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Os debates sobre a transição: ideias e intelectuais na controvérsia sobre a origem do capitalismo

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Academic year: 2021

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Daniel de Pinho Barreiros

Editora da Universidade Federal Fluminense Niterói, 2008

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Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - Niterói, RJ - Brasil -Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.editora.uff.br - E-mail: eduff@vm.uff.br

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

Normalização: Caroline Brito de Oliveira

Edição de texto e revisão: Rozely Campello Barrôco e Maria das Graças C. L. L. de Carvalho Capa: José Luiz Stalleiken Martins

Editoração eletrônica: Marcos Antonio de Jesus Supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP

B272 Barreiros, Daniel de Pinho.

Os debates sobre a transição: idéias e intelectuais na controvérsia sobre a origem do capitalismo / Daniel de Pinho Barreiros — Niterói : EdUFF, 2008. 192 p. : il. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)

Bibliografia. p. 187 ISBN 978-85-228-0477-1

1. Economia. 2. História das idéias econômicas. I. Título. II. Série

CDD 330

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

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Vânia Glória Silami Lopes Editora filiada à

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Os debates sobre a transição são, sem dúvida, algumas das mais belas páginas da moderna historiografia do Ocidente. Com a força de sua originalidade e abrangência, influenciaram, ao longo de décadas, diversas gerações de historiadores e membros das demais ciências sociais. Nesse percurso, contribuíram para colocar a pesquisa his-tórica em um novo patamar de excelência e rigor, ao apontar para a necessidade de explorar fontes inéditas e desafiadoras como recurso fundamental do trabalho historiográfico.

Seu ponto de partida foi a obra de Karl Marx, sobretudo os capítulos históricos apresentados nos vários volumes de O capital, cuja potencialidade como hipóteses de trabalho não tinha sido ainda explorada com toda a intensidade por aqueles que se interessavam pela origem do capitalismo como questão histórica. Principalmente no capítulo sobre a acumulação primitiva do capital, Marx delineou os aspectos elementares do processo histórico que originou aquilo que de fato, segundo sua visão, caracteriza o capitalismo — as suas relações sociais.

Ao elaborar com clareza as instâncias fundamentais do modo de produção capitalista, Marx realçou a natureza das relações sociais no capitalismo, marcadas, de modo decisivo, pelo encontro entre dois tipos distintos de possuidores de mercadorias: de um lado, os proprietários dos meios de produção, de outro, os vendedores da própria força de trabalho. A origem histórica do capitalismo, assim, como sugerido por Marx, trata do processo que resultou nessa polari-zação social fundamental. Compreender o nascimento do capitalismo, portanto, significa compreender os mecanismos por meio dos quais forjaram-se as relações sociais capitalistas.

O segredo da acumulação primitiva é a expropriação do cam-pesinato. Ao examinar a experiência inglesa, sobre a qual deteve o olhar em busca do entendimento dessas questões, Marx observou que, na Inglaterra, diferentemente do que acontecera no restante do continente europeu, a transformação da propriedade feudal em pro-priedade capitalista foi muito mais veloz e dramática. Enquanto em outras regiões européias o fim da servidão, no século XIV, não condu-ziu, diretamente, ao desapossamento do camponês, no solo inglês, ao contrário, a eliminação dos direitos consuetudinários do campesinato sobre a terra foi muito mais rápida e definitiva. A progressiva perda de

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direitos, pelos camponeses, acabaria resultando na sua transformação em proletariado sem outros meios de sobrevivência que não fossem a venda de sua força de trabalho.

A supressão da pequena propriedade familiar na agricultura, então, foi o passo inicial decisivo para a criação das relações sociais capitalistas. Expropriado e isolado, o camponês se converteu em “livre” vendedor de sua força de trabalho, incapacitado que estava de obter outro meio de sobreviver. A propriedade capitalista, por sua vez, veículo fundamental da acumulação do capital, se formava pela apropriação dos meios de produção antes dispersos entre as famílias camponesas. A aldeia, elo de comunhão entre os camponeses, perdeu sua função socioeconômica e se esvaziou. Os campos e os cultivos se transformaram com velocidade impressionante.

Um novo elemento regulador se interpôs entre os produtores — o mercado. Cada vez mais, capitalistas e trabalhadores se submetiam ao mercado como força reguladora de todas as relações sociais. Tudo passou a ser mercadoria produzida para fins de troca, todos passaram a depender do mercado para obter os seus meios de reprodução e de subsistência. Isso não era uma escolha, era um imperativo inarredável. De forma progressiva, as relações capitalistas foram se apossando de todos os campos da vida social, ainda que, em alguns aspectos, essa evolução pudesse levar muito tempo para se completar. Em certos casos, houve mesmo uma grande resistência dos grupos envolvidos, que lutaram para não perder suas posses e para não se sujeitar a regulação tão perversa. No entanto, como ficou demonstrado, era apenas questão de tempo.

A violência constituiu um dos pilares desse processo histórico de expansão. Tanto no plano interno quanto no externo, ela exerceu uma força extraordinária. A supressão dos direitos sociais e econô-micos dos camponeses e demais trabalhadores não teve propria-mente um curso pacífico e negociado. A conquista e a ocupação de territórios no além-mar, por sua vez, também foram marcadas pelo uso desmedido de métodos violentos de rendição dos resistentes, fossem eles nativos americanos ou cativos aprisionados em terras africanas para o trabalho forçado. As disputas e guerras travadas entre potências rivais dentro da Europa se arrastaram para outros continentes, deixando seu rastro de destruição e pavor em muitos povos e territórios. Na liderança desse triunfo, encontravam-se as forças capitalistas emergentes.

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Estudar a transição do feudalismo para o capitalismo, na pers-pectiva marxista, significa optar pelos aspectos qualitativos, buscando a elaboração de hipóteses construídas a partir dos vários elementos socioeconômicos que convergiram para a configuração das relações sociais capitalistas. É uma forma de construir generalizações e espe-cificidades, posto que as combinações necessárias para a construção do modo de produção capitalista não se restringiram aos limites geográficos das experiências européias, e variaram. Neste sentido, a pluralidade das formações sociais constitui um enorme desafio às formulações teóricas baseadas em Marx, originando respostas ino-vadoras e criativas, que visam dar aos estudos historiográficos uma abrangência ainda maior e mais consistente.

Ao mesmo tempo, esse esforço realizado pelos marxistas ao longo de décadas também representou um contraponto ao largo predomínio das explicações apoiadas no modelo mercantil, essencial-mente quantitativo. Nessa perspectiva, a origem do capitalismo era fundamentalmente uma questão de escala e praticamente dispensava o exame detalhado dos processos históricos. De fato, os elementos capitalistas — aqui caracterizados como mercados, cidades e mercado-res — sempre estiveram pmercado-resentes na história do homem, em escalas variadas. Inúmeros fatores de ordem política, religiosa, ideológica e outros exerceram influência sobre a capacidade de expansão desses mesmos elementos, impedindo sua generalização ou seu crescimen-to contínuo. Assim, o alvorecer da era capitalista permanecia sendo adiado.

No modelo mercantil, portanto, o capitalismo é geralmente definido a partir dos elementos materiais ligados à difusão das tro-cas mercantis, com destaque tanto para as cidades (espaços, por excelência do comércio) quanto para os mercadores, agentes mais importantes dessa transformação. Mais comércio, mais cidades, mais comerciantes em ação — eis a fórmula do capitalismo no modelo mercantil. As condições históricas para a emergência desse fenôme-no se estabeleceram na Europa ocidental, em data próxima ao fim da era feudal, identificada, esta também, pela ausência dessas mesmas pressões mercantis e urbanas.

Nos debates sobre a transição, os historiadores marxistas não se furtaram a discutir tais aspectos da grande transformação socio-econômica que teve lugar na Europa, e originou o capitalismo. Ao contrário, procuraram iluminá-los com novos enfoques explicativos,

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direcionando a pesquisa empírica para rumos ainda mais inovadores. Um dos pontos altos da discussão é justamente o do papel desempe-nhado pelas cidades no quadro de crise geral do feudalismo. Teriam elas servido de abrigo e refúgio para camponeses rebelados, enfraque-cendo, assim, o poder coercitivo senhorial? Teriam elas constituído alternativas satisfatórias de sobrevivência aos trabalhadores rurais empobrecidos pela exploração feudal? Teriam elas exercido pressão diluidora sobre as instituições feudais, a ponto de colocar em risco a sobrevivência das mesmas?

As explicações tradicionais, que opunham a aliança entre o rei e a burguesia à nobreza rural, sofreriam um duro golpe com a emergência dessas questões, que seriam respondidas por meio de pesquisas aprofundadas e debates teóricos de alto nível. Desse novo contexto intelectual animado pelos debates sobre a transição, emergiria uma realidade histórica muito mais rica e dinâmica, nada linear em sua representação, cheia de contradições dialéticas a serem desvendadas. O método legado por Marx daria frutos abundantes e vivos, marcando uma das páginas mais profícuas da historiografia do Ocidente moderno.

As cidades e o mercado teriam significação bastante distinta na análise marxista. Realçados em sua natureza qualitativa, destacaram-se nessa vasta literatura gerada pelos debates sobre a transição como elementos decisivos na história do capitalismo, responsáveis pelo estabelecimento de condições essenciais ao desenvolvimento do novo modo de produção. A cidade capitalista, portanto, tem especificidades muito próprias, que a distinguem das demais cidades encontradas na história. Não é simplesmente o meio urbano adaptado às condições da acumulação do capital. Ela mesma é produto dessa acumulação, e seu veículo, e não passa por uma evolução linear.

Marx também chamou a atenção para o fato de que nem sempre as cidades cumpriram esse papel revolucionário no período de transi-ção para o capitalismo. Deu destaque especial aos grandes centros ur-banos italianos, que perderam importância socioeconômica juntamen-te com o declínio das rotas mercantis medijuntamen-terrâneas. Ali, em muitos casos, as elites patrícias urbanas acabaram desempenhando um papel histórico reacionário, ao colocarem os camponeses dos arredores sob novas formas de exploração servil, como tentativa de recuperação de sua renda outrora abundante. Ou seja, não é possível discriminar um único processo de evolução urbana naquele período.

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Essa característica da análise marxista ficou bastante evidente no livro Os debates sobre a transição. Não apenas em seu esforço de apreender as contradições dialéticas que percorrem todo o processo histórico em questão, mas também na iniciativa ousada de levantar problemas e propor respostas que representaram rupturas com o sa-ber convencional que dominava o seu ambiente intelectual e político. Foi justamente daí que retirou sua força animadora, responsável pela formação de diversas gerações de estudiosos. E que vemos retratada nas páginas que seguem. Daniel de Pinho Barreiros armou-se dessa mesma coragem para enveredar pelos caminhos nada fáceis desse debate e nos proporcionar uma releitura crítica muito competente e arrojada.

A sistematização de toda essa construção intelectual é muito bem-vinda. Sem dúvida, sobretudo para as novas gerações, será de grande utilidade poder contar com um trabalho assim tão sério e pro-fundo que trata do tema. Além de dar aos leitores uma orientação com-pleta acerca das discussões que foram levantadas pelos historiadores marxistas, sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, o livro que segue reavalia os seus aspectos mais importantes. Em especial nos capítulos em que trata do caso brasileiro e das repercussões aqui havidas desse debate, com todos os desdobramentos decorrentes, Da-niel nos oferece uma contribuição teórica e historiográfica de grande relevância. Merece ser lido com todo o cuidado.

Vânia Cury Instituto de Economia – UFRJ Março, 2008

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Transição para o Capitalismo: momento e origem de um debate Comunismo Primitivo, Escravismo, Feudalismo, Capitalismo, Socialismo. Estágios de uma evolução histórica positiva, invariante, quase que externa à ação do homem, universal e, sobretudo, repro-dutível em todas as sociedades. Marx e Engels propuseram-nos como chaves de compreensão da realidade histórica concreta, mas nunca afirmaram sua rigidez ou inexorabilidade. As transformações ocorridas no pensamento marxista mundial, decorrentes da ascensão de Stalin e dos últimos momentos da Terceira Internacional, principalmente naquele campo que se convencionou chamar de “marxismo sovié-tico”, conduziram a uma compreensão positivista da teoria crítica propugnada pioneiramente por Marx. Paralelamente a este processo, desenvolveram-se correntes alternativas ao dogmatismo do marxismo soviético. A influência do marxismo não-ortodoxo sobre a Escola de Cambridge a partir da década de 1920, suas marcas deixadas no pen-samento de decanos da economia mundial, como Piero Sraffa e Joan Robinson, e, principalmente, no mesmo lugar e momento intelectual, a interpretação de Maurice Dobb, na segunda metade da década de 1940, para o fenômeno da transição histórica dos modos de produ-ção – especificamente falando, do modo de produprodu-ção feudal para o capitalista – serão nosso ponto inicial.

O grande debate que se inicia a partir da interpretação de Dobb traria à tona novamente temas e abordagens que, ao seu tempo, pode-riam ser considerados heréticos pelo “marxismo oficial”.1 A profunda

independência, altivez e criatividade manifestado por uma fração do mundo acadêmico anglo-saxônico no que tange ao desenvolvimento de um pensamento em bases marxistas ficariam sacramentadas com a publicação de A Evolução do Capitalismo, em 1946.

Este, no entanto, não era um momento em que idéias dissonan-tes seriam facilmente aceitas e discutidas por toda a comunidade de pensadores marxistas ao redor do mundo. A revolução proletário-camponesa de 1917 havia dado origem ao primeiro Estado nacional da História a invocar os princípios de Marx e Engels como doutrina de reformulação social, política e econômica. Tornando-se a União Sovié tica um verdadeiro farol da revolução proletária mundial, tendo em vista que se concretizava na primeira experiência de tomada do

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poder e construção de uma nova ordem duradoura pela classe operá-ria e pelo campesinato, tal influência não podeoperá-ria deixar de escapar em direção ao pensamento científico, tão logo começasse a fase de construção do Estado burocrático.

Pelas características da sociedade russa pré-revolucionária, o marxismo encontrou campo de expansão somente em uma minoria da população empregada na indústria moderna (de pequenas proporções sob o czarismo) e em uma elite intelectual. Logo, a idéia de um partido de quadros, que deveria levar ao proletariado em geral a boa nova revolucionária, torna-se um fato. Mesmo que Lenin tenha considera-do que sua abordagem teórica da prática revolucionária poderia ser contestada e revista diante das evidências empíricas que se apresen-tassem, a posterior evolução da sociedade soviética e a construção da ordem política acabaram por solidificar tais concepções numa verdadeira moldura dogmática, aniquilando o impulso transformador e crítico que havia sido legado pelo próprio pensamento de Marx. Tal fato expressava os problemas reais que envolveram a relação entre uma teoria científica que tinha em seu fim, sobretudo, uma dimen-são eminentemente prática – a própria transformação social – e as alternativas históricas concretas tais como se apresentaram e foram percebidas pelos edificadores do Estado soviético.

Tendo sido tornado, portanto, a doutrina oficial do Estado e do partido, e certamente por isso fossilizado, o marxismo é imposto de modo a enjaular a totalidade da sociedade, incluindo aí a própria arte, que ganhava temas e representações próprios, e a ciência, cujo dinamismo fora suprimido, tornando-se um elemento de legitimação da nova ordem. Assim como Marx lembrava que a ciência burguesa – especialmente a Economia – era fiel serva dos interesses de Estado da classe que legitimava, o Estado soviético buscou também, por meio de sua “nova ciência”, tornar verdadeiramente absoluta e natural a direção que trilhava perante a sociedade, sepultando o próprio pen-samento científico enquanto tal. Se por muitas vezes tal apropriação da ciência como elemento de legitimação da sociedade no regime soviético possa ter conduzido a um conflito direto com a classe que deveria representar – o operariado e o campesinato – isso nos leva-ria a discutir a própleva-ria natureza do Estado na União Soviética, o que extrapola em muito os limites desse estudo.

Aquela contribuição que Marx buscou trazer para o desenvolvi-mento de uma teoria crítica não foi aperfeiçoada, mas sim desprestigiada

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na medida em que foi incorporada a uma visão de mundo absolutizada e apriorística. O dogmatismo do marxismo soviético sucumbiria, como lembra Fetscher, à própria superação das estruturas políticas e sociais burocráticas a que este pensamento servia (FETSCHER, 1988, p. 245). Dessa forma pareceu ocorrer quando Marx flertou com Maquiavel: as razões de Estado suprimiram o livre pensamento. Não cabe aqui uma condenação ou absolvição, e sim a compreensão.

Cabe igualmente lembrar, assim como o fez Perry Anderson, em uma série de palestras publicadas em português sob o título sugestivo A Crise da Crise do Marxismo2 (ANDERSON, 1987), que a

grande distinção do materialismo histórico enquanto teoria crítica está indiscutivelmente no seu caráter intrínseco de autocrítica. Em sua própria dinâmica estaria a idéia de, além de reivindicar a cons-trução de uma teoria da história, permitir a compreensão histórica da própria teoria (portanto, do próprio marxismo), e compreender que a formulação do conhecimento se efetua pela praxis, ou seja, nunca de um modo desconexo do próprio desenvolvimento social. Um “marxis-mo do marxis“marxis-mo”, co“marxis-mo afirma Anderson, já estava configurado no pensamento de Marx e Engels desde seus tempos mais primordiais, tendo em vista que condicionaram seus próprios avanços em termos de compreensão da realidade social à erupção das contradições de classe da sociedade capitalista. As revoluções proletárias estariam constantemente reavaliando seus avanços, parecendo retroceder de um ponto já conquistado para uma situação instável, criticando impiedosamente suas falhas, mesmo que, com isso, desse armas para a reorganização do inimigo. “Tal concepção não envolvia nenhum elemento de positividade complacente – como se a verdade, a partir de então, estivesse garantida pelo tempo, o Ser pelo Devir, e sua doutrina imune a erros graças à simples imersão na transformação” (ANDERSON, 1987, p. 14). Não espanta, portanto, que a esterilidade do marxismo soviético sob a hegemonia stalinista tenha vindo da violação da própria teoria marxista.

Em oposição a esta versão objetivista, em sua vertente soviética, surge, a partir das obras de Antonio Gramsci, György Lukács e Karl Korsch, na década de 1920, portanto contemporaneamente à consoli-dação do dogmatismo na URSS, a corrente do materialismo histórico que ficaria conhecida posteriormente como Marxismo Ocidental. O objetivo de tal corrente era oferecer uma alternativa crítica ao status quo da teoria ditado por Moscou, neste processo deslocando a

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ção de suas análises da economia política e do Estado para questões ligadas à cultura, artes e filosofia. Esses autores propuseram uma releitura da obra de Marx, privilegiando a subjetividade e a questão da consciência de classe na compreensão histórica das sociedades, rompendo com um marxismo tradicional (no qual podemos incluir de Kautsky a Stalin) que se definia como teoria materialista positiva formuladora de leis de desenvolvimento. Entenderam ser o estatuto epistemológico do marxismo problemático, na medida em que con-testavam sua validade como uma ciência universal da história e da natureza; concordavam que tais concepções aproximavam-no do positivismo, reduzindo uma teoria social a uma ciência natural, não dando margem, portanto, a uma concepção que parta da ação do sujeito histórico e da consciência de classe do mesmo. A “dialética da natureza” que Engels legitimara, principalmente após a morte de Marx, defendendo a extensão do raciocínio materialista dialético para além dos limites da história e da cultura, tocando o funcionamento do mundo natural, dava bases para uma definição de dialética como lei universal, apropriada ao marxismo ortodoxo. A vertente “ocidental” rejeitava tais concepções.

O marxismo não se esgotaria na descoberta de novas leis de desenvolvimento social, devendo comportar igualmente a crítica e a luta intelectual contra as concepções burguesas da sociedade. Sua luta deveria ser justamente a desconstrução da cultura burguesa, e para tal lançaram mão dos conceitos de falsa consciência e hegemonia cultural, por exemplo, além de atribuírem ao intelectual um papel fundamental na preservação ou revolução das sociedades. Visões mais utópicas ob-servaram ser o pensamento de Marx não somente uma contribuição à economia política, mas sua crítica e superação; Lukács chegou a pensar no marxismo como uma teoria destinada a extinguir a economia política, entendendo que suas categorias expressariam uma dominação econô-mica que deveria ser aniquilada, no intuito de emancipar o homem. A matriz hegeliana de Marx é enfatizada (e, a meu ver, superestimada), e em grande parte, o marxismo ocidental formou-se tendo como base o idealismo alemão, afirmando-se preponderantemente onde esta influên-cia permaneceu mais viva (JACOBY, 1988, p. 249-252).

Apesar das acusações de que o marxismo ocidental teria se afastado por demais do marxismo clássico, principalmente por sua indiferença para com o materialismo e para com a economia política, denunciados como idealismo, Jacoby argumenta que até mesmo

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Marx havia se distanciado muitas vezes dos assuntos do dia-a-dia (JACOBY, 1988, p. 252). Anderson, por sua vez, apresenta-nos idéias mais interessantes no que tange aos próprios limites do marxismo ocidental, e é sobre elas que edificaremos nossa argumentação acerca da importância das discussões iniciadas por Maurice Dobb.

A teoria marxista, aplicada à compreensão do mundo, sempre pretendeu uma unidade assintótica com uma prática popular capaz de transformá-la. Portanto, a trajetória da teoria tem sido sempre determinada primariamente pelo destino desta prática. Inevitavelmente então, qualquer comentário sobre o marxismo da década passada será antes de tudo uma história política de seu ambiente externo. (ANDERSON, 1987, p. 17)

Reiterando nosso comentário acerca dos reflexos da prática sobre a teoria marxista, devido à sua natureza, aproveitemos a indi-cação de Anderson para compreendermos de que maneira as vitórias e derrotas no movimento proletário internacional imprimiram suas marcas no desenvolvimento da teoria.

Após a vitória e o progressivo isolamento da Revolução Russa, lançada aos seus próprios desafios de sobrevivência, e o fracasso do movimento operário nas sociedades de capitalismo avançado, conformar-se-iam a silhueta e a essência do marxismo ocidental. As décadas de 1920 e 1930, com a ascensão do fascismo, a derrota das frentes populares e a dispersão dos movimentos de resistência à ameaça do Eixo em 1945-1946, impotentes para transformar seu pres-tígio obtido em força política que viesse a ameaçar a antiga ordem vigente, marcam o retrocesso das conquistas proletárias em direção à revolução. Como saldo desta situação, temos, como uma das verten-tes, a já citada fossilização do marxismo soviético na empreitada de legitimar o status quo pós-revolucionário. Por outro lado, sociedades como a alemã, a italiana e a francesa, que conservaram um potencial de subversão da ordem capitalista bastante efervescente, mas com poucas condições de realmente subjugar o poder do Capital, tiveram em seu seio o desenvolvimento de uma nova corrente intelectual, que ficaria claramente marcada por tais reveses. As sucessivas derrotas de um arredio movimento operário nesses países conduziram a for-mação de um pensamento marxista cujos laços com a luta popular pelo socialismo estavam praticamente cortados. Ou seja, entre a

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teoria revolucionária e a efetiva prática de renovação da sociedade por meio da revolução havia, mais do que nunca, um fosso intransponível, principalmente a partir do momento em que o locus por excelência do debate marxista transplantara-se do sindicato e do partido para as universidades e instituições de pesquisa.3 A partir da Escola de

Frank-furt, em finais dos anos 1920, formava-se o que viria a ser chamado de “marxismo ocidental”, com suas características distintivas, dentre as principais, o redirecionar das lentes:

Análises econômicas importantes do capitalismo, dentro de um arcabouço marxista, sumiram aos poucos em larga escala depois da Grande Depressão; o esquadrinhamento político do Estado burguês decresceu desde o silenciamento de Gramsci; a discussão estratégica das vias para um socialismo factível de-sapareceu quase que inteiramente. (ANDERSON, 1987, p. 19)

As condições concretas do movimento operário nas socieda-des que mais acolhedoramente aceitaram (e criaram) o marxismo ocidental conduziam a um arrefecimento do debate sobre a economia política – vide as próprias opiniões pioneiras de Lukács a respeito do mesmo assunto – dando lugar à afirmação de um discurso tipicamente filosófico, mais voltado para questões epistemológicas sobre o próprio marxismo do que para estudos teóricos do desenvolvimento social. Foi o momento de contato com outras correntes não-marxistas, de síntese e busca de influências, fosse de uma herança teórica anterior a Marx, ou mesmo posterior a ele, como parece ser o caso do contato entre Sartre e as idéias de Heidegger, Gramsci e Croce, Lukács e Weber, Althusser e Lacan. Esta foi ocasião importante para o debate sobre temas tipicamente superestruturais, dando margem ao pioneirismo dos estudos dos processos culturais, da arte e da ideologia, chegando aos excessos de uma hipertrofia da estética nos momentos finais de sua existência. Apesar de tudo, lembra Anderson, o marxismo ocidental jamais capitulou diante da ordem estabelecida; tendo em vista que os partidos comunistas se colocavam como adversários do capital e ao mesmo tempo afirmavam o dogmatismo stalinista, eliminando em grande parte as tendências ao debate e à divergência, parte de seus principais pensadores permaneceu filiada formalmente aos partidos, mas desenvolvendo uma crítica não-dogmática e, inclusive, de opo-sição aos mesmos (ANDERSON, 1987, p. 18-21).

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Em que mãos ficava então a economia política marxista num momento de refluxo desses estudos no cenário do pensamento euro-peu? Os tempos dos ricos debates da Segunda Internacional, em que Lenin e Rosa Luxemburgo definiam a natureza do capitalismo em sua fase monopolista, pareciam realmente acabados e pertencentes a um passado de riqueza intelectual. O Ocidente deveria contentar-se neste momento, grosso modo, com as interpretações do marxismo soviético, que, principalmente sob a vigência de Stalin, estabelecia a validade de conceitos e teorias não pelo debate, mas por decreto. A “existência” do modo de produção asiático, por exemplo, esteve condicionada ao desfecho de uma calorosa luta no interior da academia soviética que terminou pela refutação de sua validade, em 1931. Tal fato, a propósito, serve como reforço à argumentação de Anderson acerca da ligação entre os destinos da teoria marxista e a história política em seu en-torno. Isto porque o modo de produção asiático serviu como fonte de grandes transtornos para as mentes demasiadamente dogmáticas desde sua concepção.

O debate acerca de sua natureza suscitou dúvidas, em primei-ra mão, a respeito da aplicação de categorias da economia política marxista a realidades não-européias. Mais importante ainda, se fosse defendida a especificidade de uma “sociedade asiática”, de tendências notadamente estáticas em seu desenvolvimento, senhora de um modo de produção cuja propriedade privada da terra é ausente (sendo o Estado o proprietário), perpetuadora de uma sociedade camponesa auto-suficiente que dependia de um sistema de obras públicas, de irri-gação e de um Estado burocrático centralizado para sobreviver, estaria rompida a teleologia do dogmatismo marxista, dos cinco estágios de desenvolvimento inexoráveis para quaisquer sociedades existentes sobre o planeta. Tendo sido a Rússia considerada uma sociedade “semi-asiática” por Marx e Engels, este problema representou um papel importante nos debates sobre a estratégia revolucionária a ser seguida antes de 1917, principalmente no que diz respeito à comuna russa, e se esta poderia ou não servir como base para um futuro socialismo. O modo de produção asiático permitia colocar frente a frente, portanto, concepções deterministas unilineares e concepções multilineares acerca do desenvolvimento histórico. Este conceito po-deria servir para legitimar a idéia de que o marxismo não pressupõe uma evolução mecanicista, em que leis históricas determinariam quais estágios deveriam ser cumpridos até uma etapa final.

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A Conferência de Leningrado de 1931, além de confirmar como “verdade” os cinco estágios de desenvolvimento, desconsidera a exis-tência de um modo de produção asiático como categoria explicativa do desenvolvimento histórico das sociedades asiáticas, devendo, a partir de então, serem classificadas como detentoras de um modo de produção feudal ou um modo de produção escravista. As conclusões da conferência foram plenamente fortalecidas pela adesão de Stalin a elas. Estipulou-se posteriormente ao pós-guerra (com os estudos de Wittfogel, baseados em Weber, sobre a sociedade chinesa) que a liderança comunista russa teria aniquilado o conceito de modo de produção asiático tendo em vista que o mesmo poderia dar margem à idéia de que a Rússia stalinista guardava continuidades constrange-doras com a Rússia czarista; como o conceito comportaria a noção de uma classe dominante que controlava administrativamente mas não deteria a propriedade dos meios de produção, ficaria configurada a permanência, somente tendo ocorrido uma substituição da burocracia czarista tradicional pela burocracia do partido comunista (TURNER, 1988, p. 348-351).

Sabemos que, empiricamente, tais afirmações contavam com pouca sustentação, e, justamente por isso, a deslegitimação do modo de produção asiático não ocorria pela superioridade explicativa da teoria unilinear adversária. Ocorria, sim, como fruto de manobras e interesses políticos, que visavam preservar o stalinismo de ser subme-tido a uma possível crítica a partir do próprio aparato teórico marxista; a retomada do interesse pelo estudo desse modo de produção, com a desestalinização, é um elemento que nos leva nessa direção. Eviden-temente nenhuma conclusão no âmbito das ciências humanas, tendo em vista, de modo geral, seu próprio estatuto epistemológico, poderá estar isolada da dinâmica da sociedade na qual está inserida, exceto se pensarmos uma ciência das sociedades em termos de um positi-vismo objetivista. No entanto, o que se objetiva apontar é o tamanho grau de comprometimento em que se encontravam as conclusões do marxismo soviético em relação aos interesses do Estado.

Em linhas gerais, portanto, tal era o estado de coisas no cenário da teoria marxista entre as décadas de 1930 e 1960. Uma alternativa “crítica” ao dogmatismo soviético poderia ser encontrada no marxismo ocidental, na medida em que era favorável, entre outras coisas, a uma crítica interna ao próprio marxismo, além de ressaltar a ação do sujeito histórico concreto e da luta de classes como motores da História. No

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entanto, por questões próprias ao desenvolvimento das sociedades que deram origem ao marxismo ocidental, acabara abandonando os estudos sistemáticos sobre a economia política, voltando-se para te-mas como cultura, lingüística e as questões de método, abstendo-se em larga medida de discutir questões que pudessem contribuir para a definição de uma estratégia revolucionária.

A virada para a década de 70 do século XX, com as revoltas de massa no centro do capitalismo mundial – a Europa ocidental – o levante do movimento estudantil e a insurgência das massas traba-lhadoras, marcaria, segundo Anderson, o esgotamento de uma tradi-ção que, apesar de formidavelmente produtiva, vinha se mostrando estéril na formulação de diagnósticos e propostas que respondessem às necessidades do movimento operário em seu momento. A grande tradição marxista ocidental dava lugar a um outro tipo de interpreta-ção que se orientava precisamente na direinterpreta-ção de questões de ordem econômica, política ou social (ANDERSON, 1987, p. 24-25). Um novo gosto pelo concreto passava a emergir ao longo da segunda metade dos anos 1970 com estudos sobre questões econômicas e sobre a na-tureza de classes do Estado, através da obra de Ernst Mandel, Harry Braverman, Ralph Miliband, Nicos Poulantzas, Paul Baran e Paul Swe-ezy. “Com trabalhos como estes, a discussão marxista do capitalismo contemporâneo uma vez mais alcançou, e em alguns aspectos vitais ultrapassou, o nível da época clássica de Luxemburgo e Hilferding” (ANDERSON, 1987, p. 25).

O surgimento de um novo momento de mobilização popular, alentando o marxismo enquanto uma concepção de revolução so-cial, e de uma renovação intelectual nos seus temas e abordagens, foram o culminar de um profundo desgaste do mito e das idéias que circundavam a figura do “líder do proletariado mundial”; o impacto por ele causado nas concepções deterministas da realidade social foi significativo.4 A “crise do marxismo ocidental”, portanto, dizia

res-peito não ao pensamento marxista como um todo, mas à sua vertente desenvolvida basicamente na Europa latina, que era desbancada nos anos 1970 pelo dinamismo das interpretações próprias do mundo anglo-saxônico.

Para o debate que pretendemos situar, é justamente esta confir-mação do deslocamento do centro dinâmico geográfico da produção marxista na direção dos países anglo-saxônicos que nos interessa em primeira mão. Tal deslocamento ocorre, sobretudo, por intermédio da

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intensificação da produção historiográfica marxista, por muito tempo pouco considerada no panorama das idéias socialistas, que ganhou escopo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Afirma Anderson:

Para alguns de minha geração, formados numa época em que a cultura britânica parecia completamente destituída de qualquer impulso marxista endógeno significativo – a retardatária da Europa, como constantemente denunciávamos, sob risco de acusação de “niilismo nacional” –, essa foi uma metamorfose realmente espantosa. (1987, p. 29)

O caminho de afirmação do pensamento marxista anglo-saxônico por meio dos estudos históricos não foi, todavia, nenhuma novidade. O ano de 1946 é um momento chave para o início desse processo, tendo em vista ser este o ano de publicação de Studies in Development of Capitalism (A Evolução do Capitalismo) de Maurice Dobb, economista de uma geração anterior e com formação distinta daqueles que promoveriam de fato o sepultamento do marxismo oci-dental, que alcançou maior destaque com este estudo sobre história econômica do que com qualquer outro sobre a economia política marxista. No entanto, foram pensadores mais jovens, reunidos no Grupo de Historiadores do Partido Comunista Inglês, ligados a Dobb, justamente através dele, que em fins dos anos 1940 e anos 1950 transformariam as interpretações a respeito da história econômica mundial e européia, tendo publicado seus trabalhos nos anos 1960 e alcançado o auge nos anos 1970 (justamente o momento em que se situa a ruptura com o marxismo ocidental). Incluídos na relação dos jovens pensadores apontados por Anderson, estão Edward Thomp-son, Victor G. Kiernan, George Rudé, Eric J. Hobsbawm, Christopher Hill e Rodney Hilton, estes três últimos protagonistas, juntamente com Maurice Dobb, dos debates sobre a transição do feudalismo para o capitalismo.

Não somente o cenário inglês é contemplado nessa nova safra de marxistas, mas também o norte-americano. Da mesma forma, a historiografia tem sido o setor mais dinâmico, contando com os no-mes de Eugene Genovese e Eric Foner, além da sociologia histórica de Immanuel Wallerstein, Theda Skocpol e da economia política de James O’ Connor, continuador da obra de Harry Magdoff e de Paul M. Sweezy, este último representando um dos mais importantes

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interlo-D an ie l d e P in ho B ar re iro s 23

cutores dos diálogos sobre a transição. Coube, talvez paradoxalmente, às sociedades que se mantiveram a uma certa distância do turbilhão do movimento operário e das revoluções sociais – Estados Unidos e Inglaterra – iniciarem uma calorosa discussão não-dogmática sobre temas clássicos da crítica da economia política.

Decorrentes do processo de desestalinização, a percepção da necessidade de reformas no socialismo e um degelo teórico que permi-tiu a retomada de questões há muito sepultadas foram inseridos num momento intelectual que coincidia com a ruptura do monolitismo da liderança soviética sobre o movimento operário internacional, permi-tindo a muitos partidos comunistas discutirem questões próprias às suas realidades nacionais, abrindo caminho para o abandono de uma estratégia única e viabilizando debates sobre a questão da transição para o socialismo partindo do conhecimento da história e da estrutura de cada sociedade em particular.

No que tange ao assunto deste livro, ressalta-se o impacto dos acontecimentos que traziam à tona o conjunto de sociedades impre-cisamente compreendidas sob o termo “terceiro mundo”; parte das atenções desviavam-se para os movimentos de libertação de povos da Ásia e da África e para as discussões envolvendo o subdesenvolvi-mento na América Latina. Além disso, deve-se lembrar que muitos dos grupos dirigentes de novos regimes que haviam emergido de um pro-cesso de descolonização interessavam-se pela alternativa marxista de modernização de suas sociedades, tendo em vista que, depois de 1917, os regimes comunistas do mundo haviam sido implantados em socie-dades eminentemente pré-burguesas, ou com a preservação bastante intensa de características desse tipo. As possibilidades de revoluções sociais nos ditos “países atrasados” abria um flanco que teria notória produtividade nas décadas de 1950-1970, que seriam os estudos sobre a natureza das relações entre países dominantes e subordinados no sistema econômico internacional (HOBSBAWM, 1989, p. 15-25).

Dessa forma, em consonância com Hobsbawm, compreendemos a produção historiográfica sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, empreendida pelos importantes expoentes do marxismo contemporâneo citados, como um momento fundamental da conjun-ção entre uma realidade histórica específica – a presença de uma maior diferenciação no cenário politico-econômico mundial com o surgimento ou fortalecimento de Estados nacionais em luta pela sua modernização e desenvolvimento – e os estudos marxistas.5

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Um exemplo significativo dessa interação entre experiência terceiro-mundista e teoria marxista se pode encontrar no cam-po da historiografia e cam-pode ser citado a título de ilustração. A natureza da transição do feudalismo para o capitalismo havia preocupado longamente os estudiosos marxistas, não sem in-tervenção por parte de políticos marxistas, uma vez que, pelo menos na Rússia, apresentava questões de interesse atual [...] Mas, sem entrar na análise de tais discussões, basta recordar a ambiciosa tentativa de Maurice Dobb no sentido de fornecer delas um exame sistemático num volume que, com modéstia, chamou de Studies in the Development of Capitalism (1946) e que levou a um vivo debate internacional, sobretudo nos anos 50. (HOBSBAWM, 1989, p. 23-24)

Existe uma unidade histórica e teórica entre a temática da superação do modo de produção feudal/construção do modo de produção capitalista na Europa e os estudos sobre o subdesenvol-vimento na periferia (em especial a latino-americana). Em primeiro lugar, como já comentado, a primeira ganha um novo impulso decor-rente do movimento concreto de emergência do “terceiro mundo”. Em segundo lugar, uma importante vertente de estudos sobre o subdesenvolvimento que surge no final dos anos 1960 (aquela que tem como expoentes mais ilustres Andrew Gunder Frank e Immanuel Wallerstein) é tributária do debate engendrado pela publicação de A Evolução do Capitalismo de Dobb; esta é considerada por Hobsbawm como uma retomada do tema da gênese histórica do capitalismo em bases distintas, sendo ligada aparentemente à posição sweeziana no debate inicial e, além disso, articulada em torno da Monthly Review, revista da qual Sweezy era editor-chefe (HOBSBAWM, 1989, p. 24-25). Por fim, em linhas bastante gerais, a análise da transição na Europa e as interpretações sobre o fenômeno do subdesenvolvimento tratam, com cortes cronológicos e espaciais distintos, do desenvolvimento histórico do capitalismo.

O esforço intelectual envolvido nas discussões marcou, efe-tivamente, o processo de consolidação do mundo anglo-saxônico como expoente hegemônico do marxismo, e mais ainda, dos estudos históricos baseados na obra de Marx e seus seguidores. O ápice des-te processo, que Anderson situou na década de 1970, foi o resultado de mais de 20 anos de discussões envolvendo, entre outros temas, a

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questão da transição, que fora sumariamente eliminada da pauta pelo marxismo soviético, e de seu dogmatismo das fases invariáveis; uma vez que estas etapas eram inexoráveis e comuns a todo o tipo de so-ciedade, dispensavam qualquer discussão acerca das pré-condições e dos diferentes resultados de uma mudança de modo de produção efetivada em bases sociais distintas.6

A recepção de A Evolução do Capitalismo nos anos seguintes à sua publicação não fora das mais estimulantes. Rodney Hilton, histo-riador, um dos participantes do debate, escreveria em sua introdução à coletânea de artigos Transição do Feudalismo para o Capitalismo7

(HILTON, 1989, p. 9-30) que os comentários sobre a obra nas revis-tas especializadas da Inglaterra haviam sido de pequeno interesse, excetuando-se, certamente, no final da década de 1940, as opiniões de Karl Polanyi e de R. H. Tawney, este último uma das principais re-ferências de Dobb no mesmo trabalho. Tendo havido algum interesse pela temática e pela abordagem, este pouco existiu no que tange a uma discussão dos problemas teóricos do próprio marxismo. O diagnóstico de Hilton, em 1976, para tal fato é preciso: a aceitação do pensamento de Marx pelos historiadores britânicos nos anos 1950 seria muito pe-quena, tendo os mesmos uma formação que não comportaria análises explicativas sobre “agentes motores” de transformações históricas, e sim abordagens pretensamente objetivas de acontecimentos de curto prazo (o que indica uma forte influência positivista).

Os historiadores acadêmicos britânicos não gostam do marxis-mo. De qualquer modo, a década que se seguiu ao fim da guerra não era a mais propícia para um debate livre de preconceitos sobre uma interpretação marxista do capitalismo. (HILTON, 1989, p. 10)

Somando-se ao quadro do desinteresse dos historiadores ingle-ses, Hilton não perde a oportunidade de ressaltar a complexidade de se tratar de análises marxistas no contexto histórico que se instaura no pós-guerra. Em meados da década de 1970, Theo Santiago, apresentan-do uma coletânea de artigos sobre a construção apresentan-do moapresentan-do de produção capitalista por ele organizada, aponta igualmente os percalços por que passa uma análise científica do fenômeno da transição do feudalismo para o capitalismo tecendo considerações sobre a situação do conjunto dos estudos sobre o tema realizados até aquele momento:

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E então nos deparamos com o estado atual dos estudos realiza-dos: ou são determinados pelo empirismo, ou por um evolucio-nismo mecanicista que já nos assegura de antemão toda a história passada, presente e futura. A transição (a questão da constituição e da articulação de um modo de produção determinado com outros) aparece então como um vazio no quadro dos conceitos fundamentais da ciência da história, vazio que é preenchido por postulações ideológicas: ou a transição não existe, porque a histó-ria é um “todo” que não permite desarticulações, ou este conceito não necessita ser construído porque a ordem de sucessão das estruturas já nos está assegurada. (SANTIAGO, 1975, p. 9)

Ou seja, era entre abordagens empiricistas não-marxistas (à moda dos historiadores ingleses dos anos 1950 aos quais refere-se Hilton) e o determinismo mecanicista (o que nos remete de imediato aos trabalhos formulados sob influência do “marxismo soviético”) que patinavam os estudos sobre a transição até a publicação de A Evolu-ção do Capitalismo e a conduEvolu-ção do debate pelos demais autores, que prosseguiram-no em bases teóricas eminentemente novas e renova-doras (como bem lembrou Anderson, em comentário já apresentado). Com isso, não encontrando interlocutores no contexto acadêmico britânico, Dobb somente obteria uma resposta às suas provocações do outro lado do Atlântico, do igualmente renovado cenário intelectual norte-americano, no qual Paul Sweezy se apresentava como primeiro crítico de peso às proposições realizadas pelo marxista inglês.

A barreira que confinava as principais escolas e polêmicas do marxismo ocidental aos seus contextos nacionais, inicialmente fratu-rada pelo ataque de Thompson contra Althusser em seu Miséria da Teoria, havia realmente se desmanchado no ar, dando margem para a superação de um silêncio e ignorância constrangedores no que tange a um diálogo de perspectivas internacionais (e também, por que não dizer, internacionalistas).

De modo semelhante, a discussão da teoria do valor na eco-nomia marxista não possuía mais fronteiras nacionais, mesmo provisórias: os circuitos argumentativos movem-se livremente do Japão para a Bélgica, do Canadá para a Itália, da Inglaterra para a Alemanha ou Estados Unidos, como provam recentes simpósios. (ANDERSON, 1987, p. 31-32)

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Mas a teoria do valor havia apenas sido agraciada por uma perspectiva de debate internacional: esta pode ser considerada como um primeiro qualificador dos diálogos sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, dadas as diferentes nacionalidades dos debatedo-res, que via de regra buscaram contribuir através de uma análise que buscasse a experiência histórica de suas respectivas sociedades.8

Em suma, nesta introdução foram apresentadas as principais características que situam o debate em seu momento histórico e so-cial. Passaremos agora a pontuar as principais questões apresentadas pelos autores, questões que definiram suas concepções de construção do modo de produção capitalista.

notas

1 É bem verdade que, como lembra Iring Fetscher, Cambridge fora responsável pela

preservação, durante várias décadas, de um pensamento crítico sobre a economia política em bases marxistas, partindo de um referencial neo-ricardiano, que, no caso específico de nossa discussão, interessa apontar para o pensamento de Mau-rice Dobb. Portanto, a interpretação da transição do feudalismo para o capitalismo trazida por este economista inglês não inovava no sentido de reinaugurar o debate marxista em termos não-ortodoxos, mas sim, na discussão acerca dos fenômenos incorporados à idéia de transição entre modos de produção, sublimada pelo mar-xismo soviético sob influência do stalinismo (FETSCHER, 1988, p. 243-254).

2 Trata-se da publicação de uma série de palestras proferidas a convite da

Universida-de da Califórnia, publicadas originalmente em 1983 sob o título In the Tracks of the Historical Materialism. Nelas, Perry Anderson faz um balanço do desenvolvimento do Materialismo Histórico do pós-Segunda Grande Guerra, reavaliando prognósticos realizados em outra obra, Considerações sobre o Marxismo Ocidental.

3 A opinião de Anderson no que diz respeito à relação entre a prática revolucionária

e o pensamento acadêmico me parece totalmente descabida. Delegar ao partido e ao sindicato a capacidade, por excelência, de produção de um pensamento e prática de transformação social pode vir a sublimar uma tradição acadêmica de formulação de estratégias e interpretações sobre as sociedades. Soa-me impossí-vel uma ação revolucionária que não tenha como ponto de partida a compreensão científica daquilo que se pretenda transformar. Aliás, Anderson é um dos que também enfatiza a necessidade da estratégia, fundamentada em dados substan-tivos, para a ação transformadora. Estando de acordo com o autor nesse ponto, não me parece, entretanto, que no caso brasileiro os partidos tenham sido mais eficazes na compreensão do funcionamento da sociedade que a universidade. Ainda que teses demiúrgicas tenham surgido de membros do Partido Comu-nista Brasileiro, como é o caso de Caio Prado Jr., entre outros, a parte mais substancial do conhecimento sobre a sociedade brasileira que acumulamos até este início de século XXI foi produzida em bancos universitários. Mesmo que parte também significativa deste saber tenha advindo de quadros comuns ao partido e à academia, ainda assim o papel da universidade ganha relevo. No caso inglês, Hobsbawm e Thompson estiveram ligados ao Partido e à Universida-de. Se é possível hoje traçar-se um quadro estrutural estratégico do capitalismo no Brasil, com suas peculiaridades, isto se deve ao esforço de gerações de acadêmicos nas últimas décadas. Não pretendo com isso reavivar concepções babovistas de transformação social; não se espera que uma casta “ilustrada” tente, por si,

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ão formar toda uma sociedade. Entretanto, não se pode esquecer a função histórica da

universidade pública como abrigo dos intelectuais orgânicos da classe trabalhadora; mesmo que nos dias de hoje uma parte significativa desses intelectuais (e das ge-rações que a eles sucedem) tenha renunciado ao seu papel político-estratégico, no caso dos historiadores, plantando-se nas terras salgadas da História Cultural e de suas derivadas, o ofício acadêmico do cientista social, do historiador e do econo-mista (esse, o mais problemático) ainda desempenha peça-chave neste processo. Uma prova disso está na bibliografia do presente estudo. É louvável a sinceridade de Ellen Meiksins Wood, militante e acadêmica, ao afirmar, acerca de A Origem do Capitalismo: “O objetivo deste exercício é acadêmico e político [...] Pensar em alternativas futuras ao capitalismo exige que exploremos concepções alternativas de seu passado”. As palavras são encorajadoras, principalmente nestes tempos em que muitos intelectuais escondem-se atrás de seus micro temas, acovardados diante da possibilidade da polêmica (WOOD, 2001, p. 17).

4 Ainda assim, segundo V.G. Kiernan, na década de 1960, Glezermann, teórico

sovié-tico, defendia a possibilidade de um estágio de desenvolvimento ser saltado em direção a um de maior evolução. Mesmo admitindo tal fato, nega a possibilidade da violação das leis da história, afirmando que a ordem dos estágios é universal e inalterável. Isso demonstra como o determinismo e o mecanicismo persistiram no pensamento marxista soviético mesmo com as denúncias ligadas ao XX Congresso do PCUS (KIERNAN, 1988, p. 137-138).

5 Mais uma vez lembramos a opinião de Perry Anderson no que diz respeito à

inte-gração entre a realidade político-econômica e o desenvolvimento do pensamento marxista, já explicitado em outra ocasião neste capítulo.

6 Mesmo afirmando a fertilidade da renovação dos estudos marxistas empreendida

pelos pensadores anglo-saxônicos na década de 1970, ainda assim Anderson ressalta que uma limitação do momento anterior não fora superada, que era a ausência de formulações estratégicas para uma transição da democracia burguesa para uma democracia socialista; ou seja, a renovação teórica não foi seguida de uma igual renovação no tocante às alternativas concretas para a revolução, o que o leva a falar de uma “miséria da estratégia”. Ao meu ver, a discussão da transição do feudalismo para o capitalismo, que se aprumava em decorrência do impacto do “terceiro mun-do” sobre o marxismo, tinha um caráter profundamente estratégico, tendo em vista que buscava compreender justamente os mecanismos que levaram à formação da sociedade capitalista no ocidente europeu (em especial na Inglaterra) e que a dife-renciava do restante do mundo. É nesta direção que Hobsbawm parece apontar. De qualquer maneira, esta é uma questão que extrapola os limites do presente estudo, e seus resultados não influenciam no tratamento que buscamos para as discussões sobre a transição (ANDERSON, 1987, p. 32; HOBSBAWM, 1989, p. 24-31).

7 Trata-se de uma famosa coletânea de artigos, publicada também pela editora Martins

Fontes, contendo a crítica de Paul Sweezy ao já citado trabalho de Dobb, bem como as opiniões de vários autores acerca das posições de um e de outro economista.

8 Dentre os principais participantes das discussões, temos os ingleses Maurice Dobb,

Rodney Hilton, Eric Hobsbawm, o norte-americano Paul Sweezy, o japonês Kohachiro Takahashi, os franceses Pierre Vilar e Charles Parain e o italiano Giuliano Procacci, entre outros não menos importantes. Paul Sweezy realmente não tentou inserir o capitalismo norte-americano nas discussões sobre a transição, tendo em vista que permanecera estritamente preocupado em contra-argumentar Dobb tendo como base sua proposta explicativa para o ocidente europeu medieval; poderia tê-lo feito, mas para tal ênfase deveria ter caminhado num sentido ainda mais abstrato em busca de discutir não a transição do feudalismo para o capitalismo especificamente, mas o fenômeno da transição de sociedades pré-capitalistas para hegemonicamente capitalistas. Já Takahashi, por exemplo, buscou contextualizar o fenômeno trazendo as modificações decorrentes da reforma Meiji para seu país.

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aPitalismo eservidão no Pensamento marxista contemPorâneo

O ponto de partida de Dobb no esforço de situar seu pensamento é definir justamente o que concebe como o termo “capitalismo”, e que implicação sua escolha teórica terá no desenrolar de sua argumenta-ção. Não tenta abordar o capitalismo como expressão de um espírito empresarial nem tampouco como manifestação da disseminação das trocas monetárias cujo objetivo é o lucro; conceitua-o, assim como o fez inicialmente Marx, como um modo de produção específico (DOBB, 1986, p. 7). A multiplicidade de significados para um mesmo conceito confere uma considerável dificuldade para o estabelecimento de um trânsito entre as diversas matrizes teóricas.

As diferenciadas interpretações tiveram de superar em primeiro lugar determinadas vozes que impunham limites ao próprio conceito de capitalismo como uma realidade histórica concreta; da parte dos economistas, vindas daqueles para os quais os fundamentos de seu pen-samento tomam forma num âmbito que desconsidera fatores históricos como definidores de um sistema econômico, e entre os historiadores, daquela vertente que se baseia na idéia de que a História é formada por um conjunto de acontecimentos tão variados, complexos e singulares que não reconhece “quaisquer dessas categorias gerais formadoras da tessitura da maioria das teorias de interpretação histórica e nega qual-quer validade de linhas fronteiriças entre épocas históricas” (DOBB, 1986, p. 3). Em suma, da parte de teóricos que renunciam à História e de historiadores que negam a Teoria, o capitalismo, quando muito, nada mais seria do que um aspecto da vida humana que caracterizaria inúme-ros períodos, sendo impossível a partir dele circunscrever um tipo de organização social específica. Quando Santiago se referiu, no que tange ao ambiente que circundava os debates sobre a transição, a estudos empiricistas que viam a História como um “todo” sem descontinuidades e Hilton a uma tradição historiográfica inglesa com ares objetivistas, despreocupada com a análise das “forças motoras”, e dedicada ao estu-do de períoestu-dos de curta duração, deparamo-nos com concepções que o próprio Dobb afirmaria estarem vencidas pelo desenvolvimento da historiografia econômica: “Hoje, após meio século de pesquisa intensa na história econômica, tal atitude raras vezes é considerada sustentável pelos historiadores econômicos, ainda que estes apresentem descon-fianças quanto à origem do termo” (DOBB, 1986, p. 4).1

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Segundo Dobb, assumindo a existência histórica do capita-lismo, ainda assim, tal condição não nos livraria de interpretações, por exemplo, que o equiparam ao uso da técnica de modo a encurtar tempos de produção. Da mesma forma, uma associação do fenômeno do capitalismo ao sistema de empresa individual, regido por relações contratuais, com liberdade dos agentes econômicos perante determi-nadas restrições legais, seria diminuir a importância explicativa do conceito, equiparando-o ao próprio laissez-faire. Outras experiências de maior representatividade, como aquela empreendida, grosso modo, por Werner Sombart e Max Weber, buscaram identificar o surgimento do capitalismo a partir da formação de um “espírito” empreendedor associado ao de racionalidade; este último autor em especial consta-tava capitalismo em qualquer empreendimento que se voltasse para prover as necessidades de um grupo e que fosse baseado num método empresarial, sendo o espírito do capitalismo a atitude de busca pelo lucro de um modo sistemático. Ou seja, o capitalismo em sua dimensão econômica é a criação de um geist específico, um estado de espírito que conduz os homens; o idealismo impregnado nesta concepção é incapaz, entretanto, de explicar satisfatoriamente a partir de que bases ocorreu o surgimento da própria ética capitalista anterior ao sistema econômico (DOBB, 1986, p. 8-9).

Em afinidade com esta noção, algumas interpretações relaciona-das ao legado deixado pela Escola Histórica Alemã acrescentariam ao capitalismo a noção de uma economia monetária (em contraposição a uma economia natural, típica do mundo medieval europeu) e da presença de trocas de longa distância.

A tendência dos que assim concebem o termo é buscar as origens do capitalismo nas primeiras invasões de transações especificamente comerciais sobre os estreitos horizontes econômicos e a suposta “economia natural” do mundo me-dieval, e assinalar os principais estágios no crescimento do capitalismo de acordo com estágios na ampliação do merca-do ou com as formas variáveis de investimento e empresa comercial às quais tal ampliação se ligava. (DOBB, 1986, p. 7)

Tais categorias, grosso modo, apresentariam pouco valor para a formulação de uma singularização histórica de uma sociedade e de

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determinado fenômeno, tendo em vista que toda produção ao longo da trajetória humana sobre o planeta, com exceção dos patamares mais primitivos de progresso técnico, teria, nesses termos, uma dimensão “capitalista” (DOBB, 1986, p. 5-7). Portanto, já nas primeiras páginas de sua obra Dobb desfere um ataque às interpretações circulacionis-tas, justamente estas que seriam a base para, posteriormente, Sweezy realizar sua crítica.2

Tanto a concepção de Sombart do espírito capitalista quanto uma concepção de capitalismo como sendo primariamente um sistema comercial compartilham o defeito, em comum com as concepções que focalizam a atenção no fato de uma inversão lucrativa de dinheiro, de serem insuficientemente restritivas para confinar o termo a qualquer época da História, e de pare-cerem levar inexoravelmente à conclusão de que quase todos os períodos da História foram capitalistas, pelo menos em certo grau (DOBB, 1986, p.8).

Dessa forma, negando a validade integral de tais interpreta-ções a respeito do capitalismo, Dobb retoma Marx para afirmar que o modo de produção capitalista não se refere exclusivamente ao de-senvolvimento técnico (no caso, das forças produtivas) mas também – e principalmente – à maneira pela qual as relações de propriedade sobre os meios de produção e de trabalho estão fundadas. Não seria simplesmente um sistema de produção de mercadorias, muito embora não pudesse deixar de sê-lo: nele, a própria força de trabalho torna-se mercadoria, sendo comprada e vendida em um mercado na mesma medida que qualquer outro bem. Sua pré-condição seria a concen-tração da propriedade dos meios de produção sob uma determinada classe minoritária que compraria a força de trabalho vendida por uma parcela majoritária da sociedade, composta de indivíduos privados de qualquer propriedade, exclusivamente dependentes da venda desta força (trocada por salários) para realizar sua subsistência.

Dessa forma, a coerção extra-econômica, oriunda de fatores superestruturais, seria desnecessária, sob o modo de produção ca-pitalista, para manter as massas expropriadas inseridas na atividade produtiva; enquanto o produtor direto consiste majoritariamente no camponês e artesão, tendo posse (ou propriedade) dos seus meios de produção, o sobretrabalho só poderia ser extraído por uma classe

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proprietária por intermédio de coerção direta, sendo esta uma marca que conferiria unidade aos modos de produção pré-capitalistas. Ex-propriados dessa base econômica urbana ou rural e transformados em proletários, as chibatas tornar-se-iam desnecessárias: a fome advém como um feitor etéreo mas sagaz, invisível como a “mão” do mercado smithiana.

O que diferencia o uso dessa definição em relação às demais é que a existência do comércio e do empréstimo de dinheiro, bem como a presença de uma classe especializada de comerciantes ou financistas, ainda que fossem homens de posses, não basta para constituir uma sociedade capitalista. Os homens de ca-pital, por mais ambiciosos, não bastam – seu capital tem de ser usado na sujeição do trabalho à criação da mais-valia no processo de produção. (DOBB, 1986, p. 8)

Portanto, economia monetária, trocas comerciais, extração de excedente e atividade empresarial, mentalidade de lucro e raciona-lidade econômica, nenhum desses elementos seria suficiente para configurar a existência histórica de um modo de produção capitalista: este dependeria fundamentalmente da concentração de capital nas mãos de uma classe empregadora de mão-de-obra assalariada e a existência de uma oferta de força de trabalho a partir de uma classe expropriada formando, assim, a extração de excedente por meio da mais-valia. Mercado, empresários e mentalidade de lucro não foram necessariamente incompatíveis com modos de produção pré-capita-listas, e mesmo que o tenham sido em determinadas situações, sua presença não nos autoriza a falar em capitalismo.

Dobb parte do pressuposto de que os modos de produção nunca se manifestam na realidade concreta de um modo absoluto e exclu-dente em relação a outros modos de organização socioeconômica. Os sistemas econômicos jamais podem ser encontrados, na visão desse autor, em uma modalidade pura, havendo sempre a interpenetração entre modos de produção diferenciados, representando uma perma-nência ou um pioneirismo em relação àquele determinado contexto social. Exceto pelos breves momentos de transição, cada período histórico seria marcado pela predominância de uma determinada forma econômica relativamente homogênea, e deve ser classificado a partir dela.

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Dessa forma, Dobb afirma que seu interesse com o estudo da transição não está na análise do surgimento de uma forma econô-mica específica, tendo em vista que o mero aparecimento de novas relações de trabalho e propriedade no seio de um determinado modo de produção não implica na sua transformação; seu interesse reside, na verdade, em identificar o momento em que essas novas relações atingem uma preponderância de tal monta que passam a imprimir a uma determinada sociedade suas características e que, portanto, sejam capazes de conduzir o desenvolvimento econômico segundo seus fundamentos. A implementação da hegemonia de um determi-nado modo de produção sobre outros tem como pontos cruciais os momentos de uma mudança brusca na direção da sociedade, por meio de uma revolução social; apesar de reconhecer que todo pro-cesso de mudança histórica acontece gradualmente, Dobb não abre mão de verificar nos processos revolucionários os catalisadores das transformações e das reais mudanças qualitativas, rejeitando uma perspectiva de desenvolvimento econômico baseada em variações quantitativas de determinados índices crescentes (DOBB, 1986, p. 10-11).

Um dos principais defeitos destas últimas [análise do de-senvolvimento restrita a uma abordagem quantitativista] é sua tendência a ignorar, ou pelo menos a minimizar, aque-las cruciais novas propriedades que, em certos estágios, podem surgir e transformar radicalmente o resultado [...] e o caráter tendencioso que há em sua vocação para inter-pretar situações passadas e para estabelecer “verdades universais” super-históricas, modeladas no que dizem ser traços imutáveis da natureza humana ou certos tipos inva-riáveis de “necessidade” econômica ou social. (DOBB, 1986, p. 11)

Buscando superar as análises sobre a história econômica e so-bre a própria economia que visam observar mais pontos em comum entre as sociedades do que buscar seu caráter plural, Dobb afirma:

A teoria econômica, pelo menos desde Jevons e os austríacos, tem sido modelada cada vez mais em termos de propriedades comuns a qualquer tipo de sociedade de trocas; e as leis

Referências

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