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Silêncio e linguagem em Merleau-Ponty

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Academic year: 2021

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Silêncio e linguagem em Merleau-Ponty

Jeovane Camargo*

RESUMO

Merleau-Ponty tem sido alvo de inúmeras críticas ao longo dos séculos XX e XXI, as quais se devem principalmente ao modo obscuro pelo qual ele indicou, em sua Fenomenologia da percepção, que a linguagem em palavras deriva do gesto corporal. A dificuldade reside, rigorosamente, em saber como de um âmbito silencioso, definido por Merleau-Ponty como o mundo sensível oferecido pela relação entre corpo e mundo, pode se originar a linguagem.

Segundo os termos próprios à Fenomenologia da percepção, a questão é saber como do movimento do corpo anônimo, em que a criança ainda não fala, pode surgir a fala. De que maneira o movimento silencioso do corpo pode originar a fala? Como do silêncio pode nascer a palavra? Como a criança que ainda não fala passa à linguagem?

I.

No prefácio à Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty mostra que a redução fenomenológica não é um movimento de recuo em direção a uma “consciência transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparência absoluta” (PhP, 7)1 — como ela ainda era apresentada em sua época. Esta atitude implica esquecer a experiência do mundo pela “significação mundo”, pois, nela, a experiência é dada por uma atividade sintética do sujeito, sem a qual “não haveria absolutamente nada”. Trata-se de mostrar que o sujeito só

* Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. Bolsista CNPq. E-mail:

acasadeasterion@gmail.com.

1 As obras de Merleau-Ponty citadas ao longo do texto serão abreviadas da seguinte forma: La prose du monde (PM); Le primat de la perception (PrP); Le visible et l’invisible (VI); L’institution - la passivité (IP); L’oeil et l’esprit (OE); Phénoménologie de la perception (PhP); Signes (S). E a obra de Carlos A. R. de Moura citada no texto será abreviada da seguinte forma: Racionalidade e crise (RC). A paginação indicada é a das traduções brasileiras.

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apreende uma coisa como existente se primeiro ele se percebe como “existente no ato de apreendê-la” (PhP, 4), de modo que a consciência, definida como a absoluta certeza de mim para mim, é condição de possibilidade da experiência. Dessa forma, o mundo é pensamento de ver, representação, o sujeito é absoluto, transparente e constituidor de sua experiência, e a intersubjetividade impossível, pois, se se trata de uma consciência absoluta, não pode haver outra consciência, posto que esta não é constituída por aquela. O “Eu constrói a totalidade do ser e sua própria presença no mundo, que se define pela ‘posse de si’ e que só encontra no exterior o que ele ali colocou” (PhP, 499). Ele não é finito senão que “espectador imparcial”, não este eu “existente”, mas “um eu mais mim mesmo do que eu”(PhP, 481), de maneira que diante dele outrem e eu somos objetos. O sujeito absoluto pode colocar outros eus, enquanto estes são objetos, autômatos sem interior, mas não pode haver outra consciência constituinte. A essa idéia de redução fenomenológica, Merleau-Ponty opõe sua interpretação da redução husserliana. Em Husserl, segundo Merleau-Ponty, há uma primeira redução que vai ao Lebenswelt e uma segunda que leva ao transcendental, onde ela encontra a subjetividade e assim supera as ambigüidades do vivido. A essas duas reduções, Merleau-Ponty opõe a idéia de uma única redução que, ao ir ao mundo-da-vida, encontra essência e existência, empírico e transcendental segundo uma relação em que eles aparecem como dois momentos de um mesmo fenômeno. Segundo Merleau-Ponty, Husserl diz que toda redução, “ao mesmo tempo em que é transcendental, é necessariamente eidética” (PhP, 11). Ao mesmo tempo em que é reflexiva, indo ao mundo-da-vida, ao irrefletido para compreendê-lo, quer encontrar “a essência da percepção, a essência da consciência” (PhP, 1). Ora, na perspectiva merleau-pontiana, essência não significa um conceito ou uma idéia acabados, mas a maneira de ser que, sendo ela a da percepção ou a da consciência, deve “trazer consigo todas as relações vivas da experiência”

(PhP, 12). A redução não é a reconstrução de uma série de sínteses que buscam a gênese de um resultado já dado, como se a sensação do vermelho fosse “a manifestação de um certo vermelho sentido, este a manifestação de uma superfície vermelha, esta como a manifestação de um papelão vermelho, e este enfim como a manifestação ou perfil de uma coisa vermelha, um livro” (PhP, 7). Essa atitude, do cientista e da filosofia clássica, tem o mundo como acabado à sua frente e busca os processos de associação e de síntese que o constituem. A redução

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fenomenológica, ao contrário, suspende nossa familiaridade com o mundo, ela não o tem como pronto de uma vez por todas, porque descobre por baixo da atitude natural uma experiência primordial que funda nossa experiência objetiva. É por meio da suspensão de nossos hábitos que a redução espera nos levar “até as raízes, aquém da humanidade constituída” e nos revelar

“o fundo de natureza inumana sobre o qual o homem se instala” (OE, 132). Mas o que se encontra nesse fundo? Não os processos físico-químicos pelos quais a fisiologia quer explicar o corpo e sua relação com o mundo, não os atos de consciência pelos quais a psicologia entende conhecer isto a que se chama “Eu”, nenhum processo causal e nenhuma interioridade. Mas a experiência perceptiva. Suspender nossa familiaridade é admirar-se com um mundo que sempre está “ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele” (PhP, 5). Ele não é, portanto, a experiência constituída pelas “efusões” humanas, inteiramente pronto, mundo- objeto, mas uma “novidade absoluta” (OE, 132). O retorno ao percebido, a reabilitação dos sentidos visam a uma experiência primeira que funda o mundo familiar, demasiado familiar, em que nos instalamos. E se não se deve instalar-se de imediato em uma consciência absoluta, posto que ela se esquece de uma experiência primordial, então é preciso descrever os passos que conduzem a esta “’presunção’ da razão” (PhP, 98). A redução tem em vistas descrever, nos dar um relato da constituição das coisas para nós, ela visa a “essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo” (OE, 21). As essências são reintegradas à facticidade porque não se trata de buscar as condições subjetivas do mundo, mas de mostrar a autonomia do sensível, seu

“arranjo” próprio, pelo qual o sujeito não o organiza completamente mas assume uma perspectiva em face desta totalidade, o mundo, campo de horizontes: campo perceptivo ou campo de presença. Ao se suspender a atitude natural, resta uma experiência do corpo e do mundo não tematizada, e é neste solo fenomenal que se instala a descrição e onde se encontra uma maneira de ser primordial que permite ultrapassar a dicotomia sujeito-objeto e as explicações unilaterais da fisiologia e da psicologia.

Entretanto, somente a descrição do mundo-da-vida é insuficiente, pois embora se diga que a experiência do corpo próprio, que as ambigüidades do campo fenomenal fundam o mundo objetivo, elas não se mostram ainda como fundamento sólido, não passando de descrições psicológicas, de “uma camada de experiências pré-lógicas ou mágicas”. É preciso que

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o relato do campo antepredicativo revele um modo de ser mais original: o tempo. É ele que dá estatuto filosófico às descrições, pois sua investigação conduz a um “Logos mais fundamental do que o do pensamento objetivo” (PhP, 489). As contradições relatadas nas duas primeiras partes são outro modo de dizer a temporalidade. E a atitude natural é a objetivação dessa mesma temporalidade. Mas por que se parte do mundo já constituído, natural, em direção à experiência do corpo próprio, e por que a descrição deste antecede a da esfera transcendental?

Como o arqueólogo, o fenomenólogo precisa escavar a terra para encontrar os passos que conduzem a ela. Portanto, é preciso partir do mundo objetivo para encontrar, por baixo dele, “a experiência perceptiva sepultada sob seus próprios resultados” (PhP, 99). E assim como a descrição da experiência primeira ganha sentido por relação ao mundo constituído, o transcendental encontra sentido por relação ao vivido, numa relação de fundação recíproca, circular, já que não há essências separadas da existência. Essa fundação mútua entre transcendental e empírico revela que as condições de possibilidade não estão encerradas no sujeito, como um conjunto de operações constitutivas pelas quais um mundo sem opacidade se expõe, mas que a “subjetividade transcendental é uma subjetividade revelada” (PhP, 485), de forma que é “a experiência que mostra as condições de possibilidade do sujeito meditante”, pois a experiência primordial é o “verdadeiro transcendental” (PhP, 489). Desse modo, quando Merleau-Ponty relata a maneira de ser da percepção e mostra a relação alma/corpo como

“transcendência imanente” — não há relação exterior entre as partes, uma está envolvida pela outra e, no entanto, vai para além dela: a alma transcende o corpo, pois pode escolher entre isto e aquilo, e é imanente a ele, posto que só pode decidir no âmbito das possibilidades dele; e o corpo, por sua vez, transcende a alma, pois possui intencionalidade própria, e é imanente a ela, visto que é sempre reintegrado pelas decisões deliberadas —, é a noção de temporalidade que está por trás de sua descrição. O tempo não é uma série de instantes que escoa do passado em direção ao presente e ao futuro, como se cada momento fosse a conseqüência do antecedente. Esse tempo é pensado como uma “sucessão de agoras” (PhP, 552), de forma que não se vê como esses “agoras” podem suceder-se. Como na metáfora do rio, essa noção sempre pressupõe um testemunho que, da margem, vê passarem e se dirigirem ao mar as madeiras jogadas anteriormente na nascente. Na série de instantes, não há passagem de um momento

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ao outro, pois ali não há visão. É sempre do presente que retomo meu passado e vejo meu futuro pulular no horizonte de minha vida, pois meu nascimento instaurou um campo de presença. O passado e o futuro são os horizontes de minha presente visão. Eles não se confundem com ela, mas não lhe são estranhos: eles são “quase-presentes”. Segundo a retenção e protensão, posso retomar meu passado próximo, e através dele o distante, e lançar- me ao porvir. O tempo, portanto, não é o escoar do passado em direção ao futuro, mas do futuro para o passado. Ele é o “’porvir-que-vai-para-o-passado-vindo-para-o-presente’” (PhP, 563). Cada momento transcende e é imanente aos outros momentos: o passado transcende o presente, pois não pode ser completamente compreendido por ele, e é imanente ao presente, posto que não é desconhecido por este. Do mesmo modo, a percepção se faz num campo de horizontes: minha perspectiva atual se faz num fundo perceptivo que vai para além dela, pois ele possui outras perspectivas possíveis. Os momentos do tempo não são “agoras” porque não há somente sucessão de um para o outro, mas mudança, ao mesmo tempo em que permanência, na passagem do futuro ao presente e deste ao passado, como mostra o gráfico apresentado por Merleau-Ponty no capítulo “A temporalidade”. O ponto B tem A’ como seu passado próximo e C* como seu futuro próximo. A’ e C* são seu campo de presença, os horizontes da visão que parte de B. Para que haja passagem de A a B, é preciso que A se transforme em A’, que ele não seja mais presente efetivo, mas não deixe de ser um horizonte — o que impossibilitaria a passagem temporal. É preciso que ele continue ali como uma “quase- presença”. Assim, há mudança e permanência, “mudança na permanência”, “identidade na diferença”, o que identificamos acima como “transcendência imanente”. É o presente que lança seu olhar sobre o passado e vê a aproximação do futuro. Mas essa visão não é uma “síntese de identificação”, um terceiro termo que ligaria os momentos do tempo. Se há uma síntese, ela é de “transição”, na qual as dimensões do tempo se anunciam umas às outras, não como “uma multiplicidade de fenômenos ligados, mas um só fenômeno de escoamento” (PhP, 562). Em B, A tem uma sobrevida como A’, e C* já está anunciado, pois o futuro se apresenta como passado por vir, e o passado se mostra como futuro que veio ao presente e passou. Cada momento vem a ser pela retomada dos outros e porque era anunciado por eles. Do mesmo modo, na percepção uma perspectiva não está fechada sobre si mesma, mas nela já se insinuam as outras

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perspectivas possíveis. A visão atual de um objeto se faz sobre um fundo perceptivo no qual estão presentes os horizontes que o movimento do olhar tornará atuais.

No entanto, esse critério de inteligibilidade pelo qual Merleau-Ponty compreende nossa experiência se mostra problemático tanto na interpretação de alguns de seus comentadores como na do próprio Merleau-Ponty. Os momentos do tempo se anunciam como outra coisa que eles mesmos porque no “âmago do tempo existe um olhar ou, como diz Heidegger, um Augenblick, alguém por quem a palavra como possa ter um sentido” (PhP, 565). É a subjetividade que efetua a passagem de uma dimensão à outra, não por uma síntese exterior, pensando-as, mas realizando-se temporalmente, não como “intencionalidade de ato”, mas

“intencionalidade operante”. “É preciso compreender o tempo como sujeito e o sujeito como tempo” (PhP, 566). Na perspectiva de Barbaras e Moura, a visão que se lança aos horizontes, o presente com seu campo de retenções e protensões é a região do não-ser. O passado e o futuro só existem, só se passa de um campo perceptivo a outro porque a “subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir o não-ser” (PhP, 564). Se a subjetividade é retirada, resta um em si, um “agora”. E o passado e o futuro estão em demasia neste presente que não passa, de modo que é o não-ser que possibilita o aparecimento do

“alhures, do outrora e do amanhã” (PhP, 552). Se a passagem do tempo não é realizada por um terceiro termo, por uma síntese exterior, e se ele é um “olhar”, então ele coincide com a consciência, e é também saber de si. O não-ser é a consciência, “o para si, a revelação de si a si, não é senão o vazio no qual o tempo se faz” (PhP, 577). Mas como ser e não-ser se relacionam?

É possível uma mistura entre ambos? Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty pretende dissolver as dicotomias clássicas ao mostrar o corpo próprio como a região em que alma e corpo se unificam, não havendo predomínio de um sobre o outro. O corpo fenomenal é movimento autônomo, é ele o sujeito da experiência, por isso compreendido como “corpo cognoscente” e não como um autômato comandado pela alma. Esse “pólo intencional” tem consciência de si porque se faz temporalmente: a “fusão entre a alma e o corpo (...) é tornada ao mesmo tempo possível e precária pela estrutura temporal de nossa experiência” (PhP, 125).

No entanto, segundo Moura (RC, 314), se o corpo tem consciência de si, e se esta é não-ser,

“’negativo’ encarregado de fazer aparecer o ‘positivo’” (RC, 317), então o corpo continuaria a

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ser comandado, por trás de seus atos haveria um interior de onde se pilota o navio, e não se saberia então como a consciência se liga ao corpo, autocrítica que iria se tecendo nos textos posteriores à Fenomenologia da percepção e que culminaria nas notas de O visível e o invisível.

Embora Merleau-Ponty mostre a noção de “consciência ingênua” — certa apreensão escorregadia de si, mas que ainda não se sabe ponto de vista — como uma “generalidade”

afogada nos próprios atos, como “um si que se toca antes dos atos particulares nos quais ele perde contato consigo mesmo” (PhP, 479), e tente por meio dela fazer a ligação entre existência anônima e existência pessoal, entre organismo e consciência, ele ainda se situaria no prejuízo clássico que separa sujeito e objeto, pois a noção de consciência ingênua continuaria a trazer o dualismo para o interior de seu pensamento. Desse modo, não haveria mistura entre alma e corpo, mas justaposição, posto que é “impossível a união ou a mistura entre o que é e o que não é” (RC, 315). E seria nesse sentido que os ajustes do filósofo consigo mesmo, nos textos posteriores, poderiam ser compreendidos. Na nota sobre o “Cogito tácito”, Merleau-Ponty observa que na Fenomenologia da percepção há o prejuízo de uma “autoconsciência a que a palavra consciência se reportaria” (VI, 168). Tratar-se-ia de uma positividade a que os atos, as palavras se reenviam. Enfim, de uma “interioridade” por trás do corpo. E então as dicotomias que se tentava ultrapassar recairiam como uma sombra que nunca deixou de pairar sobre os textos dos anos 40. Com a justaposição de ser e não-ser estaria vigorando ainda a separação entre interior e exterior, concepção que o autor tentava refutar.

Seria essa separação que permitiria o aparecimento de uma “subjetividade inalienável”, um si testemunho de toda comunicação: “se deve haver consciência, se algo deve aparecer a alguém, é necessário que atrás de todos os nossos pensamentos particulares se escave um reduto de não-ser, um Si” (PhP, 536). Todo engajamento, toda comunicação, os outros são ultrapassados por este si, pois é sempre ele que os vive. Embora eu seja ultrapassado “de todos os lados por meus próprios atos (...), todavia sou aquele por quem eles são vividos” (PhP, 480).

Por mais que se tente mostrar como o outro aparece em nossa experiência por meio do comportamento, da consciência ingênua, essa tentativa sempre esbarra em uma subjetividade em relação à qual o “alter Ego segue todas as variações do Ego” (PhP, 477) — mesmo na experiência anônima, outrem só pode ser anônimo. Entretanto, isso não impede que outrem

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apareça, pois assim como só falamos de reflexão e irrefletido porque temos a experiência deles, falamos do outro porque ele se mostra em nossa experiência. As dificuldades da percepção de outrem não desaparecem mesmo quando se parte do comportamento, pois a “generalidade do corpo não nos (faz) compreender como o Eu indeclinável pode alienar-se em benefício de outrem, já que ela é exatamente compensada por esta outra generalidade de minha subjetividade inalienável” (PhP, 480). Não se trata de uma consciência constituinte que anima outrem, — pois ela já se apreende em situação, em um campo intersubjetivo —, mas de uma consciência que, ao mesmo tempo em que é ultrapassada pelo mundo, é sempre ela que o vive.

Daí que as coisas sejam definidas como “em-si-para-nós”.

Ora, a noção de expressão, com a qual o autor pretendia unir alma e corpo, estaria instalada nessa mesma separação entre interior e exterior, humano e inumano. Ao tratar do cogito, o autor faz ver que a linguagem supõe um testemunho, justamente o “cogito tácito”, ou consciência ingênua, sem o qual ela não se saberia: “a linguagem pressupõe uma consciência da linguagem, um silêncio da consciência que envolve o mundo falante e em que em primeiro lugar as palavras recebem configuração e sentido” (PhP, 541). A tentativa de Merleau-Ponty é a de mostrar como não há um sistema de significações guardadas num céu inteligível e que seriam traduzidas na fala — é com esta e não com conceitos que primeiramente encontramos um universo lingüístico —, pois é o arranjo da frase expressivo por ele mesmo, de modo que o sentido nasce na expressão e não antes desta. “A ‘concepção’ não pode preceder a ‘execução’”

(OE, 134). A significação nasce no momento em que se tenta produzir o novo. Por isso o autor distingue entre “fala falante” e “fala falada”. Esta se faz pelas idéias, pelos conceitos que formam o mundo cultural em que nos situamos. Nela, não criamos, mas repetimos o que já foi adquirido em um momento anterior da cultura. É esta fala adquirida que nos dá a ilusão de que há um sistema de significações do qual a fala seria a tradução, pois podemos lembrar-nos desses pensamentos e expressá-los. De forma que “são os pensamentos já constituídos e já expressos dos quais podemos lembrar-nos silenciosamente” o fator que nos engana e nos dá “a ilusão de uma vida interior” (PhP, 249). De outro lado, o novo aparece na fala falante, em que o silêncio é rompido e deixa nascer uma idéia. Mas esse pensamento original não vem do nada, ele surge na reorganização da fala constituída. De maneira que o silêncio por trás da linguagem,

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a “intenção significativa” se realiza através das significações já disponíveis, as quais são o resultado de falas originais anteriores. No entanto, o que seria esse silêncio no âmbito da Fenomenologia da percepção? Segundo Barbaras e Moura, o silêncio é a região do não-ser, e este é um reduto subjetivo, uma interioridade. E a consciência se torna produtora, uma espontaneidade que faz nascer o novo. Enfim, uma “interioridade” encarregada de realizar a significação. Dessa forma, está ainda vigente o dualismo obstinadamente combatido por Merleau-Ponty. E se vê então que a redução não podia ir verdadeiramente ao irrefletido, pois ela é o relato da “vida irrefletida da consciência” (PhP, 13), de maneira que ela ainda se situa no campo da significação. De outro lado, o mundo não pode ter sentido próprio, pois ele é a região do em si, rompida com o aparecimento de um olhar e só tendo sentido para essa visão. E a fala falante, por sua vez, não é o jorrar de um original ainda desconhecido, mas a expressão de uma vida interior. Portanto, as significações já são conhecidas antes da expressão. Segundo Moura, isso acontece porque Merleau-Ponty está muito próximo da ontologia de Sartre, por isso ele ainda opõe ser e não-ser: “A Fenomenologia da percepção tomava seu ponto de partida em uma ‘ontologia’ que, de antemão, comprometia seu objetivo expresso. Preso aos marcos conceituais de Sartre, Merleau-Ponty compreendia ali a ‘existência’ ou a ‘consciência’ como um

‘não-ser’ que se opunha à ‘plenitude do ser’” (MOURA, RC, 314). E Barbaras, por sua vez, entende que é devido ao vocabulário utilizado por Merleau-Ponty que se deve o fato de a Fenomenologia da percepção ainda reproduzir o dualismo clássico: “A Fenomenologia da percepção é marcada por uma defasagem entre, de um lado, as intenções anunciadas, assim como as descrições às quais elas dão lugar e, de outro lado, o vocabulário ao qual essas descrições se encontram presas. Tudo se passa como se a experiência perceptiva fosse abordada através de categorias que a interditam de revelar sua significação verdadeira”

(BARBARAS, Le tournant de l’expérience, 183).

No entanto, se, por um lado, Moura e Barbaras entendem os termos “não-ser”, “falha”,

“fissura” e cogito tácito como se eles fossem um reduto subjetivo, por outro, Ferraz nos alerta que o ponto fundamental da Fenomenologia da percepção é a idéia de que a experiência se origina por meio de um pacto entre corpo e mundo. Segundo Ferraz, tal “descrição da atividade perceptiva implica que o mundo não é algo alheio à subjetividade e sim um campo de eventos

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cujos padrões de organização são esposados harmonicamente pelos poderes do corpo. Tal harmonia é fundada, segundo a Fenomenologia da Percepção, em um pacto ou contrato estabelecido naturalmente entre corpo e mundo” (FERRAZ, 2009, p. 32). Dessa maneira, compreendemos porque Merleau-Ponty insiste na idéia de que é pelo nascimento do corpo no mundo que a experiência se inaugura. O escoamento temporal precisa de um ponto de partida, o nascimento do corpo no mundo, o pacto, para que ele tenha um primeiro ponto a ser retomado na série das Abschattungen. Segundo Merleau-Ponty, sou “uma única temporalidade que se explicita a partir de seu nascimento e o confirma em cada presente”(PhP, 546), o que quer dizer que nosso “nascimento (...) funda simultaneamente nossa atividade ou nossa individualidade, e nossa passividade ou nossa generalidade (...)” (PhP, 573), que nosso nascimento funda a temporalidade. E o nascimento se dá por meio de um pacto entre corpo e mundo:

E, como todavia ele [o espaço] não pode ser orientado "em si", é preciso que minha primeira percepção e meu primeiro poder sobre o mundo me apareçam como a execução de um pacto mais antigo concluído entre X e o mundo em geral, que minha história seja a seqüência de uma pré-história da qual ela utiliza os resultados adquiridos, minha existência pessoal seja a retomada de uma tradição pré-pessoal. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 342; grifos nossos.)

É por um pacto mais antigo, quando um corpo entre em relação com um mundo em geral que se inicia a experiência. Segundo Merleau-Ponty, esse é um fato último, não remissível a nenhum outro princípio explicativo. Ele é enfim o ponto de partida da descrição fenomenológica. A partir do pacto (PhP, 229, 337, 342, 416, 478) originário, estabelece-se, segundo os termos de Merleau-Ponty, o comércio (PhP, 305, 383, 458, 541, 591), a sincronização (PhP, 314), a comunhão (PhP, 429), a comunicação ou o acasalamento (PhP, 20, 342, 429, 430) entre corpo e mundo. Dessa maneira, poderíamos interpretar os termos “não-ser”, “fissura”, “falha” e cogito tácito como a perspectiva que o corpo assume em face das coisas. O tempo, diz Merleau-Ponty, não é uma sucessão real que eu me limitaria a registrar, mas ele “nasce de minha relação com as coisas” (PhP, 551) Estas seriam excessivamente plenas, faltando-lhes certa dimensão de ausência, certa “possibilidade de não-ser”, a qual é oferecida pela perspectiva finita que o corpo

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assume em face delas. Daí que o corpo seja definido como uma “potência de apreensão”(PhP, 353), já que ele não possui uma perspectiva absoluta de seus objetos senão que no próprio ponto de vista que ele assume já se anunciam outras perspectivas possíveis. Ele é, portanto, uma potência de perceber, de maneira que seu ponto de vista é uma “falha”, uma “zona de vazio”, uma “abertura sempre recriada na plenitude do ser” (PhP, 267). Por isso Merleau-Ponty pode enunciar que passado e futuro só existem quando uma “subjetividade vem romper a plenitude do ser em si, desenhar ali uma perspectiva, ali introduzir um não-ser”, justamente porque passado e futuro “brotam quando eu me estendo em direção a eles” (PhP, 560), isto é, quando meu corpo se dirige ao mundo e não porque uma subjetividade desce no corpo, como supõem Barbaras e Moura. O não esquecimento de que, em Merleau-Ponty, a experiência se realiza por meio de um pacto originário entre corpo e mundo, traz-nos uma nova maneira de entender o pensamento merleau-pontiano. O cogito tácito não precisa ser mais compreendido como uma subjetividade, distinguindo-se assim cogito tácito e corpo, como faz Moura (RC, 313), mas ele pode justamente ser compreendido como movimento do corpo anônimo. De maneira que se o ajuste de O visível e o invisível se dirigia a uma autoconsciência por trás da linguagem, é justo que a compreendamos como os movimentos silenciosos, antepredicativos do corpo próprio.

E se, agora, a linguagem é um problema na Fenomenologia da percepção, é porque ela ainda aparece como tradução, não como a expressão de uma consciência que já sabe tudo, mas como a tradução do texto de experiência oferecido pelo movimento intencional do corpo anônimo. Se, por um lado, na Fundierung Merleau-Ponty coloca a linguagem como um dos termos fundantes, por outro, ele também apresenta a idéia de que a linguagem surge como um gesto a partir do movimento anônimo do corpo, isto é, a partir do cogito tácito, de uma consciência silenciosa mais originária. Nesse sentido, Merleau-Ponty apresenta três níveis da experiência, os quais se ligam segundo a idéia de que o primeiro (expressividade sensível) funda o segundo (expressão verbal) e também o terceiro (significação conceitual).

Meu corpo é o lugar, ou antes a própria atualidade do fenômeno de expressão (Ausdruck), nele a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa

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do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal (Darstellung) e a significação intelectual (Bedeutung). (MERLEAU-PONTY, 2006, 315; grifo nosso.)

E mais:

É verdade que não se falaria de nada se só se devesse falar das experiências com as quais se coincide, já que a fala já é uma separação. Mais ainda, não existe experiência sem fala, o puro vivido não está nem mesmo na vida falante do homem. Mas o sentido primeiro da fala está todavia nesse texto de experiência que ela tenta proferir. (MERLEAU-PONTY, 2006, 452; grifo nosso.)

Em Merleau-Ponty, o movimento do corpo anônimo — o “texto de experiência”, o sentido autóctone do mundo — é o momento original e fundador de nossa experiência, o que quer dizer que há um movimento silencioso da consciência que a fala então tenta expressar. Há uma

“essência emocional” (PhP, 254) um “silêncio primordial” (PhP, 250) da relação corpo e mundo que a fala está encarregada de expressar. Há uma enformação de corpo e mundo na emoção (PhP, 257), de maneira que as palavras são extraídas (PhP, 254) desse comércio primeiro. A linguagem não reapareceria aqui, como também pergunta Ferraz2 em sua tese, mais uma vez como tradução? A suposição do pacto originário como o começo perceptivo da experiência recolocaria a idéia de uma esfera já plena de sentido (o mundo sensível anônimo) em relação à qual a linguagem seria tradução. E a crítica de O visível e o invisível seria dirigida então a esse movimento silencioso do corpo. Por isso Merleau-Ponty buscaria falar nos textos intermediários que a linguagem é tão originária quanto a percepção, isto é, que a linguagem enforma o mundo tanto quanto nosso aparelho perceptivo motor. Na Fenomenologia da percepção, ao contrário, há uma experiência silenciosa do corpo que funda a linguagem. Portanto, há uma experiência primeira originada tão somente pela relação entre os esquemas corporais e o mundo; é só depois, por extração, que a fala aparece.

Nesse sentido, o ajuste que O visível e o invisível endereça à Fenomenologia da percepção não se deveria à tentativa de Merleau-Ponty de ultrapassar a dicotomia interior/exterior, como supunham Barbaras e Moura, mas a superar o descompasso entre percepção e linguagem

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presente nos textos dos anos 40. Isso é bastante explícito quando notamos que a idéia do pacto originário continua operando tanto em Un inédit de M. Merleau-Ponty (1962) como em O visível e o invisível. O problema a ser superado não é exatamente o de uma “interioridade”, mas o da articulação entre percepção e linguagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção. Trad.: Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. O visível e o invisível. Trad.: José Arthur Gianotti e Armando Mora de Oliveira. São Paulo:

Perspectiva, 2000.

_____. “Un inédit de M. Merleau-Ponty”. In: Revue de métaphysique et morale, nº 4, 1962.

BARBARAS, Renaud. De l’être du phénomène. Grenoble: Millon,1991.

_____. Le tournant de l’expérience. Paris: VRIN, 1998.

FERRAZ, Marcos S. A. Fenomenologia e ontologia em Merleau-Ponty. São Paulo: Papirus, 2009.

MOURA, C. A. R. Crítica da razão na fenomenologia. São Paulo: EDUSP & Nova Stella, 1989.

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Para isto, é preciso regressar ao primeiro período da filosofia de Merleau-Ponty e compreender que a arte, assim como a filosofia, não é um “reflexo de uma verdade prévia”, mas

Resumo: O problema da intersubjetividade, tal como colocado pela filosofia da consciência, exigiu de Merleau-Ponty uma investigação de alguns aspectos essenciais

4.1 A Prova Prática para o cargo de Zelador terá a duração máxima de 20 (vinte) minutos por candidato. O tempo será cronometrado pela equipe da FUNDATEC. 4.2 A Prova será aplicada