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(1)Capítulo 1 A pesquisa sobre Moab e sobre a Inscrição de Mesa. Eu não posso imaginar maior excitação do que trabalhar com a Bíblia em uma mão, e com uma pá em outra. Yigael Yadin. A páginas que seguem têm como objetivo apresentar o contexto histórico no qual a inscrição do rei Mesa foi descoberta, na segunda metade do século 19, bem como as disputas diplomáticas em torno do achado, ocorridas durante o desenvolvimento da política imperialista européia daquele século. Para tanto, optou-se não só pela narração dos fatos concernentes à descoberta, mas também pela rápida análise do surgimento da “arqueologia bíblica” e da situação político-administrativa da Palestina e da Transjordânia, durante a dominação otomana, na segunda metade do século 19. Na segunda parte desse capítulo, será apresentado o estado geral da pesquisa científica sobre Moab e sobre a inscrição de Mesa, através de rápidos comentários sobre as obras consultadas, todas elas publicadas na segunda metade do século 20 e início do século 21. Infelizmente foi impossível consultar obras mais antigas, seja por estarem fora de catálogo, seja por não constarem nos acervos das bibliotecas nacionais.. 1.1 Arqueologia e imperialismo: a descoberta e as disputas pela estela. O estudo do texto deixado pelo rei Mesa, que viveu no século 9 A.E.C., bem como a sociedade na qual viveu, independe dos eventos que trouxeram a estela aos pesquisadores europeus, ocorridos no terceiro quartel do século 19 E.C. Apesar disso, a primeira parte desse capítulo aborda exatamente a descoberta da estela e as disputas. 21.

(2) diplomáticas pela sua posse, que levaram à destruição e à posterior reconstrução do precioso artefato. Essa opção é duplamente justificada: além da ausência de bibliografia em português que trate do assunto, é preciso refletir também sobre o surgimento das pesquisas arqueológicas no Oriente Próximo, os procedimentos e os interesses, nem sempre piedosos, dos estudiosos daquele período. Se qualquer ramo da ciência precisa conhecer o seu próprio desenvolvimento histórico, e não somente o seu objeto de estudo, as ciências que abordam objetos relacionados às Escrituras, como a arqueologia, precisam conhecer também o seu passado. É nessa direção que as subdivisões a seguir abordam o surgimento da “arqueologia bíblica” e a situação política da Palestina e da Transjordânia, na segunda metade do século 19, a descoberta e as disputas diplomáticas pela inscrição de Mesa, bem como a sua reconstrução.. 1.1.1 O surgimento da arqueologia bíblica. Desde da década de 1980, o imaginário popular sobre o trabalho arqueológico está fortemente ligado à imagem do personagem cinematográfico “Indiana Jones”, protagonizado pelo ator americano Harrison Ford, trilogia dirigida pelo renomado Steven Spielberg; em geral, as pessoas imaginam um arqueólogo vivendo rodeado de aventura e romance, em busca de tesouros antigos e bastante valiosos.1 Esse “imaginário cinematográfico”, além de distorcido, desconsidera o próprio desenvolvimento histórico da disciplina. Foi o século 19 que viu surgir, sobretudo em algumas nações européias, um enorme interesse pela pesquisa arqueológica. Dois fatores explicam, em grande medida, não somente esse interesse, mas também o aparecimento de uma ciência autônoma e especializada: (i) a utilização de novas técnicas de datação de artefatos. 1. FUNARI, Pedro Paulo, Arqueologia, São Paulo, Contexto, 2003, p.9. 22.

(3) arqueológicos, a partir de pesquisas escandinavas, em princípios desse século, e (ii) os debates entre evolucionistas e criacionistas, a partir da publicação, em 1859, da mais conhecida obra de Charles Darwin,2 nos quais a arqueologia paleolítica teve importante papel. Dessa forma, pouco a pouco, a arqueologia foi adquirindo respeitabilidade científica.3. Por outro lado, não se pode ignorar a influência do imperialismo europeu, entre a segunda metade do século 19 e primeira metade do século 20, sobre a ciência arqueológica. Durante esse período, a arqueologia, baseando-se no darwinismo, teve importante papel na justificação da superioridade européia em relação aos povos dominados, sobretudo africanos, asiáticos e populações da Oceania. John Lubbock, um eminente arqueólogo da pré-história européia, foi um amplo defensor desse “darwinismo arqueológico”: povos que fossem menos avançados tecnologicamente seriam, conseqüentemente, mais inferiores aos “homens civilizados”, do ponto de vista cultural, emocional e intelectual.4 Por si só, os artefatos tecnologicamente “inferiores”, encontrados na África, na Ásia e na Oceania, demonstravam a supremacia da Europa nesse processo de “seleção natural”, bem como sua superioridade racial5 em relação aos demais povos do globo.. Mas a “arqueologia aventureira” praticada por Indiana Jones não é sem fundamento. A imagem do pesquisador que busca fabulosos tesouros foi devidamente reforçada pela atuação de arqueólogos como Heinrich Schliemann, que entrou para a 2. DARWIN, Charles, A origem das espécies, São Paulo, Hemus, 1981, 470 p. TRIGGER, Bruce, História do pensamento arqueológico, trad. Ordep Serra, São Paulo, Odysseus, 2004, p.71. 4 Bruce Trigger, História do..., p.113. 5 Mantém-se aqui a utilização do conceito raça, por se tratar do século 19, período no qual foi elaborado e amplamente utilizado. Para a discussão atual sobre o conceito, APPIAH, Kwame, Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, 302 p., sobretudo o capítulo 2, “Ilusões de raça”. 3. 23.

(4) posteridade como “descobridor dos tesouros” da lendária cidade de Tróia, em 1872, e Howard Carter, que encontrou, em 1922, a tumba intacta do faraó Tutancâmon, no Vale dos Reis, ao sul do Egito.6 Essa “caça ao tesouro” influenciará, inclusive, o método de escavação adotado durante quase um século, o desterramento, que consistia em retirar toda a terra que cobria as estruturas antigas de um sítio, descartando o que não fosse considerado interessante, facilitando a recuperação de “objetos preciosos” e satisfazendo, rapidamente, as necessidades econômicas ou ideológicas de algum grupo social. Lamentavelmente, essa prática será bastante usual até a década de 1960, ocorrendo principalmente em regiões com relativa concentração de grandes monumentos, como a região da Palestina.7. Em franca reação à teoria evolucionista, a arqueologia realizada no Oriente Próximo, denominada “arqueologia bíblica”, procurava, por seu turno, comprovar a veracidade do texto bíblico.8 Alguns importantes fatos dessa “aqueologia bíblica” merecem ser destacados: a descoberta de uma narração do dilúvio, contida numa tabuleta encontrada em Nínive, publicada em 1870, por George Smith; a identificação do nome “Israel” na estela de Merneptah, por William Petrie, em 1896; a comprovação da ocorrência de uma grande inundação na Mesopotâmia, a partir do depósito de lodo encontrado nos estratos pré-históricos de Ur, em 1929, por Sir Leonard Wooley.9 Como tais descobertas pareciam cada vez mais referendar as Escrituras, as pesquisas arqueológicas realizadas em regiões como a Mesopotâmia, o Egito e a Palestina de então recebiam forte apoio, inclusive governamental, causando grande interesse no 6. Pedro Paulo Funari, Arqueologia, p.10-11. Pedro Paulo Funari, Arqueologia, p.67. 8 Cf. a discussão de autores, entre eles William Albright, sobre a “arqueologia bíblica” em BROWN, William, “Apêndice: Uma atualização na pesquisa da História de Israel”, em BRIGHT, John, História de Israel, 7ª ed., trad. Luiz Solano Rossi e Eliane Solano Rossi, São Paulo, Paulus, 2003, p.302; MAZAR, Amihai, Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C., trad. Ricardo Gouveia, São Paulo, Edições Paulinas, 2003, p.53. 9 Bruce Trigger, História do..., p.100. 7. 24.

(5) público e contribuindo para a consolidação desse ramo da arqueologia. O propósito primeiro da “arqueologia bíblica” é resumido numa frase de Yigael Yadin, um dos mais renomados arqueólogos israelenses do século 20: “(...) eu não posso imaginar maior excitação do que trabalhar com a Bíblia em uma mão, e com uma pá em outra”.10. Ainda assim, não se pode negar que muitos avanços ocorridos na disciplina originaram-se a partir do trabalho realizado em sítios do Oriente Próximo, sobretudo na Palestina. Amihai Mazar, outro eminente arqueólogo israelense da atualidade, afirma que a grande maioria das tentativas de levantamentos e escavações ocorridos nessa região, no período anterior à Primeira Guerra, tinham como objetivo a identificação de localidades bíblicas com ruínas e sítios locais. Mas do ponto de vista metodológico, um passo importante foi alcançado nesse mesmo período: a compreensão da estrutura dos tulul,11 assim como a utilização dos fragmentos de cerâmica para estabelecer uma cronologia relativa12 Nomes como Edward Robinson, Charles Clermont-Ganneau, além de William Petrie, considerado o fundador da “arqueologia bíblica”,13 destacaram-se nesse início das pesquisas. Da mesma forma que a Palestina, a Transjordânia também foi um importante palco para as atividades de escavação e busca de artefatos e ruínas dos “povos bíblicos”. Foi lá que se deu a descoberta da inscrição de Mesa, ainda que as disputas diplomáticas entre as principais potências européias, pela posse da estela, ocorreram bons quilômetros a leste, na Palestina. Assim sendo, é fundamental traçar um panorama da situação política da região levantina durante esse período. 10. No original: “(...) je ne peux imaginer plus grande excitation que de travailler avec, dans une main, la Bible et, dans l’autre, une pelle”; MONDONT, Jean-François, Une Bible pour deux memoires : archéologues israéliens et palestiniens, Paris, Stock, 2006, p.14. 11 Tulul é o plural da palavra árabe tell; um tell (em hebraico, é grafado como tel) é um cômoro artificial, surgido a partir de sucessivas ocupações humanas em um mesmo local. Os tulul são fundamentais para a compreensão da arqueologia do Oriente Próximo; Amihai Mazar, Arqueologia na..., p.32; GLUECK, Nelson, The Other Side of The Jordan, New Haven, ASOR, 1945, p.18.20. 12 Amihai Mazar, Arqueologia na..., p.33-34. 13 Pedro Paulo Funari, Arqueologia, p.19.. 25.

(6) 1.1.2 A Palestina e a Transjordânia na segunda metade do século 19. O Levante foi, a partir do século 16, dominado pelos turcos otomanos que, partindo da Anatólia, formaram um vasto e poderoso império, cuja capital, Istambul (a bizantina Constantinopla), tornou-se o centro de uma poderosa dinastia. O Império Otomano chegou a dominar a maior parte do Oriente Médio, vastas regiões do norte da África e vários territórios europeus, na região dos Bálcãs; em duas ocasiões (1529 e 1683), os otomanos sitiaram, com grandes chances de vitória, a cidade de Viena, capital do Império Austríaco. No entanto, durante o século 19, o domínio otomano enfraqueciase rapidamente. Por isso, foi um período marcado por grandes reformas políticoadministrativas, como a chamada Tanzimat (ordem, em turco).14 Essas reformas, promulgadas pelo sultão Mahmud II, pretendiam incentivar a igualdade legal entre todos os súditos otomanos, independentemente do credo religioso, bem como a livre iniciativa econômica e a ampliação dos laços comerciais com a Europa. Conscientemente ou não, o continente europeu foi eleito, pelos otomanos, como modelo de civilização.15. A Rússia, a França, a Grã-Bretanha, a Áustria-Hungria e a Prússia, principais potências européias, e beneficiadas pela Tanzimat, tinham fortes interesses na região da Síria e da Palestina, sobretudo porque o mundo otomano tornava-se um lucrativo mercado para os gêneros europeus, produzidos industrialmente, em larga escala; além disso, os otomanos buscavam, cada vez mais, financiamentos em instituições bancárias. 14. GRAHAM, Matt Patrick, “The Discovery and Reconstruction of the Mesha‘ Inscription”, em DEARMAN, John Andrew (ed.), Studies in the Mesha Inscription and Moab, Atlanta, Scholars Press, 1989, p.42. 15 HOURANI, Albert, Uma história dos povos árabes, trad. Marcos Santarrita, São Paulo, Cia. das Letras, 1994, p.278.. 26.

(7) européias.16 Não se pode excluir a existência de interesses religiosos na região: a Rússia, governada por czares com sanção divina, desejava colocar-se como protetora dos patriarcados ortodoxos do Império Otomano, assim como a França almejava tornarse a benemérita protetora dos bispados latinos; e enquanto os prussianos desejavam proteger e promover a expansão do protestantismo na região, os britânicos se colocavam como defensores dos judeus.17 Tais interesses relacionavam-se ao fato de que o Império Otomano reconhecia legalmente a existência de comunidades religiosas nãomuçulmanas, com o objetivo de garantir sua lealdade. Essas comunidades contavam com autonomia administrativa e com sistemas legais próprios, mediante o pagamento de um imposto pessoal, denominado jizya; dessa forma, os não-muçulmanos poderiam participar, ainda que indiretamente, do corpo político otomano.18. Cabe salientar que havia fortes ressentimentos das populações árabes locais, em relação à presença otomana na região. As autoridades turcas eram vistas como exploradoras, unicamente interessadas na cobrança de impostos; por conta disso, em regiões mais inóspitas, como a Transjordânia, o controle administrativo turco era praticamente inexistente. Várias vezes, durante o século 19, a soberania otomana sobre o Oriente Próximo foi questionada. Exemplos são as revoltas de Muhammad ‘Alî Pasha, no Egito, em 1831; aquela ocorrida em Nablus, em 1856; e uma terceira, que se deu em Damasco, em 1860.19 A situação dos europeus na região também não era das mais vantajosas: eram encarados como infiéis pelos muçulmanos, sobretudo por causa da perturbadora presença de missionários cristãos, que trabalhavam ativamente na região.. 16. Albert Hourani, Uma história..., p.281.286; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.43, n.6. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.43. 18 Albert Hourani, Uma história..., p.229. 19 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.42-43. 17. 27.

(8) Não foram poucos os ataques realizados por muçulmanos aos europeus durante aquele século, o que testemunha uma relação tensa entre esses dois povos.20. Do ponto de vista administrativo, a Síria meridional, a Palestina e a Transjordânia eram consideradas um wilayet, governado por um wali, cuja capital encontrava-se em Damasco. Um wilayet era dividido em unidades administrativas menores; cada uma das unidades era denominada sanjak. Eram cinco unidades, que respondiam diretamente ao wali de Damasco, como, por exemplo, a sanjak de Al-Quds (Jerusalém) e a sanjak de Nablus (Siquém). O funcionário responsável pela sanjak recebia o título de mutasarrif, que supervisionava as subdivisões internas da sanjak, cujo nome era qadâ, controlada por um qaimaqam. A subdivisão administrativa de uma região montanhosa, por sua vez, tinha o nome de nahiya, e era dirigida por um mudir.21 No caso da Transjordânia, porém, é impossível afirmar que o controle otomano fosse realmente efetivo: muitas famílias árabes, como os Majâlli, de el-Kerak, por exemplo, só aceitaram a soberania otomana a partir de 1893.22. Várias tribos árabes exerciam alguma forma de controle sobre o território tranjordaniano, durante a segunda metade do século 19: os ‘Adwân, que viviam ao norte do Wadi Zarqa Ma‘in; os Bani Sahr, que estavam acampados a leste dos ‘Adwân, e ao sul do Wadi al-Mujib; os Majâlli, que dominavam a região no entorno de el-Kerak; os Bani Hamidi, que controlavam a área ao sul do Wadi Zarqa Ma‘in, incluindo a vila de Dhiban, conhecidos por suas atitudes violentas em relação aos europeus. Portanto, para qualquer viajante estrangeiro, era muito importante conseguir a proteção dessas tribos, mediante acordos com os xeques do grupo; tais acordos eram mais difíceis de serem 20. Albert Hourani, Uma história..., p.282; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.44. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.44. 22 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.45. 21. 28.

(9) realizados com os ‘Adwân ou com os Bani Hamidi, que não possuíam uma autoridade central forte e reconhecida por todos os membros da tribo.23 Além do mais, o viajante deveria pagar uma espécie de pedágio à tribo, denominado bakshish; tratava-se do reconhecimento da soberania da tribo sobre determinado território. Por conta disso, esses árabes eram vistos como meros ladrões incivilizados.24. 1.1.3 A descoberta e as disputas em torno da estela de Mesa. Nesse contexto, marcado pelo imperialismo e pelo racismo, no qual a arqueologia desenvolvia-se enquanto ciência, e através da qual “provas” bíblicas pareciam chegar à superfície, através das mãos de arqueólogos que seguiam metodologias de escavação bastante precárias e destrutivas, deu-se a descoberta de um importante objeto, que lançaria muitas luzes, bem como inúmeras questões, sobre a história do povo israelita em particular, e sobre vários aspectos da literatura do Antigo Testamento em geral: a Inscrição de Mesa (ou Pedra de Mesa), soberano do antigo reino transjordaniano de Moab. As circunstâncias nas quais essa inscrição passou às mãos européias sempre foram objetos de debate. De toda forma, o arqueólogo Bruce Routledge afirma que inscrições como essa se tornavam espécie de “troféus” para as ambições coloniais européias, e para o que chama de “mania” por relíquias “bíblicas”.25 Equivocadamente, durante muito tempo, defendeu-se que Charles Clermont-Ganneau, membro da diplomacia francesa em Jerusalém, foi seu “descobridor”. De fato, o primeiro ocidental a relatar a existência da inscrição não foi um arqueólogo aventureiro,. 23. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.45. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.46. 25 ROUTLEDGE, Bruce, Moab in the Iron Age: Hegemony, Polity, Archaeology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2004, p.133. 24. 29.

(10) mas um pastor protestante a serviço de uma sociedade missionária britânica, Friedrich Klein.26. Klein era natural da cidade de Estrasburgo, na província francesa da Alsácia, região de fronteira, fortemente influenciada pela língua e pela cultura alemã. A Alsácia pertenceu à França até a Guerra Franco-Prussiana (1870-71), quando passou ao governo do recém-criado Império Alemão.27 A formação de Klein ocorreu no Seminário de Basiléia, na Suíça, onde o jovem teólogo foi convidado a trabalhar como missionário na organização britânica Church Missionary Society. Em 1851, Klein recebeu a ordenação anglicana em Islington, e foi enviado à Palestina, onde deveria trabalhar na evangelização de muçulmanos, mas também na assistência religiosa aos cristãos que habitavam a região. O jovem Klein obteve algumas conversões com a sua obra missionária; em sua grande maioria, eram cristãos que, anteriormente, pertenciam a outros credos orientais, como gregos e armênios. 28. No segundo semestre de 1868, o pastor Klein iniciou uma viagem à Transjordânia, em direção à el-Kerak. Klein contava com um guia beduíno, de nome Zattam, filho de Findi al-Fâyiz, xeque da tribo Bani Sahr. Em 19 de agosto daquele ano, os dois viajantes foram hospitaleiramente recebidos pelos Bani Hamidi, acampando próximos à vila de Dhiban, a bíblica Dibon; foram convidados, inclusive, para tomar café com as autoridades tribais locais. Durante esse encontro, seu companheiro de viagem comentou sobre a existência de uma antiga inscrição, nas proximidades da vila;. 26. Ainda que não tenha sido o “descobridor”, Clermont-Ganneau foi o principal responsável pela recuperação e reconstituição da inscrição, bem como seu primeiro tradutor. Cf. abaixo, p.38-40. 27 Após a Primeira Guerra Mundial (1914-18) a região voltaria ao controle francês, sendo conquistada novamente pelos alemães, em 1940, sob o comando de Adolf Hitler. Ao fim da Segunda Guerra (1945), a Alsácia passou definitivamente à França. 28 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.48.. 30.

(11) um dos xeques dos Bani Hamidi confirmou o fato, acrescentando que ela encontrava-se a apenas dez minutos de caminhada. Klein foi levado ao local, onde examinou a estela, mediu-a e fez um esboço da inscrição. Porém, como não era exímio conhecedor de línguas antigas, não percebeu de imediato o valor da estela.29. Segundo a primeira descrição feita por Klein, a inscrição encontrava-se em bom estado, apresentando apenas sinais de desgaste ocasionados pelos elementos da natureza.30 O missionário teve pouco tempo para examinar as linhas da inscrição, pois já era tarde quando foi levado ao local. No entanto, conseguiu copiar algumas palavras ao acaso, para que, quando retornasse a Jerusalém, pudesse consultar algum estudioso e descobrir qual era o idioma e, quem sabe, organizar uma expedição para obter uma cópia do texto, ou mesmo a própria estela; porém, muitas dessas letras não foram encontradas, quando a inscrição foi reconstruída, alguns anos depois.31 Klein foi muito criticado pelo fato de não ter trazido a estela, ou ao menos uma cópia completa da inscrição; ele chegou a defender-se, afirmando que sua viagem à Transjordânia não tinha objetivos arqueológicos, e sim missionários; além disso, não possuía consigo papel fino, que pudesse ser utilizado para um decalque. Klein também teve receio de estabelecer negociações com os Bani Hamidi; e ainda que o tivesse feito, não possuía dois animais de carga que seriam necessários para o transporte da estela.32. Quando retornou à Jerusalém, no fim do mês de agosto de 1868, Klein reportou seu achado ao cônsul prussiano em Jerusalém, Heinrich Petermann, que também era estudioso de línguas semíticas antigas. Por conta do seu cargo, o cônsul também possuía. 29. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.49-50. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.51, n.29. 31 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.51, n.31. 32 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.52. 30. 31.

(12) os meios necessários para pleitear, junto ao governo otomano, a remoção da inscrição da localidade onde se encontrava. Petermann rapidamente concluiu que os caracteres copiados por Klein eram “fenícios”, e por isso, em 29 de agosto, enviou mensagem ao Museu Real de Berlim, solicitando uma grande quantia em dinheiro, com o objetivo de adquirir a estela aos Bani Hamidi.33 Mas, ainda que Petermann tenha solicitado segredo de Klein, bem como de outras pessoas que estavam presentes a essa audiência, até que a inscrição fosse adquirida para o museu berlinense, as notícias da descoberta começaram a circular pela Cidade Santa, provavelmente por iniciativa do próprio cônsul prussiano, que havia informado o ocorrido a um conhecido seu, Joseph Barclay, da London Jews’ Society, a quem pediu bastante discrição. Por iniciativa de Barclay, o fato foi comunicado ao oficial dos Royal Engineers, capitão Charles Warren que, desde 1867, estava a serviço da Palestine Exploration Fund, organização britânica que financiava várias pesquisas arqueológicas na região.34. Os franceses também tiveram acesso às informações sobre a existência da inscrição, a partir do tradutor do cônsul francês em Jerusalém, Charles ClermontGanneau, estudioso de línguas orientais, que chegou a Palestina em 1867.35 O tradutor afirmou, repetidas vezes que já sabia da existência da inscrição, muito tempo antes da viagem de Klein à região; sua viagem a Dhiban só não teria ocorrido por causa dos altos. 33. A quantia era de 100 napoleons. O napoleon era o nome dado à moeda de 20 francos, cunhada na França entre 1803 e 1914; seu peso era, aproximadamente, de 6,45 gramas de ouro; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.53. 34 Warren afirmou, que soube da existência da inscrição seis semanas após o retorno de Klein a Jerusalém, através de um “homem de el-Kerak”; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.53.56. Os Royal Engineers era a unidade de engenharia das forças armadas britânicas. Já a London Jews’ Society era uma sociedade missionária fundada em 1809, por um judeu alemão convertido ao cristianismo, Christian Friedrich Frey, com o objetivo de levar o Evangelho aos judeus; a partir de 1820, começou a enviar missionários para a Palestina, onde também teve importante participação no serviço médico local; PERRY, Yaron; LEV, Efraim, “The medical activities of the London Jews'Society in nineteenth-century Palestine”, em Medical History, 47(1), janeiro/2003, p.71 35 Segundo Petermann, foi um de seus mensageiros aos beduínos da Transjordânia, Sâbâ Qa‘wâr, quem levou as informações sobre a existência da inscrição a Clermont-Ganneau.. 32.

(13) custos e dos perigos que envolviam tal empreitada. Ainda que essas afirmações sejam obscuras, é certo que foi ele o primeiro a anunciar a existência da estela, numa carta datada de 20 de outubro de 1868, à Revue de l’Instruction Publique, cuja publicação deu-se apenas em fevereiro de 1870; foi também em janeiro de 1870 que ClermontGanneau escreveu uma carta ao conde de Vogüé, descrevendo a inscrição e os esforços feitos pela diplomacia francesa para conseguir adquirir a estela.36 Pouco tempo após o retorno do missionário Klein, estabeleceu-se uma disputa latente, entre as principais potências européias, pela posse da inscrição recém-descoberta. Portanto, ainda que os arqueólogos insistam que sua disciplina não deve misturar-se com assuntos políticos,37 a descoberta do texto de Mesa indica exatamente o contrário.. Petermann, durante esse período, manteve constantes conversas com o pastor Klein; grande conhecedor da língua e da cultura árabe, Klein aconselhou-o a entrar em contato, através de carta, com Findi al-Fâyiz, pai do seu companheiro de viagem e xeque dos Bani Sahr, solicitando auxílio para conseguir trazer a estela até Jerusalém. Os Bani Sahr tinham um bom relacionamento com os Bani Hamidi e poderiam servir de intermediários na negociação pela peça arqueológica. A resposta do xeque, que chegou no fim de setembro de 1868, dizia apenas que ele consultaria os outros xeques da região sobre o assunto; numa segunda carta, após uma viagem a Damasco, Findi al-Fâyiz afirmou que não poderia ajudar os prussianos a conseguir a inscrição.38 Em março de 1869, Petermann fez uma nova tentativa de adquirir a inscrição, enviando um emissário árabe, Sâbâ Qa‘wâr, com uma quantia de 53 napoleons, para realizar a negociação; caso o mensageiro fosse bem sucedido, receberia mais 50 napoleons, quando retornasse a. 36. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.54. BLENKINSOPP, Joseph, “The Bible, Archaeology and Politics or The Empty Land Revisited”, em Journal for the Study of the Old Testament, 27.2, 2002, p.169-170. 38 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.56. 37. 33.

(14) Jerusalém. Ao retornar, Sâbâ Qa‘wâr afirmou que os beduínos solicitaram a quantia de mil napoleons pela estela. Esse novo revés fez com que Petermann solicitasse, através de carta enviada a Berlim, que a Prússia pedisse a interferência do governo otomano no assunto.39. Enquanto isso, Clermont-Ganneau tentou obter, por duas vezes, maiores informações sobre a inscrição com o cônsul Petermann. Obviamente, não havia qualquer interesse do diplomata prussiano em compartilhar informações com o estudioso francês. Clermont-Ganneau não se deu por satisfeito e tentou, por outras vias, conseguir informações adicionais sobre a inscrição. Para tanto, contou com o auxílio de vários árabes: Dhif Allah ibn Sakran el-Mor, uma das lideranças dos Bani Sahr, que o visitou em Jerusalém, em meados de 1869, levando um esboço da inscrição, bem como a cópia de alguns dos caracteres; Salim al-Qâri, trouxe, em outubro desse mesmo ano, a cópia de algumas linhas da inscrição, contendo 89 caracteres, um desenho da estela e alguns comentários feitos em árabe, sobre as medidas de estela e o local onde se encontrava.40. Não satisfeito com esses papéis, Clermont-Ganneau enviou uma expedição, composta por três árabes, com o objetivo de conseguir um decalque completo da inscrição. Era Ya‘qûb Karavaca, acompanhado de dois cavaleiros da tribo do xeque Zablan. Os Bani Hamidi, a princípio, deram permissão para que os homens fizessem um decalque da estela. O decalque era feito pressionando-se uma folha papel molhado, geralmente feito de fibras de linho ou cânhamo, sobre a inscrição, de forma que, após a. 39. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.57. O trecho, copiado aleatoriamente pelo árabe, está entre as linhas 13-20 da inscrição; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.59.. 40. 34.

(15) secagem completa do papel, as letras ficavam marcadas em reverso, em alto relevo.41 Quando estavam na metade do trabalho, ocorreu um foco de incêndio nas tendas dos beduínos, e os enviados de Clermont-Ganneau, temendo por suas vidas, fugiram em disparada, levando partes do papel, que se rasgou durante o incidente, com um decalque incompleto, o que dificultou o trabalho de leitura do estudioso francês, que necessitava colocá-lo contra uma vela, ou contra a luz do sol. Ao mesmo tempo, Clermont-Ganneau iniciou conversações para comprar a estela, através de outra liderança dos Bani Sahr, ‘Id al-Fâyiz, a quem autorizou pagar quatro mil mejidiyes pela estela. Descontente com o resultado do primeiro trabalho, ele instruiu pessoalmente um outro árabe, de nome Jamil, para trazer um novo decalque, caso não fosse possível adquiri-la.42. Diferentemente de franceses e prussianos, que lançaram mão de todos os esforços para conseguir a estela para suas respectivas nações, a diplomacia britânica não demonstrou um interesse maior, seja pela inscrição, seja pelo desenrolar das negociações que estavam sendo realizadas pelos primeiros. A única exceção foi a tentativa do capitão Charles Warren, que escreveu carta ao Palestine Exploration Fund, em julho de 1869, colocando a organização britânica a par da atuação de prussianos e franceses, com o objetivo de conseguir a estela. O cônsul britânico na Cidade Santa, Noel Temple Moore não fez qualquer esforço para auxiliar Warren a conseguir a inscrição para a Grã-Bretanha; esse cônsul, aliás, nunca demonstrou qualquer interesse na pesquisa arqueológica. Não é possível dizer se uma atuação diferente de Moore poderia ter dado outro rumo ao fracasso que foi a negociação prussiana.43. 41. LEMAIRE, André, “‘House of David’ Restored in Moabite Stone”, em Biblical Archaeology Review, v.20, n.3, maio/junho 1994, p.33. 42 O mejidiye era uma moeda com baixa proporção de prata, que circulava no Império Turco; o valor era dado pelo peso; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.60. 43 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.62.. 35.

(16) Em junho de 1869, Petermann recebeu uma carta de Istambul, na qual o grãovizir do sultão otomano afirmava que Kâmil Pasha, mutasarrif de Jerusalém, estava orientado a não colocar qualquer obstáculo aos prussianos, em relação ao seu desejo de adquirir a estela; no entanto, Dhiban estava sob a autoridade de Sa‘id Pasha, de Nablus. Kâmil Pasha de Jerusalém, rapidamente, comunicou-se com Damasco, solicitando ao wali que auxiliasse o cônsul prussiano. Não foi por mera deferência diplomática que tais medidas das autoridades otomanas ocorreram dessa forma: no segundo semestre daquele ano, o príncipe herdeiro da Prússia, Frederico III, visitou o sultão otomano em Istambul e participou da cerimônia de abertura do canal de Suez, no Egito. Em novembro, Frederico fez uma visita à Jerusalém, onde foi recebido pelo novo cônsul prussiano, Von Alten, pelo patriarca da cidade e pelo mutasarrif de Jerusalém.44 Prestigiados pelas autoridades do Império Otomano, os prussianos aproveitaram-se para tentar conseguir apoio na negociação da estela.. O líder dos Bani Hamidi concordou em vender a estela aos prussianos, no início do mês de outubro de 1869, pelo valor de mil e duzentos napoleons; metade dessa soma foi entregue ao mensageiro Sâbâ Qa‘wâr que, ao retornar com a inscrição, receberia a outra parte do pagamento. A transação havia sido realizada entre o mensageiro do cônsul Von Alten (que havia assumido o posto diplomático naquele mês) e os xeques dos Bani Hamidi, que concordaram com a retirada da estela, mediante pagamento.45 No entanto, um outro xeque, Qablân, pertencente à tribo ‘Adwân, que dominava uma parte do território pelo qual a inscrição deveria passar durante o transporte, colocou impedimentos ao trânsito de Sâbâ Qa‘wâr, seja porque esse se recusou a pagar uma taxa de pedágio considerada adequada, seja por conta de intrigas realizadas pelos franceses. 44 45. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.64-65. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.62.. 36.

(17) Diante desse impasse, Von Alten solicitou o auxílio do wali de Damasco, Rashid Pasha, que esteve em Jerusalém no início do mês de novembro de 1869. Porém, não havia interesse político das autoridades otomanas em realizar uma intervenção direta na Transjordânia, evitando uma possível revolta das tribos árabes.. Mesmo consciente desse fato, o cônsul Von Alten enviou um mensageiro a Sâbâ Qa‘wâr, para realizar a transação. O mesmo mensageiro tinha a missão de dirigir-se a Damasco, solicitando ao wali que garantisse a livre passagem da estela, como propriedade do consulado prussiano de Jerusalém; por isso, também foram enviadas ao wali cópias do contrato de venda.46 Ao retornar a Jerusalém, Sâbâ Qa‘wâr trouxe uma péssima notícia ao cônsul: os beduínos destruíram a estela. Não se sabe, ao certo, o motivo dessa atitude: pode ter sido para conseguir mais dinheiro, vendendo vários fragmentos, ou para encontrar algum tesouro escondido no seu interior, já que tanto interesse despertava nos ocidentais da estela, ou mesmo para não permitir que ela caísse em mãos européias.47 No entanto, a inusitada intervenção do mutasarrif de Nablus, que exigiu dos Bani Hamidi a entrega imediata da inscrição, pode ter influenciado bastante na decisão de destruir a estela. As notícias que chegaram a Jerusalém, em novembro daquele ano, afirmavam que os beduínos aqueceram a estela no fogo, derramando água sobre ela, em seguida; o choque térmico fez com que a pedra rachasse em vários fragmentos.48. 46. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.64. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.64, n.87. 48 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.66. 47. 37.

(18) 1.1.4 A reconstrução da inscrição. As primeiras notícias da destruição do importante achado fizeram com que a representação diplomática prussiana em Jerusalém desistisse do intento de adquiri-lo. Clermont-Ganneu, porém, que a princípio acreditava que a estela não havia sido destruída de fato, não mediu esforços para tentar recuperar os fragmentos e reconstruir o objeto. Nessa empreitada, foi auxiliado, ainda que indiretamente, pelo capitão inglês Charles Warren, que ao retornar de uma viagem ao Líbano, no fim de 1869, recebeu a visita de um árabe da tribo ‘Adwân; esse homem trouxe-lhe um pequeno fragmento de pedra, como prova da destruição. Alguns dias depois, Warren solicitou que esse árabe retornasse à Dhiban, para fazer um decalque do que havia sobrado da estela. Ao mesmo tempo, comunicou-se por carta com a Palestine Exploration Fund, solicitando orientações sobre o procedimento a ser adotado em relação à inscrição destruída. Quando o enviado de Warren retornou a Jerusalém, trouxe a impressão de uma inscrição nabatéia, localizada em Umm er-Rasas; após nova orientação, o homem novamente foi enviado a Dhiban, com o intuito de trazer um decalque da inscrição descoberta por Klein.49. Em princípios de 1870, Clermont-Ganneau encontrou-se algumas vezes com o conde de Vogüé, entusiasta da descoberta da estela, e que estava em viagem pelo Oriente Próximo; desses encontros participou também Charles Warren. Esse teve a oportunidade de ver o primeiro decalque da inscrição, feito alguns meses antes, e que, no entanto, não permitia uma boa análise. Ele também levou consigo o fragmento de pedra trazido pelo árabe da tribo ‘Adwân, no ano anterior, no qual Clermont-Ganneau. 49. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.68.. 38.

(19) conseguiu detectar um yod.50 Foi também em janeiro que o tradutor francês recebeu a visita dos xeques ‘Id al-Fâyiz e Jamil, que confirmaram a destruição da estela por um beduíno, que desejava afastar a intervenção turca na região e nos assuntos dos Bani Hamidi. Clermont-Ganneau, aproveitando-se do momento, solicitou que Jamil retornasse à Dhiban e trouxesse um decalque dos fragmentos restantes da inscrição.51. O enviado de Warren retornou de Dhiban em 15 de janeiro daquele ano, com bons decalques, feitos a partir dos dois maiores fragmentos que restaram da estela; além disso, trouxe também doze fragmentos menores, nos quais era possível identificar uma ou duas letras. O xeque Jamil também retornou no mesmo dia, trazendo para ClermontGanneau os mesmos decalques e alguns pequenos fragmentos da inscrição. Warren e Clermont-Ganneau passaram a trabalhar em conjunto, comparando os fragmentos e, sobretudo, os decalques feitos a partir dos pedaços maiores da inscrição. Warren comunicou esses novos progressos feitos sobre a estela, através de carta, ao cônsul prussiano em Jerusalém, Von Alten, e ao antigo cônsul, Petermann, que se encontrava em Berlim. Como leal súdito britânico, Warren também enviou cópias dos decalques e das primeiras tentativas de tradução à Palestine Exploration Fund. 52. Clermont-Ganneau, por sua vez, concentrava-se em tentar reconstruir o texto original, a partir dos diversos decalques e dos pequenos fragmentos que foram trazidos até Jerusalém. A despeito das intenções britânicas, também conseguiu negociar a compra dos dois fragmentos maiores, o que acabou gerando alguma frustração em Warren. O capitão inglês, aliás, também ficou desapontado quando recebeu carta da Palestine Exploration Fund, informando-o de que, provavelmente, a inscrição não era 50. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.69. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.69. 52 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.70. 51. 39.

(20) fenícia, como ele havia sugerido.53 Além disso, as orientações da organização britânica foram no sentido de buscar boas cópias da inscrição; os fragmentos foram considerados menos importantes e, por conta disso, acabaram ficando em mãos francesas. A inscrição deixou de trazer maiores preocupações a Warren quando, no fim de março de 1870, ele deixou a Palestina, retornando à capital do Reino Unido.54. Na Cidade Santa, o trabalho de Clermont-Ganneau continuou até a conclusão da reconstrução da inscrição, bem como da primeira tradução do texto. Em carta datada de 16 de janeiro de 1870, o francês descreveu o objeto como uma estela de basalto, cujas medidas eram 100 cm de altura, 60 cm de largura e 60 cm de profundidade;55 a parte superior da estela era arredondada, e o canto direito da base estava quebrado. Era possível perceber bordas esculpidas nos cantos da estela, que apresentava trinta e quatro linhas gravadas; as palavras estavam separadas por pontos, e as sentenças por barras. Cerca de seiscentos caracteres tinham sido recuperados, o que, segundo estimativas de Clermont-Ganneau, corresponderia a 60% da inscrição original. O francês também acreditava que a estela original deveria ter o dobro da altura da peça reconstruída.56 Após uma primeira publicação, na Revue Archéologique, em 1870, onde consta um facsímile da inscrição, a tradução e alguns comentários, em 1875, ele publicou um texto revisado, na Revue Critique.57 Durante seis anos, enquanto trabalhou no consulado francês em Jerusalém, o pesquisador publicou vários estudos, com diversas revisões ao texto. No entanto, a inscrição e os decalques só ficaram disponíveis em 1876, num claro “monopólio científico”, o que gerou muitas críticas. Vários pesquisadores, fossem. 53. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.70-71. Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.72. 55 As medidas apresentadas por Graham e pelo Museu do Louvre divergem; cf. abaixo, capítulo 3, p.108. 56 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.72-73. 57 André Lemaire, “‘House of...”, p.34; Graham afirma que, nessa segunda publicação, constava o método de reconstrução adotado por Clermont-Ganneau; Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.73, n.118. 54. 40.

(21) britânicos ou alemães, desejavam realizar sua própria tradução da inscrição, a partir da estela. Esses trabalhos só foram publicados a partir do fim da década de 1880.. 1.2 A pesquisa sobre a estela de Mesa e sobre Moab, nos séculos 20 e 21. Após esse breve percurso pela inusitada história da descoberta da inscrição do rei Mesa, cabe agora tratar brevemente sobre as publicações que versam sobre o texto moabita, mas também sobre a história e a arqueologia de Moab. De forma sucinta, são abordados os trabalhos do fim do século 19 e início do século 20, aos quais, infelizmente, essa pesquisa não teve acesso. Em seguida, trata-se dos principais autores que orientam esse trabalho: Nelson Glueck, A. H. Van Zyl, John Andrew Dearman, André Lemaire e Bruce Routledge. Além disso, apresenta-se também de alguns artigos avulsos, com destaque para os de James Maxwell Miller e Klaas Smelik. Sobre as obras existentes em português, é preciso fazer um aparte. Excetuando-se a tradução elaborada a partir de um texto francês,58 não existe nenhum livro que trate, de forma aprofundada, sobre o reino de Moab ou sobre a inscrição de Mesa. Naqueles que trabalham a história do antigo Israel, ou mesmo o antigo Oriente Próximo, as menções a Moab ou a Mesa são brevíssimas, quando não inexistentes. Autores como John Bright e Amihai Mazar, cujas obras são, respectivamente, manuais introdutórios sobre a história israelita e a arqueologia bíblica, tratam brevemente sobre a história e a pesquisa arqueológica moabita, sem qualquer análise da inscrição de Mesa.59 Já Herbert Donner, Israel Finkelstein e Neil Silbermann dão um maior destaque a esse tema, sobretudo no que se refere à inscrição de Mesa. Porém, como seu objetivo é trabalhar a história israelita, a inscrição figura muito mais como uma comprovação extra-bíblica, que faz referências à 58. VV. AA., Israel e Judá: textos do antigo Oriente Médio, trad. Benôni Lemos, 2ª ed, São Paulo, Paulus, 1995, p.58-59. 59 John Bright, História de..., p.302; Amihai Mazar, Arqueologia na..., p.511-514.. 41.

(22) dinastia omrida, que governou Israel durante boa parte do século 9 A.E.C., do que uma análise aprofundada sobre Moab. 60. 1.2.1 Primeiros trabalhos. Em 1886, Rudolf Smend e Albert Socin publicaram um estudo crítico sobre a estela de Mesa, no qual apresentaram oitenta novas letras, que não constavam no texto até então estabelecido. Esse novo texto foi considerado uma “edição pirata” e, ao longo do tempo, foi abandonado, a partir de duras críticas feitas, no ano seguinte, por Ernest Renan e Clermont-Ganneau, que considerava o seu texto a “edição definitiva”. Segundo André Lemaire, esse mal-estar entre os pesquisadores ocorreu pelo fato de ClermontGanneau nunca ter publicado seu editio princeps, bem como o decalque da inscrição original. Uma hipótese é que ele tenha adiado essas publicações na esperança de poder retornar ao Oriente Próximo e resgatar outros fragmentos da estela.61 Apesar disso tudo, novas traduções foram publicadas, entre o fim do século 19 e a primeira metade do século 20, como as de Amandus Nordlander (1896), Mark Lidzbarski (1900), René Dussaud (1912), David Sidersky (1920) e H. Michaud (1958).62. Como já foi dito no princípio deste capítulo, não foi possível consultar esses antigos trabalhos sobre a estela de Mesa, por não constarem dos acervos das bibliotecas brasileiras e que também, por razões óbvias, encontram-se fora de catálogo. Da mesma maneira, não foram consultados os textos de Charles Clermont-Ganneau, fundamentais. 60. DONNER, Herbert, História de Israel e dos povos vizinhos: da época da divisão do Reino até Alexandre Magno (v.2), 3ª ed., trad. Claudio Molz e Hans Trein, 3a ed., São Leopoldo, Editora Sinodal, 2004, p.317-318; FINKELSTEIN, Israel; SILBERMANN, Neil, A Bíblia não tinha razão, trad. Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa Editora, 2003, p.244ss. 61 André Lemaire, “‘House of...”, p.34. 62 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.74, n.121.123; André Lemaire, “‘House of...”, p.37, n.7.. 42.

(23) para a compreensão da reconstrução da peça e para o estabelecimento do texto que é utilizado nessa dissertação.63 Além do mais, algumas obras recentes, sobretudo aquelas editadas na Alemanha, também não puderem ser adquiridas ou consultadas, por conta dos mesmos problemas; nesse grupo podem ser enquadrados também os relatórios de escavações arqueológicas realizadas na região de Moab.64 No entanto, com algum custo, foi possível consultar outros tantos autores, que abordam não somente a inscrição de Mesa, mas também a região e o reino de Moab, e que são discutidos, de maneira bastante sucinta, nas páginas que seguem.. 1.2.2 Nelson Glueck. Entre todas as obras específicas consultadas, a mais antiga é a de Nelson Glueck, publicada no ano de 1945, e elaborada a partir de vários artigos anteriores.65 De fato, a obra não trata somente sobre Moab, e pouco fala sobre a inscrição de Mesa; no entanto, ela destaca-se por ser um dos primeiros trabalhos a considerar os aspectos arqueológicos transjordanianos, ainda que muitas de suas conclusões tenham sido superadas no decorrer do século 20. Seu livro lembra bastante um guia de viagens, descrevendo as. 63. CLERMONT-GANNEAU, Charles, “La stèle de Dhiban ou stèle de Mesa roi de Moab 896 av. J.-C. : Lettres a M. Le Cte. de Vogue”, em Revue Archéologique, Paris, 1870, p.184-207.357-386 ; CLERMONT-GANNEAU, Charles, “Un plan de la Ville de Diban”, em Revue Archéologique, n.22, Paris, 1871, p.159-160 ; CLERMONT-GANNEAU, Charles, “La Stèle de Mésa”, em Revue Critique, n.11, Paris, setembro de 1875, p.166-174 ; CLERMONT-GANNEAU, Charles, “La Stèle de Mésa, examen critique du texto”, em Journal Asiatique, n.9, Paris, 1887, p.72. Esses trabalhos são citados por André Lemaire, “‘House of...”, p.37, n.2-3.5, bem como por Bruce Routledge, Moab in..., p.261. 64 WINNETT, Fred; REED, William, The excavations at Dibon (Dhibân) in Moab, New Haven, ASOR, 1964, 79 p.; TUSHINGHAM, A. Douglas, The excavations at Dibon (Dhiban) in Moab: The Third Campaign 1952-1953, Cambridge, ASOR, 1972, 172 p.; TIMM, Stefan, Moab zwischen den Mächten: Studien zu historischen Denkmälern und Texten, Wiesbaden, Otto Harrassowitz, 1989, 516 p.; WORSCHECH, Udo, Die Beziehungen Moabs zu Israel und Ägypten in der Eisenzeit: Siedlungsarchäologische und siedlungshistorische Untersuchungen im Kernland Moabs (Ard el-Kerak), Wiesbaden, Otto Harrassowitz, 1990, 144 p.; SMELIK, Klaas, Converting the past: studies in ancient Israelite and Moabite historiography, Leiden, E.J.Brill, 1992, 209 p.; NINOW, Friedbert, Index Librorum de rebus Moabiticis conscriptorum, Frankfurt, Peter Lang, 2002, 192 p.; VERA CHAMAZA, Galo (ed.), Die Rolle Moabs in der neuassyrischen Expansionspolitik, Münster, Ugarit Verlag, 2005, 203 p. 65 Nelson Glueck, The Other..., 208 p.. 43.

(24) diversas localidades, a vida dos povos beduínos, além de contar uma quantidade enorme de fotografias, inclusive aéreas, feitas pelo autor ou cedidas pela Royal Air Force britânica. Glueck tem um capítulo inicial, onde trata da “arqueologia bíblica” e dos seus métodos, da importância da cerâmica para a datação, de termos árabes essenciais para a compreensão da topografia da região, como tell e wadi. Na seqüência, ele apresenta um interessante capítulo sobre o deserto oriental da Transjordânia, sobre diversos tipos de fortaleza encontradas na região (romanas, nabatéias, omíadas), além de desenhos préhistóricos gravados nas rochas.66. No terceiro capítulo, após alguns comentários sobre alguns assentamentos nabateus, Nelson Glueck trata de uma região rica em cobre, localizada junto ao Wadi Arabah (desfiladeiro que vai do Mar Morto até Ácaba), chamadas por ele de as “minas de cobre de Salomão”; em assentamentos como Khirbet Jariyeh, Khirbet Nahas, Umm el-Amad, Mene’iyneh e Mrashrash, são perceptíveis vestígios de atividade mineradora, bem como fornos de fundição. Como o texto massorético indica a presença dos davididas na região (2Sm 8,13-15; 1Rs 11,15-19.25), bem como atividades comerciais de Salomão (1Rs 9,27-28; 10,28-29), seria plausível, segundo o autor, relacionar os vestígios arqueológicos que indicariam atividades mineradoras ao sábio filho de Davi.67 Também empolgante, o capítulo seguinte trata do sítio de Tell el-Kheleifeh, no golfo de Ácaba, o “porto salomônico” de Ezion-Geber (1Rs 9,26). Glueck trata amplamente das construções encontradas nesse assentamento, com fotografias e esquemas, o que referendaria, de forma científica e incontestável, a grandiosidade comercial do reinado de Salomão.68 Ambos os capítulos são polêmicos e, segundo alguns, perfeitamente datáveis; novas pesquisas demonstraram, segundo Israel Finkelstein e Neil Silbermann, 66. Nelson Glueck, The Other..., p.45-46.48. Nelson Glueck, The Other..., p.84-85. 68 Nelson Glueck, The Other..., p.95-98.100.102-103. 67. 44.

(25) que esses sítios não eram habitados antes do fim do período monárquico e, portanto, não podem ter sido construídos por ordem do filho de Davi.69 De toda forma, Amihai Mazar não quer descartar a correspondência entre Tell el-Kheleifeh e Ezion-Geber salomônica, ainda que ela deva ser avaliada com cautela.70. Moab é tratado unicamente no capítulo cinco, em conjunto com Edom, Amon e Gilead. Após uma menção sobre a estela de Balu‘a,71 o autor trabalha bastante as “fortalezas” moabitas, localizadas junto ao Wadi al-Hesa, na fronteira com Edom. Além disso, Nelson Gluek faz alguns comentários sobre vestígios cerâmicos moabitas, além de diversas esculturas, fossem possíveis divindades ou prováveis cavaleiros.72 Infelizmente, são poucas e esparsas as citações feitas ao rei Mesa e à sua inscrição: não formam uma análise sistemática do principal (para não dizer ‘único’) texto moabita, servindo apenas como ilustração ao seu texto.73 Na conclusão de seu livro, Glueck trata, de forma bastante aprofundada, sobre a cultura material dos nabateus, com ampla apresentação de fotografias e alguma análise dos vestígios cerâmicos. O autor apresenta, inclusive, a tradução de uma inscrição nabatéia, realizada pelo padre Savignac, da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém.74 O sexto capítulo é o menos “bíblico” de todos eles, mas nem por isso menos interessante.. 69. Israel Finkelstein; Neil Silbermann, A Bíblia..., p.201. Amihai Mazar, Arqueologia na..., p.384-385. 71 Sobre a estela de Balu‘a, cf. abaixo, capítulo 2, p.75. 72 Nelson Glueck, The Other..., p.126.136-138.146.152-157. 73 Nelson Glueck, The Other..., p.8.31.117.125-126.128.139. 74 Nelson Glueck, The Other..., p.197. 70. 45.

(26) 1.2.3 A. H. Van Zyl. Apesar ter sido publicada noventa anos após a primeira tradução da inscrição do rei Mesa, a obra de A. H. Van Zyl é pioneira, já que tinha como objetivo não apenas a análise da inscrição, mas também um levantamento minucioso dos aspectos geográficos e históricos de Moab.75 Originalmente, a obra era uma tese de doutoramento (Die Moabiete) escrita em africânder, e apresentada à Faculdade de Divindade da Universidade de Pretória, na África do Sul, em 1955.76 O professor Van Zyl, em seis capítulos, apresenta um grande compêndio de informações: as fontes que tratam sobre Moab, a começar pela Bíblia Hebraica, mas sem esquecer textos assírios e egípcios; a topografia de Moab, sua paisagem, as rotas existentes e os assentamentos encontrados; a história de Moab, elaborada a partir do texto massorético, sobretudo; os principais aspectos da língua moabita, bem como a tradução da inscrição do rei Mesa; e, por fim uma tentativa de reconstrução da religião moabita, fortemente influenciada pelo texto massorético.. Ainda que pioneira, a obra de Van Zyl foi superada em muitos aspectos e, ainda que seja indispensável, tanto para quem pesquisa a Pedra Moabita, quanto para o estudioso da historiografia daquele reino, ela apresenta importantes lacunas, que não podem deixar de ser mencionadas. A análise dos vestígios arqueológicos, fundamental para a compreensão de uma sociedade que, apesar de possuir escrita, deixou apenas um único texto “completo”, é quase nula, para não dizer inexistente. É bem verdade que o autor trata de pequenas esculturas encontradas na região, bem como sobre os. 75 76. VAN ZYL, A. H., The Moabites, Leiden, E. J. Brill, 1960, 240 p. A. H. Van Zyl, The Moabites, p.VII.. 46.

(27) assentamentos e a construção de fortificações,77 mas a preocupação dele é nitidamente geográfica, ainda que, seguindo as pesquisas de Nelson Glueck, ele afirme que a maior parte dos assentamentos isolados são fortificações, que “referendariam” a atividade militar mencionada pelo rei Mesa (linhas 5-20).78 A história de Moab traçada por Van Zyl segue nitidamente a seqüência na qual o povo moabita aparece no texto massorético; a Escritura só se torna parcialmente relativa quando trata do governo de Mesa, mas ainda leva-se bastante em consideração a narrativa de 2Rs 3,4-27, que é “reconciliada” com o texto da inscrição;79 o mesmo se dá quando trata da dominação assíria. Além do mais, a transliteração da inscrição, em caracteres hebraicos, apresenta alguns problemas, quando comparadas ao texto original.80. 1.2.4 John Andrew Dearman. A coletânea Studies in the Mesha Inscription and Moab, uma obra norteamericana editada no fim da década de 1980, por John Andrew Dearman, professor de Antigo Testamento no Texas, mais de cem anos após a descoberta da estela pelo missionário Klein, é fundamental para o estudo da temática, ainda que, como nenhum texto científico, possa ser considerada definitiva.81 Com a colaboração de vários pesquisadores, o livro trata dos mais diversos assuntos relativos à inscrição e à arqueologia do antigo reino transjordaniano, divididos em nove capítulos. No primeiro deles, James Maxwell Miller, também professor de Antigo Testamento, na Geórgia, aborda a origem do nome “Moab”, bem como os problemas relativos ao estudo da 77. A. H. Van Zyl, The Moabites, p.33-36.61-101. Sobre a análise dessas “fortificações”, cf. abaixo, capítulo 2, p.85. 79 A. H. Van Zyl, The Moabites, p.139-144. 80 Outro aspecto a ser destacado é a utilização de alguns conceitos, como a “pureza de raça”, considerado hoje bastante questionável, mas que ressoa ecos do apartheid sul-africano. Cf. A. H. Van Zyl, The Moabites, p.109. A transliteração do texto de Mesa encontra-se na p.203. 81 John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., 322 p. 78. 47.

(28) história e da topografia moabita.82 Na seqüência, vem o texto amplamente citado na primeira parte desse capítulo, de autoria de Matt Patrick Graham, doutor e bibliotecário, e que trata da descoberta e da reconstrução da estela do rei Mesa.83 Já o terceiro capítulo,o mais breve de todos, composto a quatro mãos, por Kent Jackson, professor de Antigo Oriente Próximo, em Utah, e pelo próprio Dearman, estabelece o texto da inscrição, transliterado em letras hebraicas e que, apesar de algumas correções, serviu de base para a tradução proposta por essa dissertação.84 O quarto capítulo, elaborado pelo mesmo Kent Jackson, faz uma minuciosa e aprofundada análise filológica da inscrição, fundamental para executar-se uma tradução crítica do texto.85. Joel Drinkard, professor de Antigo Testamento, no Kentucky, no quinto capítulo, traça uma comparação entre o texto de Mesa e outras inscrições levantinas, escritas em fenício e aramaico, dos séculos 9 e 8 A.E.C. A partir disso, Drinkard estabelece o gênero literário do texto, denominado inscrição memorial.86 Na seqüência, Dearman elaborou um capítulo de tamanho considerável, no qual apresenta uma reconstrução histórica do século 9 A.E.C., baseando-se na estela de Mesa. Dearman trata, inclusive, da dinastia omrida, da revolta moabita contra Israel, bem como do impacto da presença assíria no Levante; além disso, aborda também aspectos topográficos.87 No sétimo capítulo, a religião moabita é analisada por Gerald Mattingly, professor de Bíblia, no Tennessee, e que aborda as divindades moabitas, os santuários,. 82. MILLER, James Maxwell, “Moab and the Moabites”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.1-40. 83 Matt Patrick Graham, “The Discovery...”, p.41-92. 84 JACKSON, Kent; DEARMAN, John Andrew, “The Text of the Mesha Inscription”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.91-95. 85 JACKSON, Kent, “The Language of the Mesha Inscription”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.96-130. 86 DRINKARD, Joel, “The Literary Genre of The Mesha‘ Inscription”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.131-154. 87 DEARMAN, John Andrew, “Historical Reconstruction and the Mesha‘ Inscription”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.155-210.. 48.

(29) os sacrifícios, o sacerdócio e o profetismo, bem como o conceito de herem, citado por duas vezes na estela do rei Mesa, utilizando-se de uma metodologia comparativa.88 Um resumo das escavações arqueológicas realizadas em Dhiban, em 1954, 1955 e 1965, por William Morton, professor de Antigo Testamento, no Missouri, é publicado postumamente, como oitavo capítulo,89 enquanto o último deles, elaborado por MaryLouise Mussel, doutoranda em Antigo Testamento, em Nova Jersey, estabelece a análise da impressão de um selo moabita, encontrada na alça quebrada de um jarro.90 A obra traz alguns mapas anexos, bem como reproduções da estela de Mesa, da estela de Balu‘a, da estela de Rujm al-‘Abd, além de esquemas e fotografias do sítio de Dhiban, e de artefatos lá encontrados.. 1.2.5 André Lemaire. Ainda que o pesquisador francês André Lemaire não possua uma obra específica sobre o assunto, optou-se por tratá-lo como um item distinto, dada a relevância das novas hipóteses sugeridas por ele, relacionadas à inscrição do rei Mesa. O primeiro desses textos é um breve artigo, publicado na década de 1990, já citado no item 1.1 desse capítulo, numa revista cujo público-alvo não são, necessariamente, pesquisadores, mas leigos em geral, interessados na “arqueologia bíblica”.91 Após apresentar um elaborado histórico da descoberta da estela do rei moabita, além de fotografias da estela, das ruínas de Dhiban, bem como de Clermont-Ganneau e do decalque da inscrição original, antes da sua destruição. O aspecto mais importante do artigo, porém, é a 88. MATTINGLY, Gerald, “Moabite Religion”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.211238. 89 MORTON, William, “A Summary of the 1955, 1956 and 1965 Excavations at Dhiban”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.239-246. 90 MUSSELL, Mary-Louise, “The Seal Impression from Dhiban”, em John Andrew Dearman (ed.), Studies in the..., p.247-251. 91 André Lemaire, “‘House of...”, p.30-37.. 49.

(30) sugestão de que a linha 31 da inscrição apresentaria uma menção ao reino de Judá, tratado como bt dwd, a Casa de Davi. Ainda que tentadora, essa reconstrução parece relacionar-se muito mais à descoberta da estela de Tel Dan, e a expressão byt dwd, legível nessa segunda inscrição.92. Menos polêmico é o segundo texto de Lemaire, um capítulo de uma coletânea, organizada por ele próprio, que trata da relação entre reis e profetas, na Bíblia Hebraica e no antigo Oriente Próximo.93 Nesse capítulo, o pesquisador francês trabalha não somente a estela do rei Mesa, como também a estela de Tel Dan, a estela de Zakur, a inscrição de Tell Deir ‘Alla (na qual é citado o profeta Balaão), a inscrição da cidadela de Amã, além de alguns óstracos paleo-hebraicos, encontrados em Arad.94 A inscrição moabita mencionaria, implicitamente, a presença da atividade profética em Moab, nos oráculos guerreiros de Quemos, seguidos à risca pelo rei Mesa, e que encontram, ao menos, um paralelo bíblico (1Rs 22,5-6.10-12); Lemaire, porém, não explicita a maneira pela qual esses oráculos foram transmitidos ao piedoso monarca.95 Seu objetivo é demonstrar que a utilização de profetas pelas cortes reais do Oriente Próximo foram uma constante entre os séculos 9 e 6 A.E.C, inclusive no reino de Moab, como Mattingly já havia afirmado.96. 92. André Lemaire, “‘House of...”, p.34-36. Sobre essa hipótese, cf. abaixo, capítulo 3, p.123, n.120. A tradução e comentários à estela de Tel Dan estão em SCHMIDT, Brian, “Tel Dan stele inscription”, em CHAVALAS, Mark (ed.), The Ancient Near East: Historical Sources in Translation, Oxford, Blackwell, 2006, p.305-307. 93 LEMAIRE, André, “Prophètes et rois dans les inscriptions ouest-sémitiques (IXe-VIe Siècler av. J.C.)”, em LEMAIRE, André (ed.) Prophètes et rois: Bible et Proche Orient, Paris, Les Éditions du Cerf, 2001, p.85-115. 94 Esses óstracos são considerados o maior e mais variado grupo de inscrições encontradas em território israelense, pertencentes à Idade do Ferro, e tratam de ordens militares, comentários sobre política internacional, envio de suprimentos; Amihai Mazar, Arqueologia na..., p.419-20. A ortografia desses óstracos é analisada por PARVNAK, H. Van Dyke, “The Orthography of the Arad Ostraca”, em Bulletin of the American Schools of Oriental Research, 230, abril/ 1978, p.25-31. 95 André Lemaire, “Prophètes et...”, p.104-105. 96 André Lemaire, “Prophètes et...”, p.115 ; Gerald Mattingly, “Moabite Religion”, p.231.. 50.

(31) 1.2.6 Bruce Routlege. De todas as obras consultadas sobre Moab, a mais recente é o denso trabalho do arqueólogo inglês Bruce Routledge, professor da Universidade de Liverpool, referência fundamental para a compressão dos vestígios e sítios arqueológicos encontrados na região, além de um brilhante tratado sobre a formação do Estado moabita.97 Além do mais, as informações sobre a cultura material moabita são aquelas encontradas nos diversos relatórios de escavações, quase inacessíveis ao público brasileiro; por conta disso, tornou-se uma das principais referências dessa dissertação. Os dois primeiros capítulos de Routledge são nitidamente teóricos: no primeiro deles, além de fazer a crítica a determinados ramos da pesquisa arqueológica, como o neoevolucionismo, o autor analisa também os principais conceitos de Estado, sobretudo aqueles aplicados ao mundo pré-moderno. O princípio teórico do seu trabalho encontra-se no segundo capítulo, no qual ele analisa o conceito de hegemonia, do filósofo italiano Antonio Gramsci; é a partir da hegemonia que Routledge procurou explicar a formação de Moab enquanto estado, na qual a inscrição de Mesa teve papel fundamental.98. Na seqüência, o livro passa a tratar dos aspectos geográficos: além da descrição do relevo, dos tipos de solo, das precipitações e da vegetação, o arqueólogo afirma que Moab é, antes de mais nada, um conceito literário, conhecido no Ocidente a partir da Bíblia Hebraica. Nos capítulos quatro e cinco, Routledge analisa alguns sítios arqueológicos jordanianos, não necessariamente “moabitas”, que foram ocupados na Idade do Bronze Recente e do Ferro Antigo. Em relação ao período do Bronze, ele trata das cidades-Estado que existiam na região, sob o comando do imperialismo egípcio, 97 98. Bruce Routledge, Moab in..., 312 p. Bruce Routledge, Moab in..., p.26-40.. 51.

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