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Sobre a (Ir-)redutibilidade de Predicados Relacionais a Predicados Não-relacionais em Leibniz

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Academic year: 2021

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CDD: 149.7

Sobre a (Ir-)redutibilidade de Predicados Relacionais a

Predicados Não-relacionais em Leibniz

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EDGAR MARQUES Departamento de Filosofia

Universidade Estadual do Rio de Janeiro RIO DE JANEIRO, RJ

edgarm@terra.com.br

Resumo: O presente artigo trata da concepção segundo a qual, em Leibniz, sentenças contendo predicados relacionais devem ser reduzidas a sentenças nas quais ocorrem unicamente predicados não-relacionais. Nele apresento duas dificuldades internas que se apresentam para a adoção dessa interpretação do pensamento de Leibniz.

Palavras-chave: Leibniz. Metafísica. Relações. Reducionismo

A leitura inicial de boa parte do corpus leibniziano dedicado ao te-ma das relações e das proposições relacionais parece conduzir o leitor quase que naturalmente a uma compreensão segundo a qual (1) não há espaço no plano ontológico mais fundamental para relações, pois para Leibniz, dado que um mesmo acidente não pode nem se transferir de uma substância para outra nem subsistir em mais de uma substância, 1 O presente texto consiste em uma tentativa de reelaboração de algumas das idéias discutidas por mim em conferências feitas em colóquios realizados na Unicamp, na UPFR e na PUC-Rio no segundo semestre de 2007. Agradeço aos participantes desses eventos por suas questões e comentários. Agradeço especialmente a Viviane Castilho Moreira, cujas objeções sempre finas e incisi-vas forçaram-me a matizar, reformular e abandonar algumas de minhas afirma-ções originais. A pesquisa nos quadros da qual este texto foi desenvolvido teve o apoio do CNPq através da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa.

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tudo o que é ou é uma substância ou um acidente individual de uma substância, e (2) as proposições relacionais deixam-se reduzir, em última instância, a proposições nas quais unicamente predicados não-relacionais são atribuídos aos sujeitos.

Essas duas afirmações são obviamente solidárias entre si, expres-sando, por assim dizer, em campos distintos – o da ontologia, por um lado, e o da linguagem, por outro – a mesma idéia básica, qual seja, a de que acidentes cuja inerência em (ou atribuição a) um sujeito dependa do estabelecimento quer de um vínculo real com outros sujeitos quer de uma comparação entre eles são meros produtos da inerência nos (ou atribuição aos) sujeitos em questão de acidentes que independem desses vínculos ou dessas comparações. Em termos ontológicos, isso significa que as relações não devem ser tomadas como entes reais, mas como meros entes mentais ou ideais, isto é, como unidades que se constituem na medida em que uma determinada pluralidade é pensada por um certo sujeito, sendo, portanto, sua realidade em certo sentido derivada e de-pendente da realidade desse sujeito. Isso equivale, no sistema leibniziano, a considerar que as relações pertencem ao nível dos fenômenos, e não ao das substâncias. No plano da linguagem, essa diferença entre níveis onto-lógicos deve ser traduzida em termos de relações de redutibilidade entre diferentes tipos de proposições, devendo, assim, a análise de proposições que contenham termos relacionais ter como resultado proposições em cuja composição ocorram unicamente predicados não-relacionais.

Apesar do forte apoio textual que pode ser invocado em favor dessa interpretação idealista e reducionista da teoria leibniziana das rela-ções, já há algumas décadas2 deixou de ser consensual entre os

especialis-tas na filosofia de Leibniz que tal interpretação efetivamente corresponda ao pensamento do autor.

2 Tenho em mente aqui, mais precisamente, as posições assumidas por Hintikka e Ishiguro no começo da década de 70.

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É nos quadros dessa ainda candente discussão que o presente arti-go se insere. Apresento nele duas dificuldades – ambas internas ao siste-ma, mas de naturezas distintas – que se colocam para a interpretação esboçada nos dois parágrafos acima, mais precisamente no que tange à tese, atribuída a Leibniz, de que proposições relacionais sempre se dei-xam reduzir a proposições não-relacionais. A primeira dificuldade diz respeito à aparente incompatibilidade entre a tese da redutibilidade das proposições relacionais e a assunção da contingência das substâncias e eventos intra-mundanos. A segunda dificuldade concerne ao real sentido da redução entre proposições presente em alguns dos textos de Leibniz.

O artigo está estruturado da seguinte forma: com base em uma análise introdutória de algumas passagens de Leibniz, ofereço nas primei-ras páginas uma reconstrução da teoria de Leibniz no espírito da interpre-tação tradicional da teoria leibniziana das relações. A seguir, desenvolvo as duas dificuldades mencionadas no parágrafo anterior.

*

Em carta enviada a des Bosses, em 21 de abril de 1714, Leibniz as-sume a seguinte posição acerca do estatuto das relações:

Nenhuma modificação pode subsistir por si, mas demanda essencialmen-te um sujeito substancial; o que esses vínculos têm de real eles o têm pela modificação de não importa qual mônada, e pela harmonia das mônadas entre si. Pois, você não admite, eu creio, um acidente que seja simultane-amente em dois sujeitos. É assim que eu julgo as relações: a paternidade em Davi e a filiação em Salomão são duas coisas distintas, mas a relação comum dos dois é coisa simplesmente mental, que tem seu fundamento na modificação dos singulares.3

A mesma concepção parece encontrar eco na quinta carta a Clar-ke, de 1716. Nela afirma Leibniz o seguinte:

3 Frémont, C., L’Être et la relation. Lettres de Leibniz à Des Bosses, Vrin, Paris, 1999, p. 235.

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Dois diferentes sujeitos, como A e B, não podem ter precisamente a mesma afecção individual, sendo impossível que o mesmo acidente indi-vidual possa estar em dois sujeitos ou passar de um sujeito a outro. (...) A razão ou proporção entre duas linhas L e M podem ser concebidas de três modos diferentes: como uma razão do maior L ao menor M, como uma razão do menor M ao maior L, e, finalmente, como algo abstraído de ambos, como a razão entre L e M sem considerar qual é o antecedente e qual o conseqüente, qual o sujeito e qual o objeto. (...) No primeiro modo de considerá-los L, o maior, no segundo M, o menor, é o sujeito daquele acidente que os filósofos chamam de relação. Mas qual deles é o sujeito no terceiro modo de considerá-los? Não pode ser dito que ambos, L e M juntos, são o sujeito de um tal acidente, pois, se fosse assim tería-mos um acidente em dois sujeitos, com uma perna em um e outra no ou-tro, o que é contrário à noção de acidente. Portanto, temos de dizer que essa relação, nessa terceira maneira de considerá-la, se encontra fora dos sujeitos; mas não sendo nem uma substância nem um acidente, tem de ser uma coisa meramente ideal, cuja consideração é, contudo, útil.4 Nessas duas cartas, Leibniz, com base na ontologia por ele desen-volvida, parece se recusar a atribuir às relações o mesmo estatuto de rea-lidade concedido às substâncias individuais e aos acidentes individuais. De acordo com ele, existem, no plano ontológico fundamental, unica-mente substâncias individuais e os acidentes individuais que nelas inerem, sendo afastadas as possibilidades tanto da passagem de um acidente de uma substância para outra quanto da inerência de um acidente em mais de uma substância. Dado que as relações expressam ou comparações ou conexões entre diferentes substâncias, elas, caso fossem reais, correspon-deriam a acidentes presentes simultaneamente em substâncias distintas, o que Leibniz afasta de maneira peremptória. Dessa forma, relações, ao contrário das substâncias individuais e dos acidentes individuais, não podem ser ditas reais. Pelo menos não no mesmo sentido em que são reais as substâncias individuais e suas modificações individuais. Mas pare-ce claro, por outro lado, que algum tipo de realidade deve ser atribuída a elas, pois é inegável que as relações fazem parte do nosso repertório 4 Leibniz, G. W., Philosophical Papers and Letters, edited and translated by L. E. Loemker, p. 704.

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compreensivo do mundo, sendo-nos possível, por exemplo, formular proposições relacionais, as quais, sendo verdadeiras, indicarão a ocorrên-cia – ou a não ocorrênocorrên-cia – de certos fatos relacionais no mundo. Para evitar que uma grande parcela de nosso discurso e de nossas convicções tenha de ser considerada ilusória e enganadora, faz-se mister, assim, que as relações possam ser consideradas objetivas – isto é, fundadas no mun-do – em algum sentimun-do.

Leibniz pretende, em sua teoria das relações, exatamente deixar claro em que medida as relações, ainda que não consistam em ítens per-tencentes ao plano ontologicamente mais fundamental do real, podem possuir alguma base no mundo. Ele as caracteriza alternativamente como ideais, mentais ou seres de razão, consistindo sua ligação com o real no fato de que elas têm por fundamento acidentes ou modos das substâncias individuais às quais elas se referem. Senão vejamos.

No capítulo XXV do Livro II dos Novos Ensaios sobre o Entendimen-to Humano, Leibniz, através do personagem Teófilo, afirma o seguinte acerca da natureza das relações: “As relações e as ordens possuem algo de ser de razão, ainda que tenham seu fundamento nas coisas, pois se pode dizer que sua realidade, como a das verdades eternas e das possibi-lidades, vem da suprema razão.”5

O trecho citado contém três teses distintas, que apresento na or-dem inversa de sua enunciação: (1) que se pode dizer que a realidade das relações deriva-se do entendimento divino; (2) que as relações fundamen-tam-se nas coisas; (3) que as relações – e as ordens – são como que seres de razão. O uso das partículas “ainda” (quoique) e “pois” (car) indica cla-ramente a vinculação que Leibniz pretende estabelecer entre essas teses: a tese (3) decorre, de acordo com ele, da tese (1) mesmo levando em conta o fato de que a aceitação da tese (2) poderia nos conduzir à negação da tese (3). Isto é, segundo Leibniz, embora as relações estejam fundadas 5 Leibniz, G. W., Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, Flammarion, Paris, 1990, p. 176.

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nas coisas, elas possuem um estatuto semelhante ao dos entes de razão, uma vez que sua realidade – tal como acontece com os possíveis e com as verdades eternas – depende completamente do entendimento divino, não possuindo elas nenhum grau de autonomia ontológica face a ele. A compreensão do sentido preciso da tese (3) pressupõe, assim, o esclare-cimento tanto da afirmação da dependência ontológica das relações rela-tivamente ao entendimento divino quanto da atribuição a elas de um fundamento nas coisas. Começarei com a tese (1) para, a seguir, ocupar-me da tese (2).

Através da tese (1), Leibniz afirma que a realidade das relações possui a mesma procedência – e, poderíamos complementar, o mesmo estatuto – das verdades eternas e dos possíveis, qual seja, o entendimento divino. Ao caracterizar o entendimento de Deus como única fonte da existência desses três conjuntos de “coisas”, o propósito de Leibniz pare-ce ser duplo: ele lhes assegura, por um lado, algum tipo de realidade, enquanto, por outro, nega que os membros desses conjuntos sejam ele-mentos constituintes do mundo criado, isto é, nega que eles existam no mesmo sentido em que existem as substâncias reais e suas modificações, uma vez que essas dependem para existir não apenas do entendimento divino, mas também da vontade de Deus, expressa em seus decretos de criação.

Leibniz introduz, assim, uma distinção entre dois modos de ser (quais sejam: ser apenas no entendimento divino e ser um ítem do mun-do criamun-do) que é imprescindível para que se possa afirmar que os possí-veis e as verdades eternas – retomo as relações em breve – são em algu-ma medida6. A questão é que nem os possíveis nem as verdades eternas

6 O parágrafo 43 da Monadologia é exemplar no que respeita a esse tópico: “Também é verdade que em Deus reside não só a fonte das existências, mas também a das essências, enquanto reais, ou do que há de real na possibilidade. Porque o entendimento de Deus é a região das verdades eternas, ou das idéias de que essas verdades dependem e sem ele não haveria nada de real nas

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podem ser criadas – e depender nessa medida do decreto divino da cria-ção –, pois isso seria contraditório em ambos os casos, já que os possíveis tem de permanecer sendo meras possibilidades – e não efetivos existen-tes – para que o mundo criado seja contingente e as verdades eternas devem ser válidas para todos os mundos possíveis, tendo de independer, dessa forma, de qual tenha sido o mundo efetivamente atualizado por Deus.

É relativamente claro, então, por que, no interior do sistema meta-físico leibniziano, é preciso considerar que as verdades eternas e os me-ramente possíveis têm no entendimento divino sua fonte de realidade. Entretanto, não creio que se possa dizer que sejam igualmente claras as razões que levam Leibniz a realizar essa aproximação entre as relações intersubstanciais, por um lado, e os possíveis e as verdades eternas, por outro.

Leibniz afirma que o entendimento divino é a origem da realidade das relações por considerar que elas consistem não exatamente em um modo de ser das coisas, mas sim em uma maneira de se pensar acerca delas. Assim, a similaridade entre S1 e S2, por exemplo, não consiste, de acordo com Leibniz, nem em uma característica interna de S1 ou S2 nem em algo que subsista por si mesmo independentemente de qualquer ins-tância a ele externa, constituindo-se, mais propriamente, em uma propri-edade atribuível a S1 e S2 unicamente por serem S1 e S2 pensados em conjunto. Quer dizer, a relação de similaridade entre S1 e S2 subsiste ape-nas na medida em que uma mente pensa ao mesmo tempo em S1 e S2, constatando a semelhança entre certas propriedades internas presentes em um e em outro. Afirmar que S1 e S2 mantêm entre si a relação de similaridade ou semelhança não implica, então, segundo essa concepção, a atribuição a S1 da propriedade interna “ser semelhante a S2” nem a S2 bilidades, e não somente nada de existente, como tampouco nada de possí-vel.”, Leibniz, G.W., Discurso de Metafísica e outros textos, apresentação e notas de Tessa Moura Lacerda, Martins Fontes, São Paulo, 2004, 138-139.

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da propriedade interna “ser semelhante a S1”, senão que implica apenas que o pensamento conjunto em S1 e S2 torna possível a consideração deles como semelhantes. Nesse sentido, pode-se dizer que as relações existem unicamente porque são pensadas, dependendo seu ser das men-tes que as pensam. Em resumo, no caso das relações, ser é ser pensado7.

Essa dependência, entretanto, não pode ser de mentes finitas, pois isso implicaria que a verdade das proposições relacionais dependeria de alguma mente humana ter pensado nas relações descritas por essas pro-posições. Mais grave ainda, caso fosse assim, as relações somente existiri-am se atualmente pensadas, desvanecendo quando a mente se ocupasse de outros pensamentos ou simplesmente inexistindo caso nenhuma men-te amen-tentasse para uma certa conexão ou comparação entre coisas distintas. Para garantir a verdade das proposições relacionais e a realidade das rela-ções, Leibniz afirma que elas dependem não das mentes humanas, mas sim da mente divina. No capítulo XXX do Livro II dos Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, afirma Leibniz: “As relações possuem uma realidade dependente do espírito como as verdades, mas não do espírito dos homens, pois há uma inteligência suprema que as determina todas de todos os tempos.”8

7 Na carta a des Bosses de 29 de maio de 1716, escreve Leibniz: “As or-dens, então, ou as relações que ligam duas mônadas não estão nem em uma nem em outra dessas mônadas, mas nas duas simultâneamente, quer dizer, a bem da verdade, em nenhuma das duas, mas apenas na mente”, em Frémont, C., L’Être et la relation. Lettres de Leibniz à Des Bosses, Vrin, Paris, 1999, p. 255.

8 Leibniz, G. W., Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, Flammarion, Paris, 1990, p. 205. Mates apresenta uma citação de Leibniz ainda mais clara nesse sentido : “Besides substances, or ultimate subjects, there are the modifi-cations of substances, which can be produced and destroyed per se ; and fur-ther fur-there are relations, which are not produced per se but result when ofur-ther things are produced, and have reality in our intellect – indeed, they are when nobody is thinking. For they get that reality from the divine intellect, without which nothing would be true.”, em Mates, B., The Philosophy of Leibniz. Metaphy-sics and Language, Oxford, Oxford University Press, 1989, p. 224.

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Ao afirmar que as relações fundamentam-se nas coisas, Leibniz quer dizer que elas são, em certa medida, um produto de outras proprie-dades presentes nas coisas às quais as relações são atribuídas. No caso em que, por exemplo, atribui-se a relação R a S1 e S2, essa atribuição somente é possível, segundo Leibniz, porque S1 e S2 possuem propriedades inter-nas distintas da propriedade relacional correspondente a R, sendo em função da posse dessas propriedades que se justifica a atribuição a S1 e S2 de R.9

A posição de Leibniz parece ser, então, a de que as relações têm como fundamento características, propriedades presentes nos pólos que são conectados um ao outro ou comparados entre si por meio delas, sendo, assim, de alguma maneira, supervenientes a essas características, a essas propriedades. Isso significa que as relações, apesar de não serem ítens constitutintes do mundo, encontram-se enraizadas neste através das propriedades em que elas se fundam. Relações, mesmo existindo unica-mente na medida em que são pensadas, são, assim, objetivas pelo fato de o pensamento acerca delas ser um produto do reconhecimento de certas modificações presentes nos indivíduos. Em resumo, relações são ideais, pois expressam maneiras de se pensar as coisas, e não modos de ser das coisas, sendo, contudo, objetivas, uma vez que essas maneiras de pensar as coisas têm por fundamento modos de ser das coisas10.

9 No texto Sobre o Princípio dos Indiscerníveis, de 1696, Leibniz escreve o se-guinte: “Quando pensando acerca de categorias eu distinguia, na maneira acei-ta, a categoria de quantidade da de relação, uma vez que quantidade e posição (ambos incluídos nessa categoria) parecem ser produzidos por movimento por si, e são usualmente concebidos pelas pessoas deste modo. Mas quando consi-derei as coisas mais acuradamente, eu vi que elas são meros resultados, que não constituem nenhuma denominação intrínseca por si, e assim elas são mera-mente relações que demandam uma fundamentação derivada da categoria da qualidade, isto é, de uma denominação intrínseca acidental.”

10 Acerca desse ponto Rutherford afirma o seguinte: “Relations, we have already noted, are entia rationis. They are ways of thinking of the similarity or

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Essa concepção adquire, aparentemente, plausibilidade e consis-tência quando consideramos a tese asseverada por Leibniz de que não existem denominações puramente extrínsecas”11. Essa tese estabelece

que a atribuição a um sujeito de uma propriedade relacional somente pode ocorrer caso haja alguma modificação interna ao sujeito ao qual essa propriedade é atribuída. Sua interpretação mais óbvia seria, assim, a de que um sujeito não pode “ganhar” ou “perder” uma propriedade relacio-nal se não houver algum tipo de alteração na sua estrutura interna, a qual, ao menos prima facie, seria constituída, assim, por propriedades de nature-za não-relacional. É isso que parece sugerir seu famoso exemplo segundo o qual nenhum homem se torna viúvo na Índia simplesmente pela morte de sua mulher na Europa, tendo de ter ocorrido nele, além disso, também uma mudança interna real12.

connectedness of things; they are not things in themselves. To assert the rela-tion of two things is, in effect, to recognize each as possessing certain intrinsec characteristics and to state something that is true of the way these characteris-tics stand with respect to each other. What we recognize in this way may well be something God would know of them – but for all that, recognizing their relatedness does not ammount to recognizing a third in the world over and above the individuals and their intrinsic properties.”, em Rutherford, D., Leib-niz and the Rational Order of Nature, Cambridge University Press, Cambridge, 1995, p. 184.

11 Em seu texto Verdades Primárias, ele escreve o seguinte: “Segue-se, então, que não há denominações puramente extrínsecas, denominações que não tenham absolutamente nenhuma fundação na coisa denominada, pois é necessário que a noção do sujeito denominado contenha a noção do predicado, conseqüen-temente, sempre que a denominação da coisa se altera tem de haver alguma variação na coisa mesma”, em Leibniz, G. W., Philosophical Essays, translated by Roger Ariew and Daniel Garber, Indianapolis and Cambridge, Hackett Publi-shing Company, 1989, p. 32.

12 “(...) there are no extrinsic denominations, and no one becomes a wid-ower in India by the death of his wife in Europe unless a real change occurs in him.”, em Leibniz, G. W., Philosophical Papers and Letters, translated and edited by L. Loemker, Dordrecht/Boston/London, Kluwer, 1989, p. 365.

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No contexto da passagem na qual esse exemplo é introduzido, a tese da inexistência de denominações puramente extrínsecas serve como argumento em favor da tese de que tudo se encontra interconectado no mundo, ou seja, é porque toda alteração nas denominações extrínsecas pressupõe uma alteração interna nas coisas relacionadas é que se pode afirmar que tudo se encontra ligado a tudo no mundo13. Entretanto, nos

Novos ensaios Leibniz considera a fundamentação no sentido oposto: “(...) segundo o rigor metafísico é verdadeiro que não há nenhuma denomina-ção puramente exterior por causa da conexão real de todas as coisas.”14.

Quer dizer, é porque tudo se encontra interconectado no mundo é que não há nenhuma denominação puramente extrínseca.

Todas essas considerações parecem confluir quase que natural-mente para uma concepção reducionista das relações e das proposições relacionais. De acordo com uma tal concepção, relações fundamentam-se em propriedades não-relacionais, sendo, em última instância, redutíveis a essas. Da mesma maneira, proposições relacionais podem ser eliminadas da linguagem através de sua redução a proposições não-relacionais. As-sim, segundo essa concepção, haveria em um nível ontológico mais fun-damental apenas substâncias individuais e suas modificações internas, as quais não incluiriam propriedades relacionais, mas sim unicamente pro-priedades monádicas das quais as propro-priedades relacionais seriam um

13 O contexto do qual foi extraída essa citação é o seguinte: “That all exist-ing thexist-ings have this intercourse with each other can be proved, moreover, from the fact that otherwise no one could say whether anything is taking place in existence or not, so that there would be no truth or falsehood for such a proposition, which is absurd: but also because there are no extrinsic denomina-tions, and no one becomes a widower in India by the death of his wife in Europe unless a real change occurs in him.”, em Leibniz, G. W., Philosophical Papers and Letters, translated and edited by L. Loemker, Dordrecht/Boston/ London, Kluwer, 1989, p. 609.

14 Leibniz, G. W., Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain, Flammarion, Paris, 1990, p. 177.

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produto, uma conseqüência. No plano da linguagem, isso implicaria a concepção segundo a qual proposições que contêm predicados relacio-nais deixam-se reduzir a proposições nas quais ocorrem somente predi-cados não-relacionais.

No entanto, a atribuição a Leibniz de uma tal concepção reducio-nista enfrenta maiores dificuldades do que poderia parecer à primeira vista. Vou destacar aqui dois dos principais problemas que se constituem em obstáculos severos para a aceitação dessa concepção. Em primeiro lugar, se houver no plano ontológico mais fundamental unicamente subs-tâncias individuais dotadas de propriedades monádicas de natureza não-relacional, não há como evitar que todas as substâncias possíveis sejam compossíveis, uma vez que todos os possíveis serão nesse caso mutua-mente indiferentes no que tange à existência de substâncias outras que eles mesmos. Quer dizer, na medida em que cada substância possível envolve, em sua noção completa, apenas propriedades monádicas não-relacionais, não há como considerarmos que a existência de uma dada substância implica a existência de uma outra ou consiste em um obstácu-lo para que ela se realize. Não há nesse caso, lançando mão de uma ter-minologia caracteristicamente leibniziana, como evitar que as substâncias sejam disparates.

O que teríamos aqui seria, então, o colapso da distinção entre pos-sibilidade e compospos-sibilidade, pois a afirmação de que duas substâncias quaisquer S1 e S2 são compossíveis nada acrescentaria à afirmação de que S1 e S2 tomados isoladamente são possíveis, uma vez que a possibilidade de S1 e de S2 é dada pela ausência de contradição no interior do conjunto de suas modificações internas, o qual, por não incluir propriedades rela-cionais, não permite que se considere a compossibilidade de S1 e S2 como algo além da conjunção da possibilidade de S1 e da possibilidade de S2, bastando, assim, que S1 e S2 sejam em si mesmos possíveis para que eles sejam possíveis conjuntamente. A conseqüência óbvia dessa posição seria, dessa maneira, a compossibilidade de todos os possíveis, o que

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implicaria a idéia de que tudo o que é possível existe, já que, dado (i) que todo possível tende à existência e (ii) que Deus quer criar o máximo pos-sível de realidade, a incompatibilidade existencial entre os possíveis é a única razão para que nem todo possível alcance a existência. A compos-sibilidade não pode ser, destarte, idêntica à afirmação de que substâncias distintas são possíveis quando tomadas nelas mesmas, isto é, a compossi-bilidade de S1 e S2 não pode ser reduzida à afirmação de que S1 e S2 são ambos possíveis sob pena de retirar de Leibniz uma distinção absoluta-mente imprescindível para a afirmação da tese da contingência dos even-tos e substâncias constituintes do mundo.

A intuição leibniziana referente à distinção entre a compossibilida-de, por um lado, e a afirmação dupla da simples possibilidacompossibilida-de, por outro, é expressa por Hintikka do seguinte modo:

usando ‘M’ para ‘é possível que’ e empregando um simbolismo óbvio, a distinção entre possibilidade e compossibilidade é ilustrada pela diferença entre

(1) M(Эx)Ax & M(Эx) Bx e

(2) M((Эx) Ax & (Эx) Bx)

A anterior é a dupla asserção da simples possibilidade: ela diz que indiví-duos do tipo A são possíveis e que indivíindiví-duos do tipo B também são possíveis. A posterior é uma asserção da compossibilidade: ela diz que indivíduos de ambos os tipos podem coexistir.15

A diferença entre a primeira e a segunda sentença reside na posi-ção assumida pelo operador modal de possibilidade. Enquanto a primeira sentença consiste na conjunção de afirmações de possibilidade, a segunda sentença expressa a possibilidade de uma conjunção. Caso A e B sejam predicados não-relacionais, a afirmação da possibilidade da conjunção será equivalente à conjunção das afirmações de que é possível que exista

15 Hintikka, J., “Leibniz, Plenitude, Relations and the ‘the Reign of Law’”, in Woolhouse, R.S. (ed.), Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments, vol. 2, London and New York, Routledge, 1993, 190-191.

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algo com a propriedade A e de que é possível que exista algo com a pro-priedade B, isto é, caso sejam verdadeiras essas afirmações a afirmação da possibilidade de sua conjunção também o será. Nessas circunstâncias, a afirmação da compossibilidade de duas ou mais substâncias dependerá totalmente das afirmações acerca da possibilidade de cada uma dessas substâncias tomadas em separado, sendo sempre verdadeira quando as substâncias em questão forem possíveis. Já no caso de A e de B serem propriedades relacionais, torna-se concebível a ocorrência de situações em que da afirmação de que determinadas substâncias são em si mesmas possíveis não se siga que seja possível que elas existam conjuntamente. Podemos considerar, por exemplo, possível – isto é, não contraditória – a existência de um barbeiro que faça a barba de todos os outros homens e considerar igualmente possível a existência de um homem outro que o barbeiro que sempre faça a própria barba, mas é obviamente impossível que ambos existam conjuntamente. A existência de um bloqueia a do outro, pois ela envolve a efetivação de uma propriedade que implica a negação de uma propriedade constitutiva do outro. Mas tal somente pode se dar porque se tratam de propriedades relacionais, quer dizer, de propriedades que fazem referência, implicita ou explicitamente, a sujeitos distintos dos sujeitos aos quais elas inerem16.

Essas considerações tornam, assim, claro que a adoção de uma concepção reducionista das relações, propriedades relacionais e denomi-nações extrínsecas é, à primeira vista, incompatível com a proposta leib-niziana de garantir a contingência de eventos e substâncias intramunda-16 Hintikka faz as seguintes observações a esse respeito: “Now if A and B are monadic (non-relational, purely qualitative) predicates, whether complex or not, (3) (Эx) Ax & (Эx) Bx is satisfiable (logically possible) if and only if (Эx) Ax and (Эx) Bx are both separately satisfiable (logically possible). In this case, the distinction between (1) and (2) collapses (for logical possibility). In trast, when A and B are complex in such a way as to contain relational con-cepts it frequently happens that (Эx) Ax and (Эx) Bx are both satisfiable while (3) is not.”, in Hintikka, J., op. cit., p. 189-190.

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nos através do apelo à noção de incompossibilidade, uma vez que, sem a atribuição às substâncias de propriedades irredutivelmente relacionais, aparentemente, não há como evitar que todas as substâncias possíveis sejam compossíveis, o que retiraria de Leibniz o único instrumento teóri-co a ele disponível para fundamentar sua tese anti-necessitarista segundo a qual o mundo é contingente dado que nem todos os possíveis existem.

A discussão acerca do estatuto das relações e das propriedades re-lacionais em Leibniz não pode, assim, deixar de levar em conta o pro-blema de como substâncias possíveis podem ser incompossíveis. A as-sunção de uma interpretação reducionista da metafísica leibniziana das relações envolveria a necessidade do esclarecimento de quais seriam, então, as raízes da incompossibilidade.

Um segundo problema que se coloca para os defensores de um Leibniz reducionista diz respeito à concepção mesma segundo a qual proposições relacionais deixam-se reduzir a proposições não-relacionais. Podemos encontrar no corpus leibniziano alguns exemplos de análise pro-posicional que parecem corresponder plenamente a essa idéia de redução. Em um texto, provavelmente de 1678, contendo anotações lógico-gramaticais, Leibniz observa o seguinte:

Todas as inferências oblíqüas devem ser explicadas em termos de expli-cações de palavras. Por exemplo: Pedro é semelhante a Paulo, logo Paulo é seme-lhante a Pedro. Isso pode ser visto a partir da Lógica, de Jungius. Essa infe-rência é redutível às proposições: Pedro é A agora e Paulo é A agora.17 O contexto mais amplo do qual foi retirada a passagem torna mais claro o que Leibniz tem em mente. O texto consiste em um conjunto de análises gramaticais que devem ser realizadas previamente às investiga-ções lógicas com o propósito de afastar logo de início algumas fontes de possíveis mal-entendidos. Tendo como objetivo a construção de uma linguagem racional, isto é, de uma linguagem isenta de ambigüidades e

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que torne formalmente evidentes os raciocínios por meio dela expressos, Leibniz trata sucessivamente de diversos tópicos que, ao menos à primei-ra vista, não se encontprimei-ram articulados entre si de maneiprimei-ra claprimei-ra18.

Podemos, não obstante, reconhecer que em todos esses casos tra-ta-se da busca de procedimentos por meio dos quais proposições nas quais ocorrem certos tipos de termos considerados – por uma razão ou outra – problemáticos deixam-se, através de um processo de análise, reduzir a proposições nas quais termos desses tipos não se encontram presentes. Isso se mostra, por exemplo, na análise que Leibniz realiza da proposição “Pedro escreve belamente”. A presença do advérbio de modo “belamente” nessa proposição é incômoda, do ponto de vista do sistema leibniziano, uma vez que tal termo não parece nem se referir ao sujeito nem expressar um predicado atribuído a este. A solução apresentada por Leibniz consiste em fornecer a seguinte paráfrase para essa proposição: “Pedro escreve e o que Pedro escreve é belo”. Essa conjunção das pro-posições “Pedro escreve” e “o que Pedro escreve é belo” corresponderia à proposição “Pedro escreve belamente”, apresentando a vantagem de não conter nenhum advérbio.

A citação acima transcrita deve ser compreendida, assim, no bojo dessa tentativa mais ampla de encontrar modelos proposicionais não problemáticos para se expressar aquilo que normalmente expressamos por meio de proposições que não se deixam – para dizer o menos – in-terpretar tão facilmente a partir do modelo da proposição predicativa simples. Dessa maneira, uma relação simétrica como “ser semelhante a” é

18 Os tópicos abordados são, em seqüência, os seguintes: desconsideração da distinção entre nomes adjetivos e nomes substantivos; adoção do princípio metodológico de se evitar até onde for possível o emprego de termos abstra-tos; realização da análise de certos substantivos em termos de uma composição de um substantivo e um epíteto; análise de sentenças que contenham advérbios em termos de sentenças nas quais eles não ocorrem; análise de sentenças con-tendo plurais em termos de conjunções de sentenças acerca de sujeitos indivi-duais; explicitação do sentido de sentenças que contenham pronomes.

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pensada como redutível a proposições nas quais é afirmado acerca dos sujeitos que entretêm entre si uma tal relação que eles possuem uma determinada propriedade. De acordo com essa análise, “Paulo é seme-lhante a Pedro” deixa-se reduzir à conjunção de “Paulo é A agora” e “Pedro é A agora”.

Parece óbvio, a partir do exemplo fornecido pelo próprio Leibniz, que a redução de uma proposição a outras proposições não tem como condição que haja correspondência ou equivalência semântica entre a proposição original e as proposições às quais ela é reduzida, pois salta aos olhos que a afirmação de que Paulo e Pedro são semelhantes um ou ou-tro não tem o mesmo significado de que a asserção de que Paulo e Pedro possuem ambos uma certa propriedade A. Se ainda assim Leibniz susten-ta que afirmar a semelhança entre Paulo e Pedro é redutivel a afirmar a posse simultânea por parte de ambos de uma mesma propriedade deter-minada é porque o tipo de relação de substituição entre proposições abarcado pela noção de redução não pressupõe equivalência semântica entre as proposições envolvidas.

Afastada a equivalência semântica como condição necessária da a-firmação da subsistência da relação de redutibilidade entre proposições, faz-se mister determinar quais devem ser, então, as condições a serem satisfeitas para que se possa dizer que uma proposição como “Paulo é semelhante a Pedro” é redutível à conjunção das proposições “Paulo é A agora” e “Pedro é A agora”.

A resposta mais natural a essa questão parece ser, eu diria, a de que essa conjunção de proposições deve ser logicamente equivalente à proposi-ção analisada, isto é, que “Paulo é semelhante a Pedro” pode se reduzir a “Paulo é A agora” e “Pedro é A agora” se e somente se a verdade conjun-ta dessas duas últimas proposições implica a verdade daquela e se a verdade daquela implica a verdade conjunta dessas. Em outras palavras: a equiva-lência lógica seria a condição a ser satisfeita para podermos dizer que certas proposições se deixam reduzir a determinadas outras proposições.

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Infelizmente, tal como no caso da tentativa de adoção da equiva-lência semântica como critério de redutibilidade entre proposições, tam-bém essa condição deve ser rejeitada por ser excessivamente forte e res-tritiva, pois ainda que possamos dizer que a verdade conjunta de “Paulo é A agora” e “Pedro é A agora” implica a verdade de “Paulo é semelhante a Pedro”, é evidente que a implicação não pode ser sustentada no sentido contrário, uma vez que da afirmação de que Paulo e Pedro são semelhan-tes um ao outro não se segue que ambos possuam a propriedade A, dado que essa semelhança poderia estar fundada na posse conjunta de uma outra propriedade qualquer.

Mas se a verdade da proposição analisada é implicada pela verdade das proposições às quais ela pretensamente se reduz, então, ainda que a relação inversa não possa ser asseverada, podemos dizer que uma propo-sição P pode ser reduzida às proposições Q e R se essas proposições tomadas conjuntamente implicam a primeira19. Isto é, basta que as

pro-posições Q e R impliquem em conjunto a proposição P para que se possa afirmar que P pode ser reduzido a Q e R tomadas conjuntamente.

Dessa forma, de acordo com a filosofia de Leibniz, o único com-promisso que se assume para que se possa dizer que a proposição rela-cional “Paulo é semelhante a Pedro” é redutível à conjunção das proposi-ções não relacionais “Paulo é A agora” e “Pedro é A agora”, é o de que a verdade dessas proposições implique a verdade daquela.

19 Essa é, por exemplo, a interpretação de Leibniz adotada por Benson Mates: “The doubts about reducibility are based in large part on the mistaken assumption (which I formerly shared) that if a proposition P is reducible to a proposition Q, then P and Q must be logically equivalent. (...) it is fairly clear that Leibniz claims only that on any occasion on which the original proposi-tion could be truly asserted there are some direct proposiproposi-tions that (1) are of simple categorical form, (2) together imply the original proposition, and (3) are made true by whatever individuals-cum-accidents are the ground of the truth of the original proposition on that occasion.”, Mates, B., The Philosophy of Leib-niz. Metaphysics ad Language, Oxford University Press, Oxford, 1986, p. 216.

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Não é claro, contudo, que essa concepção seja igualmente aplicá-vel aos casos em que estiver em jogo não uma comparação entre sujeitos, mas sim o estabelecimento de algum tipo de vínculo ou conexão entre eles. Vejamos os exemplos apresentados por Leibniz em anotações data-das de 1678:

O genitivo é a adição de um substantivo a um substantivo através da qual aquilo ao qual ele é adicionado é distinguido de um outro. Por exemplo, a espada de Evandro é a espada que Evandro tem; uma parte de uma casa é uma parte que uma casa tem. A leitura de um poeta é a ação pela qual um poeta é lido. Essa é a melhor maneira de explicar Paris é amante de Helena, isto é, Paris ama e eo ipso Helena é amada. Há, portanto, aqui duas proposições coligidas e re-sumidas em uma. Ou, Paris é um amante e eo ipso Helena é amada.20

Leibniz interpreta, assim, a proposição “Paris ama Helena” como sendo redutível à proposição complexa “Paris é amante e eo ipso Helena é amada”. Isso significa, em conformidade com o que vimos acima, que a verdade dessa última proposição implica a verdade daquela, isto é, que a verdade da proposição relacional acerca dos vínculos assimétricos21

esta-belecidos, pelos laços do amor, entre Paris e Helena é implicada pela verdade da proposição complexa em que se afirma que Paris ama e que eo ipso Helena é amada.

A estratégia adotada por Leibniz parece ser, então, a de reduzir uma proposição em que se vinculam sujeitos um ao outro por meio de uma relação de conexão a proposições nas quais acidentes individuais são atribuídos aos sujeitos (“ser amante”, “ser amado”), assumindo o conec-tivo eo ipso, de alguma maneira, a tarefa de estabelecer a referida conexão entre os sujeitos através da ligação lógica entre as sentenças. Quer dizer, ao menos aparentemente, a idéia é a de que a introdução do conectivo

20 Leibniz, G.W., Leibniz, G.W., Akademie-Ausgabe, Reihe VI, Bd. 4, 115. 21 Assimétricos porque o que a proposição garante é que Paris ame Helena, e não o contrário.

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sentencial eo ipso entre as sentenças predicativas “Paris é amante” e “He-lena é amada” produz uma sentença complexa cuja verdade implica a verdade da sentença original “Paris ama Helena”.

A dificuldade aqui é a de determinar qual seria, mais precisamente, o sentido e a forma lógica desse conectivo. Mates considera, por exem-plo, que, através do emprego da expressão eo ipso, Leibniz garante que os fatos que fazem com que a sentença “Paris é amante” seja verdadeira são os mesmos que fazem com que a sentença “Helena é amada” também o seja22. Evidentemente que se podemos garantir que os fatos que tornam

verdadeira a afirmação de que Paris é amante são exatamente os mesmos que tornam verdadeira a afirmação de que Helena é amada, então a tença complexa “Paris é amante e eo ipso Helena é amada” implica a sen-tença “Paris ama Helena”, pois sempre quando aquela é verdadeira essa também o é. O problema é que está longe de ser claro qual conectivo sentencial poderia desempenhar esse papel, isto é, está longe de ser claro qual seria a forma lógica da expressão eo ipso.

É patente que essa expressão não pode corresponder a uma dis-junção. Ela tampouco corresponde a uma mera conjunção, pois se as proposições “Paris é amante” e “Helena é amada” são conjuntamente verdadeiras isso não garante que “Paris ama Helena” seja verdadeira. Ela também não pode ser interpretada como uma implicação, dado que a verdade de “Paris é amante” não implica que Helena seja amada, uma vez que não se pode arbitrariamente restringir os objetos possíveis do amor

22 “The reflexive sentence “Paris is a lover, and eo ipso Helen is a loved one”, which Leibniz offers as a paraphrase of “Paris is Helen’s lover”, seems to me to point the way to such a reduction. It tells us that those “facts” or individuals-cum-accidents that make “Paris is a lover” true also make “Helen is a loved one” true.”, Mates, B., The Philosophy of Leibniz. Language and Metaphysics, Oxford University Press, Oxford, 1986, p. 216.

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de Paris a Helena, sendo perfeitamente concebíveis situações nas quais Paris ame sem que Helena seja amada23.

Restaria como solução considerar que a expressão eo ipso significa que subsiste a relação de equivalência (ou bi-implicação) entre essas pro-posições, isto é, que quando a proposição “Paris é amante” é verdadeira também tem de ser verdadeira a proposição “Helena é amada”, valendo o mesmo no sentido inverso.

Aparentemente essa interpretação resolveria nosso problema, pois ela garantiria que Paris somente ama quando Helena é amada e que He-lena apenas é amada quando Paris ama. Assim, lançando mão dos resul-tados acima obtidos, poderíamos dizer que “Paris ama Helena” deixar-se-ia reduzir a “Paris é amante e eo ipso Helena é amada”, posto que a verda-de verda-dessa proposição complexa, quando o conectivo eo ipso é interpretado como expressando a relação de equivalência lógica, implicaria a verdade daquela.

23 Esse ponto é esclarecido por Viviane Moreira da seguinte maneira em sua excelente tese de doutorado: “A tentativa de interpretar a expressão eo ipso como uma implicação também não nos leva muito longe. Com efeito, para que a proposição “Paris ama” seja verdadeira, não é necessário que ame Helena. Suponhamos, por exemplo, que, além de Helena, Paris também ame sua mãe. Quando se prova que Paris ama sua mãe, prova-se evidentemente que “Paris ama” é verdadeira, sem todavia provar “Paris ama Helena”. Daí estaríamos obrigados a concluir que a noção “Helena é amada” não estaria contida as condições de verdade de “Paris ama”, o que implicaria a falsidade de “Paris ama Helena”, já suposta como verdadeira. A sugestão de que a implicação se dê no sentido inverso, isto é, que é “Helena é amada” que contém “Paris ama” não resolveria o problema. Pois, se recorremos novamente que, para o alívio da Helena, não é preciso que “Paris ama Helena” seja verdadeira para que a proposição “Helena é amada” seja verdadeira”, in Moreira, V., Contingência e análise infinita: estudo sobre o lugar do princípio de continuidade a filosofia de Leibniz, Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS, 2000, p. 96-97.

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Tal assunção é, entretanto, incorreta, uma vez que de novo pode-mos facilmente conceber situações nas quais Paris ama se e somente se Helena é amada, sendo, entretanto falso que Paris ame Helena. É plena-mente concebível que, apesar da dependência mútua entre o estado de coisas de Paris amando e o estado de coisas de Helena sendo amada (quer dizer: um apenas pode se realizar quando o outro também se reali-za), Paris ame outra mulher que Helena ou que Helena seja amada por outro homem que Paris, sendo, assim, verdadeiro que Paris ama, que Helena é amada, mas, contudo, falso que Paris ame Helena. O que quero dizer é que a proposição complexa “Paris ama e eo ipso (no sentido de “equivale a”) Helena é amada” pode ser tornada verdadeira por estados de coisas que não tornam verdadeira a proposição “Paris ama Helena”, o que desautoriza considerar que a segunda seja implicada pela primeira. Isto é, “Paris ama” pode ser tomado como logicamente equivalente a “Helena é amada” (isso significa que Helena é amada quando Paris ama, que Paris ama quando Helena é amada, que Helena não é amada quando Paris não ama, que Paris não ama quando Helena não é amada) sem que isso implique necessariamente a verdade da proposição “Paris ama Hele-na”24.

24 Viviane Moreira apresenta um argumento distinto desse, chegando, con-tudo, à mesma conclusão: “admitindo a proposição do exemplo verdadeira [Paris ama = Helena é amada], suponhamos verdadeira ainda uma segunda proposição em que se afirma que um outro sujeito que não é Paris, que ele ama a mesma Helena amada por este: “Menelau ama Helena”. Conforme o proce-dimento de desmembramento, a proposição poderia ser transcrita como “Me-nelau ama = Helena é amada”. Ora, se Helena permanece sempre a mesma, as duas ocorrências “Helena é amada” seriam de fato duas ocorrências da mesma proposição. Isso nos autorizaria a substituir, por exemplo, “Helena é amada” na primeira proposição por “Menelau ama”, o que teria como resultado “Paris ama = Menelau ama”. Ora, uma tal equivalência unicamente seria legitimamente estabelecida se Paris e Menelau fossem a mesma pessoa, o que é falso, por supo-sição.(...) Visto que isso é inadmissível, não se pode interpretar o operador eo ipso como estabelecendo uma relação de equivalência”, Moreira, V., op. cit., p. 96.

(23)

Para que a redução de “Paris ama Helena” a “Paris ama e eo ipso Helena é amada” fosse irretocável, seria necessário que o fato que torna a proposição “Paris ama” verdadeira fosse idêntico ao fato que torna ver-dadeira a proposição “Helena é amada”, isto é, ter-se-ia de garantir que um e o mesmo fato torna verdadeiras ambas as proposições. É exata-mente nesse sentido que Mates, em passagem já citada, interpreta o conectivo eo ipso: “It tells us that those “facts” or individuals-cum-accidents that make “Paris is a lover” true also make “Helen is a loved one” true.”25

Infelizmente nenhum dos conectivos disponíveis parece poder desempenhar esse papel. Nem a relação de implicação nem a de equiva-lência podem garantir que seja em virtude do mesmo fato que as pro-posições por elas ligadas sejam verdadeiras. Mas se essa garantia não pode ser dada, então não se pode reduzir “Paris ama Helena” a “Paris ama e eo ipso Helena é amada”. Se isso não puder ser feito, então Leib-niz não pode sustentar de maneira coerente uma posição reducionista face às proposições relacionais.

25 Mates, B., The Philosophy of Leibniz. Language and Metaphysics, Oxford Uni-versity Press, Oxford, 1986, p. 216.

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