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A generosidade e suas refrações na oratura Guarani

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Academic year: 2021

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PAULO VICTOR ALBERTONI LISBÔA

A GENEROSIDADE E SUAS REFRAÇÕES NA ORATURA GUARANI

CAMPINAS 2020

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PAULO VICTOR ALBERTONI LISBÔA

A GENEROSIDADE E SUAS REFRAÇÕES NA ORATURA GUARANI

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Nádia Farage

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO PAULO VICTOR ALBERTONI LISBÔA, E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. NÁDIA FARAGE.

CAMPINAS 2020

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 26/05/2020, considerou o candidato Paulo Victor Albertoni Lisbôa aprovado.

Profa. Dra. Nádia Farage (Presidente da Comissão Examinadora) Prof. Dr. Mauro William Barbosa de Almeida

Profa. Dra. Maria Inês Martins Ladeira Profa. Dra. Lilian Abram dos Santos Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Nhandekuery re aroma’endu’a xeayvu.

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Ao meu pai, Valdenir, pela curiosidade.

Ao meu irmão, Marcus, por me apoiar a ingressar no ensino superior público. À minha namorada, Stéphanie, pelo amor.

À minha orientadora, Nádia Farage, pelo acolhimento da pesquisa e por dividir suas ideias comigo. À Gilvani, pela solidariedade.

Ao Júlio e a Flávia Orci pela confiança e estímulo ao desenvolvimento da tese. Ao Fábio, pela deriva.

À Adriana, pela leitura do projeto de pesquisa.

Ao Lucas, pela leitura atenciosa das diversas versões desta tese. Ao Igor, pelas sugestões etnográficas.

Ao Anthony e à Christina, pela escuta.

Aos amigos Maurício, Daniel, Flávia Paniz, Pedro e Sérgio pela amizade.

À professora Artionka Capiberibe pelo aceite do estágio na disciplina de etnologia oferecida para o curso de Ciências Sociais.

Ao Bartomeu Meliá, pela indicação do acervo do Museo Etnográfico Andrés Barbero, em Asunción, para a revisão bibliográfica e pesquisa documental.

Ao Museo Etnográfico Andrés Barbero, a Adelina Pusineri, a Raquel Zalazar, a María Cecilia Vera, a Bernardo Benítez e a Ariel Mencia, por todo o apoio necessário para a pesquisa bibliográfica e documental no museu.

Ao João, pela ajuda na estadia em Asunción e pelas trocas bibliográficas e audiográficas.

À Fundação Nacional do Índio (FUNAI), pela condução do processo de autorização de ingresso em Terra Indígena.

Aos funcionários e às funcionárias da Universidade Estadual de Campinas, por oferecerem aos alunos as condições adequadas para o estudo cotidiano.

Aos discentes ingressantes do doutorado em Antropologia Social (2015), no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Lis, Adriano, Fernanda, Ian, Edmilson, Rodolfo, Ana Elisa, Mariana e Vinícius, pela cooperação.

A Maria Inês Ladeira, Lilian Abram dos Santos, Mauro William Barbosa de Almeida, Omar Ribeiro Thomaz, Igor Scaramuzzi, Geraldo Andrello, Amnéris Maroni e Paulo Santilli pelo aceite da leitura da tese.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), pela concessão de uma bolsa de pesquisa, sem a qual a elaboração desta tese não teria sido possível – Código de Financiamento OO1.

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Berganza – E eu! Desde que tive forças para roer um osso tenho o desejo de falar para dizer as coisas que guardo na memória e que ali, pelo tempo e pela quantidade, ou mofaram ou ficaram esquecidas. Mas agora que tão sem pensar me vejo enriquecido por este divino dom da fala, penso em aproveitar tudo o que eu puder, apressando-me para contar tudo aquilo o que eu lembrar, ainda que de forma atropelada e confusa, já que não sei quando vão pedir que eu devolva este bem que me emprestaram (M.Cervantes, O Colóquio dos Cachorros, Editora Grua, São Paulo, 2014).

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Esta tese constitui uma contribuição ao estudo da oratura Guarani, com ênfase em sua cosmopolítica. Para tanto, contempla, em especial, o gênero cômico kaujo, em performances registradas nas aldeias Krukutu e Brilho do Sol, situadas às margens da Represa Billings, área de Mata Atlântica atingida pela degradação ambiental e pela ocupação regional. Tais ameaças territoriais e ambientais são tema privilegiado nas narrativas em pauta, em conexão com o conceito de "bem viver", fundamental na cosmopolítica Guarani. Protagonizadas por reis, caciques e padres, onças, raposas e beija-flores, entre outros personagens díspares, as narrativas e a sua recepção evidenciam a centralidade da alegria e da generosidade -

mborayvu - para os Guarani que desejam fazer durar esta “terra imperfeita”, tekoaxy. Palavras-chave: etnologia; cosmologia; oralidade.

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as performed in the villages Krukutu and Brilho do Sol, located on Represa Billings’ banks, an area of Atlantic Forest affected by environmental degradation and regional occupation. Such territorial and environmental threats are a privileged theme in the narratives in question, in connection with the concept of "good living", which is fundamental in Guarani cosmopolitics. Starring kings, chiefs and priests, jaguars, foxes and hummingbirds, among other disparate characters, the narratives and their reception show the centrality of happiness and generosity - mborayvu - for the Guarani who want to make this “imperfect land” – tekoaxy – last.

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As aldeias Krukutu e Brilho do Sol...11

Degradação ambiental...15

Vozes da cosmopolítica...16

Sinopse dos capítulos...17

Nota sobre as traduções...18

Capítulo 1. A confiança no cotidiano Desconfiar dos chefes...22

Feitiço e fofoca...30

Confiar nos xamãs...31

Uma aldeia sem chefes?...36

Capítulo 2. Os deuses estão tristes? Nomes que não voltam...45

O desaparecimento dos caminhos...52

Aves nos caminhos...58

Plantas nos caminhos...62

Animais domésticos nos caminhos...76

A escuta do sofrimento...87

Capítulo 3. A ajuda e a trapaça nos caminhos O terceiro e o quarto cataclismas...101

“Brancos” parceiros e “brancos” inimigos na vida de uma aldeia...114

O Guarani que era rival de Malasartes...124

A origem da trapaça...141

O esquecimento da ajuda...153

Considerações finais...163

Referências Bibliográficas...170

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Introdução

Esta tese desdobra-se da pesquisa de campo de mestrado e busca contribuir com o estudo da oratura Guarani, a partir de performances registradas nas aldeias Krukutu e Brilho do Sol, cujo cotidiano venho compartilhando desde 2013. A pesquisa de campo de doutorado foi, por sua vez, desenvolvida entre os anos de 2017 e 2019.

Situadas às margens da Represa Billings (SP), em área de extrema relevância para preservação de espécies da Mata Atlântica, as aldeias convivem também com a ocupação regional de “brancos” e a degradação ambiental nas proximidades da Terra Indígena Tenondé Porã, especialmente na zona sul de São Paulo, capital. A área margeada pela Rodovia dos Imigrantes, e atravessada por uma linha de trem, constitui experiência crucial para compreendermos a incidência da presença de “brancos” e do tema da degradação ambiental na discursividade Guarani.

León Cadogan, em sua obra seminal intitulada “Ayvu Rapyta” (1959), reservou à palavra sagrada o centro da sua investigação, voltada às características invariáveis da palavra proferida por líderes religiosos (idem:159-160). Apesar disso, León Cadogan discutiu também as variações que incluíam elementos do exterior do mito Guarani Mbyá e as agrupou na categoria de lendas e contos (idem:160). Nesta tese, veremos que as aldeias Krukutu e Brilho do Sol, situadas na Terra Indígena Tenondé Porã, contam com a presença de chefes, xamãs e narradores que refletem sobre a ética da palavra nesta “terra imperfeita”, tekoaxy. Interessa-nos a linguagem como prática social (B.Malinowski, 1935), a relação entre experiência social e discursividade, mas, acima de tudo, a discursividade como experiência social (A.Appadurai, F.Korom & M.Mills, 1991:22), tal como se expressa no gênero cômico dos “causos”, presente na oratura Guarani.

As aldeias Krukutu e Brilho do Sol

O processo de demarcação da Terra Indígena Tenondé Porã teve início no ano de 2002. Depois de dez anos, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) publicou o relatório de identificação de uma terra ocupada por mais de mil pessoas em uma área, até então, de aproximadamente 26 hectares.

Os Guarani da TI Tenondé Porã apresentam diversidade dialetal, sendo originalmente falantes dos dialetos mbyá e nhandeva. Atualmente, há também falantes do dialeto kaiowá. A TI tem, portanto, protagonismo na produção e na circulação de saberes interdialetais, que conectam diversas parcialidades Guarani no Brasil e em países vizinhos, em um território denominado, em guarani mbya, Yvyrupa (“plataforma terrestre”).

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A declaração da TI Tenondé Porã foi crucial para a manutenção da agricultura de coivara, das práticas cinegéticas de “caça”, de pesca, para a produção de artesanato e de sua comercialização. Nas aldeias Tekoa Nhe’e Porã (aldeia Krukutu) e Tekoa Kuaray Rexãka (aldeia Brilho do Sol), as quais serão consideradas neste trabalho, os Guarani praticam o plantio de milho, batata-doce e fumo tradicionais, além da coleta de bambus, cabaças e madeiras para a confecção de artesanatos e objetos rituais.

Os Guarani ocupam, atualmente, um território fragmentado por rodovias, ferrovias, barragens e áreas urbanas, além das fronteiras nacionais. Apesar disso, o desenho cartográfico de sua ocupação territorial reflete, descontinuamente, a ocupação descrita por documentos quinhentistas e seiscentistas, também informada por descobertas arqueológicas, a respeito da fixação de localidades e de sua mobilidade continental.

Nos dias de hoje, os Guarani ocupam, no Brasil, os territórios dos estados de São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além da residência de famílias Guarani na terras indígena Xerente e terra indígena Guarani-Karajá em Xambioá situadas em Tocantins, Xikrin e Gavião no Pará, e a terra indígena Guarani de Nova Jacundá, sendo esta também situada no Pará.

Mapa Guarani Digital, guarani.maps.as, abril de 2019.

No Brasil, a ocupação Guarani abrange cerca de 150 Terras Indígenas e sua distinção étnica atende a variedades dialetais da língua guarani, a saber, o guarani mbyá, o guarani kaiowá e o guarani nhandeva1. No Uruguai, a ocupação tem sido pouco precisa porque os

Guarani vivem, cotidianamente, expulsões que têm sido relatadas no norte do país. No

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Paraguai, por sua vez, os Guarani se dividem em subgrupos identificados como Paῖ -Tavyterã (Kaiowá), Mbyá, e Ava-Guarani (Nhandeva). Os Guarani ocupam também a província de Misiones, na Argentina, onde é bastante comum a identificação do grupo étnico Guarani Mbyá.

Na Bolívia, a ocupação Guarani ganha novos contornos, conforme as investigações recentes sobre a documentação da região “aos pés dos Andes”2. Os subgrupos Guarani

guardam uma relação muito próxima com a área e com outros grupos indígenas que ocupavam a região andina durante o primeiro século da ocupação espanhola e portuguesa no continente, segundo a leitura das cartas de Chiquitos3. Além disso, os chamados Carijós

foram protagonistas das primeiras viagens documentadas por jesuítas, desde São Vicente a Assunção, com acesso às “civilizações andinas”. Nessa primeira documentação, já encontramos menções à “escravidão” cometida por grupos Guarani em guerra prática contra grupos Chané, o que teria dado origem ao grupo denominado Chiriguano – classificado por alguns especialistas como “grupo chané guaranizado”.

Como é sabido, as investidas espanholas no território do Chaco e nos “pés dos Andes” encontraram grande resistência Guarani à sua dominação, conflito que se estendeu até o final do século XIX na Bolívia. Muitos dos grupos Guarani foram massacrados, outros fugiram até as regiões andinas mais próximas. Fala-se dos Izoceño Guarani como um dos grupos desterritorializados pelas sucessivas incursões bélicas espanholas e bolivianas no território indígena e de sua territorialização andina4.

Portanto, na Bolívia, os Guarani se dividem também em Chiriguano, Izoceño e Chané-Guarani (subgrupos Chané “guaranizados” e que mantiveram a autodenominação Chané e Guarani). Dessa maneira, a configuração territorial Guarani é continental.

Segundo o Instituto Socioambiental5 e o Mapa Guarani Continental (2016), os Guarani

são conhecidos por outros nomes, como Monteses, Kainguá, Baticola, Apyteré e Tembekuá, e sua população é de 50.825 na Argentina, 83.019 na Bolívia, 85.255 no Brasil e 61.701 no Paraguai, totalizando o contingente populacional de 280.800 Guarani continentais.

No Estado de São Paulo, a ocupação majoritária das populações Guarani é do bioma de Mata Atlântica, com destaque a ecossistemas muito diversos, porque abrangem o Litoral, a Serra do Mar e o Planalto Paulista. Portanto, as redes de saberes Guarani são diversas não apenas nas suas características de biomas, como também são diversas nos usos e manejos

2 Combès, 2005.

3 PAGE, C; COMBÈS, I.; TOMICHÁ, R.; MATIENZO, J. Colección Scripta Autochtona (ILAMIS). Chiquitos em las Anuas de la Compañia de Jesús (1691 – 1767). Cochabamba: Itinerarios Editorial, 2011.

4 Combès, 2005.

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de espécies vegetais e animais, de corpos hídricos e de terras de uma vasta extensão territorial.

Três ecossistemas de incidências paulista devem ser mencionados. A Floresta Ombrófila Densa ocupa um longo trecho litorâneo brasileiro, conectando os territórios do Estado do Ceará e o Estado do Rio Grande do Sul. Um número significativo das aldeias Guarani ocupam essa região em razão de dois fatores de mobilidade continental: um deles é a busca pela “terra sem mal”, vida abundante e compartilhada com os deuses, alcançada em um lugar localizado depois da travessia da Serra do Mar (ytajekupé) e do oceano, tema produtivo em sua cosmologia e de importância ímpar na compreensão da mobilidade Guarani, já destacada por cronistas e viajantes, além das etnografias contemporâneas; o outro é relativo ao rendimento metafísico do tema da “contenção do mar” e da “contenção dos ventos” a partir da Serra do Mar, região “fronteiriça”, tal qual os Andes, ocupada por espíritos Jekupé, protetores ambíguos e moradores do espaço em torno de yvy mbyte, “o centro da terra”. Uma das maiores áreas de Restinga preservadas no Estado de São Paulo está, por sua vez, localizada na Terra Indígena Piaçaguera, homologada em 2016, passo importante para preservação desse ecossistema ameaçado de extinção. Por fim, a Floresta Ombrófila Mista, que possui trechos florestais na divisa dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, é de suma importância para o pensamento e as práticas Guarani. Vale lembrar que esses trechos florestais abarcam “florestas de araucárias” ou “pinheiros do Paraná”, com presença das árvores a partir das quais os Guarani produzem o petỹgua (“cachimbo”), usado em rituais para interlocução com espíritos, em cerimônias para a cura das pessoas Guarani, e em certas situações para uso “terapêutico” ordinário6.

A complexa atividade de plantio, manejo da mata para fins cerimoniais, assim como os usos de finalidade medicinal e cotidiana, dependem de áreas florestais amplas, com diversidade de caminhos de animais, águas e plantas, incluindo os locais de trânsito esporádico ou até mesmo proibidos, porém povoados por “donos” perigosos, como espíritos agressores. É importante destacar que a terra próxima à zona sul de São Paulo é bastante arenosa e o seu uso para plantio e agricultura depende de trabalho intensivo com o objetivo da sua fertilização. Nesse contexto, desde a publicação da portaria declaratória da Terra Indígena Tenondé Porã e decorrente proteção jurídica, as pessoas que residiam nas aldeias próximas à Represa Billings (SP), como as aldeias Krukutu e Brilho do Sol, também ampliaram

6 Processo FUNAI/BSB/633/2004. Terra Indígena: Tenondé Porã. Localização - Municípios: São Paulo, São Bernardo do Campo, São Vicente e Mongaguá. Estado: São Paulo. Superfície aproximada: 15.969 hab. Perímetro aproximado: 161 km. Sociedade Indígena: Guarani. Família Linguística: Tupi-Guarani. População: 824 pessoas (em dezembro de 2009). Identificação e Delimitação: Grupo Técnico constituído pela Portaria Presidencial n. 659/PRES, de 1 de julho de 2009. Antropólogo-Coordenador: Spensy Kmitta Pimentel.

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as suas atividades produtivas e a frequência de suas caminhadas até o litoral, por meio da “descida” da Serra do Mar, incluindo o manejo das áreas preservadas.

Degradação ambiental

A TI Tenondé Porã está delimitada em área de Mata Atlântica e com presença de ecossistemas de Floresta Ombrófila Densa, com grandes áreas de “segunda floresta”, em diversos níveis de regeneração. É importante dizer que as áreas nas quais se localizam as aldeias Krukutu e Barragem são aquelas que mais sofrem com a intervenção antrópica, especialmente nos recursos hídricos da Represa Billings. Segundo o relatório de identificação publicado no Diário Oficial nº76 de 19/04/2012, a TI é formada por quatro bacias hidrográficas, Billings, Capivari, Cubatão de Cima e bacias litorâneas. Na bacia da Billings estão localizadas as aldeias Krukutu, Barragem, Guyrapaju, Brilho do Sol e, recentemente, Tekoa Porã. A partir do levantamento dos Grupos de Trabalho do Relatório Circunstanciado para Identificação de Terra Indígena, as redes de parentesco da população moradora das suas aldeias entrecruzam cerca de 150 aldeias do sul e do sudeste do Brasil.

A Terra Indígena Tenondé Porã e suas aldeias são centrais para a compreensão da multilocalidade Guarani, da mobilidade de sua população continental e dos repertórios e processos composicionais de seus saberes e de sua cosmologia. Cabe destacar que a aldeia Krukutu guardava, até o início de 2018, o cemitério compartilhado pelas aldeias do Jaraguá, Barragem, Brilho do Sol, Guyrapaju, Tape Mirim e Kalipety, o que incluía a Terra Indígena do Jaraguá

Dentre os seis biomas brasileiros, os Guarani vivem ou têm relação histórico-social em áreas de cinco desses biomas: Amazônia, Cerrado, Pantanal, Pampa e Mata Atlântica. O bioma de Mata Atlântica tem lugar especial na ocupação histórica do território Guarani. Segundo dados encontrados no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o bioma de Mata Atlântica vivido pelos Guarani abriga 69% dos animais ameaçados de extinção no Brasil.

A Lei nº 11.428/2006 indica uma área original de 1.110.182 km² no território brasileiro da qual restam apenas 102.012 km² de Mata Atlântica. Dessa devastação ambiental, resultou também a agressão socioambiental das populações Guarani e de seus sistemas de pensamento e práticas, vinculados à mata e aos seres que nela habitam, dela sobrevivem e a coproduzem.

Os Guarani das aldeias Krukutu e Brilho do Sol, localizadas na TI Tenondé Porã, relacionam a devastação ambiental e sociopolítica à ampliação da tristeza e do sofrimento. Nesse contexto, trata-se de um saber interdialetal comunicado, preferencialmente, em guarani mbyá, reconhecido enquanto saber dos Guarani, mba’ekuaa.

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Vozes da cosmopolítica

Esta tese dialoga com as proposições de Nádia Farage (2016) e Mauro Almeida (2008) a respeito de uma alternativa biocêntrica e da florestania para a Antropologia. No que diz respeito à florestania, o termo é devedor da história do Acre e foi elaborado, pela primeira vez, por Antonio Alves (2004), no Seminário do Centro de Trabalhadores Amazônicos (CTA). Embora Antonio Alves recuse uma pretensão universalista da florestania e indique um sentido relativista aos projetos de futuro por ela inspirada, o que está implicada é, em suma, a ampliação de nossa noção de democracia, “incluir o voto” dos que não nasceram, e também a participação não humana nas decisões (A.Alves, 2004:133). Nas palavras de Mauro Almeida, a florestania está além dos conceitos e da experiência, apontando para ideias “que atuam como um foco imaginário que inspira e que regula nossas ações” (2008).

A alternativa biocêntrica, por sua vez, aponta para uma simetria entre as formas de vida, igualmente importantes, e para um projeto de futuro firmado por um novo pacto entre as espécies. A alternativa distancia-se, portanto, do antropocentrismo – a assimetria entre a humanidade e demais formas de vida expressa em relação de poder – e das teorias do pós-humano que diluem os vivos entre objetos e coisas, animados ou inanimados. Diante desse espectro, a alternativa biocêntrica traduz-se em uma antropologia política7.

Para os Guarani, nesta “terra imperfeita”, tekoaxy, na qual existimos com os nossos corpos perecíveis, toda a biodiversidade sofre estresse vital em decorrência da alternância do “tempo velho”, ara yma, e do “tempo novo”, ara pyau. Trata-se da passagem do outono e do inverno à primavera e ao verão, quando chegam as aves migratórias e elas iniciam a sua nidificação, as plantações recebem a chuva, a mata e a floresta florescem e frutificam, os caminhos ficam povoados de animais, plantas, espíritos e almas, ampliando também a força do xamã.

Como veremos, no “tempo novo”, os xamãs, denominados xeramoĩ, realizam a cerimônia de “batismo”, o nhemongarai. Na cerimônia, as crianças têm o seu nome-alma,

nhe’e, revelado pelo xeramoĩ, quem os escuta por meio dos espíritos auxiliares que descem

até a sua “casa de reza”, opy. Os nomes-almas descem, por sua vez, das suas aldeias celestes e acompanharão as crianças até se firmarem no próprio corpo perecível do qual se separará na ocasião da morte. Para acostumar os nomes-almas na “terra imperfeita”, é preciso fazer do “tempo novo” uma oportunidade para o fortalecimento, -mbaraete, das

7 FARAGE, Nádia. Cidadania ampliada: um novo pacto entre as espécies. Uma alternativa biocêntrica: Perspectivas Unicamp 50 anos. 24 de setembro de 2016. Palestra proferida na Associação de Docentes da Universidade Estadual de Campinas.

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crianças e de toda a aldeia, afastando a tristeza e o sofrimento, ação da qual são protagonistas o xeramoĩ e o mboruvixa, o “cacique”, percorrendo desde os espaços domésticos das casas dos Guarani até os “altares” da opy, os chamados amba, onde descem deuses e espíritos auxiliares.

Nos dias de hoje, os xamãs Guarani identificam um desequilíbrio entre o “tempo novo” e o “tempo velho”, temem a ocorrência de invernos rigorosos e de primaveras fugazes e a interrupção do envio de nomes-almas às crianças, abreviando a duração desta “terra imperfeita”. Essa é a posição de Aparício e Laurindo sobre o nosso tempo.

Os personagens dessa cosmopolítica encontram-se no conjunto de narrativas cômicas, organizado por um gênero denominado kaujo. Nesse gênero são protagonistas reis, pessoas Guarani, raposas, padres, onças e beija-flores, entre outros personagens que constituem forças díspares da confiança e da desconfiança, da colaboração e da competição, da ajuda e da trapaça.

Sinopse dos capítulos

Destinei ao Capítulo 1 a descrição da produção cotidiana da confiança, -jerovia, a partir de determinados eventos ocorridos nos espaços de convívio da tekoa, na casa, no quintal e no pátio da aldeia. Permeada por forças díspares, a harmonização de uma aldeia é protagonizada por xamãs e por meio dos seus conselhos, -mongeta, além de suas “palavras bonitas”, ayvu porã, em meio a feitiços, imba’evyky, e fofocas, nhe’e vai, que ameaçam a convivialidade Guarani. Dessa maneira, uma ética da palavra constitui a harmonização da comunidade a partir da sua escuta que se apresenta, em contexto de performance oral, enquanto recepção para os seus narradores.

O Capítulo 2 discutirá os sentidos de uma profecia sobre a chegada do fim do mundo. Inicialmente, apresentarei os principais referenciais da cosmogonia e da cataclismologia Guarani. Percorrerei, então, os indícios do fim do mundo destacados pelo xamã, tais como os obstáculos da comunicação xamânica com os espíritos, o desaparecimento de caminhos de animais, a ampliação dos ciclos de agressão nas aldeias, a perda da capacidade de regeneração da Terra. Descrevo, ao final, a construção da “casa de reza”, opy, na aldeia Brilho do Sol e a performance do xamã que diverte a sua comunidade com kaujo sobre a ajuda e a trapaça.

Ao Capítulo 3 caberá a apresentação dos relatos da cooperação e da competição entre “brancos” e índios Guarani nas aldeias. Descreverei, brevemente, a diversidade de grupos que interagem, cotidianamente, com as aldeias e identificarei as modalidades de relação denominadas “parceria”, “amizade” e “inimizade”. Diante da ajuda e da trapaça entre pares e díspares, abordarei, mais detalhadamente, a narração das histórias de Peru Rimã, suas

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trapaças e suas mentiras, sua conduta considerada indecorosa, e seu duplo Malasartes e o rival Pyxã’i. Ao final, apresentarei a fala de Laurindo, um xamã Guarani, e a centralidade da emulação da generosidade cosmogônica para fazer vir a próxima primavera e o ara pyau.

Nota sobre as traduções

O estudo da língua guarani e da variedade dialetal mbya foi iniciado no período de pesquisa do mestrado (2013-2015) e foi aprofundado durante o doutorado. As narrativas foram traduzidas do guarani mbya ao português pelo autor da tese, em diálogo com Werá Jeguaká Mirim, Tupã Mirim, Maria Kerexu e Aparício da Silva. As versões em guarani mbyá foram reservadas aos Guarani, porque essa foi a sua exigência durante a elaboração da pesquisa de campo.

Em razão do acirramento dos conflitos fundiários no país, o autor desta tese decidiu atribuir nomes ficcionais (em português) à maioria dos interlocutores da pesquisa, especialmente as falas que incidiram sobre a política nacional.

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Capítulo 1 – A confiança no cotidiano

Cada núcleo familiar ou parentela constitui uma casa ou várias, entrelaçadas por caminhos muito próximos na mata ou, ainda, mediadas por um espaço intermediário chamado

oka, “pátio” ou “quintal”. Nas aldeias Guarani Krukutu e Brilho do Sol, esse espaço

intermediário é construído com mudas de plantas frutíferas, galinheiros, animais domésticos como cães e gatos, além de indivíduos de espécies da Mata Atlântica domesticados e tornados mymba.

No cotidiano de famílias com tendência avunculocal, é de suma importância o cuidado do oka do sogro, colaborando na limpeza do pátio, no cuidado dos animais e na ampliação da diversidade florística e frutífera nos intermédios do núcleo familiar. O sogro é, usualmente, também um chefe do núcleo doméstico e, junto da sua esposa, conduzem a vida familiar e a sua inserção, enquanto grupo específico, na vida aldeã.

Espera-se de todo jovem Guarani a sua iniciativa para a construção de uma casa para receber a sua futura esposa. Na zona sul de São Paulo, muitas das casas são construídas de maneira tradicional, de “pau a pique”, com uso de barro (às vezes misturado com palha) e de madeira ou taquara. No caso das moradias provisórias, a casa pode ser coberta por lonas. Algumas casas são construídas apenas com taquaras ou madeiras, sem o uso do barro. Outras, ainda, são construídas com madeiras compensadas. A cobertura pode ser feita com folhagens e, a depender dos recursos do casal, telhas de fibrocimento ou alvenaria.

Mesmo quando essas casas são construídas em parceria com programas do governo ou com ONGs e possuem televisores, geladeiras e fogões a gás, o uso de uma área externa e coberta, construída de modo tradicional, é mantida para a produção de fogueiras que agregam o conjunto dos parentes, seja no período matinal ou vespertino.

Algumas aldeias da TI Tenondé Porã, como a aldeia da Barragem e a aldeia Krukutu, possuem banheiros de alvenaria e fossa, construída em parceria com o poder público. Não é raro que, atualmente, a construção das casas seja orientada por uma divisão comunitária do acesso a esses banheiros, divididos por núcleos familiares.

As mesmas aldeias supracitadas possuem também unidades do Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI), para a educação escolar infantil, e escolas estaduais. No entanto, o ensino médio é oferecido apenas na aldeia da Barragem, também chamada de Tenondé Porã. Além da oferta da educação escolar indígena e diferenciada, as aldeias possuem também postos de saúde. Tanto os cargos de professor e agente de saúde, bem como o de motorista da unidade de saúde, são distribuídos para as pessoas Guarani respeitando as decisões em assembleia.

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A casa de reza, a opy, é também construída de modo tradicional, preferencialmente de “pau a pique”, podendo ser coberta com telhas. A regra de seu posicionamento na aldeia estabelece, unicamente, a orientação do amba (lugar onde estão dispostos os instrumentos musicais, como o violão, mbaraká, a rabeca, rave’i, e o mbaraká mirĩ, o chocalho) em direção ao sol nascente8. A definição das suas proporções depende do alcance da sua “visitação” e

da comunidade aldeã.

No caso da aldeia Krukutu, há duas opy, sendo uma delas frequentada por apenas um ou dois núcleos familiares. Os demais núcleos familiares frequentam outra casa de reza, a qual, durante o início dos anos 2000 até meados da década seguinte, esteve sob cuidados de dois xamãs, Aparício e Laurindo. Um deles mudou-se para outra aldeia com sua família. O segundo iniciou, junto a seu filho e sua nora, a construção de uma nova aldeia no início do ano de 2014, que viria a ser chamada de Kuaray Rexãka, aldeia Brilho do Sol. Mais à frente esta tese se concentrará na construção de sua opy, a casa de reza. Como de costume, a ida de um xeramoĩ, líder de um núcleo doméstico, para uma nova aldeia, implica a ida de outras pessoas, que são na sua maioria seus parentes, para a fundação de uma nova tekoa.

Uma opy pode ser um local de reunião, mas a sua especificidade está no acolhimento diário de pessoas Guarani, que ocupam o recinto por horas com os seus cantos mborai

kyrĩgue, “coral de crianças”, e os tarova’i de cantores que entoam pequenas falas em adoração

aos deuses e enunciam melodias acompanhadas de um violão, mbaraká, enquanto os jovens

8 Em “Violinistas kaiowá/guarani: dados etnográficos e históricos sobre os violinos de procedência missioneira no atual Mato Grosso do Sul”, artigo de Langer (2012), o autor nos convida a refletir sobre a incidência dos instrumentos de origem missioneira na cosmologia Guarani, o violino e o violão. Conforme destaca o autor, os Guarani não apenas incorporaram os instrumentos, inclusive a sua atividade ritual, como também constituíram a prática da produção dos próprios instrumentos em diversas aldeias localizadas no Brasil. No caso investigado, Langer identifica a presença e a transmissão desses saberes a partir de uma oficina sob os cuidados de um senhor Guarani em uma aldeia de Caarapó (MS), denominada Te’yikue. O problema da incidência de práticas exógenas ao

socius Guarani não é circunscrito à experiência jesuítica. Macedo (2012), em “Dos cantos para o

mundo. Invisibilidade, figurações da ‘cultura’”, discute o envolvimento de aldeias Guarani Mbya do litoral sul e sudeste na produção de CDs de músicas Guarani entoadas por corais infantis, realizada, sobretudo, em meados da década de 90. É importante lembrar que o período de redemocratização do país, impulsionado pela publicação da Constituição Federal de 1988, viabilizou a proteção e a promoção das culturas indígenas, o que incidiu também sobre a criatividade Guarani e seus modos de

mostrar a cultura até então restrita a nhandekuery, “nós guarani”. A produção dessas gravações e a

venda desses materiais são discutidas também em “Tracking guarani songs: between villages, cities and worlds”, de Valéria Macedo (2011). Essas novas políticas da cultura repercutiram na circulação de cantos entre as aldeias e na promoção de apresentações de corais infantis em diversos estados e fora do país. Mainardi (2015) descreve a gravação de um CD e um DVD, intitulados “Kangwaá cantando para Nhanderu”, em parceria com a ONG Ambaçaí, a partir das aldeias Piaçaguera e Nhamandu Mirim (SP). As lideranças do projeto relatam a dificuldade de “juntar” distintas aldeias, com diferenças políticas e pertencentes a núcleos familiares diversos. A pedido da ONG e seus parceiros, a liderança foi incumbida de formar um coletivo “tupi-guarani”, promovendo um projeto de cooperação e produção musical Tupi e Guarani das aldeias supracitadas. A autora relata que os grupos se reuniram para o projeto e não voltaram a se apresentar, conjuntamente. Sobreviveram, ainda, a acusações de beneficiamento próprio dirigidas a uma das lideranças do projeto. O movimento da constituição do coletivo musical e de sua dissolução revela, para a autora, a incidência dessas novas políticas na cosmopolítica das aldeias participantes.

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tocam as rabecas, rave’i, e tambores, e as jovens tocam os takuapú, bastões rítmicos de bambu. Durante as suas cerimônias de batismo, os Guarani permanecem, desde o entardecer ao amanhecer, cantando até a sua exaustão. A opy é também o local onde as curas xamânicas são realizadas na tekoa, onde os feitiços são retirados, e onde a “fala dos antigos” é proferida para fazer os Guarani voltarem-se a yvy tenonde, a primeira terra, e aos seus costumes9. Fala-se nas aldeias que, há alguns anos atrás, a opy era um lugar para o qual os

“brancos” não eram convidados. Na memória de um dos xamãs, o fim da ditadura trouxe novas possibilidades de vínculos entre Guarani e jurua, “branco”.

A mata, ka’aguy, é o local pelo qual os Guarani identificam os caminhos de espécies animais, lugares habitados por espíritos, diversas espécies vegetais, águas e donos, -ija, e nele também identificam, mais visivelmente, o impacto das ações predatórias da sociedade abrangente. Nas aldeias da zona sul de São Paulo (SP), os Guarani costumam dizer que desapareceram muitos dos caminhos antes vistos em abundância e que estão agora restritos às áreas situadas em direção à Serra do Mar. As ações dos “brancos” não impactam apenas a reprodução da vida animal e vegetal, elas são mencionadas como responsáveis por irritar o “dono das pedras”, Itaja, em alusão à extração de pedras próxima das redondezas das aldeias que povoam as margens da Represa Billings, onde os jurua kuery produzem grande quantidade de yapo, “barro” ou “lamaçal”.

Muito embora os Guarani identifiquem a mata das suas redondezas como ka’aguy

yvin, o “capoeirão”, ela possui grande diversidade animal e vegetal. Durante algumas de suas

caminhadas acompanhadas por mim, foram identificados caminhos de pacas, capivaras, tatus, saruês, veados, onça parda, grupos de esquilos e macacos no alto das árvores, além de diferentes espécies de aves e insetos.

Das espécies vegetais, destacam-se ainda os bambus e a madeira da caixeta para elaboração de artesanatos para venda na sede da associação política (Nhe’e Porã), no caso da aldeia Krukutu. É de suma importância o cedro, yary, com o qual os Guarani fabricam o

apyka, “canoa das almas”, localizada no amba da opy. Embora seja rara a presença de yary

9 Joanna Overing contrastou a noção ocidental de sociedade ou de “coletividade” redutível aos “imperativos sociais estruturais” (1999:87) com a noção de vida social, compartilhada por povos amazônicos, como ações e interações cotidianas de caráter igualitário e contrárias ao “desenvolvimento de relações coercitivas” (J.Overing, 1999:87). Centrada na etnologia Piaroa, a autora discute como essa sociedade indígena da Amazônia introduz, por exemplo, os afins, em processos diários de homogeneização comunitária através da alimentação, do trabalho comunitário e de outras atividades compartilhadas. Disso decorre, portanto, a compreensão da coletividade não determinada pela força coercitiva, mas vivida no cotidiano enquanto “força produtiva” (J.Overing, 1999:100), com o ideal de autonomia “individual”. Nessa imagem amazônica particular do social, quanto mais um povo é capaz de, por meio da livre escolha, chegar a um acordo sobre os modos de fazer as coisas na intimidade, mais provável que vá poder depender de um princípio de confiança em suas práticas gerativas diárias. Em outras palavras, poderá libertar-se, no cotidiano, da dependência em relação aos aspectos mais coercitivos e pessoalmente destrutivos do poder, como aqueles expressos na competição predatória e avarenta, ou na tirania das regras e regulamentos da lei (J.Overing, 1999:101).

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nas áreas próximas às aldeias nas margens da Represa Billings, as aldeias Krukutu e Brilho do Sol possuem o apyka, no qual depositam água para o nhemongarai, “batismo das almas”. O pinheiro-do-paraná, pinho, também de rara presença na região mencionada, é utilizado para a confecção do cachimbo, petỹgua, a partir do “nó do pinho”, kuri rapo. Em uma das ocasiões nas quais encontramos caminhos de veados, um jovem apontou a presença das fezes do veado e contou como, no Paraná, é possível ver o trabalho coletivo de diversas espécies produzindo os pinhais, kurity. Isso porque as pacas procuram o pinhão, kuri’a, e, quando o encontram em demasia, guardam-no nas fezes dos veados para fazer brotar o pinheiro. A mesma ação produtiva é destacada na descrição dos comportamentos de esquilos e da gralha-azul. No caso da gralha-azul, os Guarani a mencionam como uma exímia cultivadora de pinhais.

A erva-mate, ka’a, de suma importância no cotidiano Guarani e em suas cerimônias como o nhemongarai, está presente em regiões coabitadas pelos Guarani. Do ka’a, eles retiram ramos para a confecção do mate para a infusão ritual. O ka’a pode ser encontrado de forma esparsa na região que une as aldeias do Rio Branco, Aguapeu, Krukutu e Barragem (M.Ladeira, 2008:158).

Por fim, a existência escassa de mata intocável na região torna a obtenção de alguns alimentos, como o mel, de difícil ocorrência. No entanto, a partir da homologação da TI Tenondé Porã, e da ampliação do território reconhecido em 2015, os anos seguintes foram ricos em relatos de encontros com espécies animais e vegetais que há muito tempo não encontravam fora dos domínios da Represa Billings.

Como veremos, desse contexto derivam fatores preponderantes para o destino de uma comunidade nas margens da Represa Billings.

Desconfiar dos chefes

Era primavera e a comunidade se reunia no centro da aldeia para falar dos rumores da vida do chefe, mboruvixa. A transição do inverno para o verão é sempre delicada e implica cuidados com o corpo e com a voz, na redução das atividades cinegéticas e no recolhimento a suas casas e, em razão da prescrição de cuidados, a sua inobservância pode desencadear ciclos de violência e loucura, incluindo, até mesmo, a transformação de pessoas em animais. O principal indício da transgressão do “modo de vida”, o nhandereko, reside na ação raivosa e na agressividade expressa na relação com os parentes e os afins, além do evitamento da “casa de reza”, onde a palavra é dirigida aos deuses. Portanto, os espaços da casa (oo), do pátio e do quintal (oka), e da “casa de reza” (opy) são fundamentais para a constituição de uma vida calma, tranquila e harmoniosa, desejada pela aldeia. Como o chefe andava bravo, a comunidade estava em alerta.

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Após os diálogos vespertinos no centro da aldeia, parti com três famílias até as suas casas. Acompanhava-nos um xamã, exímio conselheiro da aldeia Krukutu. Já ao anoitecer, enquanto sentávamos ao redor da fogueira, o xamã e os membros das duas famílias fizeram silêncio. De repente, quando já circulavam cachimbos com fumo e cuias com erva-mate, como se estivesse murmurando aos ouvidos das pessoas presentes, o xamã iniciou a sua fala. Tratava-se de um kaujo.

Narrador: Aparício.

Em uma grande tekoa, havia um homem que brigava sempre. Ele matava pessoas e o cacique não sabia mais como lidar com ele. Havia também um grupo de xondaro muito ferozes, e um jovem que tinha apenas uma faca de madeira e um petỹgua, ele vivia fumando e era tranquilo. Mas, o irmão mais novo do cacique foi capturado. Em um lugar próximo à aldeia, aquele jovem que vivia tranquilo viu o homem feroz agredindo o irmão do cacique. Este mandou um homem ir olhar, mas disse: - “A gente não tem mais força para isso, ele matou muitos dos nossos parentes”. Na aldeia todos viviam brigando, os Guarani não se olhavam, não se gostavam, por isso chamaram o jovem tranquilo, os xondaro kuery ficaram apenas olhando. O jovem foi à procura daquele que brigava sempre. Quando se encontraram, ele disse: - “Eu não vim para brigar com você”. O outro respondeu: - “Todos estão com medo de mim e você veio sozinho”. - “Eu não vim para brigar, eu vim animado, eu vim para animar você”. Então, dois xondaro kuery chegaram até eles para brigar. Mas, foram abatidos com chicotadas. O homem feroz foi pelo caminho e encontrou mais dois xondaro. Eles não falaram nada e quiseram brigar. Foram abatidos com chicotadas. O homem feroz continuou pelo caminho dando chicotadas. Na aldeia uma pessoa foi procurar o cacique. Ele levou muita gente, mas todas elas foram abatidas pelas chicotadas. O cacique tentou matar o homem e não conseguiu. O cacique perguntou ao homem: - “Por que você veio sozinho e deu chicotada nos xondaro kuery”? - “Eu vim aqui alegre, mas eles caçoavam de mim. Eu não matei as pessoas”. - “Então vamos fazer de outro jeito. Os xondaro kuery não tiveram força para segurar você, vamos seguir esse caminho e encontrar uma cobra grande, todos os meus parentes não tiveram força para matá-la”. - “Está bem, eu vou”. Ele tinha dois cachorrinhos, os quais eram seus amigos e viviam juntos de si, ele os levou consigo. - “Mas, se eu vencer a cobra, eu vou me tornar o cacique da sua aldeia”. - “Está certo”. Eles saíram de manhã e chegaram à tarde. Era uma montanha. Dentro tinha um buraco, só tinha um caminho. Ali era o caminho pelo qual as pessoas andavam e eram devoradas pela cobra. Eles foram pelo caminho, estavam atentos, mas a cobra devorou os cachorrinhos que ficaram vivos dentro da sua barriga e continuaram a latir. Os cachorrinhos estavam com medo, eles se moviam dentro da barriga da cobra. O dono tentou pegá-los e deu chicotadas na cobra, na testa, nas costas e na cabeça. A cobra morreu e ele salvou os cachorrinhos. Ele voltou à aldeia e fez uma fogueira. Falou aos xondaro kuery que era o novo cacique e ninguém reclamou. Então, foi falar com o cacique de uma aldeia inimiga. Foi falar como cacique, não enquanto matador, por isso fez as duas aldeias viverem em paz. Mas, depois de muito tempo, ele ficou louco. O cacique vivia em uma casa grande com os seus cachorrinhos e as outras pessoas viviam em casas pequenas. Já não havia mais para onde ir, então os cachorrinhos foram embora.

Imediatamente, a recepção da narração misturava a seriedade, requerida pela pertinência contemporânea do tema da raiva e da tranquilidade, e o riso despertado pelo

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evento do abandono do chefe por parte dos seus cachorros. Em seguida, a audiência se dividiu em diálogos ombro a ombro e observou um casal falar da queda do chefe da sua própria aldeia. São muitas as razões suficientes para um chefe cair em descrédito em uma comunidade, a escolha da narrativa não foi acidental. As pessoas conversavam sobre uma pessoa ser “brava demais” para se tornar chefe, uma lição extraída da narrativa do chefe abandonado pelos cachorros. Conforme a audiência ria e perguntava ao xamã sobre o que havia contado, o xamã apontava para os cachorros que se aqueciam junto às pessoas e explicou “o cachorro acostuma-se aqui, mas se não estiver alegre ele vai embora, até o cacique ele abandona”. A audiência riu. A tensão inicial da conversa que havia acontecido mais cedo, sobre a chefia, no pátio da aldeia, foi-se embora e os moradores foram embora alegres para as suas casas10.

O mboruvixa, “chefe” ou “cacique”, pode falar alto e até mesmo com raiva, -poxy. Nas aldeias pelas quais percorri durante a pesquisa, as comunidades apartam essa fala raivosa do opita’i va’e (xamã), responsável pela reza, pela cura e pela revelação dos nomes-almas em nhemongarai, “batismo”. Embora a ocupação da função do mboruvixa possa coincidir com ocupação da função do opita’i va’e – quando a mesma pessoa exerce os dois papéis em uma aldeia –, os Guarani com os quais dialoguei, durante esta pesquisa, insistiram na inadequação dessa sobreposição de papéis porque não se pode se dirigir ao mboruvixa como se dirige ao

opita’i va’e, e cada uma das lideranças possui também maneiras diversas de dirigir a sua

palavra ao tekoa.

O saber falar e, reciprocamente, o ouvir com atenção vinculam-se ao desenvolvimento de um conhecimento de definição ampla que se costuma traduzir como “sabedoria” (mba’ekuaa) e que resultaria da capacidade xamânica (E.Pissolato, 2007:77).

No cotidiano da aldeia, os xamãs lidam com uma linha tênue que separa a saúde do corpo Guarani e o “bem-viver”, teko porã, como chamam os Guarani a medida adequada da sua ação perante os conselhos a eles dirigidos por seus xamãs. Durante as sessões de cura na “casa de reza”, muitas das dores físicas e da incorreção moral das pessoas emanam de objetos intrusos em seus corpos, ali fixados por feiticeiros movidos, em geral, pela raiva que ameaça a harmonia aldeã.

10 Pierre Clastres (1979:144) distingue propriedades do “mito” (trata-se da recepção do texto), contrastando a “seriedade do mito” e a “comicidade do mito”. Para o autor, a comicidade introduz um espaço de desmesura e o riso torna-se capaz de revelar “paixões secretas” via performance oral de um narrador diante de uma audiência: rir daquilo que, na realidade, é temido. A desmesura seria capaz, ainda, de promover uma “desmitificação” para dizer o que é impróprio. Por essa razão, segundo o autor (idem:147), a comicidade pode apresentar uma paródia de viagens e encontros xamânicos, realizando conjunções impossíveis (idem:148).

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A tekoa, o “espaço aldeão”, não se restringe unicamente à aldeia residencial. A tekoa tem sentidos mais abrangentes, porque é também um lugar compatível com o nhandereko, “nosso modo de vida”. Por essa razão, tekoha é traduzido por Meliá, em “El guaraní conquistado y reducido” (1997:101), como espaço de cultura e identidade Guarani. Dessa maneira, um tekoa deve ter as seguintes características: seu tamanho pode variar, assim como a quantidade de famílias presentes; um tekoa deve possuir lideranças religiosa e política próprias; pertence ao tekoa as “festas religiosas”, reuniões e decisões políticas; o tekoa inclui também rios, riachos e montes; espaços de roça, manejo e lugares fundamentais para o equilíbrio das práticas sociais com a ecologia particular.

En otros términos: la categoria de espacialidad es fundamental para la cultura guaraní, ella asegura la libertad y la possibilidad de mantener la identidad étnica. Aunque parezca un paralogismo, hay que admitir, con los mismos dirigentes guaraní, que sin tekoha no hay teko (B.Meliá, 1997:106).

Apesar da definição consolidada na etnologia Guarani, alguns pesquisadores têm discutido a definição a priori do tekoa e buscado interpretar contextos de transformação do seu modo de vida e de sua elaboração identitária. Silvia Hirsch (2004) descreve o modo como os Guarani do norte argentino definem seu “modo de ser Guarani”, em uma área multiétnica e em processo de transformação, vivido, principalmente, pelo “Guarani boliviano” (Chiriguano e Ava) a partir do século XIX.

Dessa maneira, trata-se de uma divergência teórico-etnográfica sobre o tekoha enquanto categoria produzida na história (E.Pissolato, 2007:117).

Tomando por base a experiência dos Mbya contemporâneos, sugiro que uma tradução mais apropriada de tekoa seja a de realização de um jeito de ser, de um costume, um modo de vida, o que envolve certamente uma dimensão espacial ou, melhor dizendo, espácio-temporal, mas não se define inicialmente por ela. Isto não impede, por outro lado, que o termo assuma conotações espaciais muito concretas em determinados contextos discursivos, sendo usado, por exemplo, como sinônimo de “aldeia” (idem:119).

A autora (E.Pissolato, 2007) sustenta que o tekoa é uma manifestação de um “modo de ser”, um “ethos buscador”, uma ética do “caminhar” (-guata). Na esteira da argumentação da autora, compreendo que, a partir da experiência dos Guarani da zona sul de São Paulo (SP), tekoa é uma categoria que pertence a uma economia da procura e, por esse motivo, aberta à multiplicidade de caminhos (entre casas, pátios domésticos, pátios comunitários, entre aldeias, entre povos) porque é disto que se trata: a procura por uma vida boa, teko porã, entre parentes e afins.

O xamã, xeramoĩ, tem protagonismo na produção dessa vida harmoniosa. Frente à feitiçaria, a depender da força e dos conhecimentos do xamã, ele alcança o conhecimento da

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identidade do agressor ao mesmo tempo em que realiza a cura do corpo da pessoa adoecida pelo feitiço. Nunca soube de xamãs terem revelado a identidade dos agressores aos agredidos, ou de a terem comunicado a outros aldeões. O segredo do xamã sobre a identidade dos feiticeiros traduz uma situação dramática, toda vez em que uma pessoa doente é avisada pelo xeramoĩ do feitiço nela incrustado.

A existência de um agressor “sem face” convive com o ato mais elevado da ajuda, a cura xamânica do xeramoĩ, equiparável somente ao abrigo e à alimentação relativos à hospitalidade de pessoas oriundas de outras aldeias e da cidade. O que o xeramoĩ faz em ritual por ele mediado com espíritos e com os deuses, as pessoas comuns o fazem por meio da partilha da habitação e do alimento – mbaraete, “fortalecer”. Por essa razão, a cura xamânica é também um rito da convivialidade. No contexto de um “enfeitiçamento”, ouvi dizer que uma mulher foi à casa do xeramoĩ e, aos prantos, pediu perdão. O rumor foi interpretado, assim, pela mulher que havia sido agredida por meio de um feitiço: “o feiticeiro quer viver a vida, como se não tivesse acontecido nada, e todo dia ele tem que cumprimentar o seu

xeramoĩ e mentir para ele, é difícil suportar”.

Segundo a sua interpretação, o valor moral do segredo do xamã não coincide com o da “mentira” ou do “fingimento” do feiticeiro. O xeramoĩ não finge, ele sabe a identidade do agressor e o seu segredo é vivido pelo agressor como uma forma de coerção moral. Diferente disso, o “fingimento” do feiticeiro é vivido pelos demais moradores como uma “trapaça”, infligida contra a convivialidade da aldeia, uma vez que seu ocultamento impede a coerção física.

Ao realizar curas nas aldeias, o xeramoĩ oferece dádivas dos deuses aos demais Guarani. Sua força emana de sua capacidade mediadora com o sobrenatural. Aliás, os próprios Guarani costumam afirmar que o xeramoĩ possui um “dom” ofertado pelos deuses e que, por tê-lo aceito e desenvolvido com os xamãs mais velhos, as aldeias têm o dever da generosidade para com ele. Portanto, se por um lado o segredo do xamã perante à identidade dos feiticeiros aflige os aldeões, estes têm uma dívida com o xeramoĩ, a qual se expressa, preferencialmente, por meio do dever da escuta.

Esse aspecto da convivialidade torna-se ainda mais complexo quando o xamã decide batizar os “brancos” e curá-los de suas doenças.

Muitos aldeões comentavam que o xamã havia sido famoso, seus feitos eram notáveis e caminhava por todo o litoral do sudeste e sul do Brasil, a pedido das demais aldeias, para realizar tratamentos, curas e nominações nos eventos cerimoniais de nhemongarai. O xamã “carregava” consigo um conjunto de “nomes-almas” enviados à Yvyrupa, a “plataforma terrestre”, das quais cuidava com os seus pensamentos, atividade xamânica cotidiana mencionada pelas pessoas.

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Um xeramoĩ forte “carrega” consigo também as pessoas ao seu redor, sejam elas os seus parentes consanguíneos, “afilhados” por nominação e desconhecidos que atendem ao seu nome. Esse aspecto de sua autoridade xamânica é visível no entardecer da aldeia, quando o xamã se retira à “casa de reza” e, em seguida, todos começam a sair de suas casas e a caminhar até a opy. Igualmente importante é o início de sua fala a todas as pessoas presentes, quando o silêncio não demora a ser produzido, em sinal de respeito à sua fala e em reconhecimento da “dívida” da escuta que as pessoas têm para com ele.

Disso podemos empreender o oposto, o modo como as pessoas Guarani denunciam, através do seu comportamento, o decaimento da apreciação da autoridade moral do xeramoĩ, quando as caminhadas deste são solitárias, sua ida à opy demora a dar resultado na mobilização dos aldeões e sua fala convive com ruídos e falas simultâneas no recinto. Aqui são importantes as hipóteses levantadas pelos próprios Guarani a respeito das razões da baixa autoridade moral de um xeramoĩ.

Destaco três casos. Um xeramoĩ, com o qual convivi durante alguns meses, era considerado um xamã de “fala dura”, proveniente de uma tradição Guarani de líderes mais incisivos na repressão de comportamentos transgressores e, por isso, também mais distante da autoridade moral, citada anteriormente. A dureza da fala aproxima-se, pela mesma razão, das falas dos mboruvixa kuery, “chefes” ou “caciques” – os quais estão incumbidos da tarefa de ordenar coletivos e pessoas Guarani. Uma senhora Guarani falou, numa certa ocasião, da aceitação dessa modalidade de fala em aldeias do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e em aldeias Guarani de outras regiões do Brasil, como Rio de Janeiro e Paraná. Segundo a hipótese da mulher, esse é um dos motivos da circulação de xamãs e de seus conselhos pelas aldeias, sobretudo as que estão localizadas no Brasil. Muito embora os próprios Guarani da TI Tenondé Porã possuam vínculos parentais com as aldeias dos estados citados, a hipótese é importante também pela ênfase dada na relação entre “territorialização de coletivos Guarani” constituída por meio de uma escuta, o que, quem sabe, revela a natureza da dinâmica entre fala, escuta, autoridade e território.

É importante dizer que, entre os Guarani com os quais convivi, a reflexão sobre a coerção moral a partir das falas de seus xamãs é ação coletiva, visível e audível em diálogos cotidianos. A fala do xamã em questão foi, diversas vezes, caracterizada por excessos: de gestos, de sentimentos, de palavras. Em suma, uma fala incontinente. Um jovem, o qual foi, duramente, repreendido pelas lideranças de sua aldeia, disse aos seus pais e aos seus amigos que havia sido muito exposto para os demais moradores, o que, por sua vez, prejudicaria o seu convívio com os aldeões. Quanto ao comportamento repreendido, o jovem foi meses depois reincidente e, na ocasião das novas represálias, disse ao xamã “você não é o meu cacique”.

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Em uma das ocasiões nas quais estive na sua companhia, ocasião essa anterior ao acontecimento reportado acima, o xamã mencionou que a vida lhe havia imputado “doses extras” de raiva, tornando o seu comportamento mais visceral. O seu relato confirmaria um ensinamento de outro xamã, o qual me disse, em português, “se você fala bravo, uma alma está falando por cima da outra”, em referência à pluralidade das almas da pessoa Guarani e da necessidade do nome-alma, de origem divina, tornar-se dominante no corpo. O xamã portador da fala dura reclamou, ao seu turno, de que “ninguém mais quer saber de conselho”, ou seja, da redução da “comunidade da escuta” e da consequente desorientação da comunidade aldeã.

Passo ao segundo relato sobre um xamã com o qual não convivi e do qual obtive apenas relatos. Muito conhecido nas aldeias da TI Tenondé Porã por sua capacidade curativa, o senhor “virou causo” porque havia abandonado a sua esposa e se casado novamente, com uma mulher mais jovem. O episódio foi interpretado como indício da potencialização de sua atividade sexual e, portanto, da redução da sua capacidade de experimentar intensidades celestiais11.

As interpretações ganharam fôlego na medida em que a comunicação entre os aldeões se encorpava com os rumores da redução da eficácia das curas realizadas pelo xamã. Embora outras hipóteses tenham sido descartadas, analiso algumas delas com o propósito de compreender a imaginação social sobre a autoridade e atividade xamânicas.

Falava-se sobre outros fatores da redução da capacidade xamânica, tais como o uso do álcool, a cobrança de dinheiro pelo uso do seu “dom” e a diminuição generalizada da força dos xamãs devido à inadimplência aldeã perante o dever do canto, da reza individual e da procura pela “maturação espiritual”, aguyje. O álcool é considerado vetor da experimentação de afecções animais, ouvi um senhor relatar alguns casos de pessoas alteradas, de tal modo, que deixaram de seguir o seu “modo de vida”, nhandereko, e passam a agir como macacos, onças, lesmas, sapos, cachorros e galinhas. Essa transformação do “costume” Guarani produz transformações de “pontos de vista” e podem iniciar processos irreversíveis de alteração do corpo, o que é denominado jepota. Se os Guarani relatam casos de pessoas que alcançaram o aguyje ainda em vida (a maturação do corpo e sua chegada à terra imperecível dos deuses), o mesmo é dito sobre o jepota. A morte da pessoa Guarani não é a única condição da perda do “ponto de vista” dos deuses, o nome-alma, constituinte da pluralidade de almas e da ambiguidade da existência Guarani. Diante de alterações profundas das substâncias corporais, tais como a viscosidade da pele, a mudança do timbre da voz, a

11 O tema da autoridade da palavra medida pela distância em relação ao sangue foi investigado por Nádia Farage, entre os Wapishana (1997).

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inobservância do preparo da comida, o nome-alma simplesmente deixa de habitar o corpo Guarani, o que faz ser dominante o “ponto de vista” animal.

A prática da cobrança de dinheiro pelos usos do “dom” rompe, por sua vez, a lógica da dádiva necessária ao exercício da cura, capacidade ofertada pelos deuses aos xamãs. Os deuses retiram, então, o “dom” do xamã iniciado. Segundo os próprios Guarani, a pessoa erra ao cobrar por um “bem” que não pertence ao xamã. A ele pertence apenas a alegria de experimentar uma ação divina.

Como Aparício, os Guarani discutem a hipótese do enfraquecimento generalizado dos xamãs, em razão do descontentamento dos deuses para com os povos de yvyrupa, a “plataforma terrestre”. Reservarei ao tópico do fim do mundo a investigação dessa hipótese. Por ora, cabe dizer que as transformações climáticas, relatadas pelos xamãs, resultam no desequilíbrio da duração e da passagem de ara pyau, o “tempo novo” ou a primavera e o verão, e o ara yma, o outono e o inverno. Ou seja, indício da desestabilização da capacidade regenerativa da Terra. As alterações climáticas atuam também devido à inadimplência aldeã perante os seus deveres para com os deuses.

Por fim, no terceiro caso, o xamã perdeu os seus poderes porque decidiu proteger um feiticeiro e seu parente, caso relatado a mim por uma família. Por essa razão entristeceu-se, não cuidou dos próprios filhos, foi atormentado por espíritos, deixou de frequentar a própria casa, afastou-se do convívio e não mais realizou o “batismo” dos nomes-almas. O xamã não parava em lugar algum, sem vínculos com uma ou mais tekoa, os deuses retiraram-lhe o “dom”.

Recentemente, uma das aldeias teve o seu mboruvixa colocado sob suspeitas e circulavam rumores a seu respeito. Além de ser acusado de cometer atitudes violentas, concentrar doações em sua casa e ter acumulado demasiadamente relações com os jurua

kuery sem benefício coletivo, o mboruvixa assumiu a árdua tarefa de, mediante a expectativa

de uma parcela da vida aldeã, punir o próprio pai, o grande xamã de sua aldeia. A sua tomada de decisão foi interpretada pela maioria das pessoas como uma demonstração de coercitividade absoluta, contra o próprio pai, sobrepondo-se, portanto, ao xamã da aldeia.

A situação foi dramática. Os rumores foram ampliados de uma tal maneira que diversas aldeias das redondezas passaram a intervir na sua política aldeã, onde também tinham parentes. O mboruvixa recusou-se a deixar a função de chefe e reivindicou um princípio da

tekoa, a sua autonomia política. E a situação tornou-se cada vez mais complexa. Porém, o

seu pai decidiu apoiá-lo e, com isso, trouxe apoio aldeão ao chefe.

O chefe só perdeu o seu posto porque a sua esposa o deixou e foi iniciada uma revolta das mulheres, as quais refletiam, cotidianamente, sobre a relação desequilibrada em sua própria casa, oo. Para piorar, falava-se do descuido com os seus animais domésticos e seu

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pátio ou quintal, o oka. Como é esperado, o apoio exterior à tekoa foi ampliando-se, novamente.

Em uma reunião exterior à aldeia desse chefe, pessoas de sua aldeia e de outras assinaram um documento pedindo o seu afastamento. O chefe voltou a reivindicar o princípio da autonomia.

Foi, então, que o respeitado xamã falou ao chefe, disse ao seu filho sobre a escuta da comunidade. Ela já não o seguia, e, portanto, era preciso deixá-la. Desde então, com o seu afastamento das atividades aldeãs, o chefe iniciou a sua partida da aldeia. A sua existência solitária convive com a inatividade das ações anteriormente protagonizadas por ele frente ao poder público. Eis que ocorre o grande ato.

A aldeia decide, em conjunto com as outras tekoa das margens da Represa Billings, a não ter um novo chefe. Assumiram, desde então, e por tempo indeterminado, a gestão aldeã a partir de um conselho de lideranças, constituído por representantes de núcleos domésticos. As suas decisões são, agora, realizadas por um “parlamento”.

Na minha circulação entre as aldeias, ouvi rumores de que “essa experiência não irá dar certo” e algumas pessoas foram bastante enfáticas ao dizer que o equívoco foi apagar a posição mboruvixa e colocar no seu lugar diversos conselheiros subordinados a um conselho interaldeias: “era mais fácil tirar um chefe do que toda a comunidade”. Dessa maneira, a destituição da chefia incluiu a aldeia no processo de unificação decisória nas margens da represa com ideal igualitário. Outras pessoas mostraram preocupação com o destino sociopolítico da aldeia. O chefe era visto todos os dias com dores, buscando cura xamânica sem sucesso. Ele havia sido vítima de feiticeiros.

Feitiço e fofoca

Embora seja raro, a pessoa pode empregar o mesmo vocábulo para se dirigir a “feiticeiras” e a “fofoqueiras”, imba’evyky va’e. Os sentidos dessa equivalência vocabular não se traduzem por uma equivalência dos sujeitos na experiência social Guarani. Segundo os próprios Guarani, o “feiticeiro” não é, necessariamente, aquele que faz “fofoca”, ayvukue, “palavra feia”. Ao que tudo indica, a aproximação semântica dá-se pelo mau uso da palavra, um o faz através do “feitiço” e o outro por meio do uso de “palavras feias” para falar da vida alheia.

É muito comum que as pessoas atingidas por “feitiços” sejam, simultaneamente, objeto de “fofoca”. Portanto, a posição vulnerável da pessoa “enfeitiçada” é a mesma daquela que é objeto de “fofoca”, ambas têm o convívio social ameaçado. O inverso também é verdadeiro, “feiticeiros” e “fofoqueiros” assumem, igualmente, uma posição vulnerável na vida aldeã.

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As razões dessa vulnerabilidade são diversas, desde as suspeitas de traição conjugal até o acúmulo de bens, dinheiro e funções sociais na aldeia. O xamã é, raramente, objeto de “fofocas” e “feitiços” e tem atuação primordial na dissolução de conflitos entre famílias e pessoas, bem como na destruição de “feitiços” e das “palavras feias” que rondam as aldeias nas quais realiza o trabalho de liderança xamânica. O cacique, por sua vez, tem uma posição instável, sujeita a “feitiços” e a “fofocas”. No que diz respeito às “fofocas”, a posição de

mboruvixa é alvo preferencial das “fofocas” em decorrência de suspeitas de beneficiamento

de pessoas próximas ao cacique ou a si mesmo.

Em outro momento, presenciei acusações de pessoas Guarani dirigidas a um cacique suspeito de beneficiar a si mesmo e a sua família na obtenção de doações e de empregos. Naquela ocasião, o cacique possuía um emprego na aldeia e, diante da comprovação de algumas suspeitas, foi deposto da função de mboruvixa, retirado do seu emprego e expulso da tekoa. Soube, anos mais tarde, do total desamparo vivido por ele e por pessoas próximas que foram atingidas pela ruptura dos recursos obtidos em razão da função anteriormente ocupada. É interessante dizer que a distribuição de empregos, assim como de doações, é objeto de controle da comunidade. As “fofocas” conviveram com os acontecimentos da deposição e da expulsão do cacique, expulso da convivialidade Guarani. Ele, então, buscou outra tekoa para recomeçar a sua vida familiar.

Confiar nos xamãs

No início daquele ano, eu convivia com “fofocas” sobre um casal, suas brigas e suas andanças noturnas. Como eu falava, constantemente, com o casal, pude perceber a ausência esporádica do homem e outras vezes da mulher no cotidiano da aldeia. Uma senhora havia dito, numa ocasião, que as “fofocas” incutiam “vergonha” (-xĩmba, “ficar com vergonha”) naquelas pessoas, o que era desagradável para todas as pessoas no dia a dia da aldeia. Os boatos eram de “ciúmes”, -akãte'ỹ (vocábulo usado para se referir também à pessoa que se nega a dividir comida), e “inveja”, -pena rei.

O xamã disse, em seu turno, que o casal passava por sofrimento, teko axy. Ele passara a visitar todos os dias a casa do homem e da mulher para “aconselhá-los”, -mongeta, para que sua vida afetiva não se esboroasse. No mesmo dia no qual eu o ouvi falar sobre os “conselhos”, eu caminhei durante à noite entre duas casas de outras famílias e vi o vulto silencioso de um homem no meio do caminho.

No dia seguinte, o assunto ainda ocupava algumas rodas de conversa. Presenciei, mais uma vez, o xamã advertir os demais aldeões sobre a necessidade de cuidado da vida afetiva da comunidade. A instabilidade afetiva do casal poderia torná-los agressivos, incutidos de “raiva”, ivai gua va’e. Dos afetos que povoam a vida da pessoa Guarani, a “raiva” é o afeto

Referências

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