Latusa digital
– ano
5
– N°
34
– setembro de 2008
Psicanálise, discurso da ciência e cognitivismo
*Fernando Coutinho
**Jacques-Alain Miller posiciona-se, nas aulas que nos dedicamos a estudar,
no que ele chama de seu momento spinozista, no sentido de abandonar a
polêmica na qual se engajara frente às terapias cognitivo-comportamentais,
para dedicar-se à elucidação dos princípios dessa prática que tem avançado
tanto nos últimos anos.
Para seguir os passos de Miller, vale lembrar que Freud, ao fundar a
psicanálise, estabelece as bases de um laço social inédito desenvolvido
entre médico e paciente, ao qual dará o nome de transferência, criando
assim um dispositivo que desenvolverá o poder curativo dessa prática por
meio da interpretação da fala do paciente. O laço social inventado por Freud
será formalizado por Lacan como discurso no Seminário 17.
1Em O avesso da psicanálise, aprendemos com Lacan que quatro grandes
modalidades de laço social, os quatro discursos (do mestre, universitário,
da histérica e da psicanálise), regem as relações simbólicas que ligam entre
si os seres falantes e estabelecem modalidades de saber e de gozo.
* Trabalho apresentado no Seminário de Orientação Lacaniana, na EBP-Rio em 15 de junho
de 2008, como produto do cartel composto por Romildo do Rêgo Barros (mais-um), Lenita Bentes, Fernando Coutinho, Manoel Barros da Motta, Maria Angela Maia e Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros, encarregado da apresentação das linhas gerais do curso de Jacques-Alain Miller de 2007-2008.
** Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP).
1 LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro:
Apoiados então nesse ensino, podemos nos autorizar a falar dos avatares
desses laços, sobretudo no que diz respeito ao primeiro deles, o discurso do
mestre, e as conseqüências de sua utilização, quando aplicado no exercício
do poder nas instituições sociais. Podemos refletir também sobre as
adaptações feitas nesse discurso ao ser aplicado à contemporaneidade.
Em “O mal-estar da civilização”
2Freud reflete sobre os efeitos produzidos
pelo recalque e pelas identificações superegóicas para explicar tanto as
aquisições sociais do homem civilizado quanto o ônus que pesa sobre ele: a
experiência do sofrimento e suas tentativas inadequadas de lutar contra
isso.
Na ocasião em que escreveu o referido texto, Freud não dispunha do
conceito de real conforme elaborado e utilizado por Lacan ao longo do seu
ensino, sobretudo em seus últimos seminários. Não dispunha tampouco do
conceito de significante e da lógica dos discursos.
Mais enfático do que Freud, ao lidar com a questão sócio-cultural, Lacan
insiste em “Função e campo da fala e da linguagem” sobre a importância do
analista levar em conta a subjetividade de sua época, sob a imposição, no
caso contrário, de renunciar à prática da psicanálise, pois “como poderia
fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada sabe da dialética que o
compromete com essas vidas num movimento simbólico”?
3Nessa perspectiva, Lacan explicita o que ficou apenas implícito na obra de
Freud: “o inconsciente é político”. Portanto, sendo político, ele é função dos
laços sociais e está definitivamente atrelado às características da
contemporaneidade.
Assim sendo, enquanto em um indivíduo biológico as funções orgânicas
(incluídas as cerebrais) independem da cultura e se organizam de acordo
com o real da ciência, os modos de gozo de um sujeito, o recalque, as
transgressões e identificações se organizam e se regulam em função dos
2 FREUD, S. “O mal-estar na civilização” (1929). Em: Obras completas. Rio de Janeiro:
Imago, vol. XXI, 1987.
3LACAN, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953). Em: Escritos.
valores históricos de cada época. A história libidinal de um sujeito se
articula com os valores culturais de sua época, na medida em que o
inconsciente se constitui na dependência do universo da linguagem, isto é,
do universo cultural garantidor simbólico de sua existência biológica.
Os seres falantes são levados dessa forma a construir defesas contra a
precariedade de suas existências. Essas defesas são exatamente os laços
sociais que dependem, entretanto, da ambigüidade e insuficiência da
linguagem, uma vez que os seres falantes não dispõem dos recursos
disponíveis aos seres naturais, estes orientados por um saber herdado,
genético, submetido às leis universais e imutáveis, no que diz respeito aos
seus comportamentos, à reprodução e à manutenção da vida. A reprodução
desses seres é garantida pela existência de relação sexual, e suas vidas,
garantidas por instintos de preservação da espécie.
Em O avesso da psicanálise, Lacan afirma que o discurso do mestre, que
funciona como operador do poder, ao ser encarnado por uma autoridade
instituída socialmente, é idêntico ao discurso do inconsciente, organizado
por um significante-mestre, S
1. Este ocupa o lugar de comando nas
civilizações, mas também no inconsciente de cada sujeito em particular.
Miller toma como parâmetro para o discurso do mestre, como operador do
poder, o discurso da ciência nos nossos dias e suas conseqüências na
determinação das formas de mal-estar dos sujeitos no tempo da
globalização.
A civilização a que Freud se referia em “O mal-estar na civilização” era a da
Coroa e da Igreja, que encarnavam por meio de seus semblantes os
significantes mestres, os S
1da época, respondendo assim de uma forma
talvez cruel, como diz Miller, porém eficaz, à regulação do gozo, à regulação
do mal-estar, do sofrimento, na medida em que os objetos que eram
propostos aos sujeitos como objetos de satisfação pulsional, de satisfação
sexual, eram objetos muito próximos dos objetos da natureza. O
matrimônio como semblante da relação sexual regulava o gozo à custa da
repressão e do recalque, mas favorecia os laços familiares e amorosos que
serviam de sustentação para a sociedade. De certa forma é verdade que
isso falha sempre, como a neurose, a psicose e a perversão comprovam,
mas o real humano era mais domesticado do que nos dias de hoje. O
“deserto” era menor. A psicanálise ainda não havia “liberado” o sujeito
civilizado, como viria a fazê-lo ao longo do século XX, nem produzido seu
impacto cultural e todas as conseqüências com as quais lidamos hoje.
Não foi, entretanto, apenas a psicanálise que produziu esse impacto
cultural, social, e moral na civilização, juntamente com ela ocorreram as
extraordinárias e inimagináveis conquistas da ciência, as revoluções
políticas e, sobretudo, as revoluções de costumes (movimento feminista,
panteras negras, movimento gay, entre outros). Como conseqüência dessas
transformações ao longo do século XX, sobretudo a partir dos anos 50, em
nome “dos direitos iguais para todos”, os valores vigentes nas gerações
precedentes começaram a cair, um a um, vertiginosamente.
Com o Seminário 17, datado do início dos anos 70, Lacan já anunciava o
Mercado Comum como um significante que ocupava o lugar de comando na
sociedade, o lugar de S
1, da mesma forma que os reis, os papas ou os
presidentes de repúblicas. O Mercado Comum Europeu, citado por Lacan
nesse seminário, tem hoje o nome de Mercado Global, mestre
contemporâneo de um universo sem fronteiras.
Jacques-Alain Miller em seu texto “Uma fantasia”
4, ao tentar formalizar o
discurso contemporâneo, cita Lacan para dizer que, na contemporaneidade,
o objeto a foi elevado ao zênite da sociedade, colocado no lugar de S
1no
discurso do mestre, isto é, no lugar de comando, servindo como bússola,
como elemento de orientação para os sujeitos desamparados e
desorientados de nossos dias.
O objeto a é um objeto fabricado, produzido pelo Mercado e funcionando
como mais-de-gozar. Esse objeto ganha freqüentemente o nome de novo,
quer dizer, um objeto descartável e substituível com imensa rapidez. Como
objeto de consumo, está diretamente relacionado aos modos de gozo
contemporâneos. Localizamos aí o conflito que diz respeito às práticas da
psicanálise e da psicologia, e suas conseqüências para o sujeito dos nossos
dias.
A partir dos anos 50, a psicologia, até então vista com desdém tanto pelos
acadêmicos da ciência quanto da filosofia, inicia um namoro com a
neurologia, que vai dar em casamento nos anos 70, adquirindo a partir de
então ingresso no universo das ciências hard, e passando a utilizar, em suas
listas e classificações, o sufixo neuro que lhe dá ares de confiabilidade e
nobreza. Com isso, a psicologia passa a desenvolver técnicas de terapia em
que se serve da fala, porém em uma perspectiva totalmente distinta da
psicanálise. Poderíamos mesmo afirmar que ela utiliza em suas práticas o
discurso do mestre, avesso do discurso do analista. Trata-se das técnicas
cognitivo-comportamentais que, como o nome indica, utilizam um saber
acumulado para, por meio da sugestão, intervir diretamente no
comportamento dos indivíduos desorientados, mergulhados no discurso da
ciência veiculada pela mídia, e tendo como bússola apenas os produtos do
Mercado operador contemporâneo do discurso do mestre.
Apesar de orientados inconscientemente pelos S
1do discurso da ciência, os
terapeutas cognitivo-comportamentais omitem de suas práticas a noção de
sujeito, a noção de significante-mestre e a noção de objeto. Servem-se
apenas do S
2, das cadeias formadas pelo saber acumulado onde incluem
suas tabelas de quantificação e comparação e seus protocolos de
enquadramento dos indivíduos em categorias.
Os saberes acumulados por esses terapeutas são organizados em
protocolos, como nos demonstra tão claramente Marie-Hélène Brousse em
seu artigo “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”
5. Esses protocolos
orientam o terapeuta quanto ao que deve ser feito ou dito aos pacientes
para curá-los de seus males, opondo-se assim à prática psicanalítica que é
baseada na invenção, na aposta no sintoma, e no tratamento do
sofrimento, do mal-estar; por meio da inclusão do real, do fracasso, da
busca de singularidade na satisfação do gozo, e da contingência.
Adaptando o discurso do mestre ao discurso da contemporaneidade,
fundamento ideológico, imaginário, das práticas das TCCs, Marie-Hélène
5BROUSSE M.-H. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. Em: Latusa, n° 12. Rio de
Brousse nos propõe colocar o mestre da globalização no lugar do S
1, ou
seja, o Mercado que se dirige ao S
2representado pelos protocolos. No lugar
do sujeito dividido do inconsciente, $, localizado por Lacan abaixo do
significante mestre, ela coloca, no discurso da contemporaneidade, as redes
da Internet, as redes das comunidades de gozo, as redes decorrentes das
escalas de classificação e quantificação. Abaixo do S
2, no lugar ocupado
pelo dejeto, pelo objeto mais-de-gozar, onde Lacan já situava os campos de
concentração, Marie-Hélène Brousse localiza as comunidades de auto
segregação (gays, alcoólatras anônimos, afro descendentes, obesos,
anoréxicos, etc.).
Mercado
Protocolos Procedimentos
Redes
Dejeto
Comunidades de gozo
No lugar reservado ao dejeto encontramos hoje as cifras, produzidas pelas
escalas quantificadoras e classificatórias (indivíduos que não atingem os
níveis desejáveis de serotonina, deficientes em neuro-transmissores, etc).
Tudo pode ser quantificado e cifrado, até sentimentos como o amor.
O discurso da ciência sustenta as práticas das TCCs que pretendem
imaginarizar o real, mesmo o real da natureza, como funcionamento dos
neurônios, o funcionamento cerebral onde localizam o indivíduo neuronal,
uma máquina em funcionamento. Existem hoje aparelhos que transformam
em imagens o funcionamento dos neurônios e essas imagens são
interpretadas pelos neuro-psicólogos praticantes das TCCs. A tristeza, a
alegria, o medo, o amor, etc., cada um desses sentimentos tem sua cor que
pode ser vista e mensurada por aparelhos.
S
1S
2O cognitivismo legitima, com as interpretações das imagens desses
aparelhos, o direito de afirmar que não há sujeitos singulares, apenas
indivíduos, órgãos, cérebros que funcionam como máquinas, cujo
funcionamento pode ser ajustado e retificado, esperando-se eliminar com
isso a idéia de falha, substituindo-a pela idéia de falta. Falta algo àquela
máquina que pode ser reposto, reconstituindo-se assim sua integridade.
Miller recorre a Nietzsche, ao quinto parágrafo de Assim falou Zaratustra
6,
para fazer uma analogia entre o “último homem” nietzscheano e o homem
neuronal, o homem máquina do cognitivismo. O último homem que
abandonou todos os valores não homogêneos, não mensuráveis, não
comparáveis, que abandonou todos os valores absolutos em detrimento dos
valores passíveis de serem quantificados e classificados pelas escalas de
comparação para todos.
Miller aproxima o último homem nietzscheano ao não-tolo de Lacan. O
último homem, por meio de uma piscadela de olhos, mostra a Zaratustra
que não é tolo, que não crê nos antigos valores que tornaram possíveis os
laços humanos. Trata-se do não-tolo ao cognitivismo, daquele que com a
responsabilidade na sustentação de sua radical singularidade não se deixa
iludir por valores absolutos.
A doença e a desconfiança são pecados tanto para o homem do
cognitivismo quanto para o último homem nietzscheano. A saúde é um
valor apregoado como um bem garantido a todos pela ciência. O mais
inquietante para nós, entretanto, é a similitude que existe entre o último
homem e o cidadão democrático imerso na ideologia da homogeneização
dos mesmos direitos para todos.
Politizando o debate, Miller apresenta os avaliadores dos nossos dias como
uma seita, uma falange de alto nível, de vanguarda. Eles são os
responsáveis pela garantia de manutenção dos ideais midiáticos de uma
ciência a serviço do Mercado.
Ciente de que a adoção do estruturalismo por Lacan foi ao mesmo tempo
uma forma de responder à fenomenologia de Merleau-Ponty e ao
existencialismo de Sartre, mas, sobretudo, de incluir a psicanálise no campo
das ciências, Miller evoca o gesto sartreano de recusar o prêmio Nobel de
Literatura como um gesto de defesa daquilo que é sem igual, sem
comparação. Com seu gesto, Sartre se recusou a ser comparado a outros
escritores, mesmo tratando-se de H. Hemingway.
O relativismo dos nossos dias e a luta da psicanálise contra a ideologia de
homogeneização pode dar a impressão de que nossa luta contra o
para-todos nos alinha com os ideais aristocráticos do culto do incomparável, dos
valores absolutos. O aristocrata vai buscar o valor incomparável em um S
1,
em um significante-mestre a ser encarnado no exercício do poder sobre
outros sujeitos. Entretanto, diferentemente do ideal do aristocrata, nosso
ideal buscado vai se localizar exatamente no lugar do objeto a, do dejeto,
do objeto a no que ele tem de agalma, sem dúvida, mas também no que
ele tem de abjeto, de palea.
Gostaria de concluir o que pude produzir com a leitura dessas aulas
lembrando Lacan em seu ultimíssimo ensino, O seminário, livro 25: O
momento de concluir.
“O que tenho a lhes dizer, vou dizê-lo, é que a psicanálise deve ser levada a sério, mesmo que ela não seja uma ciência. Ela não é de maneira alguma uma ciência. Porque o chato, como mostrou abundantemente Popper, é que não é uma ciência porque é irrefutável. É uma prática que vai durar o tempo que ela tiver que durar, é uma prática de papo (bavardage). Nenhum papo é sem risco. Já a palavra papo implica alguma coisa. O que isso implica está suficientemente dito pela palavra papo, o que significa que não há apenas as frases, isto é, o que nós chamamos proposições que implicam conseqüências, as palavras também. O papo coloca a fala na categoria do babar ou de cuspir, ele a reduz a uma espécie de salpico (éclaboussement) que resulta disso”. 7
7 LACAN, J. O seminário, livro 25: O momento de concluir. Inédito, aula de 15 de novembro