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A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE SEXUAL: TRAVESTI, A INVENÇÃO DO FEMININO

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Academic year: 2021

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Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação

A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE SEXUAL:

TRAVESTI, A INVENÇÃO DO FEMININO

Alexandre Sebastião Ferrari Soaresi Resumo: O dispositivo da sexualidade produziu normas que afetam as identidades

sexuais dos sujeitos. Pensar na forma como esse processo acontece e quais (pré)juízos pode trazer, se faz necessário para a compreensão dos discursos sociais sobre a sexualidade. Busca-se, com este trabalho, trazer uma reflexão acerca desse dispositivo e a sua influência nas relações homoeróticas, bem como refletir sobre as possibilidades de superação dos atuais padrões que prescrevem comportamentos sexuais. A partir da materialidade discursiva em 4 tirinhas da personagem Muriel, produzidas entre 2009-2011 pelo quadrinista Laerte Coutinho, analiso, com auxílio da escola francesa de análise do discurso, os efeitos de sentido (re)produzidos pelas normas vigentes sobre as travestis para compreender o funcionamento do discurso sobre o dispositivo da sexualidade, sua circulação e naturalização.

Palavras-chave: Sexualidade. Gênero. Homossexualidade.

Abstract: The sexuality device has produced norms that affect the sexual identities of subjects. To think about the way this process occurs and which (pre)judgements it may bring is necessary to comprehend the social discourses about the sexuality. With this article, I have the objective of thinking about this device and its influence in homoerotic relationships, as well as thinking about the possibilities to overcome the current patterns that prescribe sexual behaviors. From the discursive materiality in 4 comic strips of the character of Muriel, produced between 2009 and 2011 by the cartoonist Laerte Coutinho, I analyze, with the aid of the French school of Discourse Analysis, the meaning effects (re)produced by the current norms about the transvestites, in order to comprehend the functioning of the discourse about the sexuality device, its circulation and naturalization.

Keywords: Sexuality. Gender. Homosexuality.

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Na realidade, quando nos travestimos, não estamos imitando nenhum “gênero original”, uma vez que gênero já é, em si, a imitação de algo que nunca existiu na realidade, que jamais possuiu um “original” (Judith Butler). Este artigo surge de uma reflexão que venho fazendo desde 20061 em relação aos discursos sobre (homo)sexualidade que estão circulando, nos últimos 20 anos, na imprensa nacional.

A partir da AIDS, como acontecimento discursivo, no início da década de 1980, os sujeitos homossexuais2 imersos em um silêncio constitutivo, em se tratando de imprensa de circulação nacional, passam a ser discursivizados, quase de forma generalizada, pelos meios de comunicação, numa relação causal com o vírus da imunodeficiência adquirida.

Essa relação construída entre o sujeito homossexual e a AIDS, discursivizada por aqueles meios de comunicação, a saber, revista Veja e IstoÉ, sobretudo, ganha fôlego nos discursos médico, religioso e legal quando trata(va)m do homossexual como doente, pecador e criminoso, respectivamente.

Durante esses últimos vinte anos, ainda que aquela relação entre ser homossexual e portador do vírus não circule mais na imprensa (por motivos, inclusive, científicos), continua reverberando em outros discursos; sobretudo, no religioso. Não mais a relação causal entre ser portador do vírus HIV, mas a relação entre ser um agente em potencial de doenças psicopatológicas, num reforço de sua promiscuidade e da sua sexualidade anormal.

1 A partir da tese, defendida em 2006, na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da professora Bethania Mariani, a respeito dos discursos presentes nas revistas Veja, IstoÉ e Superinteressante sobre a homossexualidade na década de 1980.

2 Refiro-me, exclusivamente, à homossexualidade masculina.

No final do século XX, mais precisamente após os primeiros anos da devastação da AIDS sobre os movimentos de luta e afirmação homossexuais, gays, sobretudo, mas também lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros (doravante, LGBT) começam a ocupar um espaço na mídia nunca antes visto na história desse país. Em princípio, por conta do câncer gay, nas manchetes de jornais e revistas. Depois, por outras questões referentes às afirmações propostas por grupos que lutavam contra a propagação da doença e, mais tarde, que lutavam em defesa dos direitos dos homossexuais. O espaço, nos meios de

comunicação, reservado para a

homossexualidade migrou de editorias denominadas Ciência e Saúde para outras editorias, digamos, menos cientificizadas, tais como Comportamento, Gente, Sociedade, Brasil.

O homossexual deixou, nessas páginas jornalísticas, de ser exclusivamente masculino e deslizou para outras possibilidades: a mulher homossexual, o bissexual, o travesti (longe das páginas policiais), os transgêneros3.

A AIDS, como um acontecimento4 discursivo, produziu também outros deslocamentos. O maior deles que se pode perceber nas mídias em relação há duas décadas, sobre os sujeitos homossexuais, é, sem dúvida, as respostas imediatas sobre quaisquer manifestações contrárias aos direitos e aos modos de vida desses sujeitos.

Sobre os direitos, é importante destacar que os embates que se estabelecem na imprensa se dão por conta de preconceitos, da violência contra os homossexuais que acontecem no país

3 Ainda que ele não seja homossexual, é tratado, de forma geral, pela mídia, como se fosse.

4 O acontecimento discursivo é o ponto de encontro de uma atualidade e uma memória; é ele que desestabiliza o que está posto e provoca um novo vir a ser, reorganizando o espaço da memória que o acontecimento convoca (PÊCHEUX, 2002, p. 17).

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e pela luta em relação aos direitos civis do público LGBT.

É a partir desse cenário que trato aqui, especificamente, dos discursos sobre as travestis5 em 4 tirinhas da personagem Muriel/Hugo do quadrinista Laerte Coutinho6.

Antes de iniciar a exposição deste trabalho, porém, é preciso esclarecer que o meu ponto de vista teórico é o da análise de discurso francesa (doravante, AD), aquela construída por Michel Pêcheux, na França, na década de 1960 e ressignificada, aqui no Brasil, sobretudo, por Eni Orlandi.

Os princípios que regem este ponto de vista são:

a) Os sujeitos são simbólicos e históricos. Não se trata, portanto, de indivíduos compreendidos como seres que têm uma existência particular no mundo. Quero dizer que o sujeito, nessa perspectiva, não é um ser humano individualizado, mas que deve ser considerado como um ser social. Ele deve ser compreendido a partir de um espaço coletivo. Para um analista de discurso, o histórico e o simbólico não se separam.

b) Não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Ideologia para a AD não é dissimulação ou ocultação de verdade. O seu funcionamento faz com que os sentidos pareçam evidentes quando na realidade eles se constituem do processo em que entram em

5 A opção de empregar a palavra travesti precedida do

artigo definido feminino, ao contrário do que comumente se encontra nos meios de comunicação, deu-se em razão da necessidade de escapar das significações cristalizadas, poder desconstruir conceitos dicionarizados e apontar para a possibilidade de outros sentidos na língua sem o ranço moralista que perfazem tais construções.

6 Laerte participou de diversas publicações como A

Balão e O Pasquim. Também colaborou com as revistas

Veja e IstoÉ e os jornais Folha de São Paulo e O Estado

de São Paulo. Criou diversos personagens, como os

Piratas do Tietê e Overman. Em conjunto com Angeli e Glauco (e mais tarde Adão Iturrusgarai) desenhou as tiras de Los Três Amigos.

jogo o sujeito, as condições de produção7 e sua inscrição em diferentes formações discursivas8 (ORLANDI, 2010). A palavra corpo significa diferentemente para um homem da Idade Média e para um homem capitalista. A palavra disciplina significa de forma diferente para um professor e para um aluno.

c) Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo. Ao produzir sentido, o sujeito está se significando.

d) Para que as palavras façam sentido é necessário que elas já façam sentido (ORLANDI, 1996), estejam inscritas na história, pois cada tempo tem a sua maneira de nomear e interpretar o mundo. Esse é um complexo processo da memória. Há dizeres já ditos e esquecidos que estão em nós e que fazem com que ao ouvirmos uma palavra, uma proposição, ela apareça como fazendo um determinado sentido. A memória discursiva é

7 As condições de produção caracterizam o discurso, o constituem na medida em que remetem a lugares

determinados na estrutura de uma formação social,

lugares dos quais a sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos: assim, por exemplo, no

interior da esfera da produção econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe da empresa etc.), do funcionário de repartição, do contramestre, do

operário, são marcados por propriedades

diferenciais determináveis. (PÊCHEUX, 1995, p. 82,

grifos nossos). Deve-se então levar em conta alguma coisa do exterior da língua para se compreender o que nela é dito. A descrição da língua não é suficiente para explicar determinados fenômenos nos quais a língua está envolvida. A memória das significações de um discurso e suas condições de produção não é secundária, mas constitutiva da própria significação.

8 No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade”. (FOUCAULT, 2005, p. 43).

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constituída pelo esquecimento. Esquecemos quando os sentidos se constituíram em nós; eles nos aparecem como evidentes, como um sempre já-lá.

e) Vivemos em uma sociedade estruturada pela divisão e por relações de poder. Portanto, os sentidos não são os mesmos para todos, ainda que pareçam ser. Nós, analistas do discurso, tratamos do político que se inscreve na língua.

Conforme dito acima, este artigo é proposto a partir de tirinhas do quadrinista Laerte Coutinho sobre a personagem Muriel/Hugo. Em 2008, o quadrinista começou, na Folha de São Paulo, a desenhar as tirinhas “Eu, travesti”. Trata-se de um tema caro ao cartunista em tempos recentes, que são as peculiaridades e mistérios de gêneros. Em 2009, nasce Muriel. Trata-se de um homem que gosta de se vestir como mulher, mais conhecido como crossdresser9. É uma personagem com características femininas bastante específicas se levarmos em consideração que Muriel seria uma espécie de alterego de Hugo. Muriel/Hugo brinca com a paródia do gênero na medida em que exagera e imita a performance feminina e masculina. Não se trata explicitamente de um homossexual, mas a figura mais próxima que

9 Do inglês Cross-dressing - pessoas que vestem roupas usualmente próprias do sexo oposto, sem que tal atitude interfira necessariamente em sua orientação sexual. Ou seja, uma pessoa crossdresser não necessariamente pautará sua orientação ou seu papel sexual em função desse seu fetiche por roupas do sexo oposto. Sendo assim, ele(a) pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Não utilizam hormônios nem cirurgias plásticas para se assemelharem ao sexo oposto, o que os distingue de travestis e transgêneros, pois no dia-a-dia portam-se segundo seu sexo biológico. Em suma, ser

crossdresser muitas vezes implica na satisfação eroto-fetichista em se vestir com roupas do sexo oposto. Em raros casos os crossdressers podem até fazer uso de hormônios para ter uma aparência mais feminina (ou masculina) variando de caso em caso. Os crossdressers autodenominam-se “CDs” (GOLDENSON, 1989).

se pode traduzir essa personagem seria o que conhecemos pela travesti.

Em se tratando de discurso midiático, as travestis ocupam menos espaço que os gays, as lésbicas, os bissexuais e os transgêneros, mesmo em tempos atuais. Em relação aos transgêneros, em termos de visibilidade, aquelas ocupam mais espaço nos meios de comunicação. No entanto esse espaço é pautado pela violência e criminalidade.

Em uma pesquisa concluída10 em 2010, em relação ao discurso sobre os homossexuais nos meios de comunicação, nem um terço dos textos diziam respeito às travestis. Quando eram retratadas, falava-se necessariamente da violência em torno delas ou de escândalos sexuais.

Na década de 1980, alguns outros sentidos, para além da violência, eram produzidos nos meios de comunicação sobre as travestis. Rogéria, por exemplo, participa de forma especial da novela Tieta, da Rede Globo. E o sinal mais eloquente da posição reservada às travestis no imaginário popular brasileiro (KULICK, 2008) é o fato de que nos meados daquela década, a pessoa tida como a mulher mais bela do Brasil era uma travesti, Roberta Close. A eleita tornou-se um nome famoso em todo o país, ocupando um espaço na mídia fora dos estereótipos atribuídos às travestis. No entanto, essa abordagem era uma ilha se se comparadas às notícias em torno delas.

Muriel, do cartunista Laerte, ocupa um espaço mais político em termos de atuação.

10 Em 2010, concluí uma pesquisa sobre o discurso midiático e a construção das sexualidades em revistas e jornais de circulação nacional, a saber, O Globo, Folha

de São Paulo, Jornal do Brasil, Estadão, Gazeta do

Paraná, Veja, IstoÉ, Época e A Revista, sobre a segunda metade dos anos 2010. Neste trabalho, foi possível, além de tratar dos efeitos de sentidos efetivados sobre as sexualidades, quantificar as vezes e as formas como eram discursivizadas as travestis e seus estilos de vida. De forma geral, para se falar das travestis falava-se da violência sofrida (ou praticada por elas).

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Suas falas, suas tiradas, seus pensamentos são quase sempre uma forma de pensar o lugar que se impõe à travesti em nossa sociedade. É tão político esse lugar ocupado pela personagem que ela foi, como tantas outras travestis brasileiras, assassinada por homofóbicos no início de 2011, mais precisamente na tirinha de 31 de janeiro (Figura 1):

Figura 1 - Tirinha 1

Fonte: http://murieltotal.zip.net/arch2011-01-30_2011-02-05.html. Acesso em 9 de abril de 2012

Desde então, a personagem passa a agir politicamente em um plano espiritual, sempre colocando na ordem do dia questões que dizem respeito às violências de todas as ordens a que as travestis, mas também os gays, as lésbicas, os bissexuais e os transgêneros, são submetidos.

Quase sempre Muriel é dissuadida pelo seu guia espiritual a deixar que os problemas terrenos não interfiram em suas experiências de desencarnada. Quase sempre, também, o guia não é atendido, já que Muriel não se conforma com o excesso de intolerância em relação ao travestismo.

Esse plano espiritual diz respeito a uma religião que professa a reencarnação11 da alma que morre. Não há a denominação dessa confissão religiosa nas tirinhas, apenas sugestões: como é o caso da referência que se faz ao livro (e posteriormente, ao longa metragem) Nosso Lar psicografado pelo médium Chico Xavier. Além disso, se pensarmos o lugar da sexualidade nas religiões e partirmos desse lugar para pensar no lugar

11 Ação ou resultado de reencarnar(-se), tornar a encarnar(-se) (a alma de quem morre) em outro corpo, para uma nova vida, segundo crença do espiritismo e de algumas outras religiões. (HOUAISS, 2004).

reservado ao homossexual, possivelmente não pensaríamos nas religiões pentecostais e na religião católica como um lugar de compreensão de sentidos possíveis para esse estilo de vida.

Ainda, em relação à tirinha 1 (Figura 1), é importante ressaltar a forma como os assassinos de Muriel referem-se a ela e como essa referência (O traveco tomou!) efetiva sentidos cristalizados sobre as travestis. Desse lugar, não há a possibilidade de se pensar em diversidade de gênero. Travesti é, necessariamente, um homem que se veste de mulher, mas que não pode, em hipótese alguma, ser confundido com uma, por isso “o” (artigo masculino singular) traveco. O sentido da palavra é determinado pelo lugar ocupado pelo sujeito, determinando a filiação deste a uma Formação Discursiva (doravante, FD).

Eles, os assassinos, não têm rosto, e, portanto, não podem ser identificados. No entanto, é possível pressupor, a partir da cena enunciativa construída, que matar a travesti é diversão nessa FD. Tomar, em “O traveco tomou!”, significa se dar mal, entrar pelo cano, danar-se, mas pelo viés da diversão, do merecimento.

Vamos à segunda tirinha (Figura 2):

Figura 2 - Tirinha 2

Fonte: http://murieltotal.zip.net/arch2011-03-20_2011-03-26.html. Acesso em 9 de abril de 2012

A tirinha é composta por quatro sequências. Nelas, há o diálogo que se trava entre Muriel e o seu guia espiritual. O que motiva o diálogo entre eles é, como já me referi, o inconformismo da personagem em relação ao ódio, à perseguição, à violência contra “quem só quer a liberdade de ser diferente”.

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Percebe-se, nessa sequência discursiva (doravante SD), que o discurso hegemônico em relação à sexualidade exclui a homossexualidade. Ser heterossexual é ser igual, não sê-lo é estar na anormalidade. O efeito de sentido que se (re)produz é o de que há uma sexualidade que deve ser considerada normal em detrimento de outra, anormal. Uma que representa um padrão e deve, portanto, ser aceita e uma outra, anormal, cujas manifestações sobre ela são da ordem da intolerância, do ódio e da perseguição.

Não há qualquer manifestação, nesse mundo espiritual, contrária à violência, ao ódio ou à perseguição sofridos pelos homossexuais. Diz-se apenas que os problemas terrenos devem ficar para trás, em uma referência à vida antes da morte. Todo desconforto em relação ao inconformismo se dá, exclusivamente, na fala de Muriel.

Por outro lado, há, naquele diálogo (Figura 2) e em outras tirinhas, a compreensão do seu guia em relação à Muriel ser travesti. Não há, portanto, qualquer estranhamento, impedimento, desnaturalização de ela ser o que deseja ser.

Não há também qualquer conflito de ordem sexual permeando os diálogos entre o guia espiritual e Muriel. Ela diz o que quer, mostra-se, como já descrito, inconformada com a situação na Terra, e o máximo de conflito que há entre eles (o guia e a personagem) se dá justamente por conta desse não desligamento de Muriel com os problemas terrenos.

No entanto, Muriel, no político que se inscreve na língua, na sua língua, nos põe a par da situação em que se encontram os que “só querem a liberdade de ser diferentes” e não conseguem: tanto ódio, perseguição, inconformismo, ou, segundo o seu guia, problemas da vida na terra.

A expressão os que só querem traduz a incompreensão da personagem em relação ao que acontece, na Terra, quando se trata de

orientação sexual para além dos padrões heteronormativos, reforçando os sentidos presentes na FD que defende igualdade entre gêneros e comportamentos sexuais.

Muriel é uma espécie de porta-voz em se tratando da defesa da diferença, da liberdade de ser o que se é, o que se deseja ser, mas encontra-se, nesse plano espiritual, impossibilitada de agir de forma mais incisiva em defesa dessa causa: É horrível ficar aqui sem poder fazer nada!

Esse jogo entre o aqui e o lá se dá justamente porque aqui, no plano espiritual, há a compreensão do que por lá, na Terra, acontece, mas que, por estar aqui, nada se pode fazer, ou melhor, não se pode agir.

Aqui é o lugar da impossibilidade da ação política, enquanto que lá é o lugar de se lutar em defesa do direito de se ser diferente, da luta pela causa.

Na terceira sequência dessa tirinha, surge, então, uma luz no que diz respeito a poder fazer alguma coisa em relação ao ódio e à perseguição que acontecem na Terra sobre quem deseja a liberdade de ser diferente: reencarnar. A solução é discursivizada pelo guia espiritual que compreende o inconformismo de Muriel e, de certa forma, em conformidade com o todo do seu dizer, percebe que é preciso que uma voz se alevante em torno da causa.

A expectativa da personagem em reencarnar e, sobretudo, em relação à possibilidade de lutar pela causa da afirmação de ser diferente, já que a sua estadia nesse plano espiritual reforçou essa ideia durante todo o tempo em que ali esteve, parece enfim se concretizar a partir das palavras do seu guia: Você pode reencarnar. Quer? Reencarnar é readquirir um corpo ou a vida material,

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segundo a crença do espiritismo e de diversas tendências animistas12.

Sem titubear, Muriel aceita a oferta proposta pelo seu guia. No entanto, a expectativa em relação à possibilidade de reencarnar tendo a liberdade de ser diferente logo é destituída quando o guia lhe apresenta as alternativas: Menino ou menina? Além disso, ele, o guia, lhe mostrar os reforços materiais construídos para o sexo biológico: roupa azul para o menino e rosa para a menina. Diante disso, toda a expectativa construída ao longo de sua estadia no plano espiritual é desfeita. A compreensão se torna incompreensível.

Ainda que o efeito de sentido, nesse plano espiritual, fosse pautado pelo discurso da compreensão, o que se efetiva, nessa FD, é o mesmo discurso difundido sobre normalidade versus anormalidade. Pode-se reencarnar desde que você decida por menino (azul) ou menina (rosa).

Apenas como reforço do dizer do seu guia imposto a Muriel como possibilidade (menino ou menina) para voltar à vida terrena, na tirinha produzida em dezembro de 2009, a personagem se vê nesse dilema quando precisa se definir num teste proposto por uma revista (Figura 3).

Figura 3 - Tirinha 3

Fonte: http://murieltotal.zip.net/arch2009-11-08_2009-11-14.html. Acesso em 9 de abril de 2012

Não se pode não fazer sentido. Os sujeitos são simbólicos e históricos, ou seja, não se trata, portanto, de indivíduos compreendidos

12 Crença segundo a qual todas as pessoas, plantas, animais e fenômenos da natureza possuem uma alma. (AULETE, 2010).

como seres que têm uma existência particular no mundo. O sujeito não é um ser humano individualizado, mas é considerado como um ser social. Ele deve ser compreendido a partir de um espaço coletivo.

A sexualidade, assim como quaisquer sentidos, deve ser também social, ou seja, não se pode ser sem estar no ideológico. Assim como no teste proposto pela revista, Muriel deve se definir a partir das possibilidades que se definem os seres humanos em se tratando de sua sexualidade, nessas condições de produção.

Ainda que esse teste deslize para outras opções além da heterossexual, homossexual e bissexual, mais naturalizados quando se trata de definição da própria sexualidade humana, não há a alternativa de não se definir, não se enquadrar em nenhuma das denominações.

Contudo, mesmo que haja a possibilidade de se marcar, nesse teste, a pansexualidade13, o tédio que se encontra Muriel ao realizar o teste se dá justamente porque sempre é preciso fazer algum sentido dentro dos sentidos já dados.

Para que as palavras façam sentido é necessário que elas estejam inscritas na história, já que cada tempo tem a sua maneira de nomear o mundo.

Muriel, portanto, diante daquela alternativa em reencarnar menino ou menina se vê mais uma vez no impasse da imposição da não-possibilidade de não poder não se definir.

Outra tirinha produzida em abril de 2011 reforça os mesmos sentidos da tirinha anterior sobre poder ser apenas uma ou outra coisa, menino ou menina, nada além desses sentidos dados (Figura 4).

13 Que expressa ou envolve a sexualidade em muitas formas diferentes (HOUAISS, 2004).

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Figura 4 - Tirinha 4

Fonte: http://murieltotal.zip.net/arch2011-04-03_2011-04-09.html. Acesso em 9 de abril de 2012

No entanto, o plano espiritual, na tirinha, nada mais é do que um espelho que reflete os sentidos que se naturalizaram no plano terrestre e, portanto, apenas mascaram a possibilidade de se ser quem se deseja sem que seja necessário estar em uma nova ordem de sentido. Não se pode não fazer sentido já que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo. Ao produzir sentido, o sujeito está se significando.

Portanto, Muriel ao expressar o seu desapontamento diante do que lhe oferece o guia espiritual (só tem isso?), expressa também um desapontamento com os sentidos possíveis a partir das condições de produção dos sentidos que podem fazer sentido nesse plano espiritual. A expectativa era a de não ser necessário se enquadrar em quaisquer limitações, já que ser diferente seria poder viver sem se explicar, ou seja, poder viver a liberdade de ser apenas diferente.

Só tem isso? ainda nos revela o pouco ou o quase nada que se transformou toda aquela expectativa a partir do que lhe era dito nesse plano espiritual. O pronome demonstrativo isso é usado para produzir efeito de sentido de reprovação, desprezo diante do que se ouve e ganha reforço com o uso do advérbio só: só isso é para Muriel o mesmo que nada.

O efeito é o de decepção diante das lutas, diante de toda a argumentação, de todo enfrentamento, sofrimento, humilhação, diante do seu assassinato. Não lhe resta alternativas senão as já naturalizadas: ser menino ou menina, vestir-se de azul ou rosa. Muriel também está desamparada no plano espiritual,

não é possível querer mais do que o que já se tem.

Conclusão

Os atuais padrões sociais e sexuais são significados, nos meios de comunicação, quase sempre, a partir do sexo biológico, dos discursos religiosos, de um padrão heteronormativo. Não há, portanto, possibilidades de superação desses padrões na direção de novas estéticas da existência, não pelo menos nos discursos jornalísticos que circulam.

Consideramos que a sexualidade se constitui em uma categoria de análise mais ampla, que considera as relações de poder, a diversidade sexual, os referenciais de classe, os aspectos sociais, as relações entre gênero, os aspectos históricos, políticos, econômicos, éticos, étnicos e religiosos. A sexualidade compreende também os conceitos de linguagem, corpo e cultura, ou seja, todo saber é uma construção humana, portanto, a sexualidade, como outros saberes, não é dada ou “natural”, mas, sim, construída por sociedades que possuem intencionalidades nesse processo de construção.

Ao tratar construções sociais como sexualidade ou gênero como naturais, estamos, além de restringindo o seu significado, nos equivocando, pois como afirma Britzman (1999):

Foucault nos propicia uma outra forma de pensar a sexualidade: não como desenvolvimento ou identidade mas como

historicidade e ralação. A sexualidade não

deve ser pensada como um tipo de dado natural que o poder tenta manter sob controle, ou como um obscuro domínio que o conhecimento tenta gradualmente descobrir. Ela é o nome que pode ser

dado a um constructo histórico: não uma realidade furtiva que é difícil de apreender, mas uma enorme superfície em

forma de rede na qual as estimulações dos corpos, a intensificação dos prazeres, o

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incitamento ao discurso, a formação de um conhecimento especializado, o reforço de controles e resistências estão vinculados uns aos outros, de acordo com algumas poucas estratégias importantes de saber e poder (BRITZMAN, 1999, p. 100-101, grifos nossos).

O senso comum, baseado em crenças e valores pessoais, fundamenta argumentos como o que confunde opção sexual com orientação sexual, proferidos por grande parcela da população independentemente de outras variáveis sociais como: classe, gênero, intelectualidade, geração. Entretanto, há diferenças entre opção e orientação sexual. Quando uma pessoa opta por algo, ela faz uma escolha entre várias ou, no mínimo, entre duas possibilidades.

As pessoas com orientação homossexual não optam por se apaixonar e se relacionar intimamente com pessoas do mesmo sexo. Em primeiro lugar, porque, se pudessem, provavelmente, não optariam por ser alvo de ações, comentários ou olhares preconceituosos e discriminatórios, uma vez que a regra dominante é a heterossexualidade. Em segundo lugar, porque o desejo afetivo-social da pessoa é orientado a pessoas do sexo oposto. Com isso, pode-se entender que se existe alguma espécie de preferência na homossexualidade não é a de se relacionar com uma pessoa do mesmo sexo em detrimento de outra do sexo oposto, mas, sim, a de assumir isso publicamente ou não.

Nos cartuns de Laerte, pelo menos, nas retratadas aqui neste artigo, nos deparamos com desconstruções de sentidos naturalizados sobre sexo biológico, gênero sexual, desejos.

A personagem Muriel produz sentidos, em seu discurso, de inconformismo com as reduções que são impostas no senso comum sobre sexualidade, travestismo, etc. Ela se coloca contrariamente a toda e qualquer redução em relação aos desejos e à liberdade de (poder) ser o que se é. No entanto, essas

mesmas tirinhas veiculam também os discursos naturalizados sobre sexualidade, a saber, pelas denominações14 presentes nas tirinhas analisadas: o traveco, menina ou menino, o traveco tomou, problemas terrenos, ódio, perseguição, só tem isso?, tédio, banana com duas ameixas ou carambola.

Muriel continua sendo, mesmo no plano espiritual, que em princípio se pauta pela compreensão, o bloco do eu sozinho.

Ela fala, mas a sua voz não é ouvida, ela não consegue produzir outros sentidos em relação à sexualidade. Aqueles discursos sobre os quais me referi no início do texto em relação aos embates entre normalidade e anormalidade, pecado, crime, doença, continua produzindo sentido em uma FD em detrimento de outra.

Para falar de Muriel, fala-se necessariamente em violência, porque as condições de produção não permitem outros sentidos em se tratando das travestis.

Referências

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

14 O denominar não é apenas um aspecto do caráter de designação das línguas. Denominar é significar, ou melhor, representa uma vertente do processo social de produção de sentidos. O processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas organiza-se na ordem do discurso, o qual, relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o linguístico e o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. (MARIANI, 1998)

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