PUC-SP
Lêda Virgínia Alves Moreno
Os sentidos da relação Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar: contribuições da epistemologia da prática à formação docente
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
PUC-SP
Lêda Virgínia Alves Moreno
Os sentidos da relação Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar: contribuições da epistemologia da prática à formação docente
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: CURRÍCULO
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação: Currículo, sob a orientação da Profa. Dra. Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito
Banca examinadora
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Dedico ao Tempo...
Tempo dos meus pais Tempo da família
Tempo futuro
Pai e mãe, ouro de mina...
(Djavan)
Aos meus pais, Dávio e Léa (In memorian) Tesouros amados... Guardo deles a honradez, a determinação, a ousadia e os sonhos. Foram os maiores incentivadores dos meus projetos... Ensinaram-me que a vida é construída com amor, entrega, superações e, principalmente, com fé e esperança.
Você é isso, luz que descortina, paz do meu amor...
(Luiz Vieira)
Ao Luiz, meu grande amor e companheiro, meu porto seguro.
Se lembra do futuro que a gente combinou...
(Chico Buarque)
Ao Eduardo, Débora e agora Rosângela Vocês deram novos sentidos à minha vida... Cresci com vocês. Meu amor por vocês é eterno.
E quando passarem a limpo, e quando cortarem os laços, e quando soltarem os cintos, façam a festa por mim...
(Ivan Lins)
A Deus por tudo – pela força e presença viva no meu caminho.
À querida Professora Dra. Regina Lúcia Giffoni Luz de Brito, que amorosamente aceitou caminhar comigo... Minha gratidão pela generosidade, firmeza, competência e sabedoria com que me orientou.
A todos os professores do Programa Educação: Currículo, especialmente à Professora Dra. Elizabeth Bianconcini Almeida, Professora Dra. Marina Graziela Feldmann, Professor Dr. Antonio Chizzotti e Professor Dr. Alípio Casali, que afetuosamente me proporcionaram sempre grande aprendizado.
Ao Prof. Dr. Pe. Leo Pessini, um dos grandes referenciais na minha vida. Agradeço pelo incentivo e pelos instigantes encontros dos quais recebi inesquecíveis lições de vida. Sinto-me privilegiada por tê-lo como fonte de sabedoria nesses vinte anos de trabalho.
À Professora Dra. Christina Ribeiro Neder, quem generosamente me incentivou e apoiou a fazer essa trajetória. Minha gratidão pela caminhada lado a lado.
À Professora Dra. Ingrid Esslinger, pela escuta e pela presença em minha vida.
À equipe de professoras da Escola da Pediatria do Hospital A.C.Camargo, pela recepção, pelo generoso atendimento e acolhida à minha pesquisa. Agradecimentos especiais à querida Professora Rosemary Vicari Hilário, que abriu as portas do Hospital e não mediu esforços para me ajudar em todos os momentos deste trabalho.
Ao Davi Bagnatori Tavares, pela competência e profissionalismo no aprimoramento de meus escritos. Agradeço carinhosamente sua fundamental e decisiva participação nesse processo de construção.
À Bruna e Jéssica, pelo apoio, compreensão e dedicação incondicional para comigo. Meu carinho a vocês.
Às professoras Massako Taminato, Márcia Aparecida Mareuse, Lucila Pesce, Elma Zoboli, Jônia Lacerda Felício, Laurette Boulos Ribeiro, Margaréte May B. Rosito e aos professores Paulo Eduardo Marcondes de Salles e Clóvis Castelo Júnior, presenças marcantes em minha trajetória pessoal e profissional, agradeço pela amizade e pelo compartilhamento de ideias e experiências. Sonhamos juntos na construção de muitos projetos acreditando sempre no potencial transformador do ser humano.
Aos queridos Maria Dora da Veiga B. Anjos, Maria B. Barbosa, Andrea Tieko T. Ishiy, Gil Emerson Aguiar, Pedro Campaña, Creuza F. Oliveira, agradeço pela torcida carinhosa e pela força que me deram nos momentos mais delicados da minha vida.
Às professoras Wilma Rochelle e Lizika Goldchleger, pela sempre sensibilidade para comigo.
À secretaria do Programa de Educação: Currículo, na pessoa da Cida, pela sempre disponibilidade e atenção.
Se as portas da percepção estivessem limpas,
tudo apareceria para o ser humano tal como é: infinito.
MORENO, Lêda Virgínia Alves. Os sentidos da relação Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar: contribuições da epistemologia da prática à formação docente. 2012. 217f. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
O presente estudo teve como objetivo verificar o alcance dos sentidos atribuídos à relação Educação e Saúde pelos professores pedagogos que atuam no âmbito hospitalar como forma de compreender os elementos constitutivos de sua prática, bem como suas noções de ‘qualidade de vida’, ‘dignidade humana’ e ‘cidadania’, tendo em vista o trabalho pedagógico que desenvolvem junto a escolares hospitalizados internados na área da Oncologia Pediátrica em um hospital privado na cidade de São Paulo. O percurso metodológico teve como base, inicialmente, a pesquisa bibliográfica e documental, posteriormente complementada pela pesquisa qualitativa por meio de estudo de caso. Os participantes da pesquisa foram professores pedagogos que atuam com escolares hospitalizados há mais de dez anos. À luz dos referenciais teóricos e com base nos depoimentos dos professores pedagogos e nos dados documentais foram levantados pontos de inter-relação considerando três instâncias: a do campo da epistemologia da prática, a da formação dos professores pedagogos e a do processo de constituição da condição dos professores pedagogos no âmbito hospitalar. A presente investigação nos permitiu apontar como um dos dados conclusivos a premência da construção de novos referenciais em relação aos fundamentos da relação educação e saúde e das práticas de formação acadêmica nos cursos de graduação em pedagogia, assim como nos de pós-graduação. Outro ponto apontado nesta pesquisa foi que o trabalho desenvolvido pelo professor pedagogo no hospital seja pautado pela autenticidade e pela qualidade relacional. Isso pressupõe que a construção de uma aprendizagem significativa relaciona-se à conscientização dos envolvidos na dinâmica das experiências vividas no cotidiano e no compartilhamento dos saberes dotados de sentido. A adoção dessa postura permite ao professor pedagogo se distanciar de ‘modelos’ tradicionalmente restritivos e acríticos. A busca por subsídios em direção à reconfiguração do trabalho pedagógico no hospital e aos seus fundamentos nos permitiu também assinalar que a atribuição dos sentidos da relação educação e saúde está implicada às noções de ‘qualidade de vida’, ‘cidadania’ e ‘autonomia’ e, por isso mesmo, atrelada à necessidade de construção de uma epistemologia da prática que possibilite o desenvolvimento de ações integradoras que garantam aos escolares hospitalizados o que têm por direito inalienável: a dignidade da vida humana.
MORENO, Lêda Virgínia Alves. The meanings of the relationship between Education and Health Care and the pedagogical work that is carried out in hospital premises: contributions from the epistemology of practice to teacher education. 2012. 217f. Thesis (Doctorate in Education: Curriculum) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.
This research aims at investigating the influence of the meaning attributed by teacher educators, working in hospital premises, to the relationship between Health and Education, so as to understand the building blocks of their teaching practice, and their understanding of concepts such as ‘quality of life’, ‘human dignity’ and ‘citizenship’, in the context of the pedagogical work they carry out with students who are, temporarily or permanently, hospitalized. The context of this investigation was the Oncology Pediatric Ward of a private hospital in the city of São Paulo. The methodological approach was initially based on bibliographical and documentation research and was later complemented by the qualitative survey which sprung from the case study. The participants in this research were teacher educators who have been teaching hospitalized school students for more than 10 years. In the light of literature, testimonials given by the teacher educators and the documentation researched, three main co-related areas have been appointed: the field of epistemology of practice, the training of teacher educators, and the context in which teacher educators build their practice within the hospital premises. The current research project has enabled us to identify, as a conclusive result, the urgent need for creating new paradigms regarding the connection between Education and Health Care, as well as the practices in the teacher education courses, both at undergraduate and graduate levels. Another important need that emerged from this research is that the work carried out by teacher educators in hospital premises must be guided by values of authenticity and quality interpersonal skills. This presupposes that the development of meaningful learning is intimately connected to the level of awareness of the experiences lived and shared by the participants in the process. This approach enables the teacher educators to move away from traditional restrictive and uncritical models. The search for new paradigms towards the restructuring of the pedagogical work in the hospital also enabled us to observe how the connection between the meaning attributed to the relationship between Health and Education, by teacher educators, is directly connected to their understanding of concepts such as ‘quality of life’, ‘autonomy’ and ‘citizenship’, and thence the need for clear concepts in the field of epistemology of practice, in order to shape the development of integrative practices that can guarantee to the hospitalized student his or her unalienable right: the dignity of human life.
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNDSS Comissão Determinantes Sociais da Saúde
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
HOPE Hospital Organisation of Pedagogues in Europe
MEC Ministério da Educação
PNHAH Programa Nacional de Humanização no Atendimento Hospitalar
PRELAC Projeto Regional de Educação para a América Latina e Caribe
SEESP Secretaria de Educação Especial
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
INTRODUÇÃO ... 13
1 PRIMEIRAS REFERENCIALIDADES ... 19
2 O OLHAR DO CONTEMPORÂNEO E A DIGNIDADE HUMANA: buscando subsídios junto ao professor pedagogo para ressignificar a relação educação e saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar ... 30
2.1 A condição humana no tempo e espaço contemporâneo ... 33
2.2 O Outro: a face da Autonomia e da Vulnerabilidade ... 44
2.3 O corpo: entre o poder e a finitude ... 50
2.4 Educação e Saúde: ‘entre-lugares’ ... 62
2.5 O binômio saúde-doença ... 68
3 EPISTEMOLOGIA DA PRÁTICA E A FORMAÇÃO DOCENTE: subsídios à construção do trabalho pedagógico no âmbito hospitalar ... 74
3.1 Pedagogia: refletindo sobre paradigmas e novas demandas ... 74
3.2 Epistemologia para além das questões etimológicas ... 78
3.3 A relação epistemologia da prática e formação docente: matrizes do trabalho pedagógico no hospital ... 80
3.3.1 Professor e escolar hospitalizado: relação entre aprendentes ... 88
3.3.2 A ressignificação do ethos do trabalho pedagógico do professor ... 91
3.4 Cultura e Currículo: inter-relações no processo constitutivo do trabalho pedagógico .. 94
4 EDUCAÇÃO HUMANIZADA NO CONTEXTO HOSPITALAR: mais que um direito, um princípio ... 102
4.1 Práticas de cuidado e a produção de Saúde e Educação ... 102
4.2 O processo inclusivo-social e o trabalho pedagógico no hospital: a questão da diversidade ... 107
5.1.1 Critérios de inclusão e exclusão ... 125
5.2 A população investigada ... 126
5.2.1 Participantes da pesquisa ... 126
5.2.2 Do objeto da pesquisa ... 126
5.3 A opção pelo Estudo de Caso como procedimento metodológico ... 127
5.4 Coleta de dados ... 129
5.4.1 Ferramentas de coleta de dados ... 129
6 CARACTERIZANDO O CAMPO INVESTIGADO: alguns dados documentais ... 133
6.1 O Hospital ... 133
6.2 A Escola da Pediatria Schwester Heine ... 133
7 ANÁLISE DOS RESULTADOS ... 137
7.1 Apresentação das categorias e subcategorias ... 137
7.2 Análise das categorias e subcategorias ... 140
8 DISCUSSÃO ... 159
9 EM DIREÇÃO A ALGUMAS PROPOSTAS ... 170
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 174
REFERÊNCIAS ... 178
APÊNDICE ... 195
INTRODUÇÃO
O presente estudo origina-se das reflexões sobre a minha prática diária como docente
na universidade, locus de trocas de significativas experiências, crescimento pessoal e
profissional, ao mesmo tempo que gerador de inquietações e questionamentos. O cotidiano
como docente em centros de formação de ‘educação continuada’ aos que atuam e/ou
tencionam atuar no campo hospitalar tem sido revelador da presença de inúmeros entraves
que dificultam uma análise do papel da universidade quanto à formação do pedagogo na
relação direta com outros âmbitos de atuação que não a escola formal.
Acresce-se a essa experiência outra vivência também de minha trajetória profissional,
nos últimos dezenove anos, como assessora editorial do núcleo de publicações científicas de
uma instituição de ensino superior privada com enfoque na área da saúde, realidade que
permite a estreita convivência com profissionais docentes / pesquisadores. A atuação no
campo comunicacional possibilitou-me uma peculiar aproximação das realidades do ensino
superior e da saúde, o que me encaminhou ao desafio instigante de perguntar e buscar
respostas à problemática instalada nessas esferas a partir das imbricações da formação
profissional do pedagogo com a sua atuação em outras dimensões, com destaque para o
ambiente hospitalar.
A motivação maior para este estudo centra-se na constatação de que ao professor
pedagogo, sobretudo ao longo das quatro últimas décadas, crescentemente, tem sido
requeridas atuações em espaços tidos como não formais, além de sua presença junto a equipes multidisciplinares. A legislação brasileira reconhece o direito da escolarização à criança e
adolescente hospitalizado por meio da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), da
Decreto-Lei n. 1.044/69 (BRASIL, 1969), da Lei n. 6.202/75 (BRASIL, 1975), da Lei n.
8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) –, da Resolução n. 41/95
do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1995),
da Lei n. 9.394/96 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) –, da
Resolução n. 02, de 11 de setembro de 2001, do Conselho Nacional de Educação – Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001) –, do Decreto n.
7.661 de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre a educação especial,o atendimento
educacional especializado, entre outros documentos legais. (BRASIL, 2011). Por outro lado,
em relação ao direito à saúde, o art. 196 da Constituição Federal de 88 assegura a garantia do
quanto para a proteção e recuperação da saúde. Nesse sentido, a qualidade do cuidado em
saúde estende-se a uma concepção mais ampliada, na qual se inclui a educação considerando
a questão da chamada ‘atenção integral’ a todas as pessoas. O Sistema Único de Saúde
preconiza, em uma de suas diretrizes, a integralidade.
Por isso é que a partir do final da década de noventa, incluindo até o relatório
disponível de 2010, identifica-se um número crescente de produções junto ao banco de teses e
dissertações da CAPES em torno a essa temática. Observa-se, por exemplo, 320 produções
com o descritor ‘Pedagogia Hospitalar’ no período de 1999 a 2010, o que representa, em 11
anos, a produção média de aproximadamente 29 teses / dissertações por ano. Ressalta-se,
porém, que alocadas nesta categoria ‘Pedagogia Hospitalar’ na Capes estão também
produções ligadas à administração hospitalar e educação, não relacionadas especificamente à
questão do trabalho educativo no âmbito hospitalar.
Utilizando-se o termo ‘Classe Hospitalar’, o banco de teses / dissertações aponta para
580 produções, de 1988 até 2010, o que representa, em 22 anos, média de aproximadamente
26 teses / dissertações por ano. Com o termo ‘Atendimento Pedagógico Hospitalar’, foram
encontradas 72 teses / dissertações entre o período de 1988 a 2010, o que equivale à média de
3,27 produções por ano. Destacam-se também nesse bloco produções não referentes
especificamente ao campo da educação, mas às áreas de fonoaudiologia, terapia ocupacional,
entre outras. Já o termo ‘Educação Hospitalar’ foi identificado em 972 teses / dissertações,
com os mais variados subtemas, em grande parte não alusivos ao enfoque
pedagógico-educacional. O período pesquisado foi de 1987 a 2010. Esses dados assinalam que há ainda
um caminho a ser trilhado, sobretudo em relação às questões de ordem epistemológica e
conceitual.
Espreitamos também uma força ainda maior, considerando o desenvolvimento da
interlocução das áreas educacional e da saúde como impactante na organização da vida pessoal e coletiva das pessoas. Desse cenário decorrem questões éticas, que se confrontam
com as de formação profissional e com o processo inclusivo-social, relevantes à atuação dos
professores pedagogos no âmbito hospitalar.
Ao se considerar a Educação e Saúde na imbricação com a ‘Qualidade de Vida’ e a
‘Cidadania’ das pessoas, constata-se que histórica e socialmente tais categorias abrangem
inúmeros significados, assim como refletem variações quanto às expectativas e valores entre
os indivíduos e a coletividade, assim é que ambas as categorias carregam uma noção
A par de conceituações reducionistas, com ênfase às advindas do campo biomédico,
parto da consideração de que ‘Qualidade de Vida’ e ‘Cidadania’ são ‘construções sociais’
complexas, relativizadas culturalmente. Essa relativização de ‘Qualidade de Vida’ e
‘Cidadania’ tem ao menos alguns pontos referenciais que a embasam: o primeiro deles é a
história, uma vez que tempo e espaços em que se inserem atrelam-se ao que se entende por
desenvolvimento econômico, social e tecnológico. Outra referência é de ordem cultural, já
que vinculados às noções de qualidade de vida e cidadania estão valores e necessidades
construídas e hierarquizadas pela sociedade. E, por fim, o terceiro aspecto, resultante da
dimensão que os sujeitos têm de qualidade de vida e cidadania, a partir do espaço social que
ocupam na comunidade, implicando, dessa forma, as noções de igualdade / desigualdade;
inclusão / exclusão social; equidade / não-equidade social. Mais do que captar a dimensão
conceitual pelo campo semântico, as visões de ‘Qualidade de Vida’ e de ‘Cidadania’ estão
vinculadas à noção de democracia, manifestada de forma concreta pelas possibilidades reais
de acesso aos bens materiais e culturais, pelas possibilidades de realização pessoal e coletiva.
Se há, então, uma intrínseca relação entre o caminho para a equidade social e a
capacidade de desenvolvimento integral dos sujeitos, mediante o exercício consciente de
escolhas e de reivindicações, as dimensões ‘Qualidade de Vida’ e ‘Cidadania’ prescindem,
para que se efetivem, não só de elementos objetivos, mas fundamentalmente de subjetivos,
considerando-se professores, alunos e demais profissionais da educação.
A amplitude conceitual de ‘Qualidade de Vida’ e ‘Cidadania’, tecida a partir das
interlocuções que se estabelecem com os variados campos da realidade, vai além do
utilitarismo a que possa inicialmente parecer, expressa em ‘índices de desenvolvimento
humano e social’, entre outros; abrange o campo ético, permitindo, assim, aos sujeitos e
grupos sociais atribuírem valores e sentidos ao que pensam, produzem e à forma como se
inserem no contexto social. É nessa esfera que a relação Educação e Saúde tem papel inalienável, com destaque para o entendimento do trabalho pedagógico hospitalar.
Destaca-se, a partir dessas considerações, a necessidade de formação dos profissionais
da educação, neste estudo nominados ‘professores pedagogos’, com graduação em Pedagogia,
aqui “entendidos como mediadores e articuladores da multifacetada realidade
político-pedagógica e escolar” (SANTOS; SANTOS, 1999), a permitir condições para a autonomia e o
desenvolvimento das potencialidades de cada pessoa / aluno, respeitando-o em suas
possibilidades e limitações. As condições para o exercício axiológico desses profissionais da
educação representam uma abertura para a construção de suas identidades pessoais, sociais e
multidisciplinar e interdisciplinar, de modo a conduzir que cada pessoa se aperceba enquanto
ser humano, em quaisquer condições, múltiplo e ao mesmo tempo uno, que se reconheça
enquanto pessoa e cidadão, que estabeleça uma comunicação humana não restritiva e
fragmentada. Em um mundo em constantes mudanças, carregado de incertezas e
provisoriedade, a relação Educação e Saúde representa instância-chave à promoção da
‘Dignidade Humana’.
Diante de tal contexto e de inúmeros questionamentos, a minha experiência
profissional me permite defender a importância e premência de refletir sobre a formação dos
professores pedagogos, a partir de sua prática junto aos escolares hospitalizados, considerando
questões da relação Educação e Saúde e de ordem ética e inclusivo-social, com vistas a
ressignificar os fundamentos da prática pedagógica, currículo e formação docente.
Posto isso, apresentamos, para esta investigação, o problema central, sua delimitação e
os objetivos.
PROBLEMA
Considerando o acima exposto, vinculam-se ao problema central desta investigação
estudos voltados à formação dos professores pedagogos, à epistemologia da prática e ao
processo de constituição da condição de professor no âmbito hospitalar, espaço ainda em
consolidação do trabalho colaborativo e multidisciplinar. Decorre daí o seguinte problema
central:
Quais as percepções dos professores pedagogos em ação sobre as questões implicadas
no processo de construção de seus saberes, de sua prática, considerando os sentidos da relação
Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar?
Desdobram-se à questão central:
Quais os subsídios que o trabalho pedagógico desenvolvido pelos professores
pedagogos no âmbito hospitalar oferece para a (re)configuração da relação Educação e Saúde
e Currículo na perspectiva da formação docente?
Quais elementos são indicativos de que as ações relacionadas ao trabalho pedagógico
no âmbito hospitalar podem subsidiar a proposição / desenvolvimento de práticas integradoras
que permitam de fato contribuir na ‘Qualidade de Vida’, ‘Cidadania’ e ‘Dignidade Humana’
DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA
A investigação da questão central se circunscreve a uma instituição hospitalar da
cidade de São Paulo que desenvolve trabalho pedagógico com a atuação de professores
pedagogos por mais de dez anos. Dessa forma, busca-se a visão socialmente construída da
condição pessoal e profissional do professor pedagogo sob a ótica de quem desenvolve o
cotidiano de práticas ‘consolidadas’ em um âmbito peculiar, qual seja, o hospitalar.
OBJETIVOS Objetivo Geral
Pressupondo que a prática pedagógica se configura para além do ambiente escolar
‘tradicional’, abrangendo outras instâncias, entre elas, a hospitalar, torna-se necessária uma
formação específica aos professores pedagogos, que lhes permita adoção de novas posturas
que resultem em alternativas diferenciadas de práticas integradoras da aprendizagem,
possibilitando de fato e de direito garantir ‘Qualidade de Vida’, ‘Cidadania’ e ‘Dignidade
Humana’ aos escolares hospitalizados que vivenciam condições adversas e restritivas do
ponto de vista físico, psicológico e social. Tem-se, dessa forma, como objetivo geral deste
estudo:
Verificar o alcance dos sentidos atribuídos à relação Educação e Saúde pelos
professores pedagogos que atuam no âmbito hospitalar como forma de compreender os
elementos constitutivos de sua prática, bem como as noções de ‘Qualidade de Vida’,
‘Dignidade Humana’ e ‘Cidadania’ tendo em vista o trabalho pedagógico desenvolvido junto
a escolares hospitalizados internados na área da Oncologia Pediátrica em um hospital da
Objetivos específicos
Especificamente tenciona-se focalizar os seguintes pontos:
- Identificar elementos constitutivos da relação educação-currículo-formação docente quando
atrelada ao âmbito pedagógico-hospitalar;
- Caracterizar como o professor pedagogo que atua no âmbito hospitalar percebe e constrói a
sua história pessoal e profissional;
- Caracterizar como o professor pedagogo que atua no âmbito hospitalar legitima a sua prática
considerando a sua formação inicial e as atividades que desenvolve em equipe
multidisciplinar;
- Identificar de que forma o professor pedagogo lida com as variáveis da diversidade e da
pluralidade de situações na dinâmica do âmbito hospitalar;
- Identificar como o professor pedagogo se percebe no âmbito hospitalar enquanto promotor
1
PRIMEIRAS REFERENCIALIDADES
O referencial teórico relacionado à temática de investigação proposta centra-se em
algumas categorias de análise relacionadas ao dimensionamento da formação e prática do
professor pedagogo que atua no ambiente hospitalar. Para tanto, desenvolvemos o tema
central deste estudo agrupando os capítulos com base nas seguintes ponderações:
a. O olhar do contemporâneo e a Dignidade Humana: buscando subsídios junto ao professor
pedagogo para ressignificar a relação Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito
hospitalar
O tempo presente, afetado pelo signo da incerteza frente a um futuro ‘opaco e
imprevisível’, segundo Bauman (2005), também comporta o enfrentamento de paradoxos que
desafiam nosso entendimento e reflexão. Habitamos em um mundo complexo, multicultural e
pluralista, onde coabitam ‘estrangeiros morais’, horizontes de muitas representações,
concepções, ideologias e premissas que buscam ‘solucionar problemas’ no plano moral concreto e no plano ético da justificação. (ZUBEN, 2007).
O cotidiano, o já estabelecido, o instituído, por serem tão evidentes, passam, às vezes,
despercebidos e não-refletidos. O primeiro momento do pensar crítico é o questionamento que
visa a suplantar um cotidiano submetido, por vezes, à acriticidade. Por conta dessa condição,
Educação e Saúde passam a ganhar outra dimensão de análise, uma vez que representam dois
planos existenciais constituintes do sujeito humano, ambos refletindo, segundo Zuben (2007),
de modo mais marcante a tensão ambígua entre a riqueza da experiência vivida e os saberes
constituídos, entre o abstrato da teoria e a intensidade da concretude.
A educação como prática social está associada a um sentido ético do existir. E a saúde
representa a sustentação da ‘felicidade’ retratada nos anseios de ‘justiça’, ‘solidariedade’,
‘respeito’, ‘compaixão’, ‘autonomia’, ‘liberdade’, entre outros.
Retomando Zuben (2007), a questão sobre o sentido do ser homem encerra em seu
orientação: o ser humano não pode ser considerado como um dado, ele não se reduz a puras
manifestações objetivas, é um ser inacabado; a sua existência é um contínuo ‘fazendo-se’.
Portanto, os sentidos estão encobertos e importa revelá-los. Acresce-se que o ser humano, por
ser inacabado, comporta também uma exigência de realização. Aí reside a busca da
transcendência de si, impulsionado, ao ‘construir-se a si mesmo’, a ser-com o outro para
atribuir liberdade para falar, para pensar, para desejar e para a autonomia. (LÉVINAS, 1997).
Se, por um lado, o ser humano busca a construção de si na condição relacional com o
outro, ao mesmo tempo a fragmentação contemporânea se expressa nos traços de
complexidade da rede de conflitos no cotidiano, crescentemente manifestada nas áreas da
Educação e Saúde.
Assim é que o acesso ampliado à saúde e à educação ocorre em condições que
evidenciam o acirramento das desigualdades sociais: os referenciais neoliberais que orientam
o mundo do mercado de trabalho provocam a dissolução das identidades locais, culturais e
humanas. Por decorrência, tem-se o enfraquecimento da noção de comunidade, predominando
a individualidade pessoal e submetendo a noção de grupo e de nação à identidade de uma
‘homogeneidade cultural’ daquele que geralmente detém o poder econômico e político.
Nesse contexto, de igual modo, decorrem a fragmentação do ensino, o distanciamento
dos conteúdos em relação ao cotidiano da vida e das pessoas, a desvalorização de abordagens
que se referem à ética e à humanização.
Desafiador se torna o enfrentamento da realidade dicotômica herdada da estrutura
epistemológica da ciência moderna, que estabeleceu os distanciamentos de visão e
concepções entre doença / doente, mundo / homem, saber / fazer, cotidiano / conhecimento,
condições essas presentes das esferas da educação e da saúde.
Por essa razão, o presente estudo pontua como relevante resgatar a interlocução
educação e saúde, com a finalidade de (re)pensar os desafios, os significados e sentidos da prática dos professores pedagogos que atuam no âmbito hospitalar e sua relação com o
processo de formação. Pela compreensão da atuação de professores pedagogos em espaços
diferenciados, como o hospitalar, acredita-se na possibilidade de identificar elementos que
permitam redimensionar a relação educação-currículo-formação do professor pedagogo.
A força que a questão formação do professor pedagogo ganha atualmente inclui-se no
movimento de mudança dos fins da educação exigidos por uma sociedade que vive processos
de transformação acelerados e de criação de novas formas de ver, viver e produzir. Assim,
o autogoverno e para a autonomia do aprender, como apresenta a UNESCO em seu relatório
editado em 1996, que aponta caminhos para a educação no século XXI. (DELORS, 2003).
Essa afirmativa se presta a identificar o local e a consciência de que, quando se fala de
mudanças na concepção de ensinar, aprender e avaliar, se possa construir formas propositivas
que superem a simples exigência pela ‘mudança’, mas crie condições para crescer em
entendimento, autonomia e ética, mesmo dentro do contexto chamado pós-moderno, sem
perder de vista as perspectivas ‘alterativas’ do sujeito, conforme Lévinas (1980).
Outra premissa deste estudo é que o acesso à informação e o desenvolvimento de
habilidades no processo de formação humana constituem apenas parte de uma ‘totalidade’, de
modo a invalidar a visão reducionista de que os atributos de ‘Cidadania’ e de ‘Qualidade de
Vida’ dos sujeitos fiquem condicionados tão somente aos que se ‘apossam’ de conteúdos e
habilidades considerados essenciais na força de trabalho.
O processo formativo inclui a aquisição de elementos que fazem parte da herança
civilizatória, entre eles os ‘conhecimentos’ que promovem o desenvolvimento científico e
cultural da humanidade e a consciência de que o ser humano é o próprio produtor das
condições de sua vida e das formas sociais de sua organização, orientadas por princípios e
valores. O ser humano pode construir o seu modo de vida tendo por base a liberdade da
vontade, a autonomia para organizar os modos de existência e a responsabilidade pela direção
de suas ações, características constitutivas do fundamento da formação do sujeito ético,
segundo Rodrigues (2001). A legitimação da educação na sociedade contemporânea implica a
transformação de seus fundamentos, para além do cumprimento da tarefa da escolarização,
mas, sobretudo, em direção à formação humana e do sujeito ético.
A questão educacional na atualidade exige um alargamento contínuo de seu ponto de
inflexão, se colocando para além das interconexões que estabelece entre si. Nessa perspectiva,
fazemos destacar a vinculação entre Educação e Saúde e ação formadora do ser humano e, com tal enfoque, permite-nos abrir novas perspectivas que direcionam aos fundantes da ação
pedagógica.
Grande parte dos discursos do campo educacional expressa com evidência um ‘fim’
proclamado para a ação educativa, qual seja o de ‘preparar os indivíduos para a vida social’.
E, ao se definir tais atributos do ato educativo, institui-se um parâmetro sobre os fins da
Educação; e esse parâmetro pode ser expresso em outro discurso correspondente, qual seja o
de criar condições aos indivíduos para o exercício da cidadania. Essa concepção só se
viabiliza se sua construção previr uma proposição emancipatória sobre os conteúdos
O modo de aquisição e de distribuição desses conhecimentos e habilidades se assenta
em paradigmas que organizam todos os processos educativos e estabelece o grau de
responsabilidade para sua implantação por parte do poder público ou da iniciativa privada,
nos planos individuais e coletivos, particulares e universais.
Entende-se por paradigmas, de acordo com Moraes (1997), todos os modelos e padrões compartilhados por grupos sociais que permitem explicações de certos aspectos da realidade. A influência que estes paradigmas exercem na educação acarreta em buscar conhecê-los e identificar quais os desafios que um docente enfrenta hoje para garantir um aprendizado de qualidade. Um paradigma significa um tipo de relação muito forte, que pode ser de conjunção ou disjunção, que possui uma natureza lógica entre um conjunto de conceitos mestres. (MORIN, 1996 apud BEHRENS, 2005, p. 23).
O referencial paradigmático será determinante nas escolhas e no delineamento do
pensar e fazer pedagógico uma vez que atrelado a ele estão posturas e questões de ordem
valorativa. O peso atribuído a um determinado conjunto explicativo de mundo, de pessoa e de
sociedade resulta na adoção de também determinado conjunto de concepções educativas.
Retomando Rodrigues (2001, p. 235), “no interior de um paradigma se articulam as
relações práticas da educação e a sua necessidade à vida política e social, individual e
coletiva”. Ao redor dessas relações, acredita-se que a Educação e suas interlocuções com
outras áreas do conhecimento, incluindo a Saúde, representa o caminho necessário para a
formação do sujeito. Por decorrência, as questões da cidadania e da ética necessitam ser
consideradas com primazia.
Ambos os aspectos caracterizam o sujeito identificável como cidadão. Como o
exercício da cidadania pressupõe a liberdade, a autonomia e a responsabilidade, participar na
e da organização da vida social se concretiza mediante o real desenvolvimento de práticas
democráticas. Nessa perspectiva, o âmbito hospitalar constitui-se em locus no qual escolares
hospitalizados e professores afirmam o seu modo de ser e de se expressar, articulando
vontades e capacidades individuais e coletivas.
Ainda conforme Rodrigues, N. (1999, p. 239, grifo do autor),
Educar compreende, nessa perspectiva, acionar as condições de cada sujeito para que
ele seja capaz de assumir o pleno uso de suas potencialidades físicas, cognitivas e morais para
conduzir a continuidade de sua própria formação. Essa é uma das condições para que ele se
construa como sujeito livre e independente daqueles que o estão gerando como ser humano. A
Educação possibilita a cada pessoa que adquira a capacidade de autoconduzir o seu processo
formativo, completa Rodrigues, N. (1999).
A relação Educação e Saúde, frente ao processo de formação humana, representa
instância fundamental para contribuir a novos olhares, percepções e compreensões dos
objetos, das relações e dos contextos. O ser humano não herda as competências necessárias
para vivenciar a diversidade das experiências nas quais estará inserido ao longo de sua vida.
Desse modo, torna-se imperioso compreender a relação Educação e Saúde enquanto instância
direta e complexificadamente implicada na formação das pessoas.
Gadamer inscreve-se na tradição hermenêutica convencido de que a “experiência de
mundo é marcada pela historicidade, finitude e linguisticidade”. (1998, p. 606). O sentido que
Gadamer dá a expressão ‘ter mundo’ representa que:
Ter mundo quer dizer comportar-se para com o mundo. Mas comportar-se para com o mundo exige, por sua vez, que nos mantenhamos tão livres, face ao que nos vem ao encontro a partir do mundo, que consigamos pô-lo ante nós tal como é. Essa capacidade é tanto ter mundo como ter linguagem. Com isso, o conceito de mundo se apresenta em oposição ao conceito de mundo circundante [...]. (GADAMER, 1998, p. 643).
Só ao homem é concedida essa ‘liberdade face ao mundo circundante’ a qual inclui a constituição linguística [...] e possibilita ‘nos elevar acima das coerções do que vem ao nosso encontro’. (GADAMER, 1998, p. 644).
Por ‘mundo circundante’, segundo Gadamer (1998), não se deve entender apenas o
meio físico em que o homem vive. Corresponde tanto ao modo como o homem se relaciona
com o mundo físico, com o meio ambiente, quanto ao modo como se relaciona consigo
mesmo, com os outros homens e com o produto civilizatório por ele instituído. Aqui se
entrelaçam temas relativos à vida cultural, social, política e de responsabilidade ética,
individual e coletiva desse ser humano.
O sujeito se torna autônomo e social, entre suas prerrogativas, quando se torna capaz de estabelecer relações consigo mesmo, com o outro e o mundo; quando capaz de assumir a
adquire condições de escolher livremente os meios e os objetivos de seu desenvolvimento e as
formas de inserção no mundo social de modo independente e ao mesmo tempo coletivo.
Tomando também como mais um dos pontos considerados de base a este estudo que,
conforme Rodrigues (2001, p. 251), “o fundamento ético da humanidade se assenta no tripé
constituído pelo reconhecimento de si mesmo como pessoa, na liberdade e na autonomia”,
logo, as noções de educação e saúde necessitam ser redimensionadas, uma vez que não são
áreas excludentes entre si, pelo contrário, constituem-se, mesmo em suas especificidades, em
esferas complementares e congruentes.
Ressaltamos, nesse contexto, que a Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão da
Organização das Nações Unidas, criou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10
de dezembro de 1948, tendo como ponto central promover os direitos essenciais aos seres
humanos ao assinalar Saúde como o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doença, condições postas como direitos humanos. A par de atualizações que essa
Constituição possa exigir, o que se enfatiza nesse conceito são pontos inalienáveis à condição
humana: princípios que garantam fundamentalmente a dignidade humana, incluindo-se nesse
diapasão princípios outros como autonomia, liberdade, qualidade de vida, entre tantos.
Para Goldim (2004),
Resumidamente, duas exigências morais são incorporadas nessa visão: a exigência do
reconhecimento da autonomia e a exigência de proteger aqueles com autonomia reduzida.
(GOLDIM, 2004).
Dessa forma, para Goldim (2004),
uma pessoa autônoma é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação. Respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas.
Aprofundando ainda mais essa reflexão, a contemporaneidade tem apresentado
contextos socais em movimento, exigindo olhares e posturas novas em relação à
flexibilização, atualização, consideração para com questões multiculturais, incluindo aspectos
vinculados a gênero, sexualidade, etnia, identidade, entre outros, e de diversidade cultural,
linguística e identitária, “vozes em busca de direitos e de legitimidade”, segundo Canen
(1997), Arbache (2000) e Franco (1999).
Destacamos até então a importância de se viabilizar concretamente práticas inclusivas
que garantam a dignidade humana. Decorre daí ser necessário compreender como os
professores pedagogos que atuam no âmbito hospitalar se percebem e constroem a sua
condição pessoal e profissional enquanto responsáveis pela promoção e efetivação do que
nominamos por Dignidade Humana.
b. Epistemologia da prática e a formação docente: subsídios à construção do trabalho
pedagógico no âmbito hospitalar
As intensas mudanças sociais ocorridas nas quatro últimas décadas refletem nas
instituições. Os debates giram em torno da necessidade de se criar novos paradigmas de
estruturação, administração das organizações e discussão de missão e metas estratégicas
para enfrentamento do atual momento. É preciso ressaltar o novo sentido atribuído à
universidade e às profundas modificações que vem sofrendo, ou seja, a transformação da
própria realidade universitária diretamente relacionada às fortes mudanças políticas, sociais e econômicas; do sentido formativo da universidade, sua estrutura organizacional; e da
dinâmica de funcionamento dos cursos oferecidos.
Tais aspectos constituem-se em pontos de referência fundamentais para entender o
considerados ‘não-formais’, como o hospitalar. A massificação e progressiva heterogeneidade
dos alunos, a redução de investimentos, a nova cultura de qualidade, a incorporação de
tecnologias de comunicação e informação e os novos sistemas de gestão constituem-se em
elementos de impacto no processo de formação do professor pedagogo.
Estudos sobre a profissionalização do professor, como os de Nóvoa (1991, 1995),
frente às mudanças advindas desse complexo contexto, apontam para um quadro de crise no
âmbito profissional, uma vez que ficam evidentes questões relacionadas à valorização da
prática docente, bem como ao reconhecimento do papel dos ‘cursos de formação’ como
instância formativa e aprendiz de si própria a partir da interlocução que se possa estabelecer
com as experiências dos que atuam no mercado de trabalho.
Movimentos de educadores e de entidades de classe ocorridos na década de noventa
redundaram em algumas contribuições ao campo da formação de professores, do ponto de
vista legal, no entanto, as articulações em direção à valorização e à construção da identidade
do professor pedagogo ainda não se encontram viabilizadas por políticas associadas ao
reconhecimento de sua profissionalização e ao estímulo ao desenvolvimento de sua
autonomia.
Pesquisadores como Tardif (2000), Nóvoa (1991, 1995), Brito (2009), Feldmann
(2009), Zeichner (1995, 2000), Alarcão (2001), Perrenoud (2002), García (1992), Pimenta e
Ghedin (2002), Pimenta e Anastasiou (2002), Contreras (2002), entre outros, têm apontado,
em especial, a universidade como locus privilegiado à formação e ao desenvolvimento de
competências do professor. Do mesmo modo que as pesquisas na formação dos professores
têm redirecionado suas concepções teórico-metodológicas, o mesmo movimento tem exigido
das instituições formadoras uma mudança / inovação quanto ao seu papel, qual seja, a de uma
instituição organizacional aprendente, entendida como base à qualificação não somente
daqueles que nela estudam, mas também os que nela ensinam, considerando a complexidade da atividade docente.
Investigações recentes no campo educacional têm evidenciado a necessidade de se
aprofundar ainda mais categorias como: construção dos saberes docentes, identidade e
profissionalização docente, professor crítico-reflexivo, professor pesquisador, entre outras, em
busca de novos referenciais teórico-metodológicos como caminho a superar tradicionais
paradigmas na esfera da formação do professor pedagogo, entre eles, o da racionalidade
técnica. A questão do desenvolvimento profissional dos professores tem sido objeto de
propostas que valorizam uma formação docente não mais baseada na racionalidade técnica,
confrontar suas ações cotidianas com as produções teóricas”. (PIMENTA; ANASTASIOU,
2002, p. 264).
Categorias como ‘professor crítico-reflexivo’, ‘professor pesquisador’,
‘profissionalização’, ‘identidade docente’, entre outras, têm se destacado em pesquisas sobre
formação de professores, sobretudo a partir de estudos mais aprofundados da epistemologia
da prática. Schön (2000) defende esse novo paradigma como elemento fundamental destinado
à mudança das práticas por meio da “reflexão na ação e sobre a ação”. Zeichner (1995)
considera que, a partir do professor reflexivo, chega-se ao que nomina de ‘professor
pesquisador’. Giroux (1988), rejeitando a visão reducionista dos professores como técnicos e
reprodutivistas, propõe o que nomina de ‘professor intelectual’. Por sua vez, Nóvoa (1991)
amplia a compreensão dessas considerações assinalando como fundamental a perspectiva de
formação do professor ‘crítico-reflexivo’, de modo que esse seja capaz, por meio da reflexão
da sua prática, de desenvolver pensamento autônomo não só da sua própria prática, mas
também dessa com a escola e com a sociedade em que vive. Para isso, Nóvoa (1991, p. 25)
considera como imprescindíveis três processos na formação docente: “produzir a vida do
professor (desenvolvimento pessoal), produzir a profissão docente (desenvolvimento
profissional e produzir a escola (desenvolvimento organizacional)”.
No contexto de mudanças e de exigências à inovação na dimensão da formação
docente, aponta-se como condição sine qua non a superação da dicotomia teoria e prática,
entre a instituição de formação e a comunidade, entre a proposta curricular e as necessidades
objetivas da realidade.
Segundo Lüdke (2000), é o processo de socialização profissional que permite o
desenvolvimento da identidade profissional no grupo ocupacional. Dubar (1991) faz parte do
grupo de pesquisadores preocupados em buscar respostas a respeito da contribuição dos
cursos de formação à introdução do futuro professor no denominado ‘saber comum’, necessário para o desempenho e a construção de sua identidade. A discussão em torno da
importância da reflexão no desempenho docente introduzida por Schön (2000), desdobrada
com a visão do professor pesquisador, ganhou espaço nas produções de estudiosos como
Demo (1991, 1994, 1996), André e Lüdke (1986), André (1999) e de Geraldi et al. (1998),
entre outros, ao estimular o desenvolvimento da pesquisa, da pesquisa-ação e seu caráter
formador. A relação da pesquisa com o professor-pesquisador, segundo Lüdke (2000), ainda
encontra-se distante da percepção desse docente em considerá-la como fundamental no
segundo Lüdke (2000), situado entre o que ‘se aprende’ quando confrontado com o que se
desenvolve na experiência profissional.
Estudos de Imbernón (2002) mostram que as instituições que atuam na formação de
professores evoluíram, se comparadas com as diversas construções ocorridas ao longo do
século XX, mas o fizeram sem romper parâmetros que lhe foram atribuídas em sua origem: o
de centralizadora, transmissora, selecionadora e individualista. É possível, como decorrência
dessa constatação, compreender, em certa medida, o porquê da resistência de instituições
formadoras em alicerçar suas bases epistemológicas na totalidade orientada para a criatividade
e para a emancipação social e individual.
Por isso, torna-se relevante a realização de estudos pautados por compromissos bem
mais amplos que não aqueles que se limitam ao intramuro das instituições educativas,
abrindo-se para outros saberes e campos até então isolados e/ou pouco investigados, como o
hospitalar.
Se para o enfrentamento da contemporaneidade busca-se a reconceptualização do
sujeito, considerando sua vida, seus projetos, suas crenças, valores e ideais, para o professor
pedagogo não pode ser diferente, então se torna imprescindível repensar as dimensões de sua
atuação enquanto pessoa, profissional e agente social de transformação.
c. Educação humanizada no contexto hospitalar: mais que um direito, um princípio
A área da saúde tem evidenciado embates no trato da relação do processo
saúde-doença e sua prática decorrente da acentuada ênfase na visão do ‘biológico’, perspectiva
restritiva à inclusão de outras visões que possibilitam pensar as pessoas em sua inteireza.
Segundo Matos e Mugiatti (2009), indicadores no campo hospitalar evidenciam que na
situação do doente hospitalizado a atenção no atendimento propriamente dito apresenta-se
unilateral, com ênfase exclusiva no aspecto físico e material da enfermidade, distanciando-se da concepção de que a doença também é revestida de características psicossociais. Trata-se do
atendimento a uma pessoa, em todas as suas dimensões, e não unicamente atenção a uma
determinada doença.
A ruptura com modelos tradicionais de atenção ao enfermo constitui-se no primeiro
indício de percepção crítica do conceito de saúde, como forma de superação e adesão a uma
visão mais avançada no que se refere ao respeito e ao inalienável direito da pessoa à saúde.
papel na sociedade, e que, como educador, além da competência intelectual e a competência
técnica, tenha a competência política”.
Se, por um lado, espera-se dos professores que atuam no âmbito hospitalar rupturas
em relação à visão e ao entendimento da relação saúde / doença, professor / aluno, há, por
outro, a necessidade da real compreensão vivenciada por alguém que, agora na condição de
hospitalizado, encontra-se distanciado do ambiente no qual estava inserido.
O escolar hospitalizado, quando do afastamento do ambiente escolar, do ambiente
familiar e social, no entender de Matos e Mugiatti (2009), sente-se excluído pela imposição da
enfermidade. Esse hiato, sob diversos aspectos, pode constituir-se em profundas marcas que
afetam o processo de aprendizagem, de socialização, de desenvolvimento de potencialidades e
capacidade de comunicação. (MATOS; MUGIATTI, 2009).
O processo de escolarização hospitalar humanizado (MATOS, 2010) aponta-se como
um elo fundamental na rede a contribuir na cura da criança, favorecendo ao ‘escolar
hospitalizado’ em condição de vulnerabilidade, pelo primado do princípio e do direito
universal da dignidade humana (PESSINI, 2002), a possibilidade da passagem do estado de
inatividade para a condição do princípio de saúde positiva e do bem-estar em dimensão
ampliada.
Nesse espaço de possibilidades educativas é que se evidencia como relevante a
investigação junto aos educadores que atuam em uma área diferenciada, como a do hospital,
onde se situam crianças e adolescentes em tempo de escolarização, porém afastadas do
ambiente escolar formal.
Apesar da existência de ampla literatura sobre humanização à criança hospitalizada, há
reduzidos estudos sobre a condição do trabalho pedagógico no ambiente hospitalar.
Quintana-Cabañas e Polaino-Lorente (1990) alertam para a necessidade de fundamentar o trabalho
pedagógico hospitalar a caminhar no pluralismo das ações educativas considerando o contexto social.
O que se busca vai além da escolarização no âmbito hospitalar; abrange instâncias que
requerem pensar em novas alternativas de práticas integradoras da aprendizagem, em uma
formação docente redimensionada, que permita, de fato, garantir ‘Qualidade de Vida’,
‘Cidadania’ e ‘Dignidade’ aos que se encontram física, psicológica e socialmente em
2
O OLHAR DO CONTEMPORÂNEO E A DIGNIDADE HUMANA:
buscando subsídios junto ao professor pedagogo para ressignificar a
relação Educação e Saúde e o trabalho pedagógico no âmbito hospitalar
Em direção à compreensão das atuais contradições experienciadas pelo ser humano e
pelos professores que vivenciam no âmbito hospitalar os desafios do processo relacional
Educação e Saúde, tomamos como pontos demarcatórios iniciais a reflexão de algumas
categorias de análise que possibilitam retratar, de certa forma, a contemporaneidade: a Condição Humana, a Existência pessoal e em relação ao Outro e o Corpo, situadas em um
tempo e espaço característicos. A opção por esses questionamentos iniciais deve-se a um eixo
condutor de nosso estudo, o da dignidade da pessoa como condição e direito inalienável a ser
considerado na esfera do trabalho pedagógico hospitalar. Afinal, está em crise o sujeito
unificado na verdade, que tinha na racionalidade o apoio seguro, e distanciado do sensível,
centrando-se no individual, no objetivo e no presente. Por essa razão é que os três primeiros
capítulos contemplam as contribuições de Bauman, Foucault, Lévinas, entre outros, em busca
de um conjunto explicativo do humano que coexiste na fugacidade das moradas, dos
territórios, das linhas e dos espaços, dos corpos, dos afetos e das intensidades...
Os três primeiros textos que ora apresentamos têm como ponto fundamental, diante do
movimento de situar a questão do trabalho pedagógico hospitalar, o de refletir sobre a crise
paradigmática instalada diante das possibilidades ‘limitadoras’ do mecanismo determinista
clássico e frente aos diversos postulados emergentes enquanto ‘fundantes’ de perspectivas do
humano para o presente e para o futuro. O cenário do contemporâneo no qual nosso olhar se
aprofunda inicialmente se justifica a partir da prerrogativa da condição inalienável da
dignidade da pessoa humana. Não obstante ainda existirem, no plano teórico, divergências
quanto à delimitação da noção de ‘Dignidade Humana’, há, do ponto de vista do direito
internacional e normativo e da ética, o reconhecimento – evidente e incontestável – de que a
dignidade da pessoa humana constitui-se em princípio basilar dos direitos humanos, é o que
O princípio da Dignidade Humana implica, segundo o imperativo kantiano, citado em
Abbagnano (2007, p. 326), que a pessoa jamais seja considerada e ‘utilizada’ como um meio,
mas sempre como um fim em si, exigência enunciada por Kant na segunda fórmula do
imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre também como um fim e nunca unicamente como meio”.
Esse imperativo estabelece que todo ser humano, como fim em si mesmo, possui um valor
não relativo, mas intrínseco, ou seja, a dignidade. Por essa razão é que no horizonte das
categorias de análise que propomos considerar, onde se encontram a Condição Humana, a
Existência pessoal e em relação ao Outro e o Corpo, situados em um tempo e espaço.
Tencionamos, assim, ponderar questões diretamente implicadas à dignidade da pessoa
humana e ao trabalho pedagógico hospitalar, como a vulnerabilidade, a autonomia, a
liberdade, o poder e a finitude.
Especificamente quanto aos movimentos da contemporaneidade, Prigogine e Stengers
(1997) nos alertam para o ‘fim das certezas’ e a saturação dos referenciais da física clássica,
entre outros aspectos, afirmando estar o homem nesse processo de transitoriedade, como ‘um
estranho ao mundo que descreve’ e por isso propõem tempos de ‘novas alianças’, de busca a
‘novos saberes’. Chizzotti (2006), por sua vez, destaca que, ao contrário de as novas
descobertas dirimirem dúvidas, elas têm de fato se constituído em abertura a uma gama de
interrogações, perpassando por todos os domínios do conhecimento humano.
Entre o ‘universo exuberante de interrogações suscitadas’, retomando Chizzotti
(2006), está a “emergência de uma ‘nova racionalidade’ como suporte diante dos avanços
biotecnocientíficos, de modo a subverter crenças, métodos, paradigmas, abalando convicções
nos diferentes domínios da vida contemporânea”. Na tentativa de superação dos desafios da
humanidade, deparamo-nos com ‘novos’ referenciais, que se afirmam como ‘possíveis’
respostas ao esgotamento explicativo da complexidade do mundo real, buscando na essência a compreensão humana, como, por exemplo, os estudos relativos às ciências cognitivas, à
pós-modernidade, à teoria do caos, às teorias sistêmicas, à complexidade, entre outros. Dessas, nos
centramos, sem deixar de lado por inteiro as contribuições de cada uma delas, nos estudos
relacionados à pós-modernidade.
Sobre a pós-modernidade, esclarecemos inicialmente que se trata de um termo
genérico para uma ampla gama de autores e significados. Em princípio, segundo Peters
(2000), esse conjunto referencial surgiu para questionar os pressupostos da racionalidade
moderna, sugerindo a superação de uma concepção hegemônica do pensamento universal.
cultura institucionalizada em academias. Destaca-se nessa época Lyotard (2010), com sua
crítica ao discurso científico ordenador da realidade, à razão triunfante, à ciência como
‘entidade’ onipotente, representando, por extensão, crítica ao pensamento weberiano atrelado
a uma racionalização iluminista.
O que se evidencia é um tempo de ambiguidades, coexistindo um modelo explicativo
debilitado e esgotado com um tempo de busca de uma nova consciência, ainda mais se
considerarmos os desdobramentos éticos advindos da relação ciência e tecnologia neste
contexto ‘nominado pós-moderno’. Aqui se vislumbra a necessidade de criação de novos
papéis para o campo da educação, sobretudo na busca de uma nova consciência ética.
Chizzotti (2006) apresenta também o conjunto referencial pós-moderno como opositor
às pretensões totalizantes de universalidades teóricas, bem como às concepções normativas
unitárias das complexas condições sócio-históricas. Retomando Peters (2000), o movimento
pós-moderno questiona as noções de razão e racionalidade fundamentais para o iluminismo,
porque em nome delas foram instituídos sistemas brutais de opressão, dominação e
exploração. Ainda por pós-modernidade pode-se entender uma crítica ao sujeito cartesiano e
estruturalista; cartesiano ao permitir dimensionar o sujeito como agente intelectual abstrato e
isento das circunstâncias históricas e culturais, levado pelo caminho da ‘subjetividade
idealista’ a conquistar ‘certezas científicas’ perenes e absolutas; estruturalista enquanto
proposta que procurou explorar as ‘estruturas’ por meio das quais o significado é produzido
em uma cultura.
Encontramos em Lipovetsky (2004) um crítico do emergir da hipermodernidade, que
provoca desvirtuamentos em diversos âmbitos, levando à exacerbação do consumo, do lucro,
da violência, do individualismo, etc. Outros pensadores também críticos da pós-modernidade
se posicionam contrários aos pressupostos positivistas e a toda uma racionalidade decorrente,
como Kuhn, Prigogine (1996), Morin, Lyotard, Varela (2000), Bauman, Lévinas, entre tantos. Resumidamente, o apontamento de novos referenciais para a compreensão social e
humana se afirma por alguns pontos fundamentais: a) pela diversidade dos sistemas
interpretativos da realidade na tentativa de explicar o fenômeno relacionado com a
experiência do sujeito, ou seja, o humano / subjetivo, com as informações e as construções
‘possíveis’ do entendimento do fenômeno; b) os limites da epistême debatidos como forma de
superação da homogeneidade e da universalização de uma verdade absoluta e acabada; c) a
perspectiva da inclusão do subjetivo no objetivo, como elemento fundamental constitutivo dos
saberes; d) a legitimação da ciência pela via do reconhecimento da provisoriedade, a partir da
noções de espaço-tempo, as identidades culturais no contexto da globalização, a fragilidade
das relações, a desconsideração do Outro, entre tantos.
Considerando a impossibilidade de abarcar as contribuições de diversos pensadores
sobre o contemporâneo, focalizamos nossas reflexões nas proposições de Zygmunt Bauman
(1925-...), Emmanuel Lévinas (1905-1995) e Michel Foucault (1926-1984), uma vez que se
complementam em suas proposições explicativas, tendo em vista algumas categorias que nos
propomos analisar.
2.1 A condição humana no tempo e espaço contemporâneo
A existência transformada em efemeridade – a vida líquida em uma sociedade
líquido-moderna – é, para Bauman, resultado das mudanças impactantes e generalizadas da vida
social e da ‘destruição criativa’ imposta pelo capitalismo por serem elementos a alterar
substancialmente a condição humana, gerando a propagação do desapego, do viver na
indiferença, de uma existência repleta de preocupações, sobretudo em relação aos recomeços
e términos, em velocidade espantosa.
Junto ao efêmero, vem o medo de ficar para trás, de não acompanhar a fluidez e a
rapidez dos tempos, espaços e produtos, de se tornar dispensável, ‘descartável-humano’;
resumindo, ‘medo das incertezas’. A marca da modernidade líquida, para Bauman (2001), é o
valor atribuído à vontade da liberdade, algo que acompanha a velocidade das mudanças
econômicas, tecnológicas, culturais e do cotidiano. O mundo é vivido como incerto,
incontrolável, ao mesmo tempo que assustador, oposto aos tempos da segurança projetada em
torno de uma vida social estável e ordenada. Bauman nos incita a, com ele, refletir sobre o
‘mal-estar’ da contemporaneidade e sobre as diversas formas de ‘estar no mundo’,
considerando as ameaças e as incertezas.
Como pontos de partida, Bauman (2001) apresenta um ‘novo quadro cultural’,
definindo-o como ‘modernidade líquida’, que tem como base uma ‘nova ideia de identidade’, proposta por essa cultura. Bauman (2001) apresenta o conceito de ‘modernidade líquida’ para
definir o tempo presente, em vez do termo ‘pós-modernidade’, que, segundo ele, representa
mais um qualificativo ideológico.
A modernidade líquida assinala um momento em que a sociabilidade humana
experimenta transformações, de forma que viver torna-se uma tarefa difícil de acontecer,
considerando as mudanças rápidas e radicais a ponto de promover a perplexidade; a
dificuldade de vislumbrar um futuro; o rompimento com ideias e regras estabelecidas como