Leia este conto, de Mário de Andrade.
O Peru de Natal
O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se
O Conto
C
OMPREENDENDO O GÊNEROrealizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:
— Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.
— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...
— Meu filho, não fale assim... — Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, diz-que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com
bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. [...]
Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:
— É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.
— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.
— Eu que sirvo!
"É louco, mesmo!" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada da mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:
— Se lembre de seus manos, Juca!
Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.
— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!
Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.
— Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.
E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
(Mario de Andrade. In: Herberto Sales, org. Antologia escolar de contos brasileiros. Rio de Janeiro: Ediouro. p. 69-76.)
Agora, responda.
1.
O conto é um texto curto que pertence ao grupo dos gêneros narrativos
ficcionais, como a crônica, a fábula, o relato pessoal. Sua principal característica é ser
condensado, ou seja, apresentar poucas personagens, poucas ações e tempo e espaço
reduzidos.
a) Quais são as personagens envolvidas nessa história?
b) Onde acontecem os fatos narrados?
c) Há, no conto, expressões que indicam o tempo em que se desenrolam as
ações. Que expressões são essas?
d) O tempo de duração dessa história se caracteriza por apresentar fatos
marcados cronologicamente – a ceia de Natal, depois a Missa do Galo – e fatos
rememorados pelo narrador‐personagem. Qual dos dois tempos é decisivo para o
restabelecimento das relações familiares?
2.
Do mesmo modo que a crônica, o conto pode ter tanto narrador‐observador
quanto narrador‐personagem. O conto “O peru de Natal” apresenta narrador‐
personagem. Justifique essa afirmação.
3.
Enquanto na crônica as personagens são, em geral, mostradas de forma
superficial, no conto elas apresentam maior profundidade de tratamento, o que lhes
confere características psicológicas mais complexas.
a) O conto lido apresenta uma personagem coletiva. Quem é ela e como se
caracteriza?
b) Embora a família vivesse aparentemente feliz, faltavam‐lhe outras coisas.
Quem era responsável por essa “meia” felicidade familiar?
c) Com que expressão, Juca, o narrador‐personagem, resume o caráter do pai?
4.
Nos gêneros narrativos, a sequência de fatos que mantêm entre si uma
relação de causa e efeito constitui o enredo. Um dos mais importantes elementos que
compõem o enredo é o conflito. Após ler o quadro abaixo, identifique o conflito do
conto “O peru de Natal”.
Enredo e conflito
Enredo é o conjunto, ou melhor, a sucessão de acontecimentos de uma narrativa de
ficção ou mesmo de um simples fato. É conhecido por muitos nomes: intriga, ação,
trama, história.
Ele é construído obedecendo às leis da causalidade e temporalidade, isto é, cada fato
da história tem uma causa que desencadeia novos fatos, em termos práticos, um fato
anterior causa o que vem depois. Observe a sequência de fatos desta narrativa:
1 – Um homem caminha à noite por uma estrada escura,
2 – seus olhos estão atentos ao menor movimento,
3 – seus ouvidos ao menor ruído,
4 – ele está a muitos quilômetros de sua casa e só conseguirá chegar até lá
caminhando.
5 – A qualquer momento ele poderá ser assaltado.
6 – Na rua não há mais ninguém. Caminha sozinho, tendo por testemunha a luz
da Lua e das estrelas.
7 – Ele tem que chegar a sua casa.
Os fatos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 nos dão o enredo da história: um homem (personagem)
que precisa chegar a sua casa. Nesse exemplo, podemos notar com facilidade o
elemento estruturador do enredo: o
conflito
. No caso, o conflito do homem com o
ambiente.
Sem o conflito não há a história. E mesmo se houvesse uma história, sem conflito,
não despertaria interesse nenhum. Teríamos histórias sem graça porque faltaria a
elas o que lhes dá vida e movimento. O conflito possibilita ao leitor criar expectativa
frente aos fatos do enredo.
Além do conflito que mencionamos (entre o personagem e o ambiente), podemos
encontrar nas narrativas, os conflitos morais, religiosos, econômicos e psicológicos;
este último seria o conflito interior de uma personagem que vive uma crise
emocional.
A estrutura do enredo
Introdução ou apresentação:
geralmente coincide com o
começo da história; é o momento
em que o narrador apresenta os
fatos iniciais, as personagens e,
às vezes, o tempo e o espaço.
Complicação
(ou
desenvolvimento): é a parte do
enredo em que é desenvolvido o
conflito
.Clímax é o momento culminante
da história, ou seja, aquele de
maior tensão, no qual o conflito
atinge o seu ponto máximo.
Desfecho (ou conclusão): é a
solução do conflito, que pode ser
surpreendente, trágica, cômica,
etc. e corresponde ao final da
história.
5.
A estrutura do enredo do conto
tradicional convencionalmente apresenta as
seguintes partes: apresentação, complicação,
clímax e desfecho. Leia o
boxe lateral
para obter
mais informações sobre isso. No conto em estudo,
na ceia de Natal, com o peru completamente
fatiado, Juca toma o lugar da mãe para servi‐lo.
Nesse momento, todos estão tão emocionados
que as mulheres choram.
a) Por que, nesse momento, a tensão
aumenta?
b) Juca queria que a família esquecesse a
figura do pai. Contudo, na luta entre os mortos – o
pai e o peru –, por que Juca toma o partido do pai?
c) Quem vence a “luta”: o pai ou o peru?
6.
No desfecho do conto geralmente ocorre a solução do conflito ou uma
revelação para a personagem. A revelação acontece quando um fato ou uma situação
muda o modo de pensar ou agir de uma personagem, levando‐a a romper com
determinados valores, a questionar seu modo de vida, etc. O desfecho do conto lido
Os gêneros narrativos ficcionais apresentam, em comum, dois elementos
essenciais:
o tempo
e
o espaço
. O tratamento que esses elementos recebem, porém,
varia de um gênero para outro. No romance, por exemplo, tais elementos costumam
ser mais detalhados, tratados com profundidade. No conto, geralmente, são
apresentados de forma mais contida, reduzidos ao essencial.
O padre, o estudante e o caboclo
Há muitos anos, o acaso uniu, na rabeira de uma tropa de mulas que percorria o interior de Minas Gerais, um padre, um estudante e, a transportar as malas e os livros dos dois, um caboclo observador. No lento trotar das mulas, sob o sol do sertão, padre e estudante debatiam sem chegar a qualquer conclusão.
No fim da tarde, estacionaram ao lado de um casebre e pediram licença à mulher que os atendeu para pernoitar ali, oferecendo poucas moedas em troca de água, lugar para pendurar as redes e algum alimento. A pobre mulher concordou, enfiou as moedas rapidamente no bolso da saia e, um minuto depois, trazia aos hóspedes uma jarra de água e o único alimento existente no casebre: um miserável pedaço de queijo, que não dava para alimentar um quarto de homem.
Sem saber como dividir o queijo entre os três, o padre, certo de que, com sua oratória, poderia enganar os outros dois, propôs o seguinte: que dormissem e, ao amanhecer, aquele que contasse o sonho mais bonito, certamente inspirado por Deus, ganharia o direito de comer o queijo. Todos concordaram e, cobertos pela poeira da estrada, foram dormir.
No meio da noite, contudo, ouvindo o padre e o estudante roncarem, o caboclo levantou da rede, aproximou-se do armarinho em que a mulher guardara o queijo e o engoliu.
Quando amanheceu, enquanto tomavam o café ralo que a mulher lhes ofereceu, o padre, que sonhara a noite toda com o queijo, foi o primeiro a relatar seu sonho. Disse que, auxiliado por anjos, subira por uma escada cheia de enfeites dourados até o céu. O estudante, por sua vez, contou que, mal havia dormido, já
Conto
C
OMPREENDENDO O GÊNEROse encontrou em pleno Paraíso, aguardando pelo padre que, tinha certeza, chegaria em poucos minutos.
Era a vez do caboclo falar. Com os olhos presos ao chão, numa voz mansa, ele disse: “Sonhei que via o senhor padre e o moço lá no céu, rodeados dos anjos e dos santos. E que eu tinha ficado aqui, sozinho e morto de fome. Então, subi no telhado e gritei com toda força pra vosmecês: ‘E o queijo?! Não vão comer o queijo pra mó da gente seguir viagem?!’. E vosmecês responderam, felizes da vida: ‘Pode comê o queijo, caboclo! É todo seu! Aqui no céu não precisamos de queijo!’. Fiquei tão feliz, e tudo pareceu tão de verdade, que levantei da rede e comi o queijo...”.
Luís da Câmara Cascudo
Fonte: http://educacao.uol.com.br/cultura-brasileira/padre-estudante-caboclo.jhtm
Os fatos de uma narrativa relacionam‐se com o tempo em três níveis:
Época em que se passa a história
A época em que se passa a história constitui o pano de fundo para o
enredo. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, a época é a segunda
metade do século passado. Nem sempre a época da história narrada coincide
com o tempo real em que ela foi publicada.
Tempo cronológico
É o tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo. É o
tempo ligado ao enredo linear, ou seja, à ordem em que os fatos ocorrem.
Chama‐se cronológico porque pode ser medido em horas, meses, anos,
séculos. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, os fatos acontecem
aproximadamente em dois dias.
Tempo psicológico
É o tempo que transcorre numa ordem determinada pela vontade, pela
memória ou pela imaginação do narrador ou de uma personagem. De acordo
com esse tempo, os fatos podem ou não aparecer em uma ordem linear, isto é,
coincidente com o tempo cronológico.
A
TÉCNICA DO FLASH
‐
BACK
Nas narrativas que empregam o tempo psicológico, é muito comum o narrador
lançar mão dessa técnica, que consiste em voltar no tempo. Um célebre exemplo de
flash‐back, em nossa literatura ocorre no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis, em que o tempo presente para o narrador‐personagem Brás
Cubas tem como referência a sua condição de morto. Essa condição lhe permite voltar
ao passado recente – contar como morreu, por exemplo –, e voltar ao passado mais
distante e contar fatos de sua infância e juventude. Veja um trecho:
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo
princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu
nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar
pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar método
diferente: a primeira é que não sou um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que
o escrito ficaria assim mais galante e mais novo [...}
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta‐feira
do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.
Tinha uns sessenta e quatro anos...
(São Paulo: Ática, 1992. p. 17.)
Os fatos de uma narrativa relacionam‐se com o espaço em dois níveis:
O espaço físico ou geográfico
É o lugar onde acontecem os fatos que envolvem as personagens: uma
rua movimentada, uma cidade, um cinema, uma escola, um cômodo de uma
casa etc. O espaço pode ser descrito detalhadamente ou suas características
podem aparecer diluídas na narração. No conto acima, o espaço físico são as
montanhas de Minas e o casebre em que pernoitam.
O espaço social (ambiente)
É o espaço relativo às condições socioeconômicas, morais e psicológicas
que dizem respeito às personagens. O espaço social situa as personagens na
época, no grupo social e nas condições em que se passa a história. Ele pode,
ainda, refletir os conflitos vividos por elas ou ainda fornecer pistas para o
desfecho. No conto “O padre, o estudante e o caboclo”, o espaço social é
determinante: a condição da mulher que os recebe, a qual, a troco de poucas
moedas, oferece apenas água e um único pedaço minúsculo de queijo.
Leiamos agora este conto de Moacyr Scliar. Procure observar a construção do
espaço e do tempo nesta história.
Piquenique
Agora é como um piquenique: estamos no Morro da Viúva, homens, mulheres e crianças, comemos sanduíches e tomamos água da fonte, límpida e fria. Alguns estão com os rifles, embora isto seja totalmente dispensável – temos certeza de que nada nos acontecerá. Já são cinco da tarde, logo anoitecerá e voltaremos às nossas casas. As crianças brincaram, as mulheres colheram flores, os homens conversaram e apenas eu – o distraído – fico aqui a rabiscar coisas neste pedaço de papel. Alguns me olham com um sorriso irônico, outros com ar respeitoso; pouco me importa. Encostado a uma pedra, um talo de capim entre os dentes, e revólver jogado a um lado, divirto-me pensando naquilo que os outros evitam pensar: o que terá acontecido em nossa cidade neste belo dia de abril, que começou de maneira normal: as lojas abriram às oito, os cachorros latiam na rua principal, as crianças iam à escola. De repente – eram nove horas – o sino da igreja começou a soar de maneira insistente: em nossa pequena cidade este é o sinal de alarme, geralmente usado para incêndios. Em poucos minutos estávamos todos concentrados frente à igreja e lá estava o delegado – alto, forte, a espingarda na mão.
Ele era novo em nossa cidade; na verdade, nunca tivéramos delegado. Vivíamos em boa paz, plantando e colhendo nossa soja, as crianças brincando, nós fazendo piqueniques no campo, eu tendo os meus ataques epilépticos. Um belo dia acordamos e lá estava ele, parado no meio da rua principal, a espingarda na mão; esperou que uma pequena multidão se formasse a seu redor, e então anunciou que fora designado para representante da lei na região. Nós o aceitamos bem; a seu
pedido, fizemos uma cadeia – uma cadeia pequena mas resistente. Construímo-la num domingo, todos os cidadãos, num só domingo, e antes que o sol se pusesse tínhamos colocado o telhado, comemos os sanduíches feitos por nossas mulheres e bebemos a boa cerveja da terra.
Às seis horas da tarde olhei para o delegado, de pé diante da cadeia, o rosto avermelhado pelo crepúsculo; naquele momento, tive a certeza de que já o vira antes, e ia dizer a todos, mas em vez disto soltei um grito, antes que o ar passasse por minha garganta eu já sabia que seria um grito espantoso e que depois cairia de boca na rua poeirenta, me debatendo; que as pessoas se afastariam, temerosas de me tocarem e se contaminarem com minha baba viscosa, e que depois acordaria sem me recordar de nada. Permaneceria a confusa impressão de já ter visto o homem alto em algum lugar e isto eu diria ao doutor e o doutor me responderia que não, que não o vira, que isto era uma sensação comum a epilépticos. Restaria um dolorimento pelo corpo, um entorpecimento da mente. Então eu sairia ao campo, e recostado numa pedra, um talo de capim entre os dentes, escreveria ou rabiscaria coisas várias. Dizem – as pessoas supersticiosas – que tenho o dom da premonição e que tudo quanto escrevo após uma convulsão é profético; mas ninguém jamais conseguiu confirmá-lo, pois escrevo e rasgo, rabisco e rasgo. Os pedacinhos de papel são levados pelo vento, depois caem na terra úmida e apodrecem.
Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num pedacinho de papel amarelado que ficou preso entre as pedras e onde se lê “... no jornal”. É minha letra, eu sei, mas quando o escrevi? E que queria dizer? Foi há muito tempo, é certo, mas antes da chegada do delegado? Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU FRENTE À IGREJA: um homem alto, espingarda na mão, falou-nos; lembrou o dia em que chegara, não há muito tempo. “Aqui cheguei para proteger vocês...” Todos de pé, imóveis, silenciosos. Mas eu estava sentado; numa cadeira, na calçada do café, que fica fronteira à igreja. E entregava-me ao meu passatempo: lápis e papel. Mas não escrevia: desenhava, o que também faço muito bem. Do meu lápis surgiu o rosto impassível do homem alto. Fui informado há pouco que um grupo de bandidos se dirige à nossa cidade. Devem chegar aqui dentro de uma hora. Sabem que a agência bancária está com muito dinheiro... Era verdade: a soja fora vendida, os colonos haviam feito grandes depósitos durante a semana.
É minha obrigação defendê-los. Entretanto, conto com a ajuda de todos os cidadãos válidos... Naturalmente, anotei algumas destas frases: senti nelas o peso do histórico. As pessoas cochichavam entre si, assustadas.
Vão para casa – concluiu o homem alto. Armem-se e voltem. Espero-os aqui dentro de meia hora. As pessoas se dispersaram e eu vi rostos apreensivos, crianças chorosas, as mulheres murmurando aos ouvidos dos maridos.
A praça ficou deserta. Apenas o homem alto parado na praça, o rosto iluminado de frente pelo sol forte, e eu oculto na sombra projetada pelo toldo do café. Cinco minutos depois, chegou o primeiro cidadão; era o barbeiro; quando surgiu na praça eu já sabia o que ele diria; que o delegado o perdoasse, mas que era chefe de família, tinha muitos filhos; e eu já sabia que o delegado ia desculpá-lo, recomendando que fosse para o Morro da Viúva com sua família onde estaria seguro. Mal o barbeiro se fora, e o farmacêutico aparecia, gordo, os olhos esbugalhados, a testa molhada de suor; que o delegado compreendesse... O delegado compreendia e também ao dono do bar e ao lojista que surgiram depois.
O último foi o gerente do banco; este tentou levar o delegado consigo, mas foi repelido brandamente; antes de sair correndo, gritou: Delegado, o cofre está aberto; se não conseguir atemorizar os ladrões, pelo amor de Deus, entregue o dinheiro e salve a sua vida! O delegado fez que sim com a cabeça e o homem partiu.
Foi então que o delegado me viu. Creio que só nós dois estávamos na cidade, à exceção dos cães que farejavam a sarjeta.
O homem alto ficou a me olhar por uns instantes. Depois atravessou a rua a passos lentos. Postou-se diante de mim, o homem com a espingarda na mão.
— O senhor não tem ajudante — eu disse — sem parar de rabiscar. — É verdade — ele me respondeu. — Nunca precisei.
— Mas precisa agora. — Também é verdade. — Aqui me tem. Tênue sorriso.
— Tu és doente, meu filho.
— Por isso mesmo — digo-lhe. — Quero provar que sirvo para alguma coisa. É então que ele vê o retrato em minhas mãos; seu rosto se contrai, ele avança para mim, arranca-me o papel: — Me dá isto, rapaz, não quero que se lembrem de mim depois — ele diz, e eu vou protestar, vou dizer que ele não faça isto, mas aí o seu rosto está diante de mim — onde? onde? — e sinto o grito fugir do meu peito, e nada mais vejo.
Quando acordo, estou amarrado a um cavalo que sobe lentamente o morro. Lá em cima, entre as pedras, toda a população da cidade: desmontaram-me, espantados, me desamarram; alguns me olham de maneira irônica, outros me fazem perguntas. Por fim me deixam em paz.
Fico sentado a ouvir o que dizem: o telegrafista está explicando que tentou mandar um telegrama à guarnição, sem resultado, porém. Na certa, eles cortaram os fios.
Foi então que os cinco tiros ecoaram nos morros. Levantamo-nos todos, ficamos inteiriçados, à escuta, um grande silêncio caiu sobre a região.
— Vamos até lá — ouvi a voz, com grande surpresa, pois era a minha própria. Todos se voltaram para mim. Eu continuava sentado, um talo de capim entre os dentes.
O gerente do banco se aproximou.
— Está louco? Prometemos voltar quando soassem os sinos ou às seis da tarde! Não respondo. Fico quieto a rabiscar. O sol vai se pondo agora, e os sinos não soaram. Estão todos alegres, pois é melhor ficar pobre do que morrer. Breve desceremos e todos não cabem em si de ansiedade: o que encontraremos em nossa cidade? Divirto-me pensando no que encontraremos; sei que quando chegarmos será como se eu já tivesse visto tudo (o que, segundo o doutor, é comum em minha doença): a rua vazia, as portas do banco escancaradas, o cofre vazio. Acho também que na estrada, muito longe, vai um homem alto a cavalo, com os alforjes cheios de notas. Talvez sejam três ou quatro, mas é certo que o homem alto vai rindo.
(SCLIAR, Moacyr. Histórias Divertidas – Para Gostar de Ler – vol. 13. São Paulo: Ática, 2005)
Agora, responda.
1.
A narrativa começa com a frase: “Agora é como um piquenique: estamos no
Morro da Viúva...”
a) A quem se refere o sujeito oculto nós?
b) Quem é o personagem‐narrador incluído neste nós?
c) Com que expressão apositiva ele se define?
2.
No conto “Piquenique”, podemos perceber um conflito, ou seja, um fato que
desestabilizou a rotina dos moradores da pequena cidade na manhã do dia em que o
conto está sendo narrado.
a) Qual é este fato?
b) Qual a reação dos moradores a ele?
3.
No segundo parágrafo, o personagem‐narrador apresenta a cidade onde
ocorre a narrativa:
a) Como ele a apresenta?
b) Como ele se apresenta neste contexto?
c) Considerando a descrição da cidadezinha, podemos dizer que há também um
segundo momento de desestabilização da rotina da cidade: qual é?
4.
Releia o terceiro parágrafo e responda:
a) “Às seis horas da tarde...” – refere‐se às 18 horas do dia do piquenique do
primeiro parágrafo? Justifique.
b) “naquele momento, tive a certeza de que já o vira antes...” – especifique a
referência do pronome o.
5.
Ainda no terceiro parágrafo, há um longo trecho em que há uma descrição
de um ataque epiléptico e da reação das pessoas a ele:
a) O trecho fala de um ataque epiléptico específico, ou seja, que estava
acontecendo naquele momento da narrativa ou dos ataques que o personagem
costumava ter?
b) Que recurso linguístico foi usado para que o leitor fizesse essa interpretação
do ataque?
c) Como as pessoas reagiam a estes ataques?
d) Em relação ao delegado, qual a impressão que o narrador tinha sobre o
home alto e como o médico a interpretava?
e) Após o ataque epiléptico, como o personagem‐narrador se sentia e qual
atitude tomava habitualmente?
6.
Volte ao quarto parágrafo:
a) Explicite a referência das palavras destacadas em:
“Agora mesmo, sentado aqui, neste dia de abril, fixo os olhos num
pedacinho de papel amarelado...” e
“Hoje pela manhã ELE NOS REUNIU FRENTE À IGREJA:”
b) Relacione o fato de o papel estar amarelado com a resposta dada na questão
5 letra e acima.
c) No momento em que o delegado discursava para o povo na praça, onde
estava e o que fazia o protagonista do conto?
7.
Releia o sétimo e o oitavo parágrafos e conclua como reagiram as pessoas
da cidade à notícia dada pelo delegado e como o delegado reagiu à atitude delas.
8.
Do nono ao décimo nono parágrafos, apresenta‐se a cena do diálogo entre o
protagonista do conto e o antagonista. Releia‐os e responda:
a) O que irritou o delegado?
b) O que há em comum entre esta cena e aquela descrita no início do terceiro
parágrafo?
9.
Releia do 20º ao 26º parágrafo:
a) Levante uma hipótese sobre o que aconteceu com o personagem‐narrador
entre o ataque epiléptico iniciado no 19º parágrafo e a sua chegada ao morro.
b) Explicite a interpretação ingênua que a população deu ao fato contrapondo‐
a àquela feita pelo protagonista do conto.
c) O que possibilitou ao protagonista esta interpretação mais realista?
10.
Retire de cada parágrafo abaixo um exemplo de que o autor deixou pistas
que antecipavam o final:
a) 3º parágrafo:
b) 4º parágrafo:
c) 7º parágrafo:
d) 21º parágrafo:
11.
Discuta a afirmação: no conto lido, além do conflito estabelecido pela
notícia dada pelo delegado, podemos dizer que há outro interno ao personagem‐
narrador.
Apresentamos, a seguir, o início de dois contos. Escolha um deles e dê
continuidade à narrativa.
Trecho 1
As mil injustiças de Fortunato, suportei o melhor que pude; mas quando ele se aventurou ao insulto, jurei vingança. Os senhores, que tão bem conhecem a natureza de minha alma, não irão supor, entretanto, que dei vazão a alguma ameaça. No fim eu teria minha vingança; quanto a isso, decididamente nenhuma dúvida – mas o próprio caráter decidido da resolução obstava a ideia de risco. Eu devia não apenas punir, mas também punir com impunidade. Um agravo permanece sem ser reparado quando a desforra recai sobre o autor da reparação. Permanece igualmente não reparado quando aquele que se vinga fracassa em se fazer ver como tal ao que cometeu o agravo.
Fique bem entendido que nem por palavras, nem por atos dei a Fortunato motivo para duvidar de minhas boas intenções. Continuei, como de costume, a sorrir em sua presença, e ele não percebeu que meu sorriso agora era como o pensamento de sua imolação. [...]
(POE, Edgar Allan. Contos de imaginação e mistério. Trad. De Cássio de A. Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2012. p. 133.)
Trecho 2
Entrou às pressas na sala com o vistoso pacote seguro embaixo do braço, firme e precavidamente afastado do suor. Foi direto ao seu quarto atravessando o corredor sem mesmo olhar para os lados, subiu na cadeira de escritório que usava para estudar e escondeu o embrulho em meio ao edredom no alto do armário. Era verão e este seria utilizado não antes que dali a uns dois meses pelo menos. Seu coração palpitava e pululavam ideias na sua cabeça, uma ducha de água fria acalmaria os ânimos. Dirigiu-se ao banheiro social e só saiu de lá com o chamado para o almoço, era sábado e tinha dezessete anos. Teria uma semana dura pela frente tramando os últimos detalhes, o mais difícil seria conter a excitação e a vontade sobre-humana de compartilhar segredos. Ainda bem que era de poucos amigos. [...]
(CONTE, Naomi. A livraria da esquina e outros contos de mulheres. São Paulo: Summus Editorial, 2007. p. 35.)
Conto
P
ROPOSTA DE PRODUÇÃO TEXTUAL1
Ao produzir seu texto, siga estas orientações:
a)
Tenha em mente que seu conto será lido por colegas, professores, familiares e
amigos;
b)
Antes de escrever, imagine o conflito, ou seja, a situação problemática que as
personagens viverão, e como ocorrerá sua superação. Além disso, planeje a
organização dos fatos, estruturando o enredo em partes (introdução, complicação,
clímax e desfecho) ou encontrando uma maneira de subverter essa estrutura.
Aproveite que a introdução já está feita e capriche nos demais elementos.
c)
Ao redigir, empregue a variedade padrão da língua ou outra, dependendo de quem
é o narrador. Faça inicialmente um projeto e, antes de passar seu conto a limpo,
revise‐o cuidadosamente. Refaça o texto quantas vezes achar necessário.
Referência: CEREJA, W. R. , MAGALHAES, T.C. Todos os textos, 8ª série. 2ª Ed. reform. São Paulo: Atual, 2003.
A moça rica
A madrugada era escura nas moitas de mangue, e eu avançava no batelão velho; remava cansado, com um resto de sono. De longe veio um rincho de cavalo; depois, numa choça de pescador, junto do morro, tremulou a luz de uma lamparina.
Aquele rincho de cavalo me fez lembrar a moça que eu encontrara galopando na praia. Ela era corada, forte. Viera do Rio, sabíamos que era muito rica, filha de um irmão de um homem de nossa terra. A princípio a olhei com espanto, quase desgosto: ela usava calças compridas, fazia caçadas, dava tiros, saía de barco com os pescadores. Mas na segunda noite, quando nos juntamos todos na casa de Joaquim Pescador, ela cantou; tinha bebido cachaça, como todos nós, e cantou primeiro uma coisa em inglês, depois o Luar do Sertão e uma canção antiga que dizia assim: “Esse alguém que logo encanta deve ser alguma santa”. Era uma canção triste.
Cantando, ela parou de me assustar; cantando, ela deixou que eu a adorasse com essa adoração súbita, mas tímida, esse fervor confuso da adolescência – adoração sem esperança, ela devia ter dois anos mais do que eu. E amaria o rapaz de suéter e sapado de basquete, que costuma ir ao Rio, ou (murmurava-se) o homem casado, que já tinha ido até à Europa e tinha um automóvel e uma coleção de espingardas magníficas. Não a mim, com minha pobre flaubert, não a mim, de calça e camisa, descalço, não a mim, que não sabia lidar nem com motor de popa, apenas tocar um batelão com meu remo.
Duas semanas depois que ela chegou é que a encontrei na praia solitária; eu viajava a pé, ela veio galopando a cavalo; vi-a de longe, meu coração bateu adivinhando quem poderia estar galopando sozinha a cavalo, ao longo da praia, na manhã fria. Pensei que ela fosse passar me dando apenas um adeus, esse “bom-dia” que no interior a gente dá a quem encontra; mas parou, o animal resfolegando e ela respirando forte, com os seios agitados dentro da blusa fina, branca. São as duas imagens que se gravaram na minha memória, desse encontro: a pela escura e suada do cavalo e a seda branca da blusa; aquela dupla respiração animal no ar fino da manhã.
Conto
E
XEMPLO COMPLEMENTARE saltou, me chamando pelo nome, conversou comigo. Séria, como se eu fosse um rapaz mais velho do que ela, um homem como os de sua roda, com calças de “palm-beach”, relógio de pulso. Perguntou coisas sobre peixes; fiquei com vergonha de não saber quase nada, não sabia os nomes dos peixes que ela dizia, deviam ser peixes de outros lugares mais importantes, com certeza mais bonitos. Perguntou se a gente comia aqueles cocos dos coqueirinhos junto da praia – e falou da minha irmã, que conhecera, quis saber se era verdade que eu nadara desde a ponta do Boi até perto da lagoa.
De repente me fulminou: “Por que você não gosta de mim? Você me trata sempre de um modo esquisito...” Respondi, estúpido, com a voz rouca: “Eu não”.
Ela então riu, disse que eu confessara que não gostava mesmo dela, e eu disse: “Não é isso”. Montou o cavalo, perguntou se eu não queria ir na garupa. Inventei que precisava passar na casa dos Lisboa. Não insistiu, me deu um adeus muito alegre; no dia seguinte, foi-se embora.
Agora eu estava ali remando no batelão, para ir no Severone apanhar uns camarões vivos para isca; e o relincho diante de um cavalo me fez lembrar a moça bonita e rica. Eu disse comigo – rema, bobalhão! – e fui remando com força, sem ligar para os respingos de água fria, cada vez com mais força, como se isto adiantasse alguma coisa.
(BRAGA, Rubem. Os melhores Contos de Rubem Braga. São Paulo: Global, 1985, p. 39-40)
O texto abaixo é o primeiro capítulo da obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis. Leia‐o atentamente:
Memórias Póstumas de Brás CubasAo verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas Ao leitor
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas.
CAPÍTULO 1 Óbito do autor
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a
Roteiro de cinema
C
OMPREENDENDO O GÊNEROsegunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com o Cotrim, — a filha, um lírio-do-vale, — e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
— Morto! morto! dizia consigo.
É a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços
presentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
(Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Fonte: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000167.pdf)
Agora, abaixo você encontrará a primeira parte do roteiro baseado na obra de
Machado de Assis. Leia‐o, comparando com o texto original.
Memórias póstumas roteiro de André Klotzel diálogos de José Roberto Torero baseado no livro de Machado de Assis Versão: setembro de 98/II Todos os Letreiros Iniciais menos o Título. Termina com o letreiro: Este filme é dedicado, com saudade, ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver. Sequência 1 – int/dia – Fundo Neutro. O FANTASMA DE BRÁS, num fundo neutro. FANTASMA: Antes de começarmos a
história, é importante prestarmos um esclarecimento ao público. Este não é um filme tradicional. É uma história que comporta alguma liberdade. Foi filmada com o espírito da piada, mas o sentimento da tristeza. O filme não tem um mocinho contra um vilão, nem monstros ou maremotos. Também não é um filme de grande profundidade intelectual e quem quiser alguma
teoria filosófica poderá ficar frustrado. Assim corro o risco de não agradar ao espectador que só deseja diversão nem ao que deseja pensamentos profundos. Mas se ainda tenho a chance de conquistar a você espectador, a melhor maneira é não explicar muita coisa. Por isso mesmo não importa como eu, um morto, estou contando esta história aqui do outro mundo: a explicação seria muito longa e desnecessária ao entendimento da história. O que importa é que você, espectador, já está assistindo ao filme e agora é tarde para se arrepender. Letreiro: MEMÓRIAS PÓSTUMAS Sequência 2 – int/dia – Cemitério. (1869) Dia chuvoso. Brás Cubas dentro de um caixão.
Fecham o caixão e começa a sair o féretro com umas 10 pessoas acompanhando, guarda‐ chuvas abertos. Vemos o rosto de Brás dentro do caixão (câmera dentro do caixão).
FANTASMA: (Off) Algum tempo pensei se a história deveria começar pelo começo ou pelo
fim, isto é, se eu contaria antes o meu nascimento ou a minha morte.
O caixão percorre o cemitério e chega a uma cova aberta. VIRGÍLIA em especial destaque durante o percurso. FANTASMA: (Off) Normalmente se começa a contar uma história pelo nascimento, mas eu resolvi fazer o contrário por dois motivos. O caixão é posto no solo. Num corte para plano geral, vemos a cena do enterro ao fundo, enquanto o Fantasma de Brás, pálido, fala em primeiro plano. FANTASMA: O primeiro é que como eu ressuscitei para ser o autor destas memórias, eu não sou um autor defunto, mas um defunto autor. Para mim a sepultura foi outro berço. O segundo é que a história fica renovada e moderna. Moisés, que também contou a sua morte na bíblia, começou pelo nascimento e não pela morte. Aliás, esta é uma diferença radical entre a minha história e a bíblia.
GONÇALVES dá um passo à frente e começa um discurso.
GONÇALVES: A natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos
caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo... FANTASMA (Off) Eu tinha 64 anos bem vividos, era solteiro e tinha dinheiro. Ao bom amigo, que vocês podem ver fazendo o discurso, eu deixei uma bela quantia. Não me arrependo. GONÇALVES: ...tudo isso é a dor crua e má que lhe rói a natureza as mais íntimas entranhas. Tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado. Sequência 3 – int/dia – Quarto de Brás. Brás agoniza na cama. Virgília, vestida de preto, com o rosto semi‐encoberto, se destaca em volta do leito, no amplo quarto, onde Brás Cubas vive os últimos momentos. FANTASMA: (Off) Assistiram a minha partida umas quatro ou cinco pessoas, entre elas uma senhora. Vemos o médico, o amigo e por fim Virgília.
FANTASMA: (Off) Estavam lá o médico da família, o amigo que viram falando no meu
enterro e uma senhora... Daqui a pouco vou dizer quem era a tal senhora, que simplesmente não podia acreditar na minha extinção.
Brás dá o último suspiro. VIRGÍLIA: (Suspirando) Morto, morto. Sequência 4 – int/dia – Várias. Imagens do Rio de Janeiro de 1870.
FANTASMA: (Off) Morri há mais de cem anos, mais precisamente em 1869, no Rio de
Janeiro. Pode‐se dizer que eu morri das ideias, porque minha morte foi decorrência de uma pneumonia que peguei quando ia refrescar as ideias: abri a janela em vez de uma brisa, bateu um vento encanado. Brás abre a janela da casa. Um forte vento entra. Brás espirra. Sequência 5 – int/dia – Quarto de Brás. Leito de morte de Brás. Estamos no momento em que Virgília chega e vai entrar no quarto. GONÇALVES: A colonização do país precisa de vias férreas. Estamos no momento de dar um grande passo. Um passo custoso, mas firme, em direção ao nosso futuro.
Percebendo a chegada da senhora, Gonçalves, que se encontra à beira do leito, vai terminando a conversa e se afasta.
FANTASMA: (Off) Lembro como se fosse hoje. Ela entrando pela porta, pálida, comovida,
vestida de preto. Ficou ali parada, sem ânimo de entrar.
O Fantasma entra em cena e se aproxima de Virgília. Ele é invisível para as pessoas.
FANTASMA: Virgília… Sim, chamava‐se Virgília. Imagine que nos amamos, ela e eu, muitos
anos antes. Quem diria, dois grandes namorados, duas paixões sem limites acabam desse jeito: nada mais existia entre nós, ali, vinte anos depois. Virgília está à beira do leito. Um feixe de luz entra pela janela e a ilumina de maneira quase mágica. Brás na cama reconhece a visita e cumprimenta ligeiramente. BRÁS: Anda visitando defuntos? VIRGÍLIA: Ora, defuntos… Ando ver se ponho os vadios para a rua. O Fantasma de Brás se dirige a nós.
FANTASMA: Mais adiante vou contar a história de Virgília. Antes quero relatar uma coisa
inédita. Que eu saiba ninguém descreveu o próprio delírio de morte. Vou fazer isto agora. Sei que a ciência me agradecerá a grande contribuição ao conhecimento humano. Você, espectador, que já se remexe na poltrona, tenha calma. Logo vamos entrar na história propriamente dita.
Brás agonizante na cama.
FANTASMA: (Off) Eu tenho certeza que também você vai achar interessante saber o que
aconteceu na minha cabeça durante uns minutos.
Uma senhora que está à beira do leito de morte de Brás, tem uma bíblia na mão. Brás agonizante, olha a bíblia e faz o sinal da cruz.
Sequência 6 ‐ Várias.
Num fundo neutro, vemos Brás transformado no livro religioso. Ele faz parte da capa do livro: o rosto e a mão do Santo são suas. FANTASMA: (Off) Primeiro me senti transformado em suma teológica de São Tomás. Sequência 7 – int/dia – Casa de Brás. Brás está de costas deitado com as mãos cruzadas sobre o peito como se fosse um defunto. Virgília se senta na cama e descruza as mãos. Sequência 8 – Várias. Brás cavalga um hipopótamo. FANTASMA: (Off) Depois me vi cavalgando um hipopótamo. BRÁS: (Com medo, para o hipopótamo) Esta viagem me parece meio boba. Sem destino. HIPOPÓTAMO: Engana‐se, meu amigo. Nós vamos à origem dos tempos. BRÁS: Ah! Deve ser muito longe. O hipopótamo não responde. Brás, visivelmente preocupado, tenta ser delicado. BRÁS: E vale a pena? Como o hipopótamo não responde, Brás fecha os olhos, enjoado do galope. Ele sente frio. O hipopótamo para. O ambiente é todo branco e artificial. Brás começa a caminhar.
O frio intenso. Brás esbarra em volumes que se tornam visíveis à medida que a neve os descobre. Subitamente percebemos que os volumes são parte de uma fabulosa mulher, a NATUREZA, cujo rosto é uma montanha. Reconhecemos na Natureza as feições de Virgília. BRÁS: Muito prazer. Como se chama a senhora? NATUREZA: Por que quer saber? BRÁS: (Intimidado): Por nada. Curiosidade. NATUREZA: Pode me chamar de Natureza. Sou tua mãe. E tua inimiga. Natureza dá uma gargalhada que se transforma em uma imensa ventania.
NATUREZA: Não se assuste; minha inimizade não mata. Você está vivo e eu não quero outra
tortura.
BRÁS: (Incrédulo) Vivo? Eu?
NATUREZA: Sim verme, vives. E se voltar a ter consciência um instante, dirás que queres
viver ainda mais.
Natureza segura Brás pelos cabelos e ergue‐o à altura de seu rosto. Os pés de Brás batem sem tocar em nada.
NATUREZA: Entendeste?
NATUREZA: Tem certeza?
BRÁS: Tenho. A natureza que eu conheço é mãe e não inimiga. NATUREZA: Não sou boa nem má.
BRÁS: Tu não és vida?
NATUREZA: Sou. Mas também sou a morte. E você está prestes a me devolver o que te
emprestei. Um forte trovão ecoa na paisagem branca. BRÁS: Dona Natureza, me dá mais alguns anos? NATUREZA: Você ainda não está enjoado dessa luta toda? O que queres ainda? BRÁS: Viver, mais nada. NATUREZA: Não preciso mais de ti. BRÁS: Acabando com a vida não golpeias a ti mesma?
NATUREZA: Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. Eis o
estatuto universal. Sobe e olha.
Natureza atira Brás num morro de neve. No fundo no meio da névoa, uma projeção de filmes antigos (de arquivo ou reconstituição): homem das cavernas, romanos, cavaleiros medievais, etc.
BRÁS: Tem razão. A coisa é divertida e vale a pena. Um pouco monótona talvez, mas vale a pena. Os filmes continuam: descobrimento do Brasil, época da invenção do cinema, o futuro visto numa simulação de seriado de Flash Gordon ou dos filmes de Meliès.
Uma forte névoa encobre tudo. Brás se vira, mas só pode ver o hipopótamo. Ele mira o hipopótamo que vai diminuindo de tamanho, diminuindo, até ficar do tamanho de um gato. O hipopótamo solta um miado. Sequência 9 – int/dia – Quarto de Brás. O gato de Brás mia num canto do quarto. Brás desperta do delírio. Virgília a sua frente. FANTASMA: (Off) E Virgília estava ali, preocupada ao lado do meu leito de morte, assistindo o meu delírio. O fantasma novamente em primeiro plano.
FANTASMA: Vou contar a história de Virgília, mas tenham calma, cada coisa a seu tempo.
Agora ajeitem‐se em sua poltrona que eu vou começar pelo começo. E vejam com que agilidade, com que arte faço eu a grande passagem de tempo desta estória. Vejam: meu delírio começou na presença de Virgília... Vemos o rosto de Virgília… FANTASMA: (Off) Virgília foi o meu grande pecado da juventude; eu disse juventude, e não existe juventude sem infância; com infância já se imagina nascimento. …o rosto de Brás agonizante…
Agora, responda:
1.
O texto lido acima é a primeira parte de um roteiro de cinema. Para que
serve um roteiro de cinema?
2.
O roteiro é um gênero narrativo, porque conta uma história. Ele apresenta
alguns elementos básicos como enredo, tempo, personagens e espaço. O roteiro
também apresenta, como qualquer gênero específico, uma estrutura própria. O texto
lido está organizado em sequências e há instruções para cada uma delas.
a) Uma filmagem pode ocorrer em um lugar fechado (um estúdio de filmagens,
uma casa real etc.) ou ao ar livre. Quais marcas indicam onde as filmagens ocorrerão?
O que significa cada uma?
b) Além de nomear qual é a sequência e como será a filmagem, quais outras
informações o roteirista indica no título de cada sequência?
3.
Quando leu o roteiro acima, você deve ter se lembrado dos textos teatrais
que já leu, como o livro Hamlet, de Shakespeare, ou os textos da apostila do 7º ano.
Esta associação é bastante comum, já que o texto teatral e o roteiro de cinema se
parecem. Ambos não nascem para ser objeto final de leitura do público, mas são
direcionados aos atores e a outros profissionais que trabalham para produzir a peça de
teatro ou o filme.
a) Observe agora que, no roteiro lido, há indicações em letras maiúsculas para
os nomes dos personagens e, em seguida, sua fala. Que tipo de discurso é usado para
reproduzir estas falas (direto, indireto, indireto‐livre)?
b) Entre os trechos em que há falas, há outros (em cor preta) como este:
Brás está de costas deitado com as mãos cruzadas sobre o peito como se fosse um defunto. Virgília se senta na cama e descruza as mãos.Qual a finalidade destes trechos?
4.
Reúna‐se com um colega e, juntos, pensem sobre quais são as
características do roteiro de cinema. Agora, respondam, abaixo.
b) Quem são os interlocutores, ou seja, quem escreve e para quem se escreve
um roteiro?
c) Apesar de ser escrito para um seleto grupo de pessoas, há um interlocutor
mais importante que não lerá este texto, mas para o qual ele é produzido. Quem é
esse interlocutor?
d) Em que suporte se encontra este texto? E em que suporte sua produção se
dará?
e) Quais os temas dos roteiros?
f) Como é a estrutura deste gênero?
g) Qual a linguagem utilizada?
Escolha uma das três propostas abaixo:
1ª
– Leia o conto a seguir. Depois, transforme o texto lido em um roteiro de
cinema, seguindo as INSTRUÇÕES abaixo.
Natal na barcaLygia Fagundes Telles Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. — Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.