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Death in the Woods, de Sherwood Anderson - Tradução, Reflrxão e Compreensão

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Academic year: 2021

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FACULDADE DE LETRAS UNI VE RS I DADE DO PORTO

Isabel Tavares Moreia Alves

2º Ciclo de Estudos no Mestrado em Estudos Anglo-Americanos

Death in the Woods, de Sherwood Anderson – Tradução, Reflexão e Compreensão

2012

Orientador: Professor Doutor Gualter Cunha

Classificação: Ciclo de estudos:

Dissertação/relatório/Projeto/IPP:

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Dissertação apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Anglo-Americanos, Tradução Literária (Inglês-Português).

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Ao meu Pai e à minha Mãe

Que me ensinaram a lutar por tudo o que quero, por mais difícil que tal possa parecer.

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Índice

1. Resumo………..6 Abstract………...6 2. Introdução………..7 3. Sherwood Anderson………..……….10 3.1. Apresentação biográfica………..………10

3.2. Death in the Woods, análise da obra………..………...19

3.3. Sherwood Anderson em Portugal………...24

4. Tradução………..26

4.1. Morte no Bosque………..26

4.2. Como uma Rainha………..……….38

4.3. Outra Mulher………...46

5. Relatório da tradução……….………..56

6. Conclusão………...……..59

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos os que me apoiaram e que contribuíram com toda a ajuda possível na realização desta dissertação.

Merece-me um agradecimento especial o Prof. Dr. Gualter Cunha que, como meu professor e orientador, muito me ajudou durante o processo de elaboração desta dissertação.

Agradeço in memoriam e sentidamente ao Prof. Dr. Paulo Eduardo Carvalho, meu primeiro professor de Tradução, pelos sábios conselhos que dele recebi.

Gostaria de agradecer também a todos os docentes e colegas do curso de Mestrado de Estudos Anglo-Americanos, Tradução Literária, pois ao longo do ano letivo de 2009/2010 contribuíram para a construção de ideias que me foram muito úteis na execução da tese.

Finalmente, não posso deixar de agradecer aos meus pais e amigos que me apoiaram muito durante esta etapa da minha vida.

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Resumo

Esta dissertação de mestrado em Tradução Literária visa a tradução de três contos do livro Death in the Woods and Other Stories, da autoria de Sherwood Anderson, escritor americano do século XX, que marcou a sua geração e a que lhe seguiu.

O objetivo deste texto é dar visibilidade ao autor e à sua coleção de contos Death in the Woods and Other Stories. Em investigação prévia, verificou-se que Anderson é um escritor ainda muito pouco conhecido em Portugal. A inexistência de uma tradução desta sua obra em língua portuguesa apresentou-se como uma lacuna no panorama editorial português, pretendendo eu dar início a um trabalho pioneiro na divulgação deste autor no contexto português da literatura traduzida.

Palavras-chave: Sherwood Anderson, tradução literária, processos, problemas e dificuldades de tradução

Abstract

This master’s dissertation in Literary Translation comprises the translation of three short-stories of the book Death in the Woods and Other Stories, by Sherwood Anderson, American writer of the twentieth century who marked his generation and the one that followed.

This work aims at giving visibility to the author and his short-story collection Death in the Woods and Other Stories, as in previous research I noticed that Anderson is still a very little known writer in Portugal. Moreover, the author´s work dealt with in this thesis has never been translated into Portuguese, what seems to be a gap in the Portuguese editorial scenario, so it is my intention to start a pioneering work with it. Key-words: Sherwood Anderson, literary translation, processes, problems and difficulties of translation

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No momento em que decidi dedicar-me à escrita desta dissertação sobre este autor norte-americano do século XX e à tradução de uma seleção dos seus contos que fazem parte do volume mencionado no título, era minha intenção explorar o seu mundo narrativo e dá-lo a conhecer ao público português. Dado que vim a deparar-me com uma falta de informação e de material sobre este autor em Portugal, considerei pertinente divulgar as suas características como escritor, as suas influências e, principalmente, estudar e investigar o regionalismo intrínseco da sua obra.

Paralelamente, optei por uma reflexão sobre o mutante estado-da-arte da tradutologia e logo me deparei com o dilema de qualquer tradutor, seja este mais percetível ou não: que caminho seguir, dado que se me depararam dois problemas, totalmente divergentes: levar o leitor ao texto de partida, adequando-o ao texto de chegada, ou trazer o texto original para o contexto da língua que o receciona, neste caso a língua portuguesa. No entanto, estes dois caminhos que se me apresentaram, resultaram numa convergência dos princípios dos mesmos. Esta convergência radicará na perceção de que a fidelidade ao texto de partida não será, em determinados passos, impeditiva de uma certa dose de criatividade ou, na minha opinião, de (re)criatividade, que atrevo a definir como impulso criativo que o prazer da leitura do texto original talvez tenha provocado em mim. Reconhecer-se-á na tradução que a seguir apresento alguma dessa (re)criatividade.

Assim, como afirma Schottländer citado por Kitty M. van Leuven-Zwart and Ton Naaijkens, a propósito da criatividade do tradutor: “[c]reativity seems to involve both the subconscious production and an awareness of purpose and aim” (Leuven-Zwart et al. 1991:93). Este facto impede-me também de assumir um papel invisível, pois tenho consciência de que esta tradução pode revelar o meu juízo inconsciente em alguns pontos. Não obstante eu concordar com a criatividade no processo de tradução acima referida, estou ciente de que a invisibilidade do tradutor é fundamental. Não poderei, assim, de deixar de procurar essa invisibilidade, pois como afirma Lawrence Venuti:

“A translated text, whether prose or poetry, fiction or nonfiction, is judged acceptable by most publishers, reviewers, and readers when it reads fluently, when the absence of any linguistic or stylistic peculiarities makes it seem transparent, giving the appearance that it reflects the foreign writer’s personality or intention or the essential meaning of

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the foreign text—the appearance, in other words, that the translation is not in fact a translation, but the “original” (Venuti 1995: 1).

Paralelamente, procurarei a fluência de que Venuti também fala: “[t]he more fluent the translation, the more invisible the translator, and, presumably, the more visible the writer or meaning of the foreign text” (Venuti, 1995: 2). Devo expor o entusiasmo e o gosto que nutro por Sherwood Anderson, que são fatores também presentes neste meu trabalho de tradução, levado a cabo num contexto não-profissional. Liu (2011: 79) apresenta na sua dissertação de doutoramento o “circumplex model of affect” (Russell 1980/2003) / a “two-dimensional view of subject well-being” (Warr 2007: 21)”, aplicado a tradutores profissionais. Neste modelo, o autor aponta os

seguintes adjetivos qualificativos da afetividade em relação a um trabalho, neste caso uma tradução: alert, excited, energetic, enthusiastic, cheerful, elated, glad e pleased. Russell preconiza que, na presença da maioria destes estados, se produzirá um activated positive affect.

Creio poder afirmar que, em contexto académico e como aluna, me enquadro neste afeto positivo em relação às traduções que fiz e ao autor que escolhi. Poderei estar numa posição privilegiada, não sendo afetada pelo “negative affect” que Liu (2011) detetou em alguns dos seus inquiridos; no entanto, considero que, no meu caso, se poderá falar de “translator’s affectivity”. Esta dimensão, a ser reconhecida, justificará também a minha escolha de autor e de textos a traduzir. Tudo isto não evitará que e, segundo afirma Doyle no ensaio Translation and the Space Between: Operative Parameters, eu venha a incorrer num “strabismus so characteristic of the translator at work: one eye focused on the text-that-is, the other on the text-to-be” (Larson 1991: 13). O processo de tradução é arriscado, uma vez que além do cuidado com a fidelidade, Doyle (1991:15) afirma que há forças centrífugas e centrípetas a agir sobre a passagem do texto de partida para o texto de chegada. Também, segundo este autor, o tradutor “vive” no que eu consideraria três universos: a) o significado e o significante, b) a forma e o conteúdo, c) a letra e o espírito. Apresento como exemplo do primeiro e do terceiro as minhas deambulações à volta da escolha da tradução do título, nomeadamente com a palavra woods, pois o léxico português oferece-nos floresta, montes e bosques, entre outros. Optei por bosque, para uma melhor adequação ao contexto panorâmico do Midwest americano, que nos é fornecido no cinema e na pintura, por exemplo.

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Sherwood Anderson é um dos autores de short-stories mais importantes da história da Literatura Norte-Americana e, como tal, na minha opinião, deveria ter um maior reconhecimento em Portugal. Sendo que a obra mais conhecida deste autor, Winesburg, Ohio (1919) já foi traduzida para língua Portuguesa, ponderei a oportunidade de dar a conhecer ao público três dos contos da grande coleção Death in the Woods and Other Stories de 1933.

Para além da tradução, procedi a um estudo da biografia do autor, com vista a detetar até que ponto esta pode ter influenciado a escrita destes contos. Procedi, em seguida a uma análise da obra traduzida. Devido à falta de informação e material de referência, não me foi possível apresentar uma melhor e proveitosa investigação da receção do autor em Portugal. Existem várias recensões críticas online e em alguns suplementos literários da única obra traduzida Winesburg, Ohio.

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Apresentação biográfica

1933

Nascido a 13 de Setembro de 1876, em Camden, Ohio, Sherwood Anderson começou a trabalhar desde muito cedo. Os seus pais, Irwin McClain Anderson e Emma Jane Smith, mudavam-se frequentemente durante a sua infância; Anderson recebeu uma educação precária, enquanto também trabalhava em vários sítios para ajudar a sua família que sobrevivia num contexto de ruralidade. Após o fracasso do pequeno negócio de seu pai, finalmente estabeleceram-se em 1884, em Clyde, Ohio, local que inspirou o cenário de muitas das suas histórias. Depois da morte de sua mãe, Anderson deixou Clyde e mudou-se para Chicago, Illinois, onde vivia um dos seus irmãos. Trabalhou lá como operário entre 1896 e 1898 até servir no exército durante a Guerra Hispano-Americana. Após a guerra, em 1900, Anderson seguiu o seu irmão que tinha aceitado o trabalho como artista na Crowell Publishing Company e regressou a Ohio, completando finalmente a sua escolaridade na Wittenberg Academy. Anderson encontrou na companhia do seu irmão um ambiente francamente culto. Porém, a influência de artistas era mais importante para Anderson numa perspetiva de progresso próprio no mundo dos negócios. A Crowell Publishing Company garantiu-lhe emprego em Chicago como copywriter, cargo em que foi muito bem sucedido. Em 1904 casou com Cornelia Lane,

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filha de um empresário abastado de Ohio, e tornou-se num marido burguês e pai de três filhos num espaço de três anos, embora tivesse sempre aspirado a ser um artista. Em 1906, deixou Chicago e voltou para Ohio. Nos seis anos seguintes, Anderson fundou duas firmas de tintas e geriu um serviço de entregas, porém passava cada vez mais do seu tempo livre a escrever.

Em Novembro de 1912, Anderson experienciou um colapso psicológico, sofreu de um esgotamento mental, desaparecendo do seu escritório e tendo sido encontrado quatro dias depois. Mais tarde, Anderson descreve este episódio como uma fuga consciente da sua existência materialista, como relata George Parker Anderson na sua obra Research Guide to American Literature: American Modernism, 1914-1945:

“For Sherwood Anderson writing was a second career. He was a successful business owner in Elyria, Ohio, in 1912 when, after a nervous breakdown, he decided he could no longer reconcile his creative ambitions with the demands of a materialistic life. Consequently, he abandoned his business and family to pursue a literary calling” (Anderson, 2010: 103)

Este acontecimento gerou muitos elogios de colegas escritores seus mais novos que enalteceram a sua coragem e o seu espírito heróico. Para corroborar esta perspetiva do episódio bizarro de Anderson, cito Marina Porcelli em “La matéria de lo vivido”,

“(…) y a partir de lo que posteriormente se conoció como “su colapso”, ese lúcido abandono para siempre del orden burgués, llegó a Chicago donde se afirmó en su escritura de cuentos cortos. Irse es el eje de su obra: liberarse, desaparecer repentinamente, salir por fin. Vivir de otro modo, lo que implica también entender y concebir la literatura de otro modo” (2009: s.p.)1

A 28 de Novembro de 1912, Sherwood Anderson decidiu dedicar-se à escrita, facto que veio a tomar proporções míticas no seu papel na história da literatura norte-americana. Trocou os negócios pela literatura desistindo do seu cargo como presidente da Anderson Manufacturing Co., em Elyria, Ohio. Anderson abandonou não só o sonho de se tornar um homem de negócios rico e com sucesso na América, mas também as

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suas responsabilidades como cidadão de classe média, incluindo a sua função de pai e esposo. Riço Direitinho (2010) refere no título de um artigo do suplemento Ipsilon do Jornal Público que “Sherwood Anderson trocou as tintas de parede pela tinta permanente”.2

Embora tenha sofrido críticas durante vários anos, pode considerar-se Anderson como o melhor arquétipo do americano dotado, preso entre o mundo da riqueza, do sucesso, da respeitabilidade e da família, por um lado, e o da criatividade, por outro. Libertou-se assim de um certo conjunto de valores que a sociedade americana preservava e ainda hoje preserva, talvez de uma forma não tão marcada como na época em que viveu. Como refere Burbank(1964) no prefácio do seu livro Sherwood Anderson, “(...) he was repelled by the squalor and standardization of the new industrial metropolises (…)”. Anderson abandonou, por assim dizer o “american dream” em detrimento da procura de uma realização pessoal que a sua vocação ditava. Como relatam Baym et al.(1989),

“Sherwood Anderson was approaching middle age when, giving in to long-deferred ambitions, he left a successful business career to become a writer (...). he worked furiously to make up for his late start, producing novels, short stories, essays, and an autobiography” (Baym 1989: 1114)

Regressou a Chicago e voltou a trabalhar na agência de propaganda, em vez de se tornar num artista boémio. Escreveu circulares e, nos seus tempos livres, continuava a escrever incessantemente. Em 1916, divorciou-se de Cornelia e voltou a casar-se com Tennessee Mitchell. Nesse mesmo ano, encorajado por autores como Carl Sandburg e Floyd Dell, Anderson publicou o seu primeiro livro aos quarenta anos, intitulado Windy McPherson's Son, um romance que trata a vida de um rapaz numa vila no Iowa. Juntamente com os seus livros seguintes, o romance passado na região carbonífera da Pennsylvania, Marching Men (1917) e o livro de poemas Mid-American Chants (1918), Anderson afirmou que os seus primeiros romances eram crus e imaturos. Somente em 1919, Sherwood Anderson ficaria a ser conhecido com a sua clássica coleção de vinte e dois contos, Winesburg, Ohio, que chamou a atenção do público e da crítica pelas suas

2José Riço Direitinho (2010), in http://ipsilon.publico.pt/livros/texto.aspx?id=254120 acedido em 7/7/2011

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histórias interligadas de habitantes de uma pequena vila do Midwest que dão voz à filosofia de vida expressa em todas as suas obras posteriores. George Parker Anderson observa,

“Around this time he read Masters’s poetry collection Spoon River Anthology (1915), in which the inhabitants of a small-town cemetery soliloquize about their humble lives from beyond the grave. (…) Anderson stayed up all night reading Masters’s work, which “crystallized” Anderson’s idea for his own collection. Masters’s work resonated with Anderson’s Whitmanesque desire to give voice to the ordinary people around him, who were often overlooked as subjects for fiction.” (Anderson, 2010: 103)

A narrativa é unida pela presença de George Willard, um jovem repórter, que está revoltado contra as limitações da vida numa pequena vila e que serve como contraste aos restantes habitantes da vila. Winesburg, Ohio exemplifica muitos dos traços recorrentes e mais proeminentes do trabalho de Anderson: personagens que se debatem com as dificuldades da vida numa pequena vila, com ênfase nas experiências da solidão, alienação e frustração, e um estilo de escrita lírica que tenta capturar os ritmos do pensamento humano. O autor descreve as frustrações dessas personagens incapazes de se adaptarem aos novos aspectos da vida. É uma coleção de exemplos excelentes do género short story e que consagrou Anderson como um autor americano modernista e talentoso. Muitos críticos afirmam que estas histórias retratam os lados por vezes “grotescos” da condição humana incluindo a pobreza, a marginalização, o amor e o romance, como afirma Rex Burbank no prefácio da obra Sherwood Anderson:

“(…) a study of Winesburg, Ohio as a work in which Anderson emphasized the grotesque and used his narrative of emerging psychic and moral consciousness as an implied norm (as distinguished from a directly stated theme) with great effect and created an enduring masterpiece” (Burbank 1964: Preface)

Outros consideram ainda que este é um romance e uma das melhores obras em língua inglesa do século XX. Anderson foi um mestre no naturalismo literário, que oferece uma avaliação realista severa e muitas vezes pessimista dos assuntos humanos. Além disso, Sherwood Anderson desenvolveu o conceito “the grotesque” nesta obra, que George Parker Anderson explica:

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“Winesburg, Ohio opens with an introductory piece, “The Book of the Grotesque”(originally Anderson’s title for the whole collection), which lays out the concept of “the grotesque” that the subsequent stories illustrate: as a person embraces a particular truth and tries to live solely by it, that single-mindedness distorts the person’s life and makes of the truth a falsehood”(Anderson 2010: 104)

Winesburg, Ohio, obra culturalmente importante, possuiu também uma posição crucial como ponto de contacto estilístico para os escritores modernistas americanos. Segundo Margot Norris (1991) citada em Elliot,

“The high modernistic prototype of this neogothic mode of fiction was created by Sherwood Anderson, who wrote his “Book of the Grotesque,” a collection of tales hidden, anguished, small-town lives published as Winesburg, Ohio (1919), under the influence of the pure syntax and language he had first encountered in the writing of Gertrude Stein’s Three Lives and Tender Buttons. Anderson, who in 1932 joined fifty-one other writers in signing a “manifesto” backing a Communist presidential ticket, in turn influenced William Faulkner and Nathanael West (Miss Lonelyhearts [1933] and The Day of the Locust [1939]), two other American novelists in whose fiction the lives of simple, poor, and alienated people are dilated, by sometimes fantastic narrative and stylistic distortions, into subjectivities invaded by nightmare, criminality, and madness” (1991: 327) 3

Esta obra, um Bildungsroman episódico, teria nos vinte anos seguintes uma profunda influência na escrita da short-story americana, devido ao seu estilo de prosa inspirado no discurso coloquial e de uma forma experimental (metade romance, metade contos). Em 1998, a Modern Library nomeou Winesburg, Ohio como um dos cem melhores romances de língua inglesa do século XX. A obra de Anderson influenciou muitos escritores. Como relata Martha Curry citada por Lauter:

“(...) Chicago (...)He met the established writer Theodore Dreiser and the aspiring writer Ernest Hemingway. In New Orleans (...) he met the young William Faulkner. These younger writers, along with Erskine Caldwell, F. Scott Fitzgerald, Jean Toomer, and many others, became indebted to Anderson´s new method of storytelling and new structuring of stories into a story cycle. In fact, Faulkner later said of Anderson: “He was the father of my whole generation of writers” (Lauter 1994: 1210)

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Muitas das contribuições de Anderson para a literatura norte-americana refletem as suas próprias lutas entre os mundos do material e do espiritual, como marido, pai, autor e homem de negócios e abrangem também questões tão amplas como as condições de trabalho e o casamento:

“He [Anderson] felt drawn, by turns, to the lusty excitement and dramatic turbulence of Chicago and to the elemental simplicity and dark mysteriousness of the Midwestern cornfields; to the sophisticated intellectuals of the Northern cities and to the Southern hill folk and Negro river hands.” (Burbank 1964: Preface)

Segundo Curry, citada por Lauter: “In depicting the inhabitants of the small mid-western towns at the turn of the century, Anderson depicts the struggles of all of us, especially when we are on the threshold of adulthood” (Lauter 1994: 1210).

Anderson sentiu-se pressionado a escrever romances e, independentemente do sucesso dos seus contos, publicou Poor White em 1920. Foi um sucesso e Anderson foi considerado como estando na sua melhor forma. Outras obras foram publicadas no apogeu da sua reputação, que incluem as coleções de histórias e poemas de The Triumph of the Egg (1921), Horses and Men (1923), histórias com temática relativa a corridas de cavalos, e A Story Teller's Story, uma autobiografia publicada em 1924.

Influenciado por autores tão notáveis como Carl Sandburg e Gertrude Stein, Anderson tornou-se conhecido, possivelmente devido aos seus primeiros anos de vida transitória, pelas suas histórias que deram voz às personagens de pequenas vilas americanas e ao empenho destas em encontrar o sonho americano. As suas tentativas de escrever poesia foram, todavia, mal sucedidas, sendo a primeira uma coleção de versos livres intitulada Mid-American Chants datada de 1918. Geralmente classificado como um escritor realista, preocupado em representar a vida e experiências humanas com a maior verosimilhança possível, Anderson viu-se como parte integrante da tradição literária de autores como Walt Whitman, Mark Twain, Theodore Dreiser, que prezaram o Americano comum. Sherwood Anderson deixou a sua marca, influenciando autores como Ernest Hemingway, William Faulkner, F. Scott Fitzgerald, Thomas Wolfe, William Saroyan. Citando, de novo, Marina Porcelli, “Y fue justamente esa concepción de la aventura y la experiencia como origen y basamento de la escritura la que pesó con fuerza brutal sobre los escritores norteamericanos que siguieron” (Porcelli 2009: s.p.).

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Hemingway e Faulkner publicaram os seus primeiros livros com a ajuda de Anderson, embora depois o tenham vindo a criticar – Hemingway parodiou o estilo de Anderson em The Torrents of Spring (1926). No seu estudo de Sherwood Anderson, Irving Howe, crítico literário americano, declara em jeito de defesa de Anderson que muitos criticavam e não suportavam a sua escrita:

“Sherwood Anderson was a minor writer, though in a few crucial instances he did first-rate, perhaps even major, work. He was a minor writer, yet one who ought to be of special interest to Americans, for in his stories he evoked aspects of our experience – those feelings of loneliness, yearning, and muted love – which lie buried beneath the surface of our culture” (Howe 1966: Author’s Note)

Em 1921, Anderson foi distinguido com o primeiro prémio The Dial Award pelo seu contributo na literatura Americana. No ano de 1922, Anderson separou-se de Mitchell para dois anos depois se casar com Elizabeth Prall. Many Marriages, um romance sobre a tentativa de fuga de um homem, foi publicado em 1923 e, em 1925, Dark Laughter ou foi editada. Com esta obra, Anderson atinge a maturidade artística, tanto no seu estilo simples e direto como no domínio da forma; aqui relata a sua experiência na cidade de New Orleans. Anderson viajou até à Virginia e criou uma ligação tão forte com o campo e a zona rural que lá comprou vários terrenos. Seguiram-se os livros Tar: A Midwest Childhood e Sherwood Anderson’s Notebook, ambos de 1926. Em 1927, tornou-se também proprietário da Virginia's Marion Publishing Company e editor de dois jornais. O seu livro seguinte, Hello Towns! de 1929, é uma narrativa de visitas a pequenas vilas e contém alguns dos seus editoriais e rascunhos. De Return To Winesburg e The Buck Fever Papers foram também reunidos fragmentos escritos por Anderson para o jornal, que foram publicados em 1967 e 1971, respetivamente.

Após outro casamento falhado com Elizabeth Prall, o autor casou-se com Eleanor Copenhaver, com quem finalmente pareceu ser feliz. Juntos viajaram por toda a Europa e estudaram as condições sociais dos países por onde passaram. As suas cartas de amor foram publicadas em 1991.

Em 1930, Sherwood Anderson começou a escrever sobre as condições de trabalho no Sul durante a Grande Depressão. Entre as suas publicações dos anos 30, estavam Beyond Desire (1932), o seu primeiro romance em sete anos, onde está

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presente a crítica à economia materialista que atormentou os trabalhadores no Sul industrial, Death in the Woods and Other Stories (1933), Puzzled America (1935), um livro de ensaios baseado nas suas extensas viagens pelos Estados Unidos, e o romance Kit Brandon (1936). Estas três obras apresentam personagens presas em situações, com as quais não conseguem lidar. Em 1937, publicou Plays, Winesburg and Others. O seu último trabalho é uma coleção extensa de ensaios intitulada Home Town de 1940. Dark Laughter foi o seu único best-seller, porém Winesburg Ohio é inequivocamente o seu trabalho mais famoso.

Segundo Howe, que analisa as duas perspetivas sobre Anderson enquanto escritor:

“For his Chicago friends and a few of his critics Anderson was essentially a folk or sectional writer who did his best work in the Midwest and was bewildered and contaminated by the cosmopolitan East. For his New York friends and most of his critics Anderson was a writer of undisciplined talent who, after a few creative years, desperately needed a sustaining vision of life and an organized knowledge of craft” (Howe 1966: 253)

Embora a sua influência estivesse a desvanecer durante este último período, muitas passagens fulcrais da prosa americana surgiram na sua escrita até à última obra. Desde então, nos anos que se seguiram, Anderson tem sido redescoberto e estimado como idealizador dos modos de pensamento e dos temas sociais pelos quais tinha sido criticado depois do seu auge: morte, sofrimento, dor, pobreza. William Dean Howells (citado por Litz, 1980: 263), também criticado pelos seus pares no advento do realismo na América, defendia uma ficção que fizesse jus ao cenário americano:

“Sin and suffering and shame there must always be in the world, I suppose (…). We have death, too, in America, and a great deal of disagreeable and painful disease, which the multiplicity of our patent medicines does not seem to cure, but this is tragedy that comes in the very nature of things, (…) it is well to be true to the facts, and to see that, apart from these purely mortal troubles, the race here has enjoyed conditions in which most of the ills that have darkened its annals might be averted by honest work and unselfish behavior”.

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Anderson morreu, aos sessenta e quatro anos de idade, de peritonite no dia 8 de Março de 1941 quando viajava para o Panamá. No seu epitáfio, pode ler-se “Life, Not Death, is the Great Adventure.” (“A Vida, Não A Morte, é a Grande Aventura.”). As suas Memoirs (1942) e Letters (1953) foram publicadas postumamente.

Death in the Woods

“Death in the Woods is a signal junction in Anderson's career and is to my mind one of the finest stories in our language.”—Jim Harrison4

Quando li o primeiro conto do livro Death in the Woods and Other Stories, “Death in the Woods”, apercebi-me de que estava perante uma short-story de estilo único e de uma realidade e regionalismo que valia a pena explorar, pesquisando sobre esta obra e traduzindo-a.

4 Extracto de recensão da obra Death in the Woods and Other Stories Liveright; 1 st edition (April 3,

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“Death in the Woods”, título também desta antologia de 1933, é geralmente considerada o melhor e mais característico conto de Anderson. Nele, um narrador anónimo é assombrado pela memória da sua infância. Numa tentativa de compreender um incidente enigmático, este regressa à história várias vezes, parecendo revolver cada vez mais perto a verdade com cada pormenor. A este respeito, Rex Burbank reconhece a importância deste conto, resumindo-o e analisando-o: “He [o narrador] gives all the facts he knows and sums up the obvious meaning of the tale; but the real meaning of the story lies in the total effect the episode has upon the teller himself.” (Burbank 1964: 126).

Ao compor “Death in the Woods”, Sherwood Anderson passou por um processo semelhante. Apesar de a história ter sido publicada em 1933, Anderson tinha começado a trabalhar nela pelo menos dezassete anos antes. Um fragmento de dez páginas que esboça vários elementos-chave de “Death in the Woods”, incluindo um narrador que testemunha uma cena misteriosa numa noite de neve e de luar que envolve uma matilha de cães que se encontram ao redor do corpo de uma mulher morta:

“It concerns a farm woman-old (…) who spent her life feeding animals, including the “animal hunger” of her brutal and negligent husband and son. Returning home from the village on winter night with a bag of food strapped on her shoulder, she sat down to rest beneath a tree, fell into an exhausted sleep, and froze to death. When she was found (…) her clothes had been torn from her body and the sack of food ripped open and emptied by her four dogs, which had dragged her body into the clearing as they pulled at the bag tied to her shoulder. In the snow, was a circular path made by the dogs during the night” (Burbank 1964: 126).

Anderson, no final do conto, remete o leitor para um ritual estranho feito pelos cães, um regresso ao estado primitivo e selvagem, dando ênfase à beleza e ao mistério que residem nos níveis mais básicos da vida. Rex Burbank esclarece a visão do narrador da história: “For him, the scene became a part of his imaginative life; and, mystified, he unconsciously experienced the complex, paradoxical nature of beauty and took on a new consciousness of what life is worth” (Burbank 1964: 127). Curry citada em Lauter considera que esta visão da morte por parte do rapaz:

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“(...) tells the story about the moment in a young boy’s life when he realizes that there is a meaning behind Ma Grimes´s existence and a radiance to her body after death. Ultimately, it tells the story of the way Ma Grimes feeds the mature narrator’s artistic life.” (Lauter 1994: 1211).

Na sua introdução do livro The Teller’s Tales que contém um conjunto de contos da autoria de Anderson selecionados pelo próprio, Frank Gado acrescenta ainda:

“The image of the woman – old and exhausted yet strangely young as she lies dead in the snow, circled by the running dogs that deputize for all the living creatures who have depended on her providing for them – has captured the narrator’s imagination because of the beauty in its completeness. Mrs. Grimes has only precipitated that image, which, in its composition of contrarieties, represents the mystery of life” (Gado 1983: 19).

O autor completou outros rascunhos e esboços nos anos decorridos entre o primeiro fragmento e a publicação final. O próprio Anderson experienciou muitas das coisas a que tanto o narrador como a velha são submetidos em “Death in the Woods”. Anderson passou algum tempo a trabalhar numa quinta de um alemão, e também ele teve uma vez um encontro com uma matilha numa noite de Inverno num bosque. A personagem de Mrs. Grimes é baseada, em parte, na própria mãe de Anderson, uma mulher reservada, prudente e trabalhadora. Podemos verificar essa vivência de alguns acontecimentos de acordo com o que é dito na obra de Rex Burbank:

“He has rejected Chicago and New York for the simple life among mountain folk; and, out of his wanderings through the hills around Marion, he accumulated the impressions of the hill-folk that became the materials for such admirable but minor sketches as “These Mountaineers”, which were collected in Death in the Woods” (Burbank 1964: 129)

“Death in the Woods” é uma narração de eventos da perspetiva do narrador, enquanto este tenta explicar a morte e a relação desta com outras vidas. Os narradores em cada história são geralmente incertos, mas Anderson pretende retratar narradores disfuncionais que estão a tentar encontrar um significado e beleza na vida do dia-a-dia das pessoas comuns. A sua técnica circular de contar histórias contribui para uma leitura fascinante. Todo o livro segue esta técnica, assim como as suas histórias individuais.

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Por exemplo, neste primeiro conto o narrador tenta organizar as suas memórias, olhando para trás, e criando um significado e beleza nelas. Em vez de se lembrar de uma mulher idosa, ele recorda-se de uma figura linda e escultural, quase marmórea: “It may have been the snow (…),that made it look so white and lovely, so like marble” (Anderson 1961: 21). Para além disso, deparamo-nos com uma mulher maltratada pela família e escravizada durante toda a sua vida e, ao mesmo tempo, existe uma beleza escondida no grotesco e na condição primitiva em que se encontra:

“As a feeder of animals and men, the woman has been so thoroughly subservient, alone, and without identity and love that there is a kind of grotesque harmony and beauty in her absolute human negation, a primitive meaningfulness hidden in her complete degradation” (Burbank 1964: 127)

Anderson usa esta técnica circular, de modo a que os narradores tentem resolver as suas memórias, experiências passadas e histórias que ouviram anteriormente de uma maneira que possa conectá-los para estes criarem um tipo de significado. A intenção é que a informação não seja factual. Anderson tenta encontrar beleza na vida quotidiana, e até no grotesco das pessoas comuns, o que corresponde ao tema que corre pelas histórias de Death in the Woods and Other Stories.

Ainda fresco e surpreendentemente contemporâneo, o forte realismo destas histórias exploram cuidadosamente os sonhos e emoções das personagens inesquecíveis de Sherwood Anderson. O realismo e, mais tarde, o naturalismo, nos quais Sherwood Anderson se insere, enquanto correntes literárias, surgiram pela necessidade de reação contra o idealismo e romantismo, como A. Walton Litz expõe:

“Hemingway and Faulkner and Sherwood Anderson (…) found their task that much easier because the “regional” writers had broken through the genteel tradition to record the actual rhythms of every-day speech. (…) The more sophisticated and self-conscious writers (…) began to explore the effects which the new subject matter and freedom of expression would have on fictional treatment, using terms such as “realism” and “naturalism”. The realist position (…) is essentially a plea for common-sense fidelity to the realities of contemporary life” (Litz 1980: 256).

Assim, em Death in the Woods and Other Stories, viaja-se profundamente no coração da América tal como Anderson a via, para encontrar um homem introspetivo, num

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cenário deserto e solitário, questionando o sentido do seu mundo. Tendo em conta que o realismo procura descrever a realidade tal como a vemos e esse facto verifica-se em “Death in the Woods”, também teremos de assinalar que à volta das descrições de factos e de estados de alma realistas das personagens, Anderson introduz algumas cenas de algum misticismo, quiçá magia; por paradoxal que possa parecer, a magia e o misticismo fazem também parte da vida real, pois, em Anderson, os homens vivem nesta conjuntura - a dura realidade de Mrs. Grimes, por exemplo, também foi acompanhada por um véu diáfano que deixou ver, se não as suas ações, pelo menos o que subentendemos do seu pensar. O facto de o conto “Death in the Woods”, constar do livro basilar de Harold Bloom, “The Western Canon”, é significativo do valor e da qualidade que o grande crítico reconhece a esta obra. Bloom considera como canónicas as obras que são eternas do ponto de vista secular, como fazendo parte de uma cultura elitista por oposição às obras conotadas com a cultura popular, muitas delas estudadas e referidas nos Cultural Studies, área de que Bloom é um acérrimo opositor. Apesar do facto de a “lista” de Bloom ser extensa e globalizante, pertencer-lhe não terá sido fácil. Como afirma Richard Bernstein numa das resenhas de “The Western Canon” (1994): “(...) A voluminous, challenging, luminous, inexhaustibly erudite defence of a concept that should need no defence- that there are Great and Enduring Works of Literature whose only measure is their intrinsic quality and influence (…)”

Tanto Winesburg, Ohio como Death in The Woods constituem obras que convocam a qualidade intrínseca e influência de Sherwood Anderson. Podemos questionar se William Faulkner, um dos “influenciados”, teria sido o escritor que foi, se não tivesse tido o exemplo de Anderson que, como já se referiu, constituiu um role-model para alguns escritores da lost generation, tal como Gertrude Stein a classificou.

De acordo com muitos críticos, os poderes artísticos de Anderson estavam a sofrer algum declínio, no entanto Death in the Woods and Other Stories destaca-se como obra de arte, igualando o brilho das histórias reunidas no seu melhor trabalho, Winesburg, Ohio.

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Sherwood Anderson em Portugal

Sherwood Anderson é considerado um dos melhores “storytellers” da sua geração. Romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e editor de jornal americano, Anderson deixou a sua marca, enquanto mentor também, em Ernest Hemingway e William Faulkner. A sua influência na short-story americana é inequívoca e está intimamente ligada, de igual modo, ao seu regionalismo. De acordo com Arthur Walton Litz,

“The new areas of regional experience explored by post-Civil War writers enriched the language of the short story, until by the end of the century the short-story reader had before him a fictional chronicle of New England, the South, the Middle West, and the Far West, the stories of each region providing a faithful record of local customs and dialects” (Litz, 1980: 255).

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Winesburg Ohio e Death in the Woods são disto prova. Ambos vivem no mundo específico do Midwest Americano, nas suas paisagens, profissões, ambiência, no carácter dos homens e das mulheres, dando ao leitor quase a certeza de que aqueles enredos só poderiam ter lugar ali. Alguns problemas e dificuldades de tradução advêm deste facto, pois ao longo do processo de tradução do segundo conto, deparei-me com expressões e situações de difícil passagem para a língua portuguesa.

Na minha pesquisa de obras traduzidas e publicadas em Portugal, descobri que apenas um livro de Sherwood Anderson foi traduzido até hoje. A primeira tradução de Sherwood Anderson publicada em Portugal remonta aos anos 50 do século XX e consta da base de dados da Biblioteca Nacional. Trata-se de Winesburg, Ohio e é traduzido como A Cidade dos Estranhos, da editora Livros do Brasil, Lisboa, [195-]. Os responsáveis por esta tradução são os brasileiros, James Amado e Moacyr Werneck de Castro, tendo esta tradução sido posteriormente revista por A. Vieira d'Areia.

Em Março de 2010, surge a segunda tradução de Winesburg, Ohio pelas mãos de José Lima e pelas Edições Ahab, no Porto, que investem neste autor norte-americano menos conhecido do grande público. José Lima mantém o título original e John Updike ocupa-se do posfácio da tradução portuguesa.

Uma vez que apenas Winesburg, Ohio foi traduzido para a língua portuguesa, no levantamento de recensões críticas e artigos publicados em Portugal relativamente a Sherwood Anderson verifica-se que estes apenas dizem respeito a esta mesma obra. A 25 de Maio de 2010, no Jornal de Letras Artes e Ideias, Luís Ricardo Duarte partilha a sua opinião sobre a obra traduzida: “[…]Com o seu estilo simples e depurado, Sherwood Anderson apresenta-se como um velho contador de histórias, que atrai a atenção pela invulgaridade do que narra.” Mas, como nota John Updike no posfácio a esta edição portuguesa:

"as muitas personagens de Winesburg [Ohio], mais do que personalidades individuais, parecem, com os seus tiques repetitivos e a sua solidão uniforme, aspectos diferentes de uma personalidade" (2010: 251).

A coerência do romance está nessa unidade, que consegue extravasar as fronteiras da localidade imaginária (muito próxima da pequena Clyde onde o escritor cresceu), fixando ânsias e incertezas que procuram romper um mundo fechado e de

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horizontes cerrados. Esta mesma lição estimulou outros escritores a criarem os seus territórios literários, como o Michigan de Hemingway ou o Mississipi de Faulkner. Porque, a acreditar em Anderson, que deixou uma vida de sucesso financeiro para se dedicar à escrita, estas personagens são como as “maçãs retorcidas” de Winesburg que ninguém quer (as boas viajam em camiões rumo à cidade) únicas e deliciosas.

Este texto é elucidativo e, sem dúvida, uma evidência de que a publicação da obra em língua portuguesa veio preencher uma lacuna, assim como representa uma vontade de divulgação deste autor. No entanto, a inexistência de mais textos críticos, tanto a nível jornalístico como académico, leva-me mais uma vez a crer que o objetivo de divulgação de Anderson ainda não foi atingido. Reitero mais uma vez a minha intenção de que esta tradução venha a ser, pelo menos, um subsídio ou um extra para este intento editorial.

Tradução

Morte no Bosque I

Era uma velha e vivia numa quinta perto da vila onde eu vivia. Todas as pessoas de aldeias ou vilas tinham visto velhas como esta, mas ninguém sabe muito sobre elas. Uma mulher tão velha chega à aldeia num cavalo gasto e velho ou vem a pé com uma cesta. Talvez tenha algumas galinhas e ovos para vender. Trá-los numa cesta e leva-os a um merceeiro. Lá, ela negoceia-os. Recebe um pouco de carne de porco salgada e alguns feijões. A seguir pega num quilo ou dois de açúcar e um pouco de farinha.

Depois vai ao talhante e pede carne para cães. Talvez gaste dez ou quinze centavos, mas quando gasta, pede alguma coisa. Antigamente os talhantes davam fígado a qualquer pessoa que quisesse levá-lo. Na nossa família, estávamos sempre a comê-lo. Uma vez, um dos meus irmãos trouxe um fígado de vaca inteiro do matadouro perto da

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feira na nossa vila. Comíamos até estarmos fartos daquilo. Nunca custou nada. Tinha odiado pensar nisso desde então.

A velha da quinta ficou com um pouco de fígado e um osso para fazer sopa. Nunca visitava ninguém e, assim que tinha o que queria, fugia para casa. Pesava bastante para um corpo velho. Ninguém lhe dava boleia. As pessoas passavam por ela na estrada e nunca reparavam numa velha como ela.

Havia uma velha assim que costumava vir à vila e passava pela nossa casa num Verão e Outono quando eu era mais novo e estava doente com o chamado reumatismo inflamatório. Ia para casa mais tarde, levando uma trouxa pesada nas costas. Dois ou três cães grandes e magros seguiam-na.

A velha não era nada de especial. Era daquelas pessoas sem nome e que dificilmente alguém conhecia, mas entrou no meu pensamento. Só agora de repente me lembrei, depois de todos estes anos, dela e do que aconteceu. É uma história. O nome dela era Grimes, e vivia com o marido e filho numa casa pequena e sem pintura, na margem de um pequeno riacho a quatro milhas da vila.

O marido e o filho eram duros. Apesar de ter apenas vinte e um anos, o filho já tinha cumprido pena de prisão. Dizia-se que o marido da velha roubava cavalos e fugia com eles para outro condado. De vez em quando, quando se dava pela falta de um cavalo, o homem também desaparecia. Nunca ninguém o apanhou. Uma vez, quando eu estava por ali no estábulo do Tom Whitehead, o homem foi lá e sentou-se no banco em frente. Estavam lá outros dois ou três homens, mas ninguém falou com ele. Ficou sentado durante alguns minutos e depois levantou-se e foi-se embora. Quando estava a sair, virou-se para trás e olhou para os homens fixamente. Havia um olhar de desafio nos seus olhos. “Bem, tentei ser simpático. Vocês não querem falar comigo. Tem sido sempre assim aonde quer que eu vá nesta vila. Se, um dia, um dos vossos cavalos desaparecer, bem, e depois?” Não disse nada na verdade. “Apetecia-me dar-vos um murro nos queixos,” era mais ou menos o que os seus olhos diziam. Lembro-me de como a expressão dos seus olhos me fizera tremer.

O velho pertencia a uma família que já tinha tido dinheiro. O seu nome era Jake Grimes. É tudo claro agora. O seu pai, John Grimes, tinha sido proprietário de uma serração quando o país era novo, e tinha feito dinheiro. Depois começou a beber e a andar atrás de mulheres. Quando morreu, não havia restado muito.

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Jake estourou o resto. Muito em breve não haveria mais madeira para cortar e quase não haveria terras.

Ele cobiçou a mulher a um agricultor alemão, para quem ele foi trabalhar num dia de Junho na colheita de trigo. Ela era novinha, na altura, e morria de medo. Veja bem, o agricultor estava para tramar alguma com a rapariga – ela era, penso eu, uma escrava e a mulher dele tinha as suas suspeitas. Ela pegava com a rapariga quando o homem não estava. Depois, quando a mulher tinha de ir à vila buscar mantimentos, o agricultor ia atrás dela. Ela disse ao jovem Jake que na verdade nunca aconteceu nada, mas ele não sabia se havia de acreditar ou não.

Foi fácil convencê-la na primeira vez que saiu com esta jovem. Não teria casado com ela se o agricultor alemão não tivesse discutido com ele. Conseguiu com que ela fosse andar na carroça com ele uma noite quando estava a debulhar na quinta, e depois foi ter com ela na noite seguinte de Domingo.

Ela conseguiu sair da casa sem que o patrão visse, mas quando estava a sentar-se na carroça ele apareceu. Estava quase a escurecer e ele apareceu de repente à cabeça do cavalo. Agarrou o cavalo pela rédea e Jake sacou do seu chicote.

E que bem que saíram os dois! O alemão era forte. Talvez não se importasse se a sua mulher sabia ou não. Jake acertou-lhe na cara e nos ombros com o chicote, mas o cavalo começou a reagir e ele teve de sair.

Depois os dois homens atiraram-se um ao outro. A rapariga não os viu. O cavalo começou a fugir e correu quase uma milha pela estrada fora antes da rapariga o ter parado. Depois conseguiu amarrá-lo a uma árvore junto à estrada. (Pergunto-me como é que sei tudo isto. Deve ter ficado na minha cabeça pelas histórias da aldeia de quando eu era criança.) Jake encontrou-a lá depois de se ter zangado com o alemão. Ela estava encolhida na carroça, a chorar, aterrorizada. Contou muitas coisas ao Jake, como o alemão tinha tentado apanhá-la, como andou atrás dela uma vez no estábulo, como noutra vez, quando estavam sozinhos na casa, ele lhe rasgou o vestido todo à frente. O alemão, disse ela, podia tê-la apanhado dessa vez se ele não tivesse ouvido a sua mulher a chegar ao portão. Ela tinha ido à vila buscar mantimentos. Bem, estaria a levar o cavalo para o estábulo. O alemão conseguiu fugir para os campos sem que a sua mulher visse. Disse à rapariga que a matava se ela contasse. Que podia ela fazer? Mentiu sobre o vestido, dizendo que o rasgou no estábulo quando estava a dar de comer ao gado.

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Lembro-me agora de que ela era uma escrava e não sabia onde estavam o pai e a mãe. Talvez nem tivesse pai. Percebem o que quero dizer.

Estes escravos eram muitas vezes cruelmente tratados. Eram crianças que não tinham pais, na verdade cativas. Havia muito poucos orfanatos na época. Eram legalmente aprisionadas numa casa qualquer. A forma como acabavam era uma mera questão de sorte.

II

Casou com Jake e teve um filho e uma filha, mas a filha morreu.

Depois ficou para tratar do gado. Era esse o seu trabalho. Na casa do alemão, ela cozinhava para ele e para a sua esposa. A esposa era uma mulher forte com ancas largas e trabalhava a maior parte do tempo nos campos com o marido. Cozinhava para eles, dava de comer às vacas no estábulo, dava de comer aos porcos, aos cavalos e às galinhas. Cada momento de cada dia, como em nova, era passado a alimentar alguma coisa.

Depois casou-se com Jake Grimes e ele tinha de ser alimentado. Ela era delicada, e quando estava casada há já três ou quatro anos, e depois de ter tido dois filhos, os ombros delgados curvaram-se.

Jake teve sempre muitos cães grandes à volta da casa, que ficava perto da serração abandonada perto do riacho. Estava sempre a negociar cavalos quando não estava a roubar alguma coisa e tinha uns magríssimos por lá. Também tinha três ou quatro porcos e uma vaca. Pastavam todos nos poucos acres que restavam da propriedade dos Grimes e Jake não trabalhava muito.

Endividou-se por causa de uma máquina de debulhar e usou-a durante vários anos, mas não rendeu nada. As pessoas não confiavam nele. Tinham medo de que ele roubasse os cereais à noite. Tinha de ir muito longe para arranjar trabalho e custava muito para chegar lá. No Inverno, caçava e cortava um pouco de lenha para ser vendida nalguma vila lá perto. Quando o filho cresceu, era tal e qual o pai. Embebedavam-se juntos. Se não houvesse nada para comer em casa quando eles voltassem, o velho batia na cabeça da velha. Ela tinha umas galinhas e tinha de matar uma delas à pressa.

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Quando estavam todas mortas, ela não tinha nenhum ovo para vender quando ia à vila, e depois o que faria?

Tinha de planear toda a sua vida para ter todas as coisas alimentadas, ter os porcos alimentados para que crescessem gordos e pudessem ser abatidos no Outono. Quando eram abatidos, o marido tirava a maior parte da carne para a levar para a vila e vendia-a. Se ele não o fizesse primeiro, fá-lo-ia o rapaz. Por vezes os dois lutavam e quando o faziam a velha permanecia de lado, a tremer.

Ela tinha o hábito de ficar em silêncio de qualquer maneira – isso era sabido. Às vezes, quando começou a parecer velha – ainda não tinha quarenta anos – e quando marido e filho estavam ambos fora, a negociar cavalos ou a beber ou a caçar ou a roubar, andava à volta da casa e do estábulo a murmurar para ela própria.

Como é que ia ter tudo alimentado? – este era o seu problema. Os cães tinham de ser alimentados. Não havia feno suficiente no estábulo para os cavalos e para a vaca. Se não dava de comer as galinhas, como é que elas poriam ovos? Sem ovos para vender, como é que ia conseguir ter as coisas na vila, coisas que ela tinha de ter para manter a vida na quinta? Graças a Deus não tinha de alimentar o marido – de uma certa maneira. Não durou muito tempo depois do casamento e depois da chegada dos bebés. Para onde ele ia nas suas longas viagens, ela não sabia. Às vezes ele estava longe de casa durante semanas, e depois do rapaz ter crescido iam para fora juntos.

Deixavam tudo em casa para ela gerir e ela não tinha dinheiro nenhum. Não conhecia ninguém. Nunca ninguém falava com ela na vila. Quando era Inverno, tinha de juntar paus de madeira para a fogueira, tinha de tentar manter o gado alimentado com muito pouco cereal.

O gado no estábulo gritava-lhe com fome, os cães seguiam-na. No Inverno as galinhas punham ovos suficientes. Amontoavam-se nos cantos do estábulo e ela ficava a vigiá-las. Se uma galinha põe um ovo no estábulo no Inverno e não se consegue encontrá-lo, ele congela e parte.

Um dia no Inverno a velha foi à vila com alguns ovos e os cães seguiram-na. Não tinha começado a caminhada até quase às três horas e a neve estava pesada. Não tinha andado a sentir-se muito bem há vários dias e então foi a murmurar, com pouca roupa, com os ombros curvados. Tinha um saco velho dos cereais onde levava os ovos, no fundo. Não havia muitos, mas no Inverno o preço dos ovos é elevado. Ficaria com um pouco de carne em troca dos ovos, um pouco de carne de porco salgada, um pouco

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de açúcar, e um pouco de café talvez. Poderia ser que o talhante lhe desse um pedaço de fígado.

Quando chegou à vila e estava a negociar os ovos, os cães deitaram-se à porta lá fora. Saiu-se muito bem, recebeu as coisas de que precisava, mais do que esperava. Depois foi ao talhante e ele deu-lhe um pouco de fígado e carne para os cães.

Era a primeira vez que alguém falava com ela amigavelmente desde há muito tempo. O talhante estava sozinho na loja quando ela entrou e ficou incomodado ao pensar nesta velha que parecia estar doente lá fora num dia assim. Estava muito frio e a neve, que tinha cessado durante a tarde, estava a cair outra vez. O talhante disse algo sobre o marido dela, o filho, praguejou contra eles, e a velha olhou-o fixamente, um olhar de leve surpresa enquanto falava. Ele disse que se o marido ou o filho recebessem o fígado ou os ossos com pedaços de carne pendurados que ele pôs no saco dos cereais, preferia ver-se a passar fome primeiro.

A morrer de fome, não é? Bem, as coisas tinham de ser alimentadas. Os homens tinham de ser alimentados, e os cavalos que não serviam para nada, mas talvez pudessem ser negociados, e a pobre vaca magra que não dava leite nenhum há três meses.

Cavalos, vacas, porcos, cães, homens.

III

A velha tinha de regressar antes que ficasse escuro se pudesse. Os cães seguiam-na, a cheirar o saco pesado dos cereais que ela tinha amarrado às costas. Quando chegou à periferia da vila, parou perto de uma cerca e amarrou o saco às costas com um pedaço de corda que tinha trazido no bolso do vestido mesmo para esse efeito. Era uma maneira mais fácil de levá-lo. Os braços doíam-lhe. Era difícil quando tinha de rastejar por baixo de cercas e houve uma vez que ela caiu e aterrou na neve. Os cães pularam sobre ela. Teve de se debater para voltar a chegar aos pés, mas conseguiu. O fito de subir por cima das cercas era que havia um atalho por cima de uma colina e através de um bosque. Podia ter ido à volta pela estrada, mas era uma milha mais longe por esse caminho. Estava com medo de não conseguir. E depois, além disso, o gado tinha de ser alimentado. Havia pouco feno e pouco milho. Talvez o seu marido e filho trouxessem

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algum para casa quando chegassem. Eles tinham ido embora na única carroça que a família Grimes tinha, uma coisa raquítica, um cavalo raquítico preso à carroça, outros dois cavalos raquíticos levados por cabrestos. Iam negociar cavalos, arranjar um pouco de dinheiro se conseguissem. Poderiam chegar a casa bêbedos. Seria bom ter algo em casa quando eles chegassem.

O filho tinha um caso com uma mulher da sede de concelho, a quinze milhas de distância. Era uma mulher bastante dura, uma mulher forte. Uma vez, no Verão, o filho tinha-a trazido para casa. Ambos tinham estado a beber. Jake Grimes estava fora e o filho e a sua mulher davam ordens à velha como se esta fosse uma criada. Ela não se importava muito; estava habituada a isso. O que quer que acontecesse, ela nunca dizia nada. Era a sua maneira de se dar bem com eles. Tinha conseguido viver assim quando era uma rapariga jovem na casa do alemão e desde que casou com Jake. Nessa vez o filho trouxe a tal mulher para casa e ficaram lá a noite toda, dormindo juntos como se fossem casados. Isso não tinha chocado a velha, não muito. Tinha deixado de se chocar cedo na sua vida.

Com a trouxa às costas, continuou penosamente pelo campo aberto, caminhando com dificuldade na neve profunda, e entrou no bosque.

Havia um caminho, mas era difícil segui-lo. Logo depois do cimo da colina, onde o bosque era mais denso, havia uma pequena clareira. Alguém alguma vez tinha pensado em construir uma casa ali? A clareira era tão grande como um lote de construção na vila, grande o suficiente para uma casa e um jardim. O caminho corria ao longo do lado da clareira, e quando chegou lá, a velha sentou-se para descansar ao pé de uma árvore.

Era uma tolice fazer isso. Quando se acomodou, a trouxa contra o tronco da árvore, era bom, mas e levantar-se outra vez? Preocupou-se com isso por um momento e depois calmamente fechou os olhos.

Deve ter dormido durante um tempo. Quando se está naquele frio, não se consegue ter mais frio. A tarde tornava-se um pouco mais quente e a neve chegava mais espessa que nunca. Depois passado um bocado o tempo clareou. A lua até apareceu.

Havia quatro cães dos Grimes que tinham seguido a Sra. Grimes até à vila, todos altos e magros. Homens assim como o Sr. Grimes e o seu filho tinham sempre cães assim. Dão-lhes pontapés e maltratam-nos, mas eles ficam. Os cães dos Grimes, para que não passassem fome, tinham eles próprios de se alimentar, e tinham feito isso

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enquanto a velha dormia com as costas para a árvore ao lado da clareira. Tinham estado a perseguir coelhos no bosque e nos campos adjacentes e no seu passeio foram buscar outros três cães de quinta.

Passado um bocado todos os cães voltaram para a clareira. Estavam excitados com alguma coisa. Noites assim, frias e claras e com lua, fazem algo aos cães. Podia ser que algum instinto antigo, desde o tempo em que eram lobos e vagueavam pelo bosque em alcateia nas noites de Inverno, voltasse para eles.

Os cães na clareira, perante a velha, tinham apanhado dois ou três coelhos e a sua fome imediata tinha sido satisfeita. Começaram a brincar, correndo em círculos na clareira. Às voltas e voltas corriam, cada focinho do cão na cauda do cão seguinte. Na clareira, debaixo das árvores carregadas de neve e debaixo da lua de Inverno fizeram uma imagem estranha, a correr assim em silêncio, num círculo a corrida deles tinha batido na neve suave. Os cães não faziam qualquer som. Corriam à volta e à volta do círculo.

Pode ter sido o que a velha viu eles fazerem antes de morrer. Pode ter acordado uma ou duas vezes e teve a estranha visão com os olhos turvos e velhos.

Não estaria com muito frio agora, apenas sonolenta. A vida aguenta muito tempo. Talvez a velha não estivesse em si. Pode ter sonhado com a sua mocidade, na casa do alemão, e antes disso, quando era uma criança e antes de a sua mãe desaparecer e a deixar.

Os seus sonhos não podiam ter sido muito agradáveis. Não muitas coisas agradáveis tinham-lhe acontecido. Às vezes um dos cães dos Grimes abandonava o círculo da corrida e ia para diante dela. O cão encostou o seu focinho perto da cara dela. A língua vermelha dele estava de fora.

A corrida dos cães pode ter sido uma espécie de ritual da morte. Pode ter sido o instinto primitivo do lobo, que tendo sido despertado nos cães pela noite e pela corrida, os fez de algum modo ter medo.

“Agora não somos mais lobos. Somos cães, os criados dos homens. Mantém-te vivo, homem! Quando o homem morre, nós tornamo-nos lobos outra vez.”

Quando um dos cães vinha onde a velha estava sentada com as costas contra a árvore e empurrava o seu focinho perto da cara dela, parecia satisfeito e voltava para correr com a matilha. Todos os cães dos Grimes fizeram-no em algum momento durante a noite, antes de ela morrer. Eu soube tudo acerca disto mais tarde, quando cresci,

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porque uma vez num bosque em Illinois, noutra noite de Inverno, vi uma matilha a agir exatamente assim. Os cães estavam à espera que eu morresse como tinham esperado pela morte da velha naquela noite quando eu era criança, mas quando aconteceu comigo eu era um jovem e não tinha qualquer intenção de morrer.

A velha morreu suave e silenciosamente. Quando morreu e quando um dos cães dos Grimes veio ter com ela e a encontrou morta, todos os cães pararam de correr.

Juntaram-se perto dela.

Bem, estava morta agora. Tinha alimentado os cães dos Grimes quando estava viva, e agora?

Havia a trouxa nas suas costas, o saco de cereais contendo o pedaço de carne de porco salgado, o fígado que o talhante lhe tinha dado, a carne para cães, os ossos para fazer sopa. O talhante na vila, tendo sido dominado subitamente por um sentimento de pena, tinha carregado o saco de cereais com muito peso. Tinha sido um grande fardo para a velha.

Era um grande fardo para os cães agora.

IV

Um dos cães dos Grimes saltou de repente para fora do grupo e começou a agarrar a trouxa nas costas da velha. Se os cães tivessem sido mesmo lobos, aquele teria sido o líder da matilha. O que ele fazia, todos os outros faziam.

Todos eles afundaram os dentes no saco dos cereais que a velha tinha amarrado com cordas às costas.

Arrastaram o corpo da velha para a clareira aberta. O vestido desgastado foi rapidamente rasgado dos ombros. Quando foi encontrada, um ou dois dias depois, o vestido tinha sido rasgado do corpo completamente até às ancas, mas os cães não tinham tocado no corpo. Tinham tirado a carne do saco dos cereais, apenas isso. O corpo estava congelado e duro quando foi encontrado, e os ombros eram tão estreitos e o corpo tão leve que na morte parecia o corpo de alguma rapariga encantadora.

Coisas assim aconteciam em vilas do Midwest, em quintas perto da vila, quando eu era mais novo. Um caçador atrás de coelhos encontrou o corpo da velha e não lhe

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tocou. Alguma coisa, o caminho redondo batido na pequena clareira coberta de neve, o silêncio do lugar, o lugar onde os cães tinham agarrado o corpo tentando puxar o saco dos cereais ou rasgá-lo – algo assustou o homem e ele correu para a vila.

Eu estava na rua principal com um dos meus irmãos que era o distribuidor de jornais da vila e que estava a levar os jornais da tarde para as lojas. Era quase noite.

O caçador entrou numa mercearia e contou a sua história. Depois foi a uma loja de ferramentas e a uma farmácia. Os homens começaram a juntar-se nos passeios. Depois partiram ao longo da estrada para o lugar no bosque.

O meu irmão devia ter continuado o seu negócio de distribuir jornais mas não o fez. Todos iam para o bosque. O cangalheiro foi e o delegado da vila. Vários homens subiram para uma carroça e foram para onde o caminho deixava a estrada e seguiram para o bosque, mas os cavalos não estavam muito bem ferrados e deslizavam nas estradas escorregadias. Não demoraram menos do que nós que fomos a caminhar.

O delegado da vila era um homem grande cuja perna tinha sido ferida na Guerra Civil. Levava uma bengala pesada e coxeava rapidamente pela estrada. Eu e o meu irmão seguíamo-lo, e enquanto íamos, outros homens e rapazes juntaram-se à multidão. Tinha ficado escuro quando chegámos onde a velha tinha deixado a estrada mas a lua tinha aparecido. O delegado estava a pensar que podia ter havido um assassínio. Estava sempre a fazer perguntas ao caçador. O caçador acompanhava com a arma sobre os ombros, um cão a segui-lo. Não é todos os dias que um caçador de coelhos tem a oportunidade de ser tão notável. Ele estava a tirar todo o partido disso, conduzindo a escolta com o delegado da vila. “Não vi feridas nenhumas. Era uma linda rapariga. A cara estava enterrada na neve. Não, não a conhecia.” Na realidade, o caçador não tinha olhado de perto para o corpo. Tinha-se assustado. Ela podia ter sido assassinada e alguém podia ter aparecido por detrás de uma árvore e assassiná-lo. Num bosque, no fim da tarde, quando as árvores estão todas desnudas e há neve branca no chão, quando tudo está silencioso, alguma coisa arrepiante se apodera da mente e do corpo. Se algo estranho ou sinistro acontecesse na vizinhança, tudo o que se pensa é fugir de lá o mais rápido possível.

A multidão de homens e rapazes tinha chegado onde a velha tinha atravessado o campo e subiu, seguindo o delegado e o caçador, a ligeira inclinação para dentro da floresta.

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Eu e o meu irmão estávamos calados. Ele tinha o seu maço de jornais num saco pendurado no ombro. Quando voltasse para a vila, teria de ir distribuir os jornais antes de ir para casa para o jantar. Se eu o acompanhasse, como ele já tinha sem dúvida determinado que eu devia, estaríamos ambos atrasados. Ou a mãe ou a nossa irmã mais velha teriam de aquecer o nosso jantar.

Bem, teríamos algo para contar. Um rapaz não tinha tal oportunidade muitas vezes. Foi sorte termos ido só por acaso à mercearia quando o caçador entrou. O caçador era um indivíduo da aldeia. Nenhum de nós o tinha visto antes.

Agora a multidão de homens e rapazes tinha chegado à clareira. A escuridão vem rapidamente em noites de Inverno assim, mas a lua cheia tornou tudo claro. Eu e o meu irmão ficámos em pé perto da árvore, debaixo da qual a velha tinha morrido.

Não parecia velha, deitada ali naquela luz, congelada e quieta. Um dos homens virou-a na neve e eu vi tudo. O meu corpo tremia com um sentimento estranho místico e o do meu irmão também. Podia ter sido do frio.

Nenhum de nós tinha visto um corpo de uma mulher antes. Pode ter sido a neve, a agarrar-se à carne congelada, que a fez parecer tão branca e adorável, assim como mármore. Nenhuma mulher tinha vindo com o grupo da vila; mas um dos homens, era o serralheiro da vila, tirou o seu sobretudo e estendeu-o sobre ela. Depois pegou nela nos braços e partiu para a vila, os outros todos seguindo silenciosamente. Nessa altura ninguém sabia quem ela era.

V

Eu tinha visto tudo, tinha visto a oval na neve, como uma pista de corrida em miniatura, onde os cães tinham corrido, tinha visto como os homens estavam perplexos, tinha visto os ombros brancos e nus que pareciam jovens, tinha ouvido os comentários sussurrados dos homens.

Os homens estavam simplesmente perplexos. Levaram o corpo ao cangalheiro, e quando o serralheiro, o caçador, o delegado e vários outros tinham entrado, fecharam a porta. Se o pai tivesse estado lá talvez pudesse ter entrado, mas nós rapazes não podíamos.

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Fui com o meu irmão distribuir o resto dos seus jornais e quando chegámos a casa, foi o meu irmão que contou a história.

Mantive-me calado e fui para a cama cedo. Pode ter sido porque eu não estava satisfeito com a maneira em que ele a contou.

Mais tarde, na vila, devo ter ouvido outros fragmentos da história da velha. Ela foi reconhecida no dia seguinte e houve uma investigação.

O marido e o filho foram encontrados algures e trazidos para a vila e houve uma tentativa de os relacionar com a morte da mulher, mas não resultou. Eles tinham álibis suficientemente perfeitos.

Porém, a vila estava contra eles. Tinham de sair. Para onde eles foram nunca soube.

Lembro-me apenas da imagem lá na floresta, os homens em volta, da figura nua que parecia de uma menina, de cara para baixo na neve, as pegadas feitas pelos cães que corriam e o céu aberto e frio de Inverno em cima. Fragmentos brancos de nuvens espalhavam-se no céu. Passavam a correr pelo pequeno espaço aberto entre as árvores.

A cena na floresta tinha-se tornado para mim, sem eu saber, a base para a verdadeira história que estou agora a tentar contar. Os fragmentos, vejam bem, tinham de ser apanhados lentamente, muito tempo depois.

As coisas aconteceram. Quando eu era rapaz, trabalhei na quinta de um alemão. A criada tinha medo do patrão. A mulher do agricultor odiava-a.

Vi coisas nesse lugar. Uma vez mais tarde, tive uma aventura meio sinistra e mística com cães numa floresta de Illinois numa noite clara de Inverno, iluminada pela lua. Quando andava na escola, e num dia de Verão, fui com um amigo ao longo de um riacho a algumas milhas da vila e cheguei à casa onde a velha tinha vivido. Ninguém tinha vivido na casa desde a sua morte. As dobradiças das portas estavam partidas; as janelas estavam todas partidas. Enquanto eu e o rapaz estávamos na estrada, dois cães, apenas cães vagabundos de quinta sem dúvida, vieram a correr em redor da esquina da casa. Os cães eram altos e magros e desceram até à cerca e olharam para nós, na estrada. A coisa toda, a história da morte da velha, era para mim enquanto crescia como música ouvida ao longe. As notas tinham de ser apanhadas lentamente uma de cada vez. Alguma coisa tinha de ser entendida.

A mulher que morreu estava destinada a alimentar a vida animal. Em todo o caso, foi tudo o que ela sempre fez. Alimentava a vida animal antes de nascer, enquanto

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criança, enquanto jovem a trabalhar na quinta do alemão, depois de ter casado, quando envelheceu e quando morreu. Alimentou a vida animal em vacas, em galinhas, em porcos, em cavalos, em cães, em homens. A sua filha tinha morrido na infância e com o único filho não tinha nenhuma relação. Na noite em que morreu, estava com pressa de ir para casa, carregando no corpo comida para a vida animal.

Morreu na clareira na floresta e mesmo depois da sua morte continuou a alimentar a vida animal.

Vejam bem, quando o meu irmão contou a história, naquela noite quando chegámos a casa e a minha mãe e minha irmã se sentaram a ouvir, julgo que ele não tinha percebido a questão. Era muito novo e eu também. Uma coisa tão completa tem a sua própria beleza.

Não irei tentar enfatizar a questão. Estou apenas a explicar porque estava insatisfeito nessa altura e tenho estado sempre assim desde então. Falo disso somente para que possam entender porque me senti impelido a tentar contar a história simples uma vez mais.

Como uma Rainha

Há muita conversa sobre beleza mas ninguém a define. Agarra-se a algumas pessoas.

Entre as mulheres, hoje em dia… a aparência é algo, claro, a cara, os lábios, os olhos.

A maneira como a cabeça assenta nos ombros.

A maneira como uma mulher caminha por uma sala pode significar tudo.

Eu próprio tenho visto beleza nos lugares mais inesperados. O que me tem acontecido, também tem acontecido a um grande número de outros homens.

Lembro-me de um velho amigo que eu tinha em Chicago. Teve algo como um esgotamento nervoso e foi para o Missouri – para as Montanhas Ozark, penso eu.

Um dia ia numa estrada da montanha e passou por uma cabana. Era um lugar pobre com cães magros no jardim.

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