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Direitos De Propriedade No Brasil: Desenvolvimento Econômico, Função Social, E Favelas

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Revista da AMDE – ANO: 2016 – VOL. 16

Direitos De Propriedade No Brasil:

Desenvolvimento Econômico, Função Social, E

Favelas

Brenda Luiza da Costa Pereira

A análise econômica do direito busca apreender as formas pelas quais o comportamento dos agentes é afetado pelas normas legais e promover as normas mais eficientes em termos de maximização do bem-estar social. A fragilidade dos direitos de propriedade é acompanhada por insegurança jurídica e econômica, e o não reconhecimento aos direitos de propriedade de camadas marginalizadas da população é causa de sua subcapitalização, exclusão socioeconômica e reclusão aos setores extralegais. Estas consequências, portanto, decorrem de ineficiência normativa. Este artigo foca na necessidade de um contrato social capaz de assegurar o amplo reconhecimento, previsibilidade e inviolabilidade dos direitos de propriedade como conditio sine qua non do desenvolvimento e estabilidade econômica. É apresentada a evolução dos direitos de propriedade nas Constituições brasileiras ao longo do tempo, bem como sua abordagem pela doutrina majoritária com foco na função social da propriedade; além de uma visão geral dos direitos de propriedade no Brasil atualmente, principalmente em referência aos direitos de propriedade nas favelas; e uma introdução do caso do Projeto Cantagalo – o qual promoveu a regularização fundiária na comunidade Cantagalo no Rio de Janeiro – relacionando o processo ao plano de capitalização descrito pelo economista Hernando De Soto.

Palavras-Chave: - Direitos de propriedade - Desenvolvimento econômico - Favelas

Resumo

The Economic Analysis of Law seeks to apprehend the ways through which agents’ behavior is affected by legal norms and to promote the most efficient norms in terms of maximization of social well-being. The fragility of property rights is followed by judicial and economic insecurity, and the non-acknowledgement of property rights of marginalized layers of society is cause of their undercapitalization, socioeconomic exclusion and reclusion to extralegal sectors. These consequences, therefore, come from normative inefficiency. This paper focuses on the function of a social contract capable of assuring the wide acknowledgement, predictability, and inviolability of property rights as conditio sine qua non of economic development and stability. It presents the evolution of property rights on Brazilian Constitutions through time, as well as its approach by the mainstream doctrine with focus on the social function of the property; besides showing the condition of property rights in Brazil today, mainly in reference to property rights on the slums, and introducing the case of Projeto Cantagalo – a project that promoted land regularization on Cantagalo Community in Rio de Janeiro – relating the process to the capitalization plan described by economist Hernando De Soto.

Keywords: - Property Rights – Economic Development - Slums

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“Se tudo isto soa mais como uma aventura antropológica do que com a base para uma reforma legal, é porque o conhecimento sobre os pobres foi monopolizado por acadêmicos, jornalistas e ativistas movidos por compaixão ou curiosidade intelectual mais que pelo interesse de reforma legal. Mas se os advogados querem ter um papel na criação de boas leis, eles devem sair de suas livrarias de direito para o setor extralegal, que é a única fonte de informação que eles precisam para construir um sistema legal formal verdadeiramente legítimo.” (Hernando de Soto, The Mistery of Capital, p. 198. Tradução livre)

1. INTRODUÇÃO

A perspectiva Econômica vê o Direito como uma instituição que deve promover a eficiência, contribuindo, dessa forma, para melhorar o bem-estar social. (...) Direito, na perspectiva da AED, procura trabalhar com o conceito de eficiência”1.

Sendo assim, a análise econômica do direito busca apreender as formas pelas quais o comportamento dos agentes econômicos é afetado pelas normas legais e promover as melhores normas em termos de eficiência, entendida como maximização do bem-estar social, devendo resultar em medidas rigorosamente definidas nesse sentido.

Cada país que atualmente é economicamente desenvolvido trilhou ao longo da história um caminho de políticas econômicas por vezes austeras dentre as quais muitas são vistas com insegurança no Brasil. Mesmo os países que agora desfrutam do welfare state passaram antes de tudo por processos de capitalização.

Hoje, enquanto alguns países desenvolvidos são conhecidos por manter diversas políticas econômicas de austeridade, como Reino Unido e Alemanha, outros, como Suécia e Dinamarca, passaram à degradação da riqueza; e, ainda, outros manifestam sinais de se mover gradualmente nesse sentido, como os Estados Unidos.

No entanto, todos eles têm algo em comum: instituições fortes, que incluem o amplo reconhecimento e sólido suporte legal aos direitos de propriedade. A atual pontuação dos EUA no Índice Internacional de Direitos de Propriedade (IPRI) é 7.6, idêntica à da Alemanha e apenas 0.1 abaixo do Reino Unido. A pontuação da Dinamarca é 7.9 e a da Suécia é 8.0 (em escala cuja pontuação máxima, significando

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alta proteção aos direitos de propriedade, é 10; dados de 2015).

Em The Mistery of Capital, Hernando de Soto aponta que os pacotes de medidas receitadas por países desenvolvidos como soluções para os problemas econômicos dos países emergentes (como, por exemplo, o Consenso de Washington e as indicações do Banco Mundial e do FMI) resultaram em desilusão devido à fragilidade dos direitos de propriedade nos países de terceiro mundo e nos que se ergueram de experiências socialistas. Isso porque, ainda que sejam adotadas políticas que tornam o ambiente econômico mais favorável ao clima de negócios, na ausência de um aparato legal capaz de garantir a ampla expectativa de proteção jurídica à propriedade, há insegurança econômica e desestímulo ao investimento; e sem o reconhecimento de direitos de propriedade, grande parte da população desses países, que é pobre, não tem a faculdade de transformar em capital os bens de que dispõe.

O processo de capitalização é condição sem a qual é impossível ocorrer e manter o desenvolvimento econômico; e apenas com um sistema integrado de propriedade formal, no qual os direitos de propriedade sejam codificados e haja expectativa de eficácia jurídica, é possível que isso aconteça.

É lei que desprende e fixa o potencial econômico dos ativos como um valor separado dos próprios ativos materiais e permite que os seres humanos descubram e realizem aquele potencial. É lei que conecta ativos aos circuitos financeiros e de investimentos. E é a representação dos ativos fixada em documentos de propriedade legal que dá a eles os poderes de criar valor adicional2.

Devido à fragilidade dessa prerrogativa, ou seja, da possibilidade de capitalizar ativos, nas economias terceiro mundo, são impostas restrições à expansão do desenvolvimento.

De Soto verificou empiricamente que as camadas mais pobres da população desses países já dispõem amplamente de ativos. O economista estima que o total detido pelos pobres do mundo todo como capital morto totalize no mínimo US$9,3 trilhões3.

2 DE SOTO, 2001, p. 165. Tradução livre 3 DE SOTO, 2001, p. 37.

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Por exemplo, no Haiti, país mais pobre da América Latina, o total de ativos dos pobres totalizava um montante mais de 150 vezes maior que todo o investimento externo recebido desde que o país se tornara independente da França, em 1804.

O limite ao desenvolvimento consiste em que esses ativos que os pobres detêm estão esterilizados pela falta de proteção legal que lhes confira as características necessárias para convertê-los em capital. Afinal, “propriedade não é uma qualidade primária dos ativos, mas a expressão legal de um consenso significativo sobre os ativos. Lei é o instrumento que fixa e realiza o capital”4, e “quando não existe a função jurídica,

a função econômica é limitada. Nesse sentido, é possível afirmar que a função jurídica amplifica a função econômica (da propriedade)”5.

No Brasil, cerca de 6% da população dispõe de casas em terrenos não registrados ou cuja propriedade não é reconhecida por lei, negócios não formalizados, posses não documentadas, que, portanto, não podem ser usadas como garantia, como colateral para obtenção de crédito e captação de financiamentos exceto em seu restrito círculo social imediato. A relevância disso é destacada pelo fato de que em economias como os Estados Unidos, a principal garantia oferecida por empreendedores para obtenção do primeiro crédito é a hipoteca de suas casas6. De acordo com censo realizado

em 2010 pelo IBGE, no mínimo 11.425.644 pessoas no território brasileiro residem em aglomerados subnormais, que são definidos como

O conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas por ausência de título de propriedade e pelo menos uma das características abaixo: - irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma dos lotes e/ou - carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública)7.

Na verdade, os serviços exemplificados pela definição acima como públicos poderiam ser, visto a ausência de cobertura estatal, fornecidos pelo setor privado; não

4 DE SOTO, 2001, p. 164. Tradução livre. 5 PORTO, 2013, p. 40.

6 DE SOTO, 2001.

7IBGE. Disponível em

http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811202013480105748 802.pdf, p. 3. Acesso em 23/07/2016

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obstante, tal fornecimento é desestimulado pela ausência de reconhecimento jurídico dos direitos de propriedade desses conjuntos populacionais.

Cabe ainda destacar que conjuntos com menos de 51 domicílios não são considerados pelo censo, de forma que a quantidade real de pessoas vivendo em tais condições é superior aos 11 milhões enumerados. Esses recursos, que poderiam ser usados para gerar renda e segurança a seus detentores, permanecem economicamente excluídos; impedidos de levar uma vida paralela como capital.

Sendo assim, algumas das principais ineficiências econômicas decorrentes do não reconhecimento dos direitos de propriedade das populações das favelas são:

Desestímulo ao fornecimento formal de serviços básicos ao desenvolvimento humano, tais como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água e energia elétrica;

Exclusão socioeconômica de aproximadamente 6% da população do Brasil;

Custos à saúde e à segurança pública decorrentes da exclusão socioeconômica dessas populações;

Impedimento à conversão de ativos em capital pelos mais pobres, causando redução da mobilidade social.

Conforme descrito por Paulo Rabello de Castro a respeito da concessão de direitos de propriedade a detentores de residências em favelas,

O primeiro acréscimo de valor que ocorre é o valor da propriedade em si: O lote e a casa que está em cima. Pois a titulação da propriedade cria a negociabilidade do imóvel e a capacidade de o dono protegê-la, inclusive até de traficantes — em uma situação informal ele não teria como recorrer à polícia ou à justiça. Assim, todos os direitos que são tão comuns à sociedade formal, do asfalto, passam a ser exercidos plenamente também dentro da comunidade. Isso já é um fator de duplicação do valor de um imóvel. Em parte este impacto é tão grande porque o valor de uma propriedade numa favela, em geral, é modesto e o valor de uma propriedade titulada, em si, não é inferior a 10, 20 mil reais em qualquer lugar, que é o custo de se construir uns 30 metros quadrados8.

Pelo critério de eficiência de Pareto, fica assim evidente que uma medida que

8 Instituto Millenium, 2012. Disponível em

http://www.institutomillenium.org.br/divulgacao/entrevistas/em-galo-cantou-paulo-rabello-de-castro-fala-da-experincia-projeto-cantagalo/. Acesso em 26/07/2016.

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permita o reconhecimento e reforço de direitos de propriedade aos detentores desses terrenos seria socialmente eficiente na medida em que melhorasse o nível de bem-estar de muitos sem piorar o nível de bem-estar de ninguém; dado que, para os não afetados diretamente por esses direitos, a situação factual permaneceria a mesma – e, a médio e longo prazo, até melhoraria (por exemplo, com base no aumento de segurança, valorização dos terrenos e valorização indireta dos imóveis nas cercanias, pelo efeito multiplicador econômico decorrente da capitalização das favelas, etc.).

Logo, posto que “determinadas normas jurídicas podem gerar resultados ineficientes, e outras resultados eficientes, e usaremos a eficiência como um critério para aferir se uma norma jurídica é desejável ou não”9, e, sabendo do potencial impacto

econômico positivo e aumento da eficiência que o reconhecimento dos direitos de propriedade pode agregar à sociedade, pode-se apontar a desejabilidade de normas jurídicas nesse sentido.

2. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE NO BRASIL

2.1. Lei

Na Constituição de 1824, o direito de propriedade foi garantido, de acordo com o artigo 179, §22 “em toda sua plenitude”, determinando ainda que “A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação” a respeito da exceção de sua alienação caso o bem público legalmente verificado o exigisse. Estava, assim, de acordo com o parágrafo 17 da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, pela qual: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização”.

Na Constituição de 1891, foi mantida a disposição anterior, sendo, no entanto,

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(mediante emendas de 1926), descrito em duas alíneas do seu art. 72, §17, restrições específicas sobre minas e jazidas:

a) A minas pertencem ao proprietario do sólo, salvo as limitações estabelecidas por lei, a bem da exploração das mesmas. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)

b) As minas e jazidas mineraes necessarias á segurança e defesa nacionaes e as terras onde existirem não podem ser transferidas a estrangeiros. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)

Na Constituição de 1934, a disposição foi que o direito de propriedade não seria exercido contra o direito social, que seria determinado pela lei:

É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. (Art. 113, §17)

A Constituição de 1937 manteve a certeza do direito de propriedade no molde anterior, delegando, entretanto, à lei ordinária a função de definir seu conteúdo e limites (art. 122, §14).

Nesse sentido, apesar de cada nova Carta Magna demonstrar uma movimentação num sentido extremo (de flexibilização da proteção aos direitos de propriedade), pode-se afirmar que a Constituição Federal de 1946 não foi necessariamente disruptiva ao declarar, em seu artigo 147, §6, que “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, §16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos” (Grifo nosso), já que as disposições anteriores já manifestavam sinais de movimento nesse sentido.

A Constituição de 1967, por sua vez, previu a garantia do direito de propriedade, em seu artigo 150, §22, ressalvando o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social; e também ditou, conforme o inciso III de seu artigo 157, a função social da propriedade.

Em relação a todas as Constituições, no entanto, a que mais possui referências à propriedade é a de 1988, que cita o termo 35 vezes em seu texto, indicando a

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tendência a cada vez mais (volume de) disposições sobre e mais especificidade no retratamento do tema. A Carta Magna de 1824 citava a palavra apenas 5 vezes; enquanto a de 1891 fazia referência 8 vezes; a de 1934, 11 vezes; a de 1937, 14 vezes; a de 1946, 24 vezes; e a de 1967, 13 vezes.

Abe observa que

A história da propriedade privada moderna evolui da concepção de um feixe de poderes absolutos (...) para a o surgimento de um conjunto de deveres jurídicos, que flexibilizam e limitam simultaneamente este conjunto de poderes10.

Atualmente, a funcionalização pública da propriedade está consagrada mediante diversos dispositivos da Constituição de 1988 (art. 5º, XXIII, art.170, III, art. 182, § 2º, art. 184, caput, art. 185, art. 186), de forma que

Esse direito não é absoluto, visto que a propriedade poderá ser desapropriada por necessidade ou utilidade pública e, desde que esteja cumprindo a sua função social, será paga justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5.º, XXIV). Por outro lado, caso a propriedade não esteja atendendo a sua função social, poderá haver a chamada desapropriação-sanção pelo Município com pagamentos em títulos da dívida pública (art. 182, § 4.º, III)11.

A observação dessa prerrogativa, a qual a doutrina se divide interpretando hora como um princípio, hora como uma cláusula geral12, compete, portanto, ao Município,

que deve promover seu adequado aproveitamento. A respeito desse aproveitamento, ou seja, o exercício da função social da propriedade, a lei discrimina entre a função social da propriedade urbana e função social da propriedade rural, cujo detalhamento, entretanto, não é necessário para o objetivo deste artigo.

Basta lembrar que as consequências jurídicas do não aproveitamento da propriedade na conformidade do entendimento do município sobre a funcionalização social incluem o parcelamento ou edificação compulsórios, o imposto sobre a propriedade progressivo no tempo e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública.

10 ABE, 2007, p. 6. 11 LENZA, 2012, p. 996. 12 PESSOA, p1.

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Dessa forma, a noção de inviolabilidade dos direitos de propriedade sofreu e tem sofrido erosão nas Constituições, de forma que, atualmente,

O direito à propriedade não é absoluto no sistema legal Brasileiro. De fato, existem várias provisões constitucionais e legais garantindo aos órgãos governamentais os poderes de intervir na propriedade privada e até mecanismos discricionários de expropriação, como é o caso da expropriação por não cumprimento da função social da propriedade13.

Também Wakim (2007) aponta que

No art. 170 da CF encontramos algumas materializações das restrições que o direito de propriedade pode sofrer, como a repressão ao controle de mercado; liberdade de iniciativa; expansão das oportunidades de emprego produtivo; função social da propriedade; eliminação do aumento arbitrário da concorrência e lucros, ou seja, a Constituição concede todo um direcionamento que exclui do direito de propriedade a sua livre disposição14.

Embora a preocupação com uma função social da propriedade venha recebendo destaque, o sentido no qual os direitos de propriedade caminham nas Constituições e na doutrina majoritária pouco tem a ver com a defesa da extensão de seu reconhecimento e reforço às camadas sociais mais socialmente prejudicadas e economicamente excluídas pela atual situação de negligência desses direitos, incorrendo-se por vezes no risco de desvirtuamento da função social da propriedade15, de forma que o dispositivo, em vez de

resultar em reconhecimento de que a propriedade exerce uma função social fundamental e deve ter sua proteção reforçada, pode ocasionar em legitimação de atos de vandalismo contra a propriedade privada e consequente insegurança jurídica e econômica.

Apesar disso, através da previsão do art. 68 do ADCT da Constituição 1988, o qual dispõe que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, pode ser percebida a relevância que a Constituição confere ao reconhecimento dos direitos de propriedade às camadas marginalizadas da sociedade.

13 LENHART, p. 2. Disponível em http://internationalpropertyrightsindex.org/case_studies Acesso em

19/07/2016. Tradução livre.

14 (Disponível em

<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3779/Sobre-as-restricoes-ao-direito-de-propriedade> Acesso em 23/07/2016).

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Diante de tal, regularização semelhante deveria ser também proporcionada aos moradores das favelas, tendo em vista ainda o histórico por vezes paralelo entre as populações quilombolas e as faveladas.

2.2. Doutrina

Porto observa que “A doutrina civilista moderna, além dos enunciados publicados pelas Jornadas de Direito Civil vêm conferindo um conteúdo social ao direito de propriedade”16. Como já citado, o destaque da doutrina a respeito da

propriedade se dirige majoritariamente à sua função social, prescrita pelo art.170, III da CF/1988.

Lenhart assevera que “a Constituição Federal que inscreve a propriedade como um direito fundamental, ao mesmo tempo estabelece provisões que enfraquecem este direito, criando limitações e condições confusas para seu exercício”17. Afinal, como

descrito por Pessoa, em referência a Uadi Lammêgo Bulos, “A expressão função social é vaga, imprecisa e de difícil intelecção”18.

Como observado por Comparato,

(...) o direito contemporâneo passou a reconhecer que todo proprietário tem o dever fundamental de atender à destinação social dos bens que lhe pertencem. Deixando de cumprir esse dever, o Poder Público pode expropriá-lo sem as garantias constitucionais que protegem a propriedade como direito humano. Ademais, perde o proprietário, em tal hipótese, as garantias possessórias que cercam, normalmente, o domínio19.

Arruda Alvim, observa que “a propriedade, tal como hoje configurada nos ordenamentos jurídicos positivos do mundo ocidental, limita-se pelo direito de outrem e pelo direito público”20; e o professor José Afonso da Silva defende que o direito de

propriedade está hoje subordinado ao direito público, principalmente ao direito

16 PORTO, 2013, p. 40. 17 LENHART, p. 2. 18 PESSOA, p.1.

19 (COMPARATO. Disponível em http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero3/artigo11.htm. Acesso em

21/07/2016).

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constitucional, que a disciplina21.

Almeida ainda destaca a divisão da doutrina respectiva às limitações dos direitos de propriedade, em três grupos, dos quais o primeiro percebe limitações de diversas naturezas, “que remontam à ideias de servidões” e o segundo, no qual o autor cita Louis Josserand, sustenta que são

Limitações derivadas da função social (nas quais está sua magistral teoria do abuso do direito), limitações estabelecidas no interesse da coletividade (desapropriações, requisições), limitações ditadas pelo interesse das propriedades vizinhas (obrigações derivadas dos direitos de vizinhança) e, finalmente, limitações derivadas da vontade dos homens (cláusula de inalienabilidade)22.

Um terceiro grupo, no qual ele aponta, por exemplo, José Afonso da Silva, considera as limitações como sendo o próprio conteúdo do direito de propriedade atualmente (e apenas não limitações). De acordo com Silva, “Em verdade, a Constituição assegura o direito de propriedade, mas não só isso, como assinalamos, pois estabelece também seu regime fundamental, de tal sorte que o direito civil não disciplina a propriedade, mas tão-somente as relações civis a ela referentes”23.

Pessoa, por outro lado, destaca a divisão doutrinária que tem por base a indagação de Francisco Loureiro: “a Constituição Federal, ao dispor que” a propriedade atenderá a sua função social, “consagra um princípio ou uma cláusula geral?”24.

A doutrina se divide então entre aqueles que, como Judith Martins Costa, entendem que seja esta uma cláusula geral que contém o princípio da função social; e aqueles que, como Suzana Toledo de Barros, defendem que “os direitos fundamentais, mesmo quando expressados sob a forma de regras, são princípios, tendo em vista o valor do bem jurídico que se visa proteger”25, tratando-se, então, de um princípio.

De acordo com Carvalho,

21 ALMEIDA, 2006 22 ALMEIDA, 2006, p. 38. 23 Apud ALMEIDA, 2006, p. 38 24 PESSOA, p. 1. 25 PESSOA, p. 2.

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No plano jurídico, como analisa Grau (apud DECASTRO, 2004, s.p.):

(...) a admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como conseqüência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adeqúe à preservação do meio ambiente26.

Conforme Petrucci, então, “Com a razão, portanto, Hely Lopes Meirelles, Adilson de Abreu Dallari, José Afonso da Silva e Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao afirmarem que a função social da propriedade é, sim, fundamento das tradicionais limitações administrativas” 27.

E Manoel Gonçalves Ferreira Filho (apud LENHART) aponta que

Reconhecendo a função social da propriedade, sem negá-la, a Constituição não nega o direito exclusivo do proprietário sobre a coisa, mas requer que o uso da coisa esteja condicionado ao bem-estar geral. Portanto, o constituinte não se afastou da concepção thomística de que o proprietário é um advogado da comunidade para administrar bens dedicados ao serviço de todos, apesar de que elas não pertençam a todos28.

Estes apontamentos não são exaustivos, sendo apenas algumas ilustrações da doutrina. Existe, assim, ampla percepção de que a previsão da função social da propriedade seja uma evolução do direito; e que o direito de propriedade precise ser limitado e relativizado. Pessoa sumariza: “a propriedade na Carta de 1988 consiste num direito que se destina a um dever, o de cumprir uma função social”29. De acordo com

Carvalho, por exemplo,

O direito de propriedade em sua concepção clássica tem-se mostrado muitas vezes inoperante para os anseios da sociedade atual. Com a

26 CARVALHO, 2010. Disponível em http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3395 Acesso em

21/07/2016.

27 2004.

28 FILHO, 2010, p. 387 apud LENHART, p. 2. Tradução livre 29 P. 2.

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evolução dos direitos e a emergência de categorias como os direitos coletivos e difusos, os interesses da sociedade e da coletividade como um todo, mesmo que seus titulares não possam ser individualizados, devem prevalecer sobre os interesses dos particulares que, desta maneira, precisam ser adaptados às características do momento atual30.

Não é óbvio, dessa forma, realçar que, como apontado por Wakim, “Em primeiro lugar, é mister ressaltar que o direito de propriedade não é direito À propriedade, e sim o direito de, uma vez sendo proprietário de algo, ter a posse, uso e gozo do bem preservados”31 e que “o Direito não deve ser usado para corrigir aspectos

de distribuição ou desigualdade social”32. Caso contrário, incorre-se no risco de que o

dispositivo seja manipulado promovendo o desvirtuamento da função social da propriedade.

Novamente, o foco sob o qual a função social dos direitos de propriedade tem sido enquadrado pouco tem a ver com a defesa da extensão de seu reconhecimento e reforço a toda a sociedade para que esse direito funcione eficientemente, promovendo segurança jurídica, desenvolvimento social e estabilidade econômica.

A função do direito de propriedade é, por si, social, haja vista que “os Direitos Econômicos de Propriedade constituem o fim almejado pelas pessoas, enquanto que os Direitos Legais de Propriedade são o meio legal para que se alcance aquele fim”33, mas

quando ocorre a desvirtuação do seu sentido, pode-se incorrer em ineficiência.

3. VISÃO GERAL DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE NO BRASIL ATUALMENTE

Como já visto anteriormente, os direitos de propriedade no Brasil são previstos e defendidos pela Constituição; no entanto, são enfraquecidos pelo enunciado vago a respeito da função social da propriedade.

30CARVALHO, 2010. Disponível em http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=3395 Acesso em

21/07/2016.

31 WAKIM, 2007. 32 PORTO, 2013, p. 14. 33 PORTO, 2013, p. 41.

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Existe ainda a ampla percepção de que esse dispositivo seja uma evolução em relação a um passado no qual haveria predominado uma concepção individualista do direito de propriedade, que seria ilimitado. Ainda que seja claro que

“(...) apesar do direito de propriedade se constituir em direito real, oponível erga omnes (ou seja, é valido contra qualquer pessoa), atualmente o direito brasileiro criou o instituto da função social da propriedade, que condiciona o exercício do direito de propriedade ao cumprimento da função social, pois não será admitida a subutilização dos bens, desvinculada de qualquer compromisso social e econômico.” 34,

Há amplo suporte a essa funcionalização e à valorização da função social da propriedade, o que geralmente, porém, não resultou na ampliação da percepção da necessidade de extensão do reconhecimento jurídico dos direitos de propriedade a toda a população que detém propriedade, para aumentar a eficiência socioeconômica do dispositivo.

Pelo contrário, a relativização dos direitos de propriedade pelo dispositivo é, conforme apontado no relatório Case Study on Brazil: Reflections on the Social Function of Property in Brazil, fator que promove a legitimação de sua violação (exemplificado pela simpatia de parte da população a atos de vandalismo como os do MST) e é fonte de insegurança jurídica, que prejudica a economia. De acordo com Lenhart,

(...) o instituto da função social da propriedade, entendido de forma predominante pela doutrina e as cortes nacionais como um avanço em relação aos direitos reais, gera pela sua própria natureza e escopo conceitual intrínseco, uma cultura de desvalorização e desrespeito aos ativos privados35.

E: “o problema está em dar ao governo o poder de impor sanções e expropriar propriedade privada com base em conceitos vagos, dúbios ou abertos, como a função social da propriedade”36.

34 Jurisway, Disponível em http://www.jurisway.org.br/v2/pergunta.asp?idmodelo=710. Acesso em

26/07/2016.

35 LENHART, p.6. Tradução livre. 36 LENHART, p.5. Tradução livre.

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A atual situação de fragilidade dos direitos de propriedade no Brasil é manifesta numericamente pelo índice IPRI (International Property Rights Index). O Índice Internacional de Direitos de Propriedade é formado por três componentes: 1) Ambiente Legal e Político, 2) Direitos de Propriedade Física, 3) Direitos de Propriedade Intelectual. Dentro de cada um desses componentes, algumas variáveis são agrupadas da seguinte maneira:

1. Ambiente Legal e Político: Independência Judicial; Estado de Direito; Estabilidade Política; Controle da Corrupção.

2. Direitos de Propriedade Física: Proteção dos Direitos de Propriedade Física; Registro de Propriedade; Facilidade de Acesso a Empréstimos.

3. Direitos de Propriedade Intelectual: Proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual; Proteção de Patentes; Pirataria de Direitos Autorais.

De forma que o índice é, então, composto por 10 variáveis agrupadas sob três categorias. Cada indicativo, bem como a pontuação geral de um país, vai de 0 (que denota muita fragilidade dos direitos de propriedade) até 10 (que manifesta força dos direitos de propriedade). Passemos agora à descrição dessas variáveis e da pontuação do Brasil em cada uma.

A categoria Ambiente Legal e Político trata da capacidade de enforcement de um sistema de direitos de propriedade no território nacional, e, como vimos, ela é composta por alguns sub-itens. O primeiro deles é a Independência Judicial, que se refere à autonomia do judiciário em relação à influência dos ambientes político e de negócios; e o segundo é o Estado de Direito, medido pela confiança dos agentes nas (e seu respeito às) regras estabelecidas. Para isso é levada em conta a qualidade do reforço de contratos, direitos de propriedade, polícia, cortes, crime e violência.

O terceiro sub-item da primeira categoria é a Estabilidade Política, que exerce influência direta sobre os incentivos à aquisição de propriedade e confiança nos contratos estabelecidos; e o quarto indicador é o Controle da Corrupção.

Conforme pode ser visto na Tabela 1, o Brasil descreve, ao longo do tempo, uma pontuação que se mantém ou aumenta ligeiramente a cada ano, exceto entre 2014 e

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2015, quando houve um enfraquecimento desse índice. Essa redução se deve à queda dos indicadores de independência do judiciário, da estabilidade política e de controle de corrupção entre 2014 e 2015.

Ano 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Pontuação 4,1 4,1 4,2 4,7 5 5,2 5,2 5,1 4,6

Tabela 1. Fonte: International Property Rights Index. Disponível em

http://internationalpropertyrightsindex.org/about. Acesso em 19/07/2016.

Quanto ao segundo componente, Direitos de Propriedade Física, que diz respeito principalmente à efetividade da proteção aos direitos de propriedade, seu primeiro sub-item é precisamente a proteção aos direitos de propriedade física; e o segundo, Registro de Propriedade, reflete o nível de complexidade envolvida no processo completo de registro de propriedade (em número de dias gastos, procedimentos e barreiras envolvidos).

O terceiro sub-indicativo é a Facilidade de Acesso a Empréstimos, que é considerada no sentido de acesso a empréstimos bancários sem uso de colateral, e mensura o desenvolvimento das instituições bancárias (para apreender o nível de formalização da economia).

A pontuação do Brasil na categoria Direitos de Propriedade Física apresentou aumentos sucessivos ao longo do tempo, até 2013, quando passou a descrever quedas sucessivas (Tabela 2).

Ano 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Pontuação 5,3 5,3 5,2 5,4 5,5 5,9 6 5,8 5,5

Tabela 2. Fonte: International Property Rights Index. Disponível em

http://internationalpropertyrightsindex.org/about. Acesso em 19/07/2016.

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A pontuação para Direitos de Propriedade Física caiu em 0.3 para 5.5. devido a um crescimento para 8.8 em Registro de Propriedade, um decréscimo de 1.6 em Direitos de Propriedade para 5.0 e uma queda de 1.3 na Facilidade de Acesso a Empréstimos para uma pontuação de 2.837.

Sendo que alta pontuação do país no sub-indicativo Registro de Propriedade (8.8) significa alta complexidade no processo de registro de propriedades. Como apontado pelo IPRI, quando o processo de registrar formalmente as propriedades, sua venda e aquisição, é complexo, há incentivo para que esse processo seja negligenciado e, portanto, não haja formalização da posse ou transferência. Dessa forma, é impossibilitada ou desencorajada a agregação e geração de valor através da propriedade, a qual tende a permanecer como capital morto.

A terceira categoria, Direitos de Propriedade Intelectual, mede a proteção de patentes e direitos autorais das perspectivas de jure e de facto, o nível da pirataria de direitos autorais e também mensurações opinativas. A força das leis de proteção de patentes é medida com base em cinco critérios: abrangência, se o país é membro em tratados internacionais, restrições aos direitos de patentes, reforço, e duração da proteção; e o grau de pirataria demonstra a efetividade ou não da defesa legal dos direitos de propriedade, sendo medida através de dados da BSA Global Software Survey e de estimativas do volume e valor de softwares não licenciados, entre outros fatores.

Nessa categoria, a pontuação do Brasil varia ao longo do tempo entre sua mínima de 5,2 e sua máxima de 5,6, tendo registrado uma queda entre 2014 e 2015 (Tabela 3).

Ano 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Pontuação 5,2 5,4 5,2 5,2 5,5 5,5 5,6 5,6 5,2

Tabela 3. Fonte: International Property Rights Index. Disponível em

http://internationalpropertyrightsindex.org/about. Acesso em 19/07/2016.

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A nível global, o país se encontra na posição 64 (entre 129 países), com proteção aos direitos de propriedade inferior à de países com níveis semelhantes de desenvolvimento38, como a África do Sul (posição 28), Turquia (58), Índia (62) e países

com menos desenvolvimento como Trinidad e Tobago (59), Gana (50) e Ruanda (42), por exemplo.

Essa fragilidade jurídica produz prejuízo econômico, uma vez que

“A habilidade de usufruir a propriedade corresponde à função econômica da propriedade, enquanto que o direito atribuído pelo Estado constitui a função jurídica da propriedade. (...) Quando não existe a função jurídica, a função econômica é limitada”39.

4. PROCESSO DE CAPITALIZAÇÃO E O PROJETO CANTAGALO

De Soto aponta que os principais erros nas tentativas de reconhecimento dos direitos de propriedade dos pobres estão ligados à percepção de que:

Todas as pessoas que se escondem nos setores extralegais ou subterrâneos fazem isso para evitar pagar taxas;

Ativos imobiliários não são detidos legalmente porque eles não foram apropriadamente pesquisados, mapeados e registrados;

Decretar leis mandatórias sobre a propriedade é suficiente e os governos podem ignorar os custos de conformidade com essa lei;

Você pode mudar algo tão fundamental como as convenções das pessoas sobre como elas podem deter seus ativos, tanto legais como extralegais, sem liderança política de alto nível40.

O economista descreveu também um plano de capitalização41, o qual, aplicado

no Peru, ajudou a promover entre 1996 e 2003 a emissão de mais de 1.2 milhões de títulos de propriedade42 e consiste em quatro etapas gerais que se desdobram em

38 Com base no PIB, dados do Banco Mundial. Disponível em

http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD. Acesso em 26/07/2016.

39 PORTO, 2013, p. 40.

40 DE SOTO, 2001, p. 161. Tradução livre. 41 DE SOTO, 2001, p. 168 – 169.

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diversos passos.

A seguir, essas etapas serão descritas sucintamente e conectadas ao Projeto Cantagalo, desenvolvido pelo Instituto Atlântico em 2008 com o objetivo de integrar a favela do Cantagalo ao bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro, através da promoção do reconhecimento jurídico dos direitos de propriedade (conceder a titulação definitiva de propriedade) aos moradores dessa favela.

4.1. A estratégia de descoberta

Essa etapa abrange a penetração no setor extralegal, e seu procedimento consiste em:

a. Identificar, localizar e classificar o capital morto b. Quantificar o valor atual e potencial do capital morto

c. Analisar a interação do setor extralegal com o resto da sociedade d. Identificar as normas extralegais que governam a propriedade extralegal

e. Determinar os custos da extralegalidade

Direitos de propriedade geralmente existem sob alguma forma em todos os agrupamentos sociais, mesmo quando não estão codificados formalmente. Esses acordos, no entanto, têm o reconhecimento restrito a uma pequena comunidade ou grupo de pessoas que se organizam sob eles, quer sejam explícitos ou tácitos.

Sendo assim, quando se busca abranger uma sociedade heterogênea sob um sistema de regras formal integrado, é necessário ter em conta ao longo do planejamento quais são as regras que já estejam vigorando para cada grupo. O primeiro passo descrito pelo Instituto Atlântico foi precisamente realizar um estudo aprofundado do histórico da comunidade do Cantagalo.

4.2. A estratégia política e legal

A segunda etapa consiste basicamente em colocar em operação agências que introduzam os processos necessários para a capitalização, visando garantir que o processo incorpore as prioridades do governo e reflita o interesse da comunidade para

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que o enforcement do processo seja legítimo e facilmente aceito. Para isso, é necessário:

a. Assegurar que o nível político mais alto assuma a responsabilidade pela capitalização dos pobres

b. Colocar em operação agências que permitirão mudança rápida

c. Remover gargalos legais e administrativos

d. Construir consenso entre setores legais e extralegais

e. Planejar estatutos e procedimentos que reduzam os custos de deter ativos legalmente de forma que esses custos sejam mais baixos que os de deter os ativos extralegalmente

f. Criar mecanismos que reduzam os riscos associados ao investimento privado

Nessa etapa, é essencial a remoção de burocracias administrativas e legais que desestimulem a regularização. Pode ser, para tanto, necessário modificar estatutos, procedimentos e práticas que gerem dificuldade à formalização; legislação dispersa pode ser consolidada e a definição de provas de propriedade pode ser ampliada.

Todo o procedimento deve ser projetado de forma a promover economias de escala, assegurar que as novas normas estejam de acordo com as preexistentes (tanto com as formalmente preexistentes como com as normas informais que sejam reconhecidas pelo grupo que se visa incluir sob o ordenamento formal) e que os custos relativos da legalização sejam inferiores aos da operação no setor extralegal. Tudo deve ser estruturado no sentido de gerar incentivos à formalização.

De Soto observa que para ser reconhecida como legítima, é mais importante que uma lei seja adequada às necessidades de sociedade e tenha suporte como convenção prática do que sua formalização: “É por isso que leis de propriedade e títulos impostos sem referência a contratos sociais existentes continuamente falham: falta-lhes legitimidade”43. O Instituto, portanto, no caso do Projeto Cantagalo, discutiu com a

população as vantagens e desvantagens da titulação da propriedade e fixou uma

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Assembleia Geral dos Moradores para aprovar o projeto e a seguir constituir advogados e representação política junto ao Estado e à Prefeitura.

4.3. A estratégia operacional

A terceira etapa inclui o planejamento e operação de campo. Seus passos são:

a. Designar e instalar a agência de operação de campo, procedimentos, pessoal, equipamentos, escritórios, treinamento e manuais que permitam ao governo reconhecer e processar os direitos de propriedade no setor extralegal

b. Implementar estratégias de comunicação usando mídia apropriada para encorajar a participação do setor extralegal, dar suporte à comunidade de negócios e ao setor do governo, e aquisição entre aqueles que têm interesse no status quo

c. Redesenhar as organizações e processos de registro de forma que eles possam agrupar todas as descrições economicamente úteis sobre os ativos extralegais de um país e integrá-los em um sistema de informação/dados computadorizado

Em 4 meses, o Instituto Atlântico realizou o cadastro geral dos moradores e levantou a topografia do loteamento informal, considerando cada unidade habitacional. Para realizar tais tarefas, contratou o Instituto Brasileiro de Pesquisas Sociais, bem como um arquiteto para disponibilizar plantas baixas, uma para cada família, reconhecendo a posse de cada uma.

O instituto então promoveu o ajuizamento de uma ação de usucapião especial urbana coletiva contra a CEHAB – 7º Vara da Fazenda Pública do Rio de Janeiro e a alteração da Constituição do Estado do Rio de Janeiro através da Emenda Constitucional n.42/09, o que permitiu a transferência da propriedade plena pelo Estado. Mediante tal emenda, o artigo 68 passou a vigorar com a redação:

“Art. 68. Os bens imóveis do estado não podem ser objeto de doação nem de utilização gratuita por terceiros, nem de aluguel, salvo mediante autorização do Governador, se o beneficiário for pessoa jurídica de direito público interno, entidade componente de sua administração indireta ou fundação instituída pelo Poder Público, bem como nos casos legalmente previstos para regularização fundiária. (NR)

(...) §5º As exigência previstas neste artigo poderão ser dispensadas no caso de imóveis destinados a programas de regularização

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fundiária, inclusive para fins de assentamento de população de baixa renda, na forma da lei complementar, que disporá, ainda, sobre as condições e procedimentos específicos para a alienação de imóveis públicos e para sua utilização pelos beneficiários no âmbito dos referidos programas. (NR)”. 4.4. A estratégia comercial

a. Implementar mecanismos de informação e reforço que permitam a provisão de serviços bancários, de crédito e de hipoteca, utilidades públicas (como água, energia e telecomunicações), infraestrutura e segurança nacional, entre outros.

A etapa final consiste em disseminar informações e executar mecanismos de reforço que possibilitem a operação de setores que, integrados, proporcionarão sucesso ao objetivo de capitalização.

Atualmente, 44 moradores da Comunidade Cantagalo já receberam a escritura de doação de suas propriedades, e o instituto estuda a implantação desse projeto em outras prefeituras.

O resultado econômico previsto inclui a urbanização e expansão dos serviços públicos e privados na região, a valorização dos preços dos imóveis dentro do Cantagalo e bairros do entorno, melhoria da qualidade dos investimentos nos imóveis pelos moradores, acesso aos mercados de crédito (devido à presença de patrimônio legalizado para ser usado como garantia), e aumento da arrecadação fiscal do bairro. Conforme descrito por Paulo Rabello de Castro,

O cidadão, com a segurança do título de propriedade, vai investir o dobro na reforma, ampliação e aumento do conforto da sua residência, o que se traduz em mais salubridade e menos doença. Quando se soma isso tudo e multiplica por quinze milhões, ou seja o número estimado de propriedades irregulares no Brasil, chegamos a um número fabuloso de um trilhão de reais em potencial de valorização e enriquecimento da sociedade brasileira caso o projeto Cantagalo seja aplicado em nível nacional44.

De Soto aponta que a existência no setor extralegal impõe taxas (entre eles, o custo da falta de boas leis de propriedade, de não conseguir crédito formal porque não têm endereços legais, extorsão por autoridades legais, o pagamento de seguros a máfias

44 Instituto Millenium. Disponível em:

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locais, etc.).

Para que alguém escolha trocar a sublegalidade pela formalidade é necessário apenas gerar incentivos, garantindo que os custos de existir na segunda sejam inferiores aos de existir na primeira. É, então, uma questão não de custos em geral, mas sim de custos relativos.

5. CONCLUSÃO

Lei e doutrina têm manifestado interesse pela função social da propriedade (a qual deveria resultar em benefícios a toda a sociedade, sendo defendida como instrumento para alcançar os interesses da mesma), o que, entretanto, não tem resultado necessariamente em mais intensa defesa da extensão do reconhecimento dos direitos de propriedades a todas as camadas da sociedade, principalmente aquelas que já dispõem desses ativos; porém, em aglomerados subnormais.

Ao contrário de resultar em desenvolvimento social, o dispositivo que prescreve a função social dos direitos de propriedade é aberto a interpretações e tem sido um ponto de fragilidade da lei, gerando insegurança jurídica e representando um desestímulo ao investimento econômico. O não reconhecimento dos direitos de propriedade, além de tudo, promove a exclusão econômica das populações periféricas e lhes atrofia a faculdade de capitalizar seus ativos.

Parte-se geralmente da premissa de que camadas populacionais economicamente marginalizadas e em estado de fragilidade social, como é o caso das populações das favelas, sejam totalmente desprovidas de ativos e deva-se removê-las das áreas de risco e moradias precárias através da fiscalização; mas, conforme verificado empiricamente, existe um caminho cujo custo é relativamente mais baixo, além de ser economicamente mais eficiente.

Na verdade, essas pessoas geralmente já possuem ativos, os quais poderiam ser capitalizados e incorporados à base produtiva da economia, mas são, no entanto, negligenciados ou definidos por lei como irregulares, permanecendo por isso como capital morto. Essa situação pode ser revertida através do reconhecimento e reforço dos

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direitos de propriedade nas favelas.

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