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Parte II Princípios Teológicos e Éticos

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Academic year: 2021

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Parte II

Princípios Teológicos e Éticos

O que temos visto nos ajudou a preparar o cenário no qual queremos refletir e pensar eticamente a questão socioambiental, segundo uma perspectiva relacional e integradora.

Nesta segunda parte, iremos apresentar os componentes teológico e ético à luz dos quais pretendemos propor um discurso ambiental, articulado criticamente com as duas mediações que vimos anteriormente, isto é, com o paradigma ecológico e com o conceito geográfico de espaço percebido como território. Esta parte da tese será constituída de três capítulos.

No capítulo IV e no capítulo V, abordaremos os principais tópicos da teologia da criação-salvação, apresentando-os numa perspectiva ecológica. No capítulo VI, serão apresentados os princípios básicos de uma ética em face dos desafios da crise socioambiental.

(2)

4

O Reencantamento da Natureza

Introdução

A espécie humana, na visão sistêmica do paradigma ecológico, está em íntima conexão com todos os outros seres vivos cuja origem comum se confunde com a história do universo. Sendo um componente da comunidade biótica, no interior da qual colabora na integração funcional do sistema de que também depende para a sua sobrevivência, o ser humano apresenta uma singularidade que o diferencia de todos os outros seres viventes. A sua faculdade de pensar e refletir lhe confere a responsabilidade pelo destino de toda a biosfera, pela manutenção dos princípios bióticos que garantem a continuidade dos ecossistemas e por uma atenção e cuidado especiais aos seres que, por terem a existência ameaçada, são uma expressão da própria fragilidade da vida.

Quando, na longa história da evolução, a árvore biológica se viu enriquecida com o broto da consciência humana, surgiu então a única espécie viva capaz de contrapor o determinismo da seleção natural com o princípio da solidariedade. Entrou em cena o único ser capaz de admirar-se da comunidade biótica em que está inserido, podendo nela escutar a voz de quem o trouxe à vida:

“Há uma admiração e reverência para com os mares e continentes; para com todas as formas viventes de árvores e flores; para com as incontáveis expressões de vida no mar; com os animais das florestas e os pássaros dos céus. Destruir uma espécie viva é silenciar para sempre a voz divina”270.

Para nós, crentes, esta divina voz é a autocomunicação de Deus ao criar a casa comum e a pluralidade de vida de seus habitantes. Somente o ser humano pode conscientemente perceber essa divina comunicação. A integridade da natureza e o valor intrínseco de cada criatura têm sua origem precisamente nesta relação com o Criador e Fonte da vida. Aqui já estamos pisando propriamente no terreno da teologia.

270

BERRY, T. The Dream of the Earth. San Francisco: Sierra Clube Books, 1990, p. 46.

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As consequências desastrosas do mau uso do nosso Planeta indicam urgentemente que o ser humano precisa cultivar novos valores e se relacionar de uma maneira mais aberta e interativa com seus semelhantes e com a natureza. Dito de outro modo, no contexto da crise socioambiental, faz-se necessária uma verdadeira conversão ecológica pela qual “o ser humano deixe de se autocompreender como um indivíduo separado, para se ver como parte de um conjunto de inter-relações naturais e sociais”271.

Sem nenhuma pretensão de sermos exaustivos, sublinharemos neste capítulo alguns pontos da doutrina cristã da criação, que podem iluminar o caminho rumo a essa metanoia ecológica e, dessa forma, contribuir na tentativa de respostas para a problemática socioambiental. Iniciaremos com algumas considerações que servirão de lastro para caracterizar a criação querida por Deus. Veremos, depois, a partir de textos da literatura veterotestamentária a fundamentação radical do valor intrínseco da criação de modo a encontrar um sentido verdadeiramente teologal para salvaguardar a nossa morada comum diante dos impasses da crise ecológica. A complexidade do tema tem suscitado uma vasta literatura sob variados ângulos interpretativos. De acordo com o objetivo do nosso trabalho, procuramos limitar o nosso enfoque à perspectiva ecológica.

271

JUNGES, J.R. Ecologia e criação. Resposta cristã à crise ambiental. S. Paulo: Ed. Loyola, 2001, p. 8.

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4.1.

Considerações iniciais

Bem fez J. Moltmann, no início de sua Doutrina Ecológica da Criação, apresentar o contexto crítico no qual a fé criacionista bíblico-cristã está situada: a crise socioecológica da civilização técnico-científica e o esgotamento da natureza pela ação humana, que pode desembocar numa catástrofe global. Uma situação também marcada por aporias para as quais – ele admite com lucidez e honestidade - a fé teve sua parcela de contribuição272.

Como vimos no primeiro capítulo deste nosso trabalho, um excesso antropológico (antropocentrismo arrogante e autocentrado) formou um substrato sobre o qual se desenvolveram os principais problemas da nossa civilização ocidental moderna, que culminaram na atual crise ecológica. Na objetivação da natureza, que se seguiu ao dualismo cartesiano e ao método analítico-reducionista da ciência moderna, passando pelo mito do progresso ilimitado até a imposição globalizada de um modelo hegemônico de desenvolvimento alheio às diferenças e particularidades constitutivas de cada sociedade, vamos encontrar uma mentalidade comum pela qual se estabeleceu uma relação bipolar sujeito-objeto onde o primeiro polo exerce um poder de domínio e sujeição sobre o segundo. Nessa relação desigual e excludente, tanto a natureza como a pessoa humana são reduzidos a objetos de exploração pelo sujeito que detém as formas de poder.

É verdade que as aquisições da tecnociência possibilitaram uma intervenção humana na natureza em escala nunca antes vista, com os graves danos que hoje são conhecidos. Concordamos, contudo, com o diagnóstico de J. Moltmann para quem os fatores responsáveis pela emergência da crise ecológica não são apenas esses relacionados ao uso das tecnologias. A crise está, antes de tudo, baseada na ambição que as pessoas têm por poder e prepotência. Trata-se, pois, primordialmente de uma crise de domínio. Ora, esse dado tem uma relevância muito significativa quando se considera que a crise emergiu no interior de um contexto cultural – o mundo industrializado moderno - em cuja formação o cristianismo foi determinante e o qual ainda hoje permanece sob a influência das tradições bíblico-cristãs. O uso deturpado da fé bíblica da criação infelizmente

272

MOLTMANN, J.Deus na Criação. Doutrina Ecológica da Criação, Petrópolis: Vozes, 1993, p. 42-45.

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exerceu uma considerável influência no âmbito dessa cultura, cujos efeitos não podem ser ignorados:

“O ‘sujeitai a terra’ foi concebido como mandamento divino para o domínio da natureza, para a conquista da terra e para a dominação do mundo pelas pessoas. Através da infindável ambição pelo poder, pessoas deveriam tornar-se semelhantes a seu Deus, ‘ao todo poderoso’. Essas pessoas evocavam a onipotência de Deus, a fim de justificar religiosamente o seu próprio poder. Portanto, a fé cristã na criação, assim como ela é representada no cristianismo das igrejas ocidentais, no cristianismo europeu e norte-americano, não está isenta de culpa na atual crise mundial”273.

Por causa dessa deturpação ou mal-uso da tradição bíblica, o cristianismo foi duramente criticado e acusado de legitimar a dominação da natureza pelo ser humano. Voltaremos a tratar desse tema mais adiante. Por ora, é bom ter presente que o antropocentrismo que inaugurou a nossa civilização técnico-científica moderna esteve alicerçado numa imagem de Deus que exaltava, acima de tudo, não a bondade nem o amor, e, sim, a absoluta onipotência divina. Segundo J. Moltmann, essa imagem de Deus trazida pela renascença e pelo nominalismo estimulou a pessoa humana, imagem e semelhança desse Deus na terra, a aspirar poder e mais poder para alcançar a sua própria divindade. E um instrumento para isso foi buscado no conhecimento científico das leis da natureza, que dava ao ser humano poder sobre a natureza e domínio sobre a terra – “saber é poder”, dizia Francis Bacon274. Já o método cartesiano anunciava que o objetivo das ciências naturais é fazer do ser humano “senhor e possuidor da natureza”275. Colocando-se como seu senhor e proprietário, o ser humano já não se considerava mais um membro da comunidade da criação, pois se tornava um sujeito único de conhecimento e de vontade276.

Encontramos, assim, um desafio urgente e uma tarefa importante para a teologia: repensar o conceito de criação já que o núcleo da fé criacionista cristã tornou-se questionável com a atual crise socioambiental. Corrigindo os desvios do antropocentrismo fechado, a teologia, em atitude de abertura e diálogo com outros

273

Ibid., p. 43.

274

Essa relação entre conhecimento e poder no interesse de dominar a natureza aparece no seguinte trecho do Novo Organon: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frusta-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”. BACON, Francis. Novum

Organum (1620). In: Os Pensadores: Francis Bacon. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 13.

275

Cf. Descartes: Discurso do Método (1637). In: Os Pensadores René Descartes. São Paulo: Abril Cultura, 1973, p. 71.

276

MOLTMANN, J. op. cit., p. 50-51.

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campos do saber, pode e deve buscar uma “nova aliança” – à semelhança do que propõem Prigogine e Stengers para o meio científico277 - de modo que a fé cristã na criação seja proposta e compreendida segundo suas verdadeiras origens, pondo em relevo o seu núcleo fundante, integrador e relacional.

4.2

A criação querida por Deus

Os abusos e danos infringidos contra a natureza fizeram surgir uma vigorosa reação ecológica acompanhada de uma pluriforme rede de movimentos ambientalistas278. Fala-se hoje em autonomia da natureza. Sem dúvida, este é um aspecto extremamente positivo da crise: o interesse e defesa da natureza. Muitos até reivindicam o retorno ao encantamento do mundo natural ou ressacralização do mesmo. Até as tendências mais antropocentricamente orientadas já abdicaram da tradicional visão do ser humano como senhor da natureza. Esta é vista como intrinsecamente valiosa, importa por si mesma, tem um valor próprio. A natureza deve ser cuidada e preservada independentemente do reconhecimento ou uso que dela fizerem os humanos, os quais, segundo uma perspectiva mais biocêntrica, estão nivelados pelos ecossistemas como uma espécie a mais entre outras tantas que compõem a grande rede da vida.

Certamente a natureza tem o seu valor e consistência própria. Ninguém hoje pode negar esse dado sem se indispor com as evidências mais fundamentais que os estudos da ecologia e das outras ciências naturais trouxeram à luz. Aqui se apresenta um grande desafio para a teologia cuja palavra sobre Deus também quer falar razoável e adequadamente sobre o ser humano e a natureza. Como salvaguardar a fé cristã na criação ao mesmo tempo afirmando a autonomia e valor intrínseco da natureza, sem renunciar à afirmação da dignidade especial da vida humana? É a natureza portadora de uma “inteligibilidade” própria ou de um sentido que lhe permite ser valorizada em si mesma, mais do que ser estimada em vista do seu domínio ou utilização? São perguntas que desafiam o cristão comum,

277

PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. A nova aliança; metamorfose da ciência. Brasília: UnB, 1991.

278

Cf. supra, cap. 2.

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na vivência cotidiana e sincera de sua fé, e mais ainda ao teólogo na honesta e laboriosa busca de uma palavra, portadora de sentido em meio a esta grave crise socioambiental que nos “dá o que pensar”.

A tarefa se torna mais árdua – e por isso mais urgente – quando o discurso teológico, partindo do que lhe é próprio, sem se descaracterizar em concordismos científicos, procura anunciar as proposições da fé criacionista através de conceitos “transversais e nômades”. Conceitos que possam circular no interior dos outros campos do saber, tal como pensou, com lucidez e ousadia teológica, Adolphe Gesché,279 uma das bases referenciais a quem recorreremos nesse trabalho de revisitar o conceito de criação e assim, quem sabe, podermos contribuir na tarefa de “dar ao homem, nos dias de hoje, o sentido de um universo teologal”280.

4.2.1

A autonomia da criação: Deus cria, não fabrica

À primeira vista pode parecer complicada a afirmação de que a natureza goza de autonomia. Afirmar isso significaria dizer que a mesma é atravessada por um processo de autogênese, de autodeterminação, que comprometeria ou mesmo negaria radicalmente a ortodoxia da fé cristã em um Deus criador. No entanto, o que está em jogo é algo mais sutil: é a ideia que se tem do ato divino de criar e da própria criação. Uma adequada imagem de Deus, liberada de velhos conceitos, não compromete a ideia de autonomia da sua criação. Pelo contrário, nesse caso, o acento na imanência do mundo criado, paradoxalmente, ajuda na afirmação da transcendência do seu criador.

Refletir teologicamente sobre a criação, portanto, no atual contexto da crise socioecológica, implica juntar-se coerentemente ao amplo movimento – na ciência, na filosofia, nos segmentos ambientalistas281 – que denunciam o

279

GESCHÉ, ADOLPHE. O Cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004. Na obra a palavra cosmo aparece intercambiável com os termos universo e natureza, apresentando basicamente o mesmo significado.

280

Ibid., p. 25.

281

Uma valorização contundente da natureza aparece, entre outras, nas seguintes obras: PRIGOGINE, I & STENGERS, I., A nova aliança; metamorfose da ciência, obra já citada; MORIN, E., O paradigma perdido. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; Id., O método I, a natureza da

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esquecimento por que passou a natureza, reduzida a objeto, comparada a um gigantesco mecanismo, sem alma e sem encantamento. Esse foi o grande equívoco do mundo moderno. Com honestidade, é preciso reconhecer que a teologia também teve parte nesse processo, como nos lembra A. Gesché, pois “ela não soube salvaguardar a especificidade de seu conceito de criação e praticamente o confundiu com o de causalidade, então determinante na concepção geral da natureza e na relação com ela”282. Com isso, a imagem do criador ficou limitada à ideia de causa, reduzida a uma função; e a natureza, vista como uma máquina, uma imposição já pronta, completamente planejada e finalizada.

Faz-se necessário, assim, pôr em questão a categoria de causalidade para pensar a relação com o criador, se quisermos chegar a uma compreensão mais de acordo com a originalidade da fé bíblico-cristã. Esse questionamento, aliás, não é de agora. Já foi percebido por pensadores bastante críticos ao recurso da explicação causal do mundo por Deus, mostrando que o conceito de causalidade, aceitável na reflexão filosófica, é insuficiente para a teologia. Seguindo essa linha de criticismo, encontram-se, por exemplo, as argumentações de Gabriel Marcel, Henry de Lubac e Heidegger, que não concordam com a estreiteza desse conceito que limita o criador a uma função – “simples causalidade” – e restringe a busca do ser humano por Deus a uma pura necessidade racional de explicação do mundo283. Ao concordar que, talvez em filosofia, quando se busca a razão de ser para as realidades contingentes deste mundo, ainda possa haver sentido falar de um Deus como Motor imóvel, Ser necessário, etc., A. Gesché questiona: “Tal noção tem lugar em teologia, na qual, por meio da noção de criador, visamos a um sentido, a um projeto, a um plano, como também a uma gratuidade, a uma generosidade, a um amor?” E, tendo em vista a defesa da autonomia da natureza, ele argumenta que a explicação causal do cosmo por Deus, além de não fazer justiça ao criador, mina a própria consistência desse mundo e o seu dinamismo interno pelo qual inventa as estruturas de seu próprio processo284.

Outra crítica contundente contra a noção de causalidade é desferida por E. Levinas para quem a noção de causa, com suas pretensões de explicação, não

natureza. Porto Alegre: Sulina 2001; FERRY, L. Lê nouvel ordre écologique, Paris: 1993;

SERRES, M. O contrato naturaL. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

282 GESCHÉ, A. ibid, p. 14. 283 Ibid., p. 57-61. 284 Ibid., p. 57-58.

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permite a diferença entre a origem e a realidade, de modo que o outro desaparece diante do todo. A alteridade, que compõe o próprio tecido da criação, fica comprometida nesse regime de totalidade, que se estabelece no interior do ser. Por conseguinte, o outro fica impossibilitado de existir como diferente. Como alerta E. Levinas: “a noção de criação só estará habilitada para uma tal questão, respeitando ao mesmo tempo a novidade absoluta do eu e sua ligação a um princípio”285.

A noção de causalidade, não obstante toda essa crítica, possui a inegável vantagem de dizer com clareza que o mundo tem um criador, tudo vem de Deus. É exatamente essa afirmação que se quer resgatar e, segundo A. Gesché, a noção de causalidade divina poderia ser corrigida e melhor formulada da seguinte maneira: “Deus, como Causa, faz com que as coisas se façam como elas se fazem”286 .

Com essa proposição não se diz que as coisas se formam sozinhas, há de fato uma criação, pois Deus faz. Por outro lado, a tese evita afirmações ingênuas do criacionismo ou a ideia de um mundo mecanicamente criado: a criação não é a fabricação de coisas prontas. Ademais, aparece nesse conceito o caráter dinâmico e inacabado da criação que possui uma causalidade interna (leis imanentes, processos de autorregulação, etc.): as coisas se fazem como elas se fazem. Deus é afirmado como Causa dessa autonomia interna da criação: seu gesto abre um espaço aberto de autonomia, já que não é o mesmo que fabricar, no sentido de se fazer uma coisa toda determinada. “Criar é fazer com que o outro seja ele mesmo”.

“O texto bíblico não fala de uma causalidade fabricadora e, sim, de um surgimento, de um evento: as coisas se tornaram (‘egeneto’), segundo o texto dos Setenta, cuja versão reflete muito bem o texto hebraico (hayah = advir, surgir)”287.

É nesse sentido expresso pelo texto bíblico que podemos afirmar que Deus não causa e, sim, cria: provoca as coisas ao devir, dá ordem para advirem. Quando falamos de causalidade divina, mais do que uma definição do ser de Deus – um mero conceito que não diz nada de sua verdadeira natureza -, queremos dizer que é em Deus, e não em outro lugar, que se encontra a origem, a razão das coisas, a

285

Citado por Gesché, ibid., p. 60. Essa crítica de Levinas, no tocante ao regime de totalidade que faz desaparecer a diferença e nega a existência do outro, tem especial significado para o tema de nossa tese. O paradigma ecológico, com vimos no capítulo anterior, apresenta como uma de suas características a visão sistêmica que privilegia o todo, o sistema. Aqui reside um problema para a ética ambiental, pelo menos de inspiração cristã, cujas balizas estamos querendo propor.

286

GESCHÉ, A. Ibid., p. 62.

287

Ibid, p. 62.

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causa delas288. Aqui reside o lado positivo que devemos guardar da noção de causa, isto é, a precisão em não deixar fora de Deus o surgimento de todas as coisas. A criação não é fruto de um acaso ou de uma necessidade, nem de um deus secundário, ou do aperfeiçoamento por Deus de uma matéria pré-existente. Não, tudo vem de Deus!289.

Deus quis um mundo que não fosse pura imposição, mas um devir criador pelo qual as coisas vão advir. A criação é um campo aberto. As decisões internas do mundo foram deixadas e confiadas por Deus ao próprio mundo. “Deus é verdadeiramente Criador, verdadeiro Criador, isto é, criador de criação; o criador, não tanto de coisas criadas, mas sim da criação”. Deus quis um cosmo com consistência e autonomia290.

A criação querida por Deus, portanto, consiste numa verdadeira novidade, portadora de dinamismo interno, com potencialidades imanentes de criatividade que, no ser humano, evoluirá para uma estrutura própria de liberdade, como veremos mais adiante. É nesse sentido que podemos falar de autonomia, de um dinamismo interno de autogênese presente nas coisas criadas. Essa compreensão não vai de encontro com a visão bíblica. Os relatos bíblicos da criação, pelo contrário, quando lidos em sua originalidade intencional, dão apoio e suporte a essa compreensão. No decorrer desse capítulo, ressaltaremos ainda outros aspectos do caráter autônomo e inventivo do mundo criado. Antes, lancemos um breve olhar nos textos sobre a criação tal como nos apresentam os escritos veterotestamentários291.

4.2.2

A criação nos textos bíblicos do Antigo Testamento

A afirmação acima de que Deus quis criar algo verdadeiramente novo não está isenta de problemas. Ela pode suscitar, por exemplo, a pergunta sobre o tipo 288 Ibid. p. 63. 289 Ibid, p. 64. 290 Ibid, p. 65. 291

Alguns dos textos bíblicos do Novo Testamento que fazem referência à criação serão mencionados no capítulo cinco (item 5.3.1. sobre cristologia) uma vez que a ressurreição de Cristo é o princípio de interpretação da doutrina cristã da criação.

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de coisa que é criada. É o questionamento que surge quando nos deparamos com uma afirmação, como a de Arvid Kapelrud, segundo a qual a criação acontece quando “algo novo que antes não existia é produzido”292. A indagação que logo aparece é: em que consiste essa coisa nova? Seria algo físico, o universo material? Ou um tipo de organização humana socialmente estruturada? A pergunta é importante e se faz necessária quando temos diante dos olhos os textos bíblicos da criação. O que eles queriam dizer ao falar em criação? Que ideia de criação estava presente na mentalidade daquele tempo?

Antes de mais nada, convém notar que os textos bíblicos não pretendem construir uma cosmologia, no sentido moderno do termo. Como nos alerta Richard Clifford, há que se levar em conta o modo como os antigos e os modernos pensam a criação293. Seria um procedimento profundamente inadequado ler os escritos bíblicos com a mentalidade científica contemporânea, uma vez que a compreensão moderna da civilização ocidental, formulada em termos científicos, é muito diferente da compreensão semítica do Oriente Médio antigo.

Uma primeira diferença a ser considerada diz respeito ao próprio processo de criação. Segundo a mentalidade dos povos semitas, a criação era pensada como um processo de luta, o resultado de um conflito de vontade entre forças divinas ou cósmicas. Já a mentalidade contemporânea vê o surgimento do universo como a interação impessoal de forças físicas, refutando qualquer ideia que denote uma psicologização do processo. Por outro lado, os relatos semitas desconheciam a moderna separação dicotômica entre “natureza” e seres humanos e, às vezes, combinavam fatores físicos e sociais para explicarem o surgimento de fenômenos não-humanos294.

Outra diferença significativa se refere ao resultado do processo de criação. Aqui reside um ponto crucial que não se pode perder de vista quando falamos em criação enquanto processo que cria uma verdadeira novidade. Segundo a intenção original dos antigos relatos, o que emerge do processo é uma determinada sociedade humana organizada em certo lugar. As forças divinas, ao se tornarem vitoriosas, fazem surgir o mundo e com ele a comunidade humana, de modo que os elementos naturais e socioculturais estão intimamente ligados no processo

292

KAPELRUD, Arvid. “Creation in the Ras Shamra Tablets”, Studia Theologica, 34 (1980), p. 3.

293

CLIFFORD, Richard J. “The Hebrew Scriptures and the Theology of Creation”, Theological

Studies, 46 (1985)507-523.

294

Ibid, p. 509.

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criativo. Muito distinta é a compreensão moderna: o que emerge é o mundo físico, o planeta Terra integrando o sistema solar, e a vida considerada em sua noção puramente biológica. Para os modernos, na criação do universo não há nenhuma referência a elementos socioculturais.

“As antigas cosmogonias estavam principalmente interessadas na emergência de uma particular sociedade, organizada com seus deuses protetores e sistemas de cultos, reis divinamente escolhidos (ou alguma tipo de liderança) e estruturas de organização da realeza....‘O algo novo que não existia antes’ não é o mero universo físico, mas o ‘mundo’ de homens e mulheres’295.

Um exemplo típico dessa cosmogonia encontra-se no poema babilônico, conhecido como Enuma Elish. Nele, o processo criativo atinge o seu ápice quando, na luta entre Marduk e Tiamet, o primeiro sai vencedor, sendo entronizado como o rei do mundo dos deuses e dos humanos, dando origem à organização da sociedade na Babilônia. A vitória de Marduk, tido como aquele que sustenta a ordem e a vida, tanto na terra como nos céus, estabelece as instituições divinas e humanas de governo296. Na literatura bíblica, semelhante cosmogonia pode ser encontrada no Salmo 77, que descreve a ação maravilhosa de Yahweh ao constituir o seu povo Israel. Em perspectiva cósmica, o salmista mostra como a atuação divina abre caminho por entre o inimigo, o Mar, vencendo as forças hostis e conduzindo o seu povo com segurança. “O que emerge do conflito é o povo liderado por Yahweh até a terra firme. Moisés e Aarão são constituídos os líderes do povo”297.

Se o resultado da criação não é o mesmo entre o modo de pensar dos antigos e dos modernos, também entre eles é muito diferente a maneira de relatar o processo criativo. Aqui está a terceira grande diferença. A concepção moderna de criação, baseada em procedimentos científicos, se dá através de relatos neutros e seguindo uma perspectiva evolucionista. Já os antigos viam as coisas de modo diferente: relatavam o início do mundo de maneira dramática onde o processo criativo envolvia uma trama cheia de conflitos. Esse modo distinto de reportar às

295

Ibid., p. 510.

296

Ibid, p. 510. Alguns trechos mais significativos do relato, em português, podem ser encontrados em GRELOT, P., Homem, quem és? Os onze primeiros capítulos do Gênesis, São Paulo, 1980, p. 30-31. O texto completo encontra-se traduzido em inglês por PRITCHARD, J. A. (ed.), Ancient

Near Eastern Texts Pertaining to the Old Testament, Princeton, N. J.: Princeton University, p.

60-72; e também em francês: LABAT, T., Le poème babylonien de la création, Paris, 1935, p. 132-151.

297

CLIFFORD, R, J., ibid.,., p. 510.

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origens se explica pelo aspecto focalizado ou pela intenção que está por trás de cada relato.

“Nas cosmologias religiosas o objetivo principal é ‘descrever o cosmos a partir do ponto de vista dos pressupostos necessários para que os seres humanos vivam satisfatoriamente no mundo’, o que inclui um julgamento de valor sobre essa existência. Entretanto, a tarefa científica da física e da biologia está principalmente direcionada a propor e descrever modelos e hipóteses sobre a natureza e, portanto, dados e feedback empíricos são os seus principais objetivos. Essa tarefa não coloca as preocupações humanas no centro de sua atenção e intenção”298.

São dois modos diferentes de abordar a realidade e procurar respostas aos problemas circundantes. Sabemos que a mentalidade moderna tem dificuldade para aceitar os relatos míticos como portadores de verdade. Para os antigos, contudo, o uso de tramas e histórias era um recurso comum quando buscavam explicações para o mundo em que viviam299. A criação para eles sempre envolvia conflito e a maneira de relatá-lo era a história. “A história explicita nomes concretos em vez de ideias abstratas. Trovões e relâmpagos expressam o poder e a vitória do deus da tempestade, como no Salmo 18, 7-20 e 77,17-21”300.

A quarta grande diferença é quanto ao critério de verdade. As teorias e hipóteses científicas atuais sobre as origens do universo são baseadas em referências empíricas e devem ser compatíveis com outros dados e teorias já comprovadas, procurando dar ao objeto pesquisado a explicação mais completa possível. Para os antigos, o critério de verdade de um relato cosmogônico é a plausibilidade da história cuja verossimilitude é medida de modo diferente da empiricidade científica. O relato, por exemplo, pode abordar um simples aspecto da realidade e deixar muitos outros fora de consideração. Assim, no Enuma elish o interesse é a busca de uma explicação para o estabelecimento divino da sociedade babilônica à semelhança do Salmo 89, cuja cosmogonia ali presente procura justificar a realeza davídica301.

É importante, pois, levar em conta essa perspectiva semítica de juntar fatores físicos e naturais com dados socioculturais, reconhecendo que nesses

298

PEACOCKE, A.R. Citado por CLIFFORD, R.J., ibid, p.511.

299

Sobre a importância do mito como meio explicativo da realidade e seu significado teológico, ver LORETZ, O., Criação e Mito. O mundo e o homem nos primeiros capítulos do Gênesis, São Paulo: Paulinas, 1979, p. 11-14., FRIES, H., “Mito” in Sacramentum Mundi. Enciclopédia Teológica. Barcelona: Editorial Herder, T. 4., p. 752-762.

300

CLIFFORD, R. J., ibid., p. 511.

301

Ibid., p. 512.

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últimos recai o foco da narrativa, já que, como foi visto, a origem do mundo é relatada para justificar o surgimento de determinada sociedade. Essa perspectiva se encontra nas cosmogonias dos textos bíblicos – o conflito entre Deus e forças caóticas no surgimento do mundo e nas intervenções de Yahweh em favor do seu povo – relatadas no Gênesis, mas também nos Salmos e no Dêutero-Isaias. Seguimos aqui a sugestão de Clifford de partir desses dois últimos escritos porque eles apresentam com maior amplitude o contexto hebraico sobre a criação, favorecendo, assim, a uma melhor compreensão dos relatos do Gênesis302.

4.2.2.1 Salmos

Os salmos conhecidos como “lamentações” recordam e exaltam os antigos feitos de Iahweh pelos quais o povo de Israel veio a existir (Salmos 74, 77, 89, por exemplo). Em situações que ameaçam a sobrevivência da comunidade como um povo livre, tais feitos – repletos de imagens cosmogônicas - são relembrados pelo salmista no desejo de que Deus renove a sua ação prodigiosa em favor do povo.

O Salmo 77, como já foi mencionado, descreve a salvação de Israel como um combate no qual Yahweh abre um caminho no mar, removendo os obstáculos e nomeando líderes. No meio de sua angústia, o salmista recorda: “Lembro-me das façanhas de Iahweh, recordo tua maravilha de outrora” (v. 12), para depois, numa linguagem supra-histórica, mostrar como se deu o feito inicial da libertação - Iahweh vencendo as águas primordiais caóticas - cuja evocação suscita coragem e confiança diante da presente ameaça.

De modo semelhante, no Salmo 74, o poder divino aparece vencendo as forças do mar e seus habitantes tenebrosos, estabelecendo a ordem original onde antes predominava a violência indomada das águas: “Tu, ó Deus, és rei desde a origem, quem opera libertações pela terra; tu dividiste o mar com o teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas; tu esmagaste a cabeça do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens; tu abriste fontes e torrentes, tu fizeste secar rios inesgotáveis” (v. 12-15). Continuando a sua cosmogonia, o salmista

302

Ibid., p. 512.

(15)

relata as obras extraordinárias do Criador: “O dia te pertence e a noite é tua, tu firmaste a luz e o sol, tu puseste todos os limites da terra, tu formaste o verão e o inverno” (v. 16-17). O motivo para recordar esses feitos divinos foi a invasão e profanação do Templo por inimigos estrangeiros, por isso o autor invoca a saga libertadora do Êxodo: “Recorda tua assembleia que adquiriste desde a origem, a tribo que redimiste como tua herança, este monte Sião em que habitas” (v. 2). Em linguagem supra-histórica, os elementos cosmogônicos da origem do mundo aparecem interligados com traços indicadores do processo que levou à formação de Israel.

Se considerarmos o Salmo 89 não como uma reunião de fragmentos, mas como um único poema303, encontraremos a descrição do começo do mundo relacionado com um marco fundante da história nacional, neste caso, a instalação da realeza de Davi. A criação aparece claramente nos versículos 12 e 13: “Teu é o céu, e a terra te pertence, fundaste o mundo e o que nele existe; o norte e o meio-dia tu o criaste”. No Salmo há um paralelo entre a ordenação do mundo e a organização política de Israel, mostrando uma unidade na exaltação do evento fundante. Assim como Iahweh ordena e controla as forças hostis, Davi se mantém seguro sobre os adversários: “O inimigo não poderá enganá-lo, nem o perverso humilhá-lo” (v. 23). O domínio sobre as águas – símbolo das forças destruidoras – é um indicador da autoridade real: “Estará com ele minha verdade e meu amor, e por meu nome seu vigor se exaltará; colocarei sua mão sobre o mar, e sua direita sobre os rios” (v. 25-26).

Os salmos 135 e 136 são hinos de louvor e ação de graças: louvam o nome de Iahweh que criou Israel. Neles aparece claramente a relação entre a criação do mundo físico e a formação de povo escolhido. A criação envolve fazer o universo e conduzir Israel à terra que lhe foi dada, após a libertação do Egito. Como observa Clifford, “aqui ‘Criação’ não se distingue de ‘salvação’”.

Está fora do nosso propósito tratar aqui do complexo tema da datação dos salmos. Queremos, contudo, ressaltar que esta perspectiva de falar da criação a partir dos feitos salvíficos de Iahweh é própria de um período em que ainda não havia no povo uma fé na criação explicitamente elaborada e pensada teologicamente. A criação é compreendida diretamente a partir dos

303

Ibid, p. 514. Cf. nota 14.

(16)

acontecimentos que vão marcando a fé no Deus que atua como salvador. É, pois, no encontro com esse Deus que liberta e salva que a fé no Deus criador vai se aprofundando e se desenvolvendo304. Estamos aqui no horizonte da chamada tradição hermenêutica “proclamativa”, que privilegia a dimensão histórico-salvífica, diferentemente de uma outra linha hermenêutica, a tradição “manifestativa”, também presente nos escritos veterotestamentários e que, no lugar da história, acentua a criação e a busca de uma relação harmoniosa com o mundo criado305.

Os salmos 19 e 104 merecem particular atenção. Para alguns estudiosos, eles formam um caso à parte, sendo os dois únicos textos do saltério cujo tema da criação não está relacionado com o da salvação306. Para Clifford, no entanto, a relação aparece em ambos os salmos, pois o tema central que os dois desenvolvem é a comunidade humana, como ela foi criada e tem sido libertada das constantes ameaças307.

No Salmo 19 a harmonia do universo corresponde à harmonia que a comunidade encontra ao seguir a lei do Senhor. O salmista louva Iahweh como criador do firmamento, especialmente do Sol: “Ali pôs uma tenda para o sol, e ele sai, qual esposo da alcova, percorrendo o seu caminho” (v. 6). A descrição do sol, como criatura de Deus, reflete a influência da mitologia babilônica e faz referência ao tema da justiça e da lei que, no antigo Oriente Médio, estava ligado à imagem da luz solar que irrompe e domina a escuridão da noite308. O autor, portanto, quer exortar a comunidade a receber e obedecer à vontade do Criador de modo que a sua lei seja a base sobre a qual se estrutura e se organiza a vida humana, possibilitando uma vivência social harmoniosa.

304

A tese de que a fé no Deus salvador precede à da criação – hoje bastante difundida entre os exegetas - foi defendida por Gerhard Von Rad, em cujo famoso ensaio “O Problema Teológico da Doutrina da Criação no Antigo Testamento, publicado em 1936, já afirmava que a fé na criação se desenvolveu em função e a serviço da dimensão soteriológica. O texto traduzido em inglês pode ser encontrado em RAD, G. Von, The Problem of the Hexateuch and Other Essays New York: McGraw-Hill, 1966; cf. também Ibid., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Aste 1973, vol. I, p. 144. Há exegetas, contudo, que não concordam com a posição de G. von Rad. Para esses, a fé no Deus criador, embora de modo implícito e sem reflexão teológica, seria mais antiga que a fé no Deus salvador. Ver, por exemplo, WESTERMANN, Claus., Creation, Philadelphia: Fortress, 1974, p. 1-15.

305

Sobre essas duas linhas hermenêuticas e a importância de articulá-las adequadamente na leitura do Antigo Testamento, cf. o item 5.1. do capítulo 5.

306

CLIFFORD, R. J., ibid., p. 515, cf. nota 16.

307

Ibid., p. 516.

308

Ibid. cf. também as nota explicativas da Bíblia de Jerusalém (salmo 19, v. 4-6), p. 966.

(17)

O Salmo 104 é uma exaltação ao poder criador de Deus que fez o mundo surgir pela ordenação das forças primordiais, controlando águas e a noite. A ação criadora de Iahweh domina as forças hostis e povoa a terra e os mares com a diversidade das criaturas. Com o mundo assim ordenado, a existência da comunidade humana é possível.

4.2.2.2

Segundo Isaías (Is 40-55)

Conhecido como o “livro da consolação de Israel” foi redigido por um profeta durante o exílio na Babilônia, procurando incutir nos exilados um sentido de esperança e, assim, ajudar o povo a se preparar para o dia da libertação e do retorno à pátria. Como nos salmos acima, a cosmogonia, presente na descrição dos acontecimentos do Êxodo e da conquista da terra prometida, aparece no Segundo Isaías como um relato da criação de Israel309. O fim do exílio é anunciado como um novo Êxodo sob a mão poderosa daquele que trouxe a nação à existência.

No Segundo Isaías aparece com destaque o termo bara para designar uma ação especificamente divina, uma ação criadora cujo sujeito é sempre Iahweh. Isso significa que a coisa criada tem algo de ineditismo, é algo novo, que não existia antes 310.

“O verbo “bara” é usado exclusivamente para designar o criar divino... Ele nunca aparece tendo como objeto direto uma matéria, a partir da qual algo é criado. Isto credencia o criar divino como uma atividade incondicional e sem pressupostos e qualifica a criação como algo essencialmente novo, que nem faticamente nem potencialmente se baseia ou existe em outro algo”311.

309

CLIFFORD, R. J. ibid,.p. 516-520. Do mesmo autor, cf. também Fair Spoken and Persuading:

An Interpretation of Second Isaiah. New York: Paulist, 1984.

310

Para W. H. Schmidt, o caráter de ineditismo na ação designada pelo termo bara é essencial, pois “lo decisivo aqui no es que antes de la creación no havia ‘nada’, sino el hecho de que la actuación de Dios hace surgir algo nuevo, algo que antes no existia de esse modo (cf. Is 41,20). De por si, pues, el verbo no designa uma creación ex nihilo, pero viene a significar precisamente lo que em otras mentalidades se quiere asegurar por médio de la expression creation ex nihilo: la creación extraordinária, soberana, sin esfuerzo y completamente libre, por parte de Dios”. SCHMIDT, W. H. “br’ crear” in BOTTERWECK, J – RINGGREN, H., Dicionario Teológico

Manual del Antiguo Testamento, vol. I, Madrid, 1978, p. 486-491, aqui p. 490. Cf. também

RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 148.

311

MOLTMANN, J. Deus na criação, op. cit., p. 118.

(18)

O efeito da ação designada por bara tanto pode ser uma realidade física: “Iahweh é um Deus eterno, criador das regiões mais remotas da terra” (40, 28); como uma realização histórico-salvífica: “Eu sou Iahweh, o vosso Santo, o criador de Israel, o vosso rei” (43, 15). O poder criador de Deus se manifesta tanto na criação de Israel como na do universo. A existência da nação está relacionada com o poder criador que dá origem a todas as coisas. O criador de Israel só pode ser também o criador do mundo, e é criador porque salva o seu povo: “Diz Iahweh, aquele que te criou, ó Jacó, aquele que te modelou, ó Israel: não temas, porque eu te resgatei” (43,1). A criação já é um ato salvífico de Deus. O Segundo Isaías também se situa no horizonte da tradição hermenêutica “proclamativa”.

Logo na abertura, num texto onde se mesclam expressões históricas e supra-históricas, há uma referência à formação do povo num cenário que lembra o evento do Êxodo-conquista: a paisagem estéril e irregular do deserto será vencida por um caminho a ser aberto para Iahweh. A superação das condições hostis da terra árida corresponde à vitória cosmogônica sobre o mar (40, 3-5). Outros textos anunciam a libertação de Israel do exílio babilônico à maneira de um novo Êxodo (48, 20-21; 52, 12).

Diante das dificuldades do exílio e aos questionamentos que essa situação degradante punha à vivência da própria fé, o profeta procurava mostrar que o mesmo Deus que venceu o caos primitivo pode agora vencer as forças inimigas da Babilônia. Criação e salvação aparecem juntas. Iahweh que fundou Israel como nação, libertando-a da escravidão do Egito, pode agora libertar do poder babilônico. Essa nova libertação também é descrita como uma intervenção de Iahweh sobre forças caóticas simbolizadas por águas e trevas (42, 15-16; 51, 9-11).

Com intensidade ainda maior que nos salmos, o Segundo Isaías usa a cosmogonia Êxodo-conquista como o fio condutor de sua pregação e interpretação do momento histórico em que vive o povo. A mensagem do Profeta é uma firme e esperançosa convocação para um novo êxodo, uma nova cosmogonia: o povo deixara de ser verdadeiramente Israel porque estava em terra estranha, um país tão opressor quanto fora o Egito. Repetindo a saga dos seus ancestrais, o povo agora devia deixar a Babilônia e regressar para Sião312. Essa analogia histórica – o ato

312

CLIFFORD, R. J. “The Hebrew Scripitures”, op. cit., p. 518.

(19)

fundante que trouxe Israel à existência nos tempos de outrora e o do novo tempo atual - fica evidente na seguinte passagem:

“Assim diz Iahweh, aquele que abre um caminho pelo mar, uma vereda por meio das águas impetuosas, que conduziu para a luta carros e cavalos, um exército de homens de valor, todos unidos. Ei-los prostrados, para não tornarem a levantar-se; extinguiram-se, foram apagados como uma mecha. Não fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que vou fazer uma coisa nova, ela já vem despontando: não a percebeis? Com efeito, estabelecerei um caminho no deserto, e rios em lugares ermos. Os animais selvagens me honrarão, sim, os chacais e os avestruzes, porque fiz jorrar água no deserto, e rios nos lugares ermos, a fim de dar de beber ao meu povo, o meu eleito. O povo que formei para mim proclamará o meu louvor” (43,16-21).

A missão do profeta, portanto, é mostrar ao povo os sinais dos tempos e convocá-lo a engajar-se no ato fundante que lhe deu origem como nação, isto é, iniciar um novo Êxodo e participar de uma nova cosmogonia. O Segundo Isaías incentiva o povo a entrar nessa tarefa vislumbrando um horizonte de uma nova criação. Na opinião de estudiosos, como Clifford, a pregação do profeta tem como eixo central o povo de Israel que não pode existir propriamente como nação enquanto disperso em exílio, longe de Iahweh, afastado do templo e privado de seus sagrados rituais. Por isso, pela segunda vez, o seu Deus irá criar um povo (48, 3.6-7).

A preocupação central da mensagem do Segundo Isaías é a situação de não existência do povo, esfacelado e disperso no exílio. “As coisas novas” que anuncia são o começo de uma nova vida como povo, a renovação do primeiro ato, um novo Êxodo-conquista, uma nova criação. Como nota J. R. de la Peña, o profeta anuncia essas coisas “com uma enfática proclamação de confiança: aquele que criou um povo do nada irá recriá-lo. Isso é possível e certo porque Iahweh é o todo poderoso, o criador do céu e da terra”313.

4.2.2.3 Gênesis

A primeira parte do Gênesis (capítulos 1 a 11) forma uma unidade preparatória para os grandes relatos que descrevem a formação do povo israelita.

313

RUIZ DE LA PEÑA, J. L. Teologia da criação, São Paulo: Edições Loyola, 1989, p. 19.

(20)

O texto apresenta fatos e experiências germinais que, acontecidas no início do mundo, caracterizam de modo universal a existência humana. É sobre esse substrato comum a todo ser humano que Israel procurará compreender o seu processo histórico pelo qual veio a se constituir como nação e povo escolhido por Iahweh314. O texto é o resultado de um longo e complexo processo de composição onde tradições mais antigas (Javista e Eloísta) foram recombinadas e acrescidas pelos escritos do redator Sacerdotal, no século VI a.C., durante o exílio. Apesar da procedência diversificada das fontes, o texto tal como chegou até nós conserva uma unidade que não nos permite separar o relato da criação dos restantes capítulos dessa primeira parte315.

Para o redator Sacerdotal, o relato da criação (Gn 1,1-2,3) está vinculado à história salvífica de Israel, seguindo a tradição hermenêutica proclamativa como vimos anteriormente nos Salmos e no Segundo Isaías, cujos textos, ao se referirem a Israel como um povo, usam a linguagem da criação em paralelo com a salvação, isto é, a criação envolve fazer o universo físico e a constituição do povo de Israel na parte da terra que lhe corresponde. O ato fundante (criação) de Israel é sempre rememorado e invocado, em situações de ameaça, para que Iahweh reconduza (salvação) a nação à sua autonomia. O relato da criação no Gênesis é a expressão mais elaborada dessa tradição hermenêutica proclamativa, num tempo em que o povo, depois da grande provação do exílio, necessitava reavivar sua fé no Deus dos seus pais, e empreender a desafiadora tarefa do retorno à pátria. O texto, assim, introduz uma rememoração do passado, procurando fundamentar histórico-teologicamente a fé no Deus da história da salvação, mostrando que o Deus salvador é o mesmo Deus que cria o mundo.

Alguns estudiosos, como Clifford, fazem notar uma perspectiva nova no Gênesis que não se encontra nos textos que vimos anteriormente (Salmos e

314

Para um aprofundado estudo exegético de Gênesis, cf. RAD, G. von., El libro del Gênesis, Tercera Edicion, Salamanca: Sigueme, 1988; WESTERMANN, Claus. Gênesis 1-11, A

Continental Commentary, John J. Sculion, translator. London: SPCK, 1984; BEAUCHAMP, P., Création et separation. Étude exégétique du chapitre première de La Genèse, Paris:

Aubier-Montaigne, 1969.

315

Clifford, R. J., The Hebrew Scriptures, op. cit., p. 520-523. Cf. também DAVID, R., “Prolégomènes à l’étude écologique des récits de Gn 1-11”, Église et Théologie 22 (1991), 275-291. Nas palavras de J. L. R. de la Peña, “Esses onze capítulos, tal e qual chegaram até nós, formam uma sequência narrativa da qual já não se pode desprender o relato das origens como bloco autônomo. A cosmogonia bíblica não se limita a informar sobre as origens; falar biblicamente do criador de tudo é sempre falar do todo e não de um segmento desse todo”, in Id.,Teologia da criação, op. cit., p. 24.

(21)

Segundo Isaías). Embora permaneça uma unidade fundamental entre criação e salvação, ela não é focalizada da mesma forma. A primeira parte do Gênesis seria uma cosmogonia das nações. O fio condutor aqui é o paralelismo entre o surgimento das nações e a criação de Israel, que se inicia com os patriarcas e prolonga-se com o Êxodo e a entrada na terra de Canaã316. O foco inicial dos relatos genesíacos é a criação do ser humano. O surgimento das nações é descrito primeiro. Somente depois da criação dos povos é que Israel entra em cena nas pessoas de Abraão e Sara. Daí a importância do uso do termo “gerações” (tôledôt) que mostra como os povos foram disseminando-se sobre a terra. A expressão “estas são as gerações” aparece como um elo de ligação entre as narrativas, conferindo ao texto uma unidade literária317. O refrão é citado ao longo de todo o Gênesis, cinco vezes na história primordial e cinco vezes nos relatos dos patriarcas, de modo que o livro pode ser dividido em duas grandes partes: a origem das nações (Gn 2,4-11,26) e a origem de Israel (Gn 11,27-50,24). O relato sacerdotal da criação (Gn 1,1 a 2,4) serve de introdução a todo o livro e termina com a expressão “Estas são as gerações do céu e da terra...”.

Segundo Clifford, baseando-se em estudos de Bernhard Anderson, o relato sacerdotal divide a criação em dias num interessante paralelismo literário318. As criações dos três primeiros dias estão respectivamente relacionadas com as do quarto ao sexto dia: luz e trevas (1º dia) e astros para regular o dia e a noite (4º dia); a separação das águas (2° dia) e a criação das criaturas das águas (5ºdia); o surgimento da terra seca e da vegetação (3ºdia) a criação dos animais da terra e do ser humano como homem e mulher (6º dia). Assim, nesses dias, a terra torna-se habitável para os seres terrestres e o ser humano. O ponto alto da criação é o sétimo dia, o dia do descanso de Deus319. Ao longo da narração, o autor sacerdotal quis ressaltar de modo especial a bondade do mundo criado, concluindo com uma

316

CLIFFORD, R. J., “The Hebrew scripture”, op., cit., p. 522.

317

Uma possível indicação da unidade literária desta primeira parte do Gênesis (2,4 – 11,26) é dada pela comparação com o antigo poema babilônico sobre o dilúvio, conhecido como a cosmogonia Atrahasis, que apresenta uma história semelhante a Gênesis 2-11: a criação do seres humanos, a ofensa contra os deuses, a punição divina através de um dilúvio do qual um herói consegue escapar usando um barco, e a nova criação da espécie humana. A sequência dos relatos dessa história, bastante conhecida no antigo Oriente Próximo e a sua similaridade com os textos do Gênesis, são um sinal de que os relatos bíblicos também apresentam a mesma unidade literária. Cf. CLIFFORD, R.J, Ibid.,. p. 521.

318

CLIFFORD, R.J. Ibid., p. 522.

319

Sobre o repouso sabático e sua importância para uma reflexão ecológica da criação, ver mais adiante o item 5.6 do cap. 5..

(22)

apreciação valorativa que parte do próprio criador: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (v. 31).

Os versículos 26-28 descrevem o surgimento da comunidade humana. O ser humano é criado à imagem e semelhança divina, isto é, com a capacidade de relacionar-se com Deus e ser coparticipante da criação. O aspecto dialógico aqui é muito significativo. O ser humano é uma criatura capaz de escutar a interpelação divina e a ela responder, ou seja, possui a capacidade de ser responsável320. Essa capacidade de relacionamento com o criador – ser imagem de Deus - não é apenas uma característica a mais da espécie humana e, sim, o que define a sua própria existência, aquilo que lhe é mais próprio e essencial. Nas palavras de K. Barth, “[ser imagem de Deus] consiste no próprio homem enquanto criatura. O homem não seria homem, se não fosse também imagem de Deus. Ele é imagem de Deus por ser homem”321. Ainda no relato Sacerdotal, Deus abençoou o ser humano com a fecundidade para que cresça em gerações e tome posse da terra, exercendo domínio não só sobre as criaturas vivas (v. 26 e 28), mas sobre a terra toda (v. 28). O imperativo mostra a intenção divina para toda a humanidade, não apenas para alguns indivíduos ou classes especiais, e está relacionado com a administração responsável dos bens criados322.

Estamos conscientes da problemática que esse tema da dignidade especial do ser humano e do mandato bíblico de dominar a terra apresenta em face da crise socioambiental. Mais adiante, voltaremos a esse ponto, procurando ver se a intenção original do texto bíblico justifica uma atitude arrogante e antiecológica. Por ora, fiquemos com o registro de que a procriação humana e o uso da terra recebem a bênção de Deus. Isso está ligado – segundo Clifford - à própria função literária da narrativa sacerdotal da criação, que pretende ser um preâmbulo não somente para os relatos das origens das nações (2,4-11-26) como também para os acontecimentos que levam à formação do povo de Israel (11,27- 50,24). A

320

Cf. RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 165.

321

“A semelhança divina não é um quê adicionado ao homem, mas é o próprio homem. Não são as faculdades superiores, suas energias espirituais, seu livre arbítrio, sua personalidade, sua alma imortal, seu porte aprumado: ‘Ela consiste no próprio homem enquanto criatura. O homem não seria homem, se não fosse imagem de Deus. Ele é imagem de Deus por ser homem’ (K. Barth, KD III). Imagem de Deus e ser criado coincidem no mesmo conceito. Ela é a razão de ser dos direitos humanos”, WESTEMANN, C. Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1987, p. 83-84.

322

WOLLF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Loyola, 1975, p. 214.

(23)

procriação das gerações e a posse da terra, como dois aspectos queridos por Deus e necessários à continuidade da existência humana, são um tema comum tanto nos relatos iniciais quanto nas histórias dos patriarcas; são duas ideias que acompanham o texto até o final. Isso mostra que a narrativa sacerdotal não foi escrita simplesmente para servir como um relato cosmogônico da criação, mas como um admirável prefácio, um preâmbulo para os grandes acontecimentos que vão ter lugar não só ao longo do Gênesis, mas de todo o Pentateuco323.

O segundo relato da criação, embora não seja considerado propriamente uma cosmogonia, pois o tema principal tratado pelo autor Javista não é criação do mundo, mas a origem do mal324, contém elementos muito significativos para uma teologia da criação. Para o enfoque do nosso trabalho, Gn 2,4b-25 apresenta algumas ideias que não se encontram no relato Sacerdotal e que são bastante significativas para uma compreensão mais ecológica do mundo criado. Na criação do ser humano o que é enfatizado não é tanto a sua especificidade e distinção com relação às outras criaturas, e, sim, o lugar que ele ocupa na natureza325. Aqui, Deus modela o homem do barro, apontando para a sua ligação com a terra, e o estabelece no jardim do Éden para que cultive o seu solo e o guarde. A terra, pois, é um jardim, e o homem, um jardineiro com a incumbência de cultivá-lo e guardá-lo. O texto deixa transparecer a ideia de que tanto a pessoa humana quanto o trabalho humano são originados diretamente do solo da terra (adamah). O ser humano é feito desse solo (2,7), é chamado por um nome (adam) relacionado com ele, recebe do criador a missão de cultivá-lo ao longo de sua vida (2,5.15; 3,23), e a ele retorna quando morre (3,19).

Theodore Hiebert chama a atenção para a importância do termo hebraico adamah, que no contexto da narrativa da criação, significa “solo arável” e não

323

CLIFFORD, R. J. “The Hebrew scripture”, op, cit.,. p. 522-523.

324

Indagar sobre a origem do mal (ruptura da harmonia da realidade, situação ambígua da existência humana, enfim, uma situação de não-salvação) e como encontrar uma saída salvífica para essa vivência negativa é a intenção primeira do relato Javista. Cf. RUIZ DE LA PENA,

Teologia da Criação, op. cit., p. 30; RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 158-160;

RUPPERT, L., “O Javista, anunciador da história da salvação”, in SCHREINER, Josef (ed.),

Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 145-149. Para outros

especialistas do Antigo Testamento, como J.Bauer, a narrativa javista é, de fato, uma narração da criação, e não deve ser considerada como simples introdução à narração seguinte sobre o pecado: “se se preferir falar de introdução, ela o é justamente enquanto narração javista da criação”, cf. BAUER, J., “Israel contempla a Pré-história (Gn 1-11) in Palavra e Mensagem do Antigo

Testamento, op. cit., p. 126.

325

HIEBERT, Theodore. “Re-Imagining Nature: Shifts in Biblical Interpretation”, in

Interpretation 50 (1996), p. 37-46.

(24)

propriamente argila, barro ou terra, como é geralmente traduzido. O significado do termo quer indicar os traços fundantes de uma sociedade eminentemente agrícola cuja identidade e sobrevivência dependiam do uso da terra. O relato bíblico, ao buscar uma compreensão da existência humana, tem diante de si a realidade de um povo que não se compreendia fora de uma perspectiva predominantemente agrária, estando, portanto, vitalmente relacionado com o mundo natural. Assim, é na paisagem natural de Israel que os autores da narrativa da criação encontram um horizonte explicativo para a existência da humanidade e da própria vocação do ser humano. Segundo T. Hiebert, essa estreita ligação entre a comunidade humana e o seu ambiente natural se reflete na vivência religiosa do povo. Com efeito, o calendário litúrgico de Israel – como aparece nos textos escritos pelos mesmos autores da narrativa do Éden – estava organizado em torno das grandes festas, celebradas por ocasião das colheitas agrícolas (Ex 34,18.22.26), mostrando que da terra – fonte do sustento da vida humana – é que saía o ritmo regulador de duas atividades essenciais, o trabalho e a religião326.

O relato Javista descreve ainda a criação dos animais da terra e aves do céu, modelados também do solo por Deus e apresentados ao homem para que lhes dê um nome, mostrando, assim, não superioridade, mas a proximidade do ser humano com eles (2,19-20). Para dar ao homem uma companhia que lhe correspondesse em semelhança, Deus cria a mulher da costela do homem, significando igualdade. Ou seja, a mulher (‘ishsha) ao ser tirada do homem (‘ish), que não é um animal, é tão humana quanto ele. Ao vê-la, o homem exclama: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne de minha carne! Ela será chamada ‘mulher’, porque foi tirada do homem” (2, 23). Essa igualdade possibilita a união do homem e da mulher e fundamenta o vínculo conjugal: “Por isso o homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (2, 24), isto é, pertencem inteiramente um ao outro327. Como nota H. W. Wolff, “O fato de que ela, segundo o ish, se chame ishsha reflete a união íntima. Ela faz com que o homem abandone a sua casa paterna”328.

As duas narrativas do Gênesis são consideradas essenciais para uma teologia bíblica da criação, a qual encontra nesses relatos dados que fundamentam uma

326

Ibid., 41- 42. Para um melhor desenvolvimento desse tema cf. HIEBERT, T., The Yahwist´s

landscape: Nature and Religion in Early Israel, New York: Oxford University Press, 1996.

327

WOLFF, Hans Walter, Antropologia do Antigo Testamento , op. cit., p. 129.

328

Ibid., p. 131.

(25)

adequada compreensão do ser humano e da natureza, em sua relação com o Criador. Convém notar que nos escritos veterotestamentários há outros textos que fazem referências ao tema da criação e onde componentes da natureza aparecem com significativa expressividade. Esses textos podem ser encontrados nos livros da literatura sapiencial e da tradição profética (com a linguagem da nova criação)329.

4.2.2.4

Literatura sapiencial

O tema da criação também aparece em vários textos bíblicos que compõem a literatura sapiencial. Em geral, são referências ao mundo natural no sentido de contemplar e reverenciar a grandeza divina manifestada na criação e, ao mesmo tempo, exortar o ser humano a perceber e respeitar a sabedoria presente nas leis da natureza. A Sabedoria, muitas vezes, aparece de modo personificado, presente e atuante na criação330. Um importante dado a ser levado em consideração, como nos alerta G. von Rad, é que a reflexão sapiencial israelita compreende dois períodos com características bem diferentes um do outro. No primeiro, anterior ao exílio, a sabedoria vem da experiência comum do dia-a-dia, das lições que aprende a partir dos acontecimentos da vida. Posteriormente, numa época pós-exílica, a literatura sapiencial se torna mais elaborada teologicamente,

329

No segundo livro dos Macabeus aparece a expressão “criação do nada” (cf. 2Mc 7, 23-29). Certamente essa é uma ideia de origem grega (cf. LORETZ, O., “As linhas mestras da antropologia veterotestamentária”, in Palavra e Mensagem do Antigo Testamento, op. cit., nota 456, p. 410) cuja linguagem procura retomar a noção primeira da fé israelita na ação criadora de Deus: a criação de tudo por Deus, a negação de qualquer dualismo, a criação pela palavra (cf. RUIZ DE LA PEÑA, J.. Teologia da Criação, op. cit., p. 39, nota 58 e p. 48). Essa equivalência de sentido também é notada por W. H. Schmidit: “La concepcion helenista de la creación de nada (cf. 2 Mac 7,28; Rm 4,17) intenta preservar lo que de hecho pretende el empleo hebreo del término

bara”, in Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento, op. cit., p. 491. A. G. Rubio

observa ainda que essa expressão também indica a fé na ação salvadora de Deus que, tendo criado o mundo “do nada”, uma vez mais, pode libertar o povo da dominação estrangeira (cf. RUBIO, A. G., Unidade na Pluralidade, op. cit., p. 158).

330

MURPHY, Roland E. The Tree of Life: An exploration of Biblical Wisdom Literature. New York: Doubleday, 1990; O´CONNOR, Kathleen M. The Wisdom Literature, Wilmington: Michael Glazier, 1988; PERDUE, Leo. Wisdom &Creation: The Theology of Wisdom Literature, Nashville: Abingdon, 1994; HIEBERT, Theodore. “Re-Imagining Nature: Shifts in Biblical Interpretation”, in Interpretation 50 (1996), p. 43-45; ZIENER, G., “A sabedoria do Oriente Antigo como ciência da vida. Nova compreensão e crítica de Israel à Sabedoria”, in Palavra e

Mensagem, op. cit., p. 333-349.

(26)

incorporando na sua reflexão os conteúdos centrais da história salvífica de Israel331. De qualquer modo, os escritos da literatura sapiencial imprimem um outro movimento à doutrina da criação: é a partir do interesse pelo mundo criado (relação homem-cosmos) que se procura uma compreensão para a história de Israel (relação homem-história)332. Em contraste com a tradição “proclamativa”, aqui o horizonte hermenêutico é tipicamente “manifestativo”.

No livro de Jó encontra-se um dos textos sapienciais mais reveladores dos elementos da natureza como expressão da grandeza de Deus: é o discurso divino, no meio da tempestade, onde Iahweh se dirige a Jó chamando a atenção para os ritmos e dinâmicas da natureza, especialmente para os fenômenos fora do controle humano e que estão sob o domínio de Deus (Jó 38-41). Jó é motivado a fazer um redirecionamento do seu olhar, deixando de se prender à fugaz realidade do mundo humano para contemplar e se fixar na perenidade divina revelada pelas forças naturais333. Nesse texto, o mundo natural é descrito de tal maneira que, segundo a avaliação de Carol Newsom, deixa transparecer um verdadeiro “senso moral da natureza”: Ela é portadora de um dinamismo pleno de atividades nas quais se percebe um sentido e cuja contemplação faz despertar em Jó sentimentos morais, como a ordem justa no mundo, a ausência de hierarquia e um senso de equilíbrio que dá ao ser humano uma adequada visão do seu lugar dentro da natureza e uma melhor percepção de suas limitações334.

No capítulo 28 aparece a figura da Sabedoria, no final do longo diálogo entre Jó e seus três amigos cuja conversa gira em torno do lugar onde se encontra a sabedoria: “Donde vem, pois, a Sabedoria?” (28, 12.20). Ela não vem da terra

331

“Numa época impossível de determinar, sofreu uma transformação teológica decisiva. A sabedoria assumiu o conteúdo central da fé e passou a enfrentar a questão da salvação do conjunto do mundo dos homens, com todo o seu peso. Interrogou-se sobre o sentido da criação (Jó 28; Pv 8. 22 ss) até se tornar, progressivamente, num desvio curioso, a forma por excelência em que se veio cristalizar toda a reflexão teológica mais recente em Israel”. RAD, G. von., Teologia do Antigo

Testamento, op. cit., p. 412.

332

Ibid, p. 422: “A teologia do documento sacerdotal procura ligar a história da salvação à criação, pois trabalhava inteiramente sob o ângulo da história. O pensamento teológico da sabedoria toma exatamente a posição oposta. Sua tese é a seguinte: para compreender corretamente a criação, é preciso mencionar Israel e o desígnio divino a seu respeito”.

333

HIEBERT, T., “Re-Imagining Nature”,op. cit., p. 44.

334

NEWSOM, Carol. “The Moral Sense of Nature: Ethics in the Light of God´s Speech to Job” in

Princeton Seminary Bulletin 15 (1994), p. 9-27. A dimensão ética desse trecho sapiencial tem sido

colocada em relevo por certos ambientalistas, como Bill McKibben, para quem nesse discurso aparecem valores intrínsecos da criação divina (bondade, justiça e beleza) que ajudam o ser humano a se descobrir parte desse mundo natural, deixando de lado uma atitude de pretensa arrogância antropocêntrica. Cf. MCKIBBEN, Bill. The Comforting Whirlwind: God, Job and the Scale of Creation, Grand Rapids: Eerdmans, 1994.

Referências

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