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Título: TR 04-I Processos e Dinâmicas na Construção de Políticas de
Convivência com o Semiárido
Autor: Naidison de Quintella Baptista;
Carlos Humberto Campos. 2011
Palavras Chave: Convivência com o Semiárido, Políticas Públicas,
Desenvolvimento
Categoria (Pasta): Água / Cisternas > Materiais de Curso > Gestão
Curso de Formação em
Gestão Pública, Acesso à Água e Convivência com o Semiárido
FGP / SAN – ÁGUAS – CISTERNAS / 2011
Módulo I - CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO - SEMANA 04 (S-04/I)
PROCESSOS E DINÂMICAS NA CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS DE CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO
TEXTO REFERENCIAL (TR)
Naidison de Quintella Baptista1
Carlos Humberto Campos2 Introdução
Os processos e as dinâmicas na construção de políticas de convivência com o semiárido, que serão abordados nesta quarta semana de aulas, terão como referência o seguinte texto: “ASA - Sociedade civil na construção de políticas públicas para a convivência com o
semiárido” (p. 4–8), de autoria do sociólogo Antônio Gomes Barbosa, coordenador do
Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA BRASIL. O mesmo faz uma rica reflexão a partir de uma intervenção prática de convivência no semiárido brasileiro.
1. Terra e água
1 Mestre em Teologia, com graduação em Filosofia, Teologia e Educação. Secretário Executivo do Movimento de Organização Comunitária (MOC), membro da Coordenação da ASA Bahia e da Coordenação Nacional da ASA.Presidente do CONSEA-Bahia e membro do CONSEA-Nacional.
No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem mais de quatro milhões de famílias agricultoras camponesas. Destas, 50% vivem no Nordeste, maior parte no semiárido, região de um milhão de Km², superior às áreas da Alemanha e França juntas. Segundo estimativas do Instituto de Pesquisas e Economia Aplicada (IPEA), mais da metade da população do semiárido é vítima da fome e da má-nutrição, representando mais de dois terços dos pobres do meio rural.
A cada período de estiagem milhares de pessoas não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e aos alimentos básicos. Ao contrário do que se diz comumente, as causas dessa realidade não se devem a limitações do meio ambiente ou das populações locais. São, sobretudo, causas de natureza política e se expressam na enorme crise socioambiental que vivemos. No semiárido uma pessoa pode gastar até 36 dias por ano exclusivamente em busca de água.¹
A escassez de água não é uma realidade apenas para as populações difusas. Estudos realizados em 2005 pela Agência Nacional de Águas, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (ANA/MMA) divulgados no “Diagnóstico do panorama atual de oferta de água”...
“Atlas de obras prioritárias para a Região Semiárida”3, delineou um panorama geral da
situação da disponibilidade versus a utilização dos recursos hídricos no semiárido e constatou que a tendência é de aumentar a pressão sobre os recursos hídricos nessa região para os próximos 15 anos (projeção para até 2025). Os estudos mostram mapas apresentando extensas áreas que são caracterizadas como áreas de elevado risco hídrico. A título de exemplo, Pernambuco é um dos estados com maior deficiência hídrica. Esses estudos explicam que 75% dessa água seriam para projetos de irrigação.
Estas áreas do semiárido são caracterizadas por baixa disponibilidade especifica de água, o que coincide, em geral, com as áreas com elevados índices de pressão sobre os recursos hídricos, promovida por intensiva exploração em seus diversos setores, principalmente para a irrigação, indústria e consumo humano. Não obstante, estas situações coincidem com áreas de maior ocupação, principalmente nos grandes centros como Fortaleza.
Diferente do que se poderia pensar, o estudo não coloca como motivo da escassez a falta de água. Ao contrário, o mesmo constatou a existência de fontes de água suficientes para suprir todas as necessidades levantadas pela agricultura, indústria e abastecimento das grandes e médias cidades, sem para isso, precisar construir um único centímetro dos canais da transposição do rio São Francisco. A saída sugerida pela ANA materializa-se em montar sistemas de abastecimento de água a partir da construção de médias adutoras para
3
Ver Centro de Pesquisa Tecnológica do Semi-Árido (CPTSA). Disponível em:
<
www.cptsa.embrapa.br
>.
a distribuição da água dos reservatórios já existentes e a construção de estações de tratamento desta água, de forma a ofertá-la potável às populações urbanas.
Para além da água, a concentração fundiária na região é histórica e constitui-se numa das principais causas da situação de pobreza, miséria e insegurança alimentar. O último censo do IBGE4 comprova que a concentração de terras na região continua crescendo. Os
latifúndios improdutivos, os grandes projetos do agronegócio, as grandes e tradicionais fazendas de gado têm reforçado essa injusta estrutura de distribuição de terras. Muitos agricultores e agricultoras ainda trabalham em terras alheias ou em minifúndios, superexplorados e com terras em péssimas condições de produção, comprometendo a segurança alimentar e nutricional de suas famílias.
Nessa região, terra e água sempre estiveram nas mãos de uma pequena elite, gerando níveis altíssimos de exclusão social e de degradação ambiental. Essa realidade atinge, em particular, cerca de 1,7 milhões de famílias agricultoras que vivem no semiárido brasileiro. Elas representam 42% de toda a agricultura familiar do País e ocupam apenas 4,2% das terras agricultáveis. No semiárido 1,3% dos estabelecimentos rurais têm 38% das terras e 47% dos estabelecimentos menores têm, em conjunto, 3% das terras (IBGE, 2006). A concentração de terra está, indissociavelmente, ligada à concentração da água, representando os fatores determinantes das crises socioambiental e econômica vividas na região.
As famílias sem terra ou com pouca terra são as que menos se beneficiam das chamadas ‘inovações’, permanecendo em situação de grande vulnerabilidade social e alimentar. Esse quadro evoca a necessidade de profunda reestruturação fundiária, para que o ideal de uma agricultura sustentável e democrática, com segurança e soberania alimentar e nutricional, seja efetivamente alcançado.
2. Os limites do desenvolvimento
O projeto de desenvolvimento em execução no semiárido está fundado nos preceitos do positivismo e no ideário de progresso autosuficiente. Não considera as peculiaridades da região, tenta artificializar a natureza e parte do pressuposto de ser este um lugar onde não chove, de natureza morta, do castigo divino, do destino incerto, da terra de ninguém, de vidas secas. Nessas condições, a perspectiva é acabar com o limite de semiaridez para salvar a região e, quem sabe, transformá-la em lugar de prosperidade.
Esta linha de raciocínio cartesiano se materializa na construção de grandes açudes, grandes barragens, adutoras, poços e políticas emergenciais como a distribuição de alimentos, as frentes de serviço e o deslocamento populacional. Isso foi, exatamente, o que gerou a famigerada “Indústria da Seca”. O efeito nefasto é que as pessoas passaram a acreditar na incapacidade delas próprias e na inviabilidade da região, prevalecendo a imagem de um lugar inóspito por natureza e de seres inferiores como consequência, instaurando-se uma violência simbólica5.
A construção de grandes obras de infraestrutura hídrica - geralmente concentradas e alocadas nas proximidades das grandes fazendas -, e projetos de irrigação associados à implantação de pólos de desenvolvimento com base em monoculturas agroquímicas, não apenas não aumentaram a disponibilidade de água para as famílias, como ampliaram processos de concentração de poder e dependência econômica e política, favorecendo para a criação de um “novo coronelismo” modernizado.
Uma avaliação dos projetos de irrigação no semiárido brasileiro, feita pelo Banco Mundial, constatou que, em que pese o rápido crescimento econômico, eles acabaram por se transformar em enclaves ao dinamismo, geraram contrapartidas socioambientais negativas, acentuaram a histórica diferenciação social no meio rural e degradaram o meio ambiente. Para o Banco, esses projetos “são um sucesso do ponto de vista da lucratividade
empresarial e um desastre do ponto de vista dos ganhos sociais”6 (Banco Mundial, 2010).
Com o advento da “revolução verde”, inúmeras famílias, assessoradas por empresas de extensão rural e centros de pesquisas agropecuários, passaram a usar massiva e indistintamente todo tipo de insumos bioquímicos, motomecanização e processos desordenados de irrigação. Estas práticas sem os devidos ajustes tecnológicos, associadas à ocorrência de anos sucessivos de secas, levaram ao esgotamento das condições biofísicas de muitas áreas, perda ecológica, erosão genética (animais e vegetais), agravamento dos processos erosivos e a redução da capacidade dos solos de armazenar água nas precipitações. Ou seja, levaram ao empobrecimento e à desagregação generalizada das famílias e comunidades.
5
Para o sociólogo Pierre Bourdieu (1998), a
violência simbólica é uma forma de coação que se apóia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica. Se funda na fabricação contínua de crenças no processo de socialização, que induzem o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo critérios e padrões do discurso dominante. Devido a este conhecimento do discurso dominante, a violência simbólica é manifestação deste conhecimento através do reconhecimento da legitimidade deste discurso dominante.6 Ver Banco Mundial, Impactos e externalidades sociais da irrigação no semiárido brasileiro. Disponível em: www.bndes.gov.br/SiteBNDES/...pt/.../seminario/hidrico_8.pdf. Acesso em 30/11/10
Como se pode observar, os limites imputados à região se exacerbaram com a prática do modelo em vigência. Se antes eram associados à natureza e às famílias (violência simbólica), agora, muito mais agravados, são justificados enquanto problemas conjunturais, pela ingovernabilidade do tempo, pelo pouco aprofundamento das pesquisas e testes para determinados tipos de solos, produtos ou técnicas e/ou, em alguns casos, pela incompreensão de suas intencionalidades e capacidades transformadoras. De defesa fragilizada, o principal limite do modelo parece estar na própria essência, pois, desconsidera as características naturais de uma região, mesmo nas intervenções mais primárias. Isso é um erro rudimentar. Em análises mais rigorosas, essa ação poderia até ser classificada de não ciência.
Antes que alguém possa pensar que este é mais um debate polarizado entre o conhecimento científico e os conhecimentos populares, que ocupa muitas páginas na literatura, vale esclarecer que, neste caso, a crítica é restrita ao modelo vigente. Além do mais, o antagonismo entre as várias formas de conhecimento só gera ignorância e mais desconhecimento. Embora soe como um jargão, para um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, todas as formas de conhecimento precisam ser consideradas. Mas é importante destacar que, mesmo considerando a soma destes conhecimentos, eles não são totalizantes. O encontro, confronto ou arrumação de conhecimentos gera mais conhecimentos.
Voltando ao tema, a tarefa passa a ser restabelecer as bases para a construção de um modelo de desenvolvimento que considere, sobretudo, as condições naturais da região, seus limites, potencialidades, peculiaridades, culturas, saberes e conhecimentos construídos. A sustentabilidade, afirmação de um desenvolvimento equilibrado, passa pelo enfrentamento aberto das concepções capitalistas de desenvolvimento e das visões oportunistas que se apropriam do discurso ambientalista, e até revestem seus empreendimentos de alguma maquiagem ambiental, mas que, na essência, reproduzem os modelos de concentração de renda, de empobrecimento e de depredação dos recursos naturais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ASA – Articulação no Semi-Árido. Sociedade civil na construção de políticas públicas para a
convivência com o Semiárido. BARBOSA, Antônio Gomes (Org.). Recife: ASA, 2011.
BANCO MUNDIAL. Impactos e externalidades sociais da irrigação no semiárido brasileiro. Disponível em: <www.bndes.gov.br/SiteBNDES/...pt/.../seminario/hidrico_8.pdf>.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CPTSA - Centro de Pesquisa Tecnológica do Semi-Árido. Diagnóstico do panorama atual
de oferta de água. Atlas de obras prioritárias para a Região Semiárida. Disponível em: <
www.cptsa.embrapa.br>.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006. Disponível em: < www.ibge.gov.br/.../censoagro/2006/default.shtm>.
SÁ, Iêdo Bezerra; SILVA, Pedro Carlos Gama. Semiárido Brasileiro: pesquisa desenvolvimento e inovação. Petrolina: Embrapa Semiárido, 2010.
SILVA, Roberto Marinho Alves da. Entre o combate à seca e a convivência com o
semiárido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Fortaleza: