acordo com os mecanismos da divisão de
classes.
As várias contradições existentes nesse complexo se articulam em torno de
uma contradição fundamental do capital, que é a contradição de classes, e é
impossível pensá-las sem ser em relação com essa contradição fundamental. Em
seu cerne, o capitalismo se produz e reproduz suprimindo outros tipos de relações
não capitalistas, bem como usurpa das comunidades resistentes sua capacidade de
autodeterminação. Conduz dominantemente as demais consequências no mundo,
eliminando qualquer perspectiva histórica à margem da relação de classes imposta
na sociedade global.
Progressivamente, a dimensão étnica vai sendo subordinada à dimensão de
classe, que passa a ser uma matriz estrutural para o pensamento antropológico.
Desse modo, o antropólogo que estuda uma determinada comunidade indígena
deve ter claro que o índio também é um trabalhador explorado, “independentemente”
da percepção deste sobre si mesmo.
Percebemos que as contradições que devem ser resolvidas são estruturais
(de domínio e de classe social) e não apenas espaciais (de região ou de
enfrentamento de duas culturas distintas). Portanto, uma antropologia
verdadeiramente humana, não pode se esquivar do árduo trabalho de superação
estrutural do capital.
Se devemos buscar a ideia na sua própria realidade,32 é na especificidade da
formação, produção e reprodução do capitalismo no Brasil que o antropólogo deve
situar seu objeto estudado. O conhecimento do objeto estudado não advém de
imediato, a certeza não provém da simples leitura ou do contato direito com o objeto.
É através, do desvelamento das diversas mediações que orbitam esse dado objeto
estudado, que a certeza pode surgir, após um longo caminho que se enceta no
questionamento da realidade posta; como ponto de partida tem-se a inicial incerteza
dos fatos.
32
O pesquisador deve ultrapassar a aparência fenomênica (imediata) para
apreender a essência do objeto. O conhecimento inicia-se com a aparência, é do
imediatamente sensível que parte o pensamento. A teoria33 nada mais é do que a
reprodução, no plano do pensamento, do movimento real do objeto.
A percepção da ontologia em Marx fornece a Lukács os elementos passíveis de estabelecer, de uma vez por todas, a ruptura com o predomínio da gnosiologia e da epistemologia em nossos tempos. Suas reflexões partem da crítica fundamental que postula que, em Marx, o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a partir de pontos de vista gnosiológicos ou metodológicos (e tanto menos lógicos), mas a partir da própria coisa, isto é, da essência ontológica da matéria tratada.34
É fundante basear-se na realidade, na concretude dos fatos, pois é por meio
deles que apreendemos as contradições e as múltiplas determinações.
O concreto é concreto, porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da percepção e da representação. No primeiro método, a representação plena volatiza-se na determinação abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento.35 Dessa maneira o pesquisador, ao conduzir a análise de determinados fatos,
deve necessariamente realizar a viagem de volta ao objeto concreto. Ou seja, os
fatos só poderão ser compreendidos se situados historicamente, evidenciando assim
suas funções dentro dos movimentos do capital.
A orientação essencial do pensamento de Marx era de natureza ontológica e não epistemológica (Lukács, 1979): por isso, seu interesse não incidia sobre um abstrato “como conhecer”, mas sobre “como conhecer um objeto real e determinado” – Lenin, aliás, sustentava, em 1920, que o espírito do legado de Marx consistia na análise concreta de uma situação concreta.36 A análise concreta de uma situação concreta do indígena explorado pela
expansão do capitalismo no Brasil deve possibilitar uma melhor compreensão da
realidade, fazendo com que esta ferramenta teórica implique diretamente na escolha
revolucionária das diferentes formas de ações concretas capazes de transformar a
realidade.
33
“A abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair de sua contextualidade determinada (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, examiná-lo; é um procedimento intelectual sem o qual a análise é inviável.” (NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx, p. 44).
34
VAISMAN, Ester; FORTES, Ronaldo Vielmi. In: LUKÁCS. G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social, p. 21.
35
MARX, Karl. Condições históricas da Reprodução Social, p. 63. 36
Nessa guerra multissecular de extermínio sistemático dos povos indígenas, o
espantoso, como diria Darcy Ribeiro,37 não é que tantos índios morressem pela
eficácia das armas, dos vírus e dos ardis postos em cena, mas sim a incrível
sobrevivência de alguns povos até os dias atuais.
Se incrível foi a sobrevivência dos povos indígenas, a partir de hoje, sob a
dominação global do capital, revolucionárias têm que ser as armas teóricas, para
que revolucionária seja a emancipação indígena.
Segundo Mészáros, Marx “numa rejeição crítica da impotência das meras interpretações filosóficas – de que o problema não surgiu do interior da própria filosofia, mas do relacionamento entre ela e o mundo real, e que, consequentemente, a solução estava na transformação desse mundo, ele não defendeu a capitulação à fragmentação e parcialidade nem virou as costas à busca filosófica da universalidade. Pelo contrário, insistiu que a medida da emancipação deve ser o nível no qual a práxis social recupera sua dimensão universal: uma tarefa que também chamou de ‘a realização filosófica’”.38
37 Cf. RIBEIRO, Darcy.
Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno.
38
CAPÍTULO II
2.1. A Farsa do Desenvolvimento Nacional
Assim, a antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece (por mais estritamente religiosa, nacional ou política que seja a aparição) como objetivo da produção parece muito mais elevada que a do mundo moderno, na qual a produção é objetivo do homem, e a riqueza, o objetivo da produção.39
Para conceber a sociedade e a história como processos requer-se conhecer
também o conjunto do universo como processo; é na totalidade em movimento que
podemos situar as singularidades concretas do real. Essa totalidade histórica de
processos interligados, tensionados por contradições e disputas de poder, torna
impossível pensar o mundo de hoje sem pensarmos na expansão do modo de
produção do capital.
Atentos às armadilhas teóricas que a simples transposição de conceitos pode
causar, devemos pensar o concreto no abstrato e não o contrário (“A cabeça pensa
onde os pés pisam”40). Ao pensar o abstrato no concreto adentramos num
quebra-cabeça de encaixes teóricos que nos força à adequação de conceitos distintos para
lugares diferentes. Ou seja, os conceitos nada mais são que abstrações razoáveis
que nos ajudam a situar e compreender o concreto estudado. Assim, um correto
pensamento concreto parte da particularidade situada em sua totalidade, e não
através de simples exportações de conceitos.
Como se deu a expansão capitalista no Brasil?
Qual a particularidade de sua consolidação?
Ou ainda, qual o significado de nossa via colonial?
Essas perguntas buscam em nossa formação a essência das atuais
contradições. É nesse exercício dialético que se abrirão as portas para se repensar
os povos indígenas na atualidade brasileira.
O estudo de nosso processo de industrialização,41 de nossa entificação no
modo de produção do capital, nos fornece pistas históricas de nossas atuais
39
MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas, p. 80. 40 Cf. FREIRE, Paulo.
Pedagogia do Oprimido, 2011. 41
contradições. É no processo de industrialização onde encontramos o principal ponto
de partida para as complexificações que surgirão em nossa contemporaneidade.
Isso não significa dizer que a concretização social do modo de produção capitalista
se dá de maneira homogênea nos mais diversos cantos do mundo, mas sim que
essa abstração razoável da formação capitalista no Brasil nos oferta um plano formal
que nos auxilia na leitura de um particular real.
Apesar dos inúmeros estudos sobre esse processo brasileiro, poucos autores
se debruçaram crítica e profundamente sobre nossas questões. Sem apagar as
particularidades de cada autor, destaco os estudos de Caio Prado Jr., Francisco
Oliveira, Florestan Fernandes, José Chasin, Octavio Ianni e Maurício Tragtenberg.
Representam a centralidade marxiana em que este estudo está ancorado.
O termo industrialização significa neste estudo o resultado de um processo de
acumulação de capital no qual as bases societárias em seu modo de produção
passam a ser dominantemente capitalistas, ou seja, a industrialização promove não
apenas a transformação da força de trabalho em trabalho assalariado, mas prepara
também os mecanismos sociais de sua reprodução e expansão.
Nosso atrasado processo de industrialização desabrochou de maneira
deformada nossa transição ao capitalismo, perpetuando e acentuando a dominação
imperialista no mundo. Longe de desafogar nossas finanças externas, o concurso de
capitais advindos da penetração imperialista no Brasil agravou ainda mais nossas
contradições internas e externas.42
O Estado, no modo de produção capitalista, tem por função zelar pela manutenção das relações de produção dele derivadas. No Brasil, a objetivação capitalista é tardia. Ela se realiza por meio da revolução passiva, da revolução pelo alto. A evolução do capitalismo no Brasil não foi precedida pelas realizações da cidadania e da comunidade democrática. A burguesia industrial se ligou à antiga classe dominante por meio do processo de conciliação; isso explica o fato de a Revolução Democrático-Burguesa no país ser uma flor exótica, e a via colonial do desenvolvimento capitalista ter permeado nossa formação econômico-social. O desenvolvimento capitalista se realiza pela alavanca do Estado intervencionista, de um Estado social fundado no esquema keynesiano. Não é um Estado socializante nem representa uma solução além do modo de produção capitalista.43
A industrialização brasileira vem desacompanhada de uma Revolução
burguesa clássica. Ocorre no Brasil um processo de conciliação de consequências
destino do capital, isto é, a luta pela apropriação da mais-valia e das técnicas de capitalização. Ou seja, estão em jogo as relações de classes determinadas pelas orientações da circulação do capital.” (IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 102).
42
PRADO JR., Caio. História do Brasil, p. 315. 43
perversas. Ou ainda, podemos afirmar que se desenvolve no Brasil um capitalismo
de tipo colonial.
O processo de industrialização brasileiro vem inexoravelmente atrelado a uma
ideologia do desenvolvimento.44 Uma intelectualidade desinteressada na busca do
real mantém misticamente a ideia do desenvolvimento como única via possível de
emancipação da sociedade brasileira. Essa colonização do pensamento, dominante
na cultura brasileira, impede-nos de construir formas alternativas de superação do
Capital.
Foi assim que o Presidente Getúlio Vargas, em nosso incipiente processo de
industrialização, à meia noite do dia 31 de dezembro de 1937, do Palácio da
Guanabara, pronuncia ao povo brasileiro:
A civilização brasileira à mercê dos fatores geográficos, estendeu-se no sentido da longitude, ocupando o vasto litoral, onde se localizam os centros principais de atividade, riqueza e vida. Mais do que uma simples imagem, é uma realidade urgente e necessária galgar a montanha, transpor os planaltos e expandir-nos no sentido das latitudes. Retomando a trilha dos pioneiros que plantaram no coração do Continente em vigorosa e épica arrancada, os marcos da fronteira territoriais, precisamos de novo suprimir obstáculos, encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras econômicas, consolidando, definitivamente, os alicerces da Nação.
O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste. No século XVIII, de lá jorrou o caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da América o Continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir buscar: - dos vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das entranhas da terra, o metal, com que forjar os instrumentos da nossa defesa e do nosso progresso industrial.45
Em agosto de 1940, na cidade de Goiânia, na inauguração da Associação
Cívica “Cruzada Rumo ao Oeste”, o mesmo Presidente reforça o mito do
desenvolvimento como salvação da nação brasileira:
Continuam, entretanto, os vastos espaços despovoados, que não atingiram o necessário clima renovador, pela falta de toda uma série de medidas elementares, cuja execução figura no programa do Governo e nos propósitos da administração, destacando-se, dentre eles, o saneamento, a educação e os transportes. No dia em que dispuserem de todos os
44
“A industrialização de tipo capitalista, como ocorre no Brasil, produziu-se com o desenvolvimentismo, que é seu ingrediente ideológico fundamental. Nacionalista ou associado ao capital externo, esse desenvolvimento faz parte da corrente de ideias característica dessa etapa de transição do sistema econômico-social nacional. No processo de conversão do capital agrícola, comercial e bancário em capital industrial, essa doutrina constituiu-se como uma visão prospectiva da civilização industrial. Exprime alguns conteúdos sociais e políticos dessa metamorfose, desse processo civilizatório. Principalmente, exprime a conversão em que a hierarquia das classes sociais se reordena em uma nova configuração. O Estado patrimonial se converte em Estado burguês. Nessa concepção, desenvolvimento significa industrialização. Isto é, afirma-se que é geral (desenvolvimento econômico, social, cultural, etc.) o que é, em primeiro lugar, particular (a supremacia da produção industrial). É a ideologia da nova classe dirigente, na fase de ascensão do poder.” (IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo, p. 98).
45
elementos, os espaços vazios se povoarão. Teremos densidade demográfica e desenvolvimento industrial. Deste modo, o programa de “Rumo ao Oeste” é o reatamento da campanha dos construtores da nacionalidade, dos bandeirantes e dos sertanistas, com a integração dos modernos processos de cultura. Precisamos promover essa arrancada, sob os aspectos e com todos os métodos, a fim de suprimirmos os vácuos demográficos do nosso território e fazermos com que as fronteiras econômicas coincidam com as fronteiras políticas. Eis o nosso imperialismo. Não ambicionamos um palmo de território que não seja o nosso, mas temos um expansionismo, que é o de crescimento dentro das nossas próprias fronteiras.46
Como consequência de nosso capitalismo colonial, eis nosso imperialismo.
Não desejamos expandir nosso território, nosso espaço vital é o próprio território
nacional, ainda em vias de uma colonização interna.
Essa crença no desenvolvimento baseada na salvação técnico-científica
camufla a ideologia capitalista da produção pela produção, da qual o fator humano é
excluído. O desenvolvimento da produção como chave mestra da prosperidade não
representa necessariamente uma prosperidade humana, mas essencialmente a
prosperidade do lucro. E a prosperidade do lucro sobre um elevado custo humano
não se faz exclusivamente pelo exercício da força, mas também pela inculcação.
A máquina estatal subordinada ao lucro é direcionada de maneira consciente
e determinada para que população brasileira absorva naturalmente a ideologia do
desenvolvimento. Consolida-se não apenas uma proposta de governo, mas as
bases míticas que unificarão e dotarão de sentido, material e subjetivo, o devir
brasileiro. Essa ideologia ultrapassa a esfera econômica, contamina a educação, a
saúde, as políticas públicas, o indigenismo, etc.
Torna-se um fim em si mesmo, porquanto advoga para si a prerrogativa de ser condição para desideratos maiores, como bem-estar social, ou valores simbólicos de vulto, como soberania nacional. Assim, o desenvolvimento assume a configuração de uma utopia, um estágio superior a ser conquistado, com patamar mais elevado da felicidade.47
A mistificação do discurso desenvolvimentista ofusca a existência da luta de
classes, chama para si os holofotes da propaganda e lança-o como o único caminho
viável e possível para superação da miséria brasileira. Os bandeirantes que
historicamente eliminaram ferozmente os povos indígenas, agora são lançados a
46 VARGAS, Getúlio.
Cruzada rumo Oeste. 47
heróis míticos, e o povo, seja qual fosse o nome dado à sua democracia,48 continua
oprimido.
Essa nova simbologia,49 impulsionada por um concreto processo de
ampliação capitalista nos trópicos, desloca habilmente a análise crítica do real para
a propaganda harmônica do subjetivo, é através do colorido, das sensações
espetaculares que o interesse da classe dominante é disseminado como o interesse
de todos através de um espírito de cooperação. Temos como arquiteto da ideologia
dessa classe dominante a figura de Cassiano Ricardo, membro destacado do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Não é possível pensar na democracia brasileira bandeirante sem a organização hierárquica do grupo, que possibilita o aproveitamento de todos os valores humanos pela capacidade viva de cada um e não pela igualdade abstrata, irracional ou estandardizada.50
O índio remador, caçador, flecheiro e policial explica-se claramente como o negro lavrador e minerador. Também não seria necessária a violência para que o branco fosse o homem de comando. Na divisão de trabalho como na dos postos políticos cada elemento humano tinha seu papel, determinado mais pela tendência de cada grupo do que pela violência ou imposição de um preconceito racial.51
Veja que o Estado Novo não buscava ampliar ou estimular a atuação política
do povo brasileiro, ao contrário, a este inculcava a passividade da aceitação e a sua
submissão à classe dominante. Um esforço gigantesco foi concentrado para atrair o
apoio das massas, um apoio inerte que não questiona ou duvida.
O projeto de desenvolvimento não é somente um jogo de palavras
propagadas pela ideologia burguesa, mas sim a manifestação simbólica do processo
de acumulação capitalista que se desenvolve no país. É no plano concreto e não
apenas na esfera da comunicação que o desenvolvimento gera suas mais ferozes
opressões – repousa na extração de mais-valia seu real motor. Esse discurso é o
resultado de formas concretas de dominação do capital-propriedade privada
assentado na real desigualdade social brasileira.
Em primeiro lugar, o imperialismo atua como um poderoso fator de exploração da riqueza nacional; não outro seu objetivo que acaparar em
48
“Tinha de ser assim porque a tendência “natural” num meio tropical, corporificado pelo indígena, era um “comunismo selvagem” prevalecer. Somente o bandeirismo autoritário, antiliberal podia dar ordem e impor a racionalidade a essa tendência, estabelecendo uma “democracia hierárquica”.” (CASSIANO, Ricardo. Marcha para Oeste, p. 428).
49 “É como se a história do país se desenvolvesse em termos de signos, símbolos e emblemas, figuras e figurações, valores e ideais; sem que se revelem relações, processos e estruturas de dominação e apropriação com os quais se desvendam os nexos e movimentos da realidade social.” (IANNI, Octavio. Tendências do pensamento brasileiro,pp. 55-74).
50
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste, p. 324. 51
proveito próprio a mais-valia do trabalho brasileiro ao seu alcance. Nisso ele age como qualquer outra forma de capital, e não tem aí nada de particularmente interessante. Mas o que o distingue é que tal exploração não se faz em benefício de uma classe brasileira, uma burguesia indígena (a não ser grupos insignificantes ligados diretamente ao capital financeiro, e tão internacionais quanto ele), mas de classes e interesses completamente estranhos ao país. Isso é muito importante, porque nesse processo não é apenas a classe trabalhadora que se desfalca, mas o país em conjunto que vê escoar-se para fora de suas fronteiras a melhor parcela de suas riquezas e recursos. As contradições da exploração capitalista tomam assim caráter muito mais agudo e extremo. Entre outros efeitos bem patentes estão a deficiência e morosidade da acumulação capitalista brasileira essencialmente débil. Falta assim ao país o elemento fundamental de progresso econômico.52
O Estado getulista desenvolve as condições concretas para o livre
desenvolvimento industrial na fase (hiper) tardia do capitalismo monopolista
brasileiro. Nessa nova reconfiguração brasileira, o governo federal não apenas
propaga uma ideologia do desenvolvimento, mas também aduba o seu interior,
instrumentalizando e estruturando as bases para o enraizamento do capital nos
rincões brasileiros. “O que ocorre é que o Estado, como instituição fundamental do
sistema global, está na base e na cúpula do sistema de apropriação e dominação.
Na ordenação das relações entre os homens, ele toma a iniciativa das
reordenações, controles, estímulos e assim por diante.”53
Esse desenvolvimento desigual e combinado camufla, hora aqui, hora ali, as
antigas contradições que solapam a vida no Brasil. Cedo ou tarde, muitas delas
ainda mais agravadas, voltam à tona, e outras novas são acrescentadas,
aprofundando-se em consequência, consideravelmente, a crise estrutural de nosso
Brasil – colônia.
É sabido que a mundialização do capital subsume formações sociais distintas e engendra desenvolvimentos desiguais e combinados. A universalização capitalista, não sendo uma expansão uniforme de lava homogênea, mas a irradiação da lógica substantiva de um modo de produzir, compreendem bom número de variações e índices de efetivação. Com ela não se processa, a não ser formalmente, é óbvio, uma igualização internacional, mas a constituição de uma cadeia de elos muito desiguais, cuja dinâmica constitutiva, grau de configuração, capacidade de auto-sustentação e potência reprodutiva são profundamente distintos. Diversidade necessária pela própria legalidade do capital, uma vez que a expansão em tela é uma forma de reprodução ampliada de certos capitais circunscritos, que ultrapassam seus limites à procura de circunscrições mais alargadas, para efeito de suas exercitações. Movimento, pois, que requer campos receptivos ou que sejam configuráveis como tais, portanto, diversos dos primeiros, embora com estes obrigatoriamente articuláveis. Em síntese, espaços característicos da universalidade do capital, porém diferentes e
52
PRADO JR, Caio. História Econômica do Brasil, p. 280. 53