CULPABILIDADE E RESPONSABILIDADE PENAL
Alessandro Martins Prado1, Lucas de Andrade Lima Cavalcante2, Mário Lúcio Garcez Calil1 1 Faculdade de Direito da UEMS, 2Faculdade de Direito da FEIT/UEMG. alessandrodocenteuems@gmail.com Resumo O instituto da culpabilidade tornou‐se indispensável à dogmática penal brasileira, principalmente após a reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida em 1984. Isto se deve, em especial, ao fato de que sua utilização consagra diversas teorias limitadoras do poder estatal de punir. Porém, a culpabilidade ainda carece de uma conceituação adaptável às modernas teorias da pena, que se referem de forma mais direta aos direitos fundamentais e aos direitos humanos. Deste modo, o objetivo do presente trabalho é o de trabalhar as diversas teorias acerca da culpabilidade, de modo a chegar a um conceito que se compatibilize com a mais atual doutrina penal.
Palavras‐chave: culpabilidade, poder punitivo, teorias da pena.
INTRODUÇÃO
A culpabilidade, enquanto substrato do conceito de crime, evoluiu em paralelo à teoria do delito, sendo que, acerca do referido instituto, várias teorias se formaram, inclusive no Brasil. Desde a entrada em vigor do Código Penal, da década de 1940, a doutrina persiste nas discussões, de modo a encontrar, na doutrina nacional e estrangeira, um modelo de culpabilidade que seja compatível com o ordenamento jurídico brasileiro. Assim, justifica‐se o presente trabalho, tendo em vista que contribui para uma discussão que persiste há décadas, na busca por uma concepção ideal do instituto da culpabilidade. OBJETIVO Objetiva‐se, no presente trabalho, estudar os diversos elementos que formam o conceito de culpabilidade, de modo a, ao final, encontrar uma definição ideal e completa para o instituto. METODOLOGIA
No presente trabalho, utilizou‐se pesquisa bibliográfica na doutrina nacional e internacional. Para a exposição e formulação da presente exposição, foi utilizado o método hipotético‐dedutivo.
RESULTADOS
Como resultado, após as discussões acerca das diversas teorias que versam sobre a culpabilidade e a responsabilidade penal, chegou‐se a um modelo que, para o contexto do presente trabalho, é ideal.
DISCUSSÃO
A culpabilidade é, na teoria do delito, o fundamento último do jus puniendi (TEOTÔNIO, 2002, P. 21) e a medida da responsabilidade penal. A culpabilidade justifica, em tese, “porque” e “para que” punir (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 306). Como, para a teoria do delito corrente no Brasil, somente o fato típico pode ser antijurídico, e, da mesma forma, somente o fato típico e antijurídico pode ser culpável, somente o fato típico, ilícito e culpável (para a chamada teoria tripartite dos substratos do crime) pode ser chamado de crime (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 5). Com efeito, dadas as funções que possui, culpabilidade é nome que se utiliza com três sentidos diferentes (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 307).
A culpabilidade possui uma série de requisitos que são absolutos em sua necessidade para que uma conduta seja tomada como crime. É o caso, por exemplo, da capacidade de conhecer o caráter ilícito de uma determinada conduta, se esta não puder estar presente na consciência do agente, não se pode dizer que este cometeu um delito. A distinção entre o injusto penal e o crime com todos os seus elementos (inclusive a culpabilidade), aqui, se torna imprescindível também por outra razão: É que o injusto penal, mesmo que inculpável, autoriza a legítima defesa ao passo que não se pode agir em legítima defesa de um fato que não seja antijurídico, por exemplo (ROXIN; ARZT; TIEDMANN, 2007, p. 26).
A culpabilidade, em outro sentido, se apresenta como elemento de determinação da pena. Aqui, a culpabilidade é a medida da legitimidade do Estado para punir. Não se trata, pois de um predicado absoluto do crime, mas de elemento determinante dos limites para o exercício do “poder‐dever” de punir.
Além disso, a culpabilidade funciona como garantia da liberdade individual, pois carrega uma prevenção à responsabilidade penal objetiva, de forma que “ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível” (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 308), não havendo, portanto crime se o indivíduo não agiu com dolo ou com culpa.
Não pode haver confusão entre os diversos sentidos da culpabilidade, pois cada um representa um avanço na evolução da dogmática do Direito Penal, caracterizada principalmente por um afastamento, cada vez maior da responsabilidade objetiva (NAHUM, 2001, p. 47).
Na evolução da teoria do delito, o finalismo dá origem a uma concepção normativa pura da culpabilidade, retirando desta os elementos psicológico, como precípua o Normativismo
neokantiano (KANT, 1993, p. 173), segue a retirada dos elementos subjetivos que integravam até
então a culpabilidade (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 327). Conseqüentemente, dolo e culpa foram deslocados para o tipo, torna‐se, assim, a finalidade o centro do injusto (TEOTÔNIO, 2002, p. 46). A culpabilidade adquire um novo conteúdo, enquanto que, para o normativismo, tratava‐se somente de um “[...] juízo de reprovação pela realização de um fato antijurídico, quando fosse exigível obrar conforme o Direito” (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 327), contudo, agora, é uma “reprovação pessoal que se faz contra o autor.”
Enquanto a antijuridicidade representa uma desconformidade entre a ação e o ordenamento jurídico, a culpabilidade representa o limite contrário, isto é, a atuação desconforme ao direito, quando se poderia ter agido de modo diverso (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 329). Como o conhecimento da proibição é incluído na culpabilidade, o dolo, ao menos prima
facie, passa a ser puramente psicológico, dolo natural.
O pressuposto principal, sobre o qual se baseia a reprovação é a possibilidade de autodeterminação do sujeito, compreendido pelo poder atender ao dever jurídico imposto pela norma penal. Tem‐se aqui a capacidade abstrata de culpabilidade, a imputabilidade, e a capacidade concreta de culpabilidade, a exigibilidade de uma conduta de conformidade com o Direito (TEOTÔNIO, 2002, p. 41).
O centro do esquema finalista está na possibilidade de se conhecer o injusto ser verificado antes do “poder em vez de...” (TEOTÔNIO, 2002, p. 42). No entanto, Muñoz Conde discorda dessa posição, asseverando que a capacidade de poder atuar de um modo distinto é indemonstrável (TEOTÔNIO, 2002, p. 61) e, ainda, havendo a capacidade de atuar de modo distinto, é impossível aferir se o sujeito usou esta capacidade (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 341). Com este argumento cria o “Conceito Dialético de Culpabilidade” (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 330). Além disso, aqueles que não aceitam a concepção normativa pura da culpabilidade argumentam que não se pode subtrair a avaliação do conteúdo volitivo do juízo de culpabilidade, o que desestrutura o conceito já terminado de ação no naturalismo (TEOTÔNIO, 2002, p. 53).
Como se pode extrair do tópico acima, o conceito e o conteúdo da culpabilidade vem evoluindo. A cada teoria ‐ por vezes dentro de uma mesma escola penal ‐ o que se tem não é a demolição do conteúdo da concepção anterior em si, mas evoluções que se somam ao conceito anterior.
A culpabilidade surge com a imputabilidade. Em seguida, é retirada a imputabilidade da culpabilidade. E acrescidos o dolo e a culpa, para, então, somar‐se a exigibilidade de conduta conforme o direito e retornar a imputabilidade para a culpabilidade. Por último toma‐se como essencial a capacidade de conhecer o caráter ilícito da conduta. Então, depois de questionar se: o sujeito era imputável (ao tempo da conduta); se o indivíduo tinha condições de conhecer o caráter ilícito de determinada conduta; e se, para o agente, era possível comportar‐se conforme o direito é possível afirmar que se trata de um agente culpável. Porém, surge como necessário outro questionamento: quanto o agente é culpável? Este último critério é relevante, como veremos, para aferir com perfeição a interferência da vítima. Por derradeiro deve‐se aferir até que ponto eventual condenação pode atingir suas finalidades legais e suas funções sociais para que se perceba se se justifica uma reprovação.
A culpabilidade, como já foi dito, está estruturada em três elementos de ordem normativa (TEOTÔNIO, 2002, p. 79): a imputabilidade; a possibilidade de conhecer a ilicitude do fato; e a exigibilidade de um comportamento conforme o ordenamento jurídico, tratados a seguir.
A imputabilidade é a condição central da culpabilidade, representando a capacidade de autodeterminação do indivíduo sendo, por isso, chamada de “capacidade de culpabilidade”. “É o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível.” (NUCCI, 2005, p. 235).
Trata‐se a imputabilidade de elemento da culpabilidade que representa a atribuibilidade do injusto penal (TEOTÔNIO, 2002, p. 80). Na legislação penal brasileira a opção legislativa foi por traçar essas condições de atribuibilidade de maneira “negativa”, de conformidade com o título III do Código Penal.
Com a adoção de uma teoria normativa pura retirou‐se a potencial consciência da ilicitude do dolo para que esta passasse a integrar a culpabilidade (TEOTÔNIO, 2002, p. 82). Para que se possa reprovar a conduta do autor, contrária ao Direito, é necessário que este conheça ou possa conhecer as circunstâncias pertencentes ao tipo e à ilicitude (antijuridicidade) (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 334). Tanto o erro de tipo (excludente do dolo) como o erro de proibição excluem a culpabilidade quando inevitáveis (invencíveis) e a atenuam quando evitáveis (vencíveis).
De acordo com Welzel, uma vez existentes a imputabilidade e a potencial consciência do injusto penal, resta caracterizada materialmente a culpabilidade, o que não quer dizer “[...] que o ordenamento jurídico‐penal tenha de fazer a reprovação de culpabilidade. Em determinadas circunstâncias, poderá renunciar a tal reprovação e, por conseguinte, exculpar e absolver o
agente” (BITTENCOURT; MUNOZ CONDE, 2004, p. 335). A inexigibilidade de uma conduta conforme o direito, por sua vez, é causa supralegal excludente da culpabilidade, caracterizada pela ausência da vontade maculada em relação à norma na conduta do autor. De toda forma há casos em que a inexigibilidade não é causa supralegal, pois está prevista na norma como excludente de antijuridicidade e, até mesmo da tipicidade, nesses casos tem natureza objetiva (NAHUM, 2001, p. 98).
A exigibilidade de uma conduta conforme o Direito nasce conjuntamente com a concepção normativa da culpabilidade. Foi Frank que introduziu na culpabilidade o conceito de responsabilidade (NAHUM, 2001, p. 77). O elemento foi desenvolvido por Freudenthal, que admitiu seu caráter supralegal e afirmou que a inexigibilidade de conduta diversa somente pode ser aferida através de uma avaliação individual do caso e do agente (NAHUM, 2001, p. 78). Goldschmidt, posteriormente, fundamentou‐a como pressuposto da exigibilidade a motivação normal do agente, passando‐se, então, a se utilizar como paradigma o “homem médio”, doutrina que acabou não sendo aceita pela grande variabilidade do paradigma para a aferição. A teoria passou então a se fundar no “homem normal”, mais especificamente no autor do delito, naquela situação que precede a ação (paradigma do caso concreto).
Deste modo, três posições doutrinarias se identificam (NAHUM, 2001, p. 75): a posição subjetiva que sustenta que a inexigibilidade funda‐se em regras ético‐individuais, onde se encontra Freudenthal; a corrente que defende o critério objetivo, onde os limites da inexigibilidade se encontram no homem médio, nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o autor; e a doutrina que utiliza um critério objetivo‐subjetivo, que defende que a inexigibilidade opera em todos os elementos do delito, diante da tipicidade e da antijuridicidade deve ser vista objetivamente e subjetivamente em relação à culpabilidade (NAHUM, 2001, p. 78). A supralegalidade do conceito está, justamente, na capacidade de aplicação em casos não especificamente ditados na norma positiva. A inexigibilidade de uma conduta diversa se aplica e se fundamenta em todo o ordenamento jurídico. A inexigibilidade, assim, “é a essência de todas as causas de justificação” (NAHUM, 2001, p. 87), podendo, ser vista como critério objetivo, ser aplicada à tipicidade e à antijuridicidade, e enquanto excludente da culpabilidade surge com característica subjetiva.
Temos agora uma visão bem esquadrinhada da culpabilidade enquanto elemento do crime. Esta noção, apesar de absolutamente necessária à compreensão estrutural do delito, não nos permite qualquer aprofundamento crítico, visto que todo esse aparato preciso e essencial não
se justifica se, após a constatação de tantos elementos analíticos a providência jurisdicional não puder alcançar seus fins.
Enquanto a análise funcional pode ignorar o funcionalismo, uma teoria crítica da sociedade – que entendo ser qualquer teoria que se proponha não apenas a ver como uma sociedade funciona mas também como não funciona ou como deveria funcionar – não pode ignorar a análise funcional, porque a crítica de um instituto começa exatamente pela crítica à sua função, isto é, pela consideração da eventual função ‘negativa’ (BOBBIO, 2007, p. 92). A condenação criminal e a própria formação da culpa, somente se justificam se a eventual pena que sobrevier puder alcançar suas finalidades. Não se pode atribuir um crime a alguém sem que dessa condenação possa surgir algum efeito positivo. A finalidade de uma condenação penal ou mesmo de um crime deve ser encontrada nos fins da pena contidos e cabíveis no ordenamento jurídico, respeitados os preceitos constitucionais a eles ligados. Por isso proponho chamar a categoria do delito que sucede ao injusto não de culpabilidade, mas responsabilidade. Afinal, na teoria da imputação subjetiva devem ser integradas, ao lado da culpabilidade, aspectos preventivos, de maneira que a culpabilidade representa somente um aspecto – de qualquer maneira essencial – daquilo que denomino responsabilidade (ROXIN, 2006, p. 154). A essa idéia mais “completa” de culpabilidade Roxin chama de responsabilidade penal. CONCLUSÃO Após as discussões firmadas acima, chegou‐se à conclusão de que um conceito mais amplo e completo de culpabilidade, apesar das divergências terminológicas, é o ideal, posto ser o mais compatível com o ordenamento constitucional garantista brasileiro.
A substituição da culpabilidade enquanto juízo de reprovação pelo conceito de responsabilidade penal, tendo em vista que é necessário, em um Estado Democrático de Direito, para que não se possa considerar a pena como mero exercício de poder político, é necessário que a própria condenação tenha algum fundamento positivo, não bastando apenas a somatória dos elementos conceituais componentes do instituto.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, C. R.; MUÑOZ CONDE, F. Teoria geral do delito. São Paulo: Saraiva, 2004. BOBBIO, N. Da estrutura à função. São Paulo: Manole, 2007.
KANT, E. Fundamentos metafísicos dos costumes ‐ doutrina do Direito. São Paulo: Ícone, 1993. NAHUM, M. A. R. Inexigibilidade de Conduta Diversa. São Paulo: RT, 2001.
NUCCI, G. S. Manual de Direito Penal. São Paulo: RT, 2005.
ROXIN, C.; ARZT, G.; TIEDMANN, K. Introdução ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
ROXIN, C. Problemas fundamentais de Direito Penal. Lisboa: Vega, 2004. TEOTÔNIO, L. A. F. Culpabilidade. São Paulo: Minelli, 2002.