FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS MESTRADO EXECUTIVO EM GESTÃO EMPRESARIAL
MISSÃO ORGANIZACIONAL, UMA QUESTÃO DE DISCURSO? POR UMA ANÁLISE CRÍTICA
DISSERTAÇÃO APRESENTADA À ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E DE EMPRESAS PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
BRUNO ANASTASSIU HARTEN
BRUNO ANASTASSIU HARTEN
MISSÃO ORGANIZACIONAL, UMA QUESTÃO DE DISCURSO? POR UMA ANÁLISE CRÍTICA
Dissertação para obtenção de grau de mestre apresentado à Fundação Getúlio Vargas - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas
Área de Concentração: Administração de empresas
Orientador: Prof. Marcos Lopez Rego
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV
Harten, Bruno Anastassiu
Missão organizacional, uma questão de discurso? : por uma análise crítica / Bruno Anastassiu Harten. – 2013.
96 f.
Dissertação (mestrado) - Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa.
Orientador: Marcos Lopez Rego.
Coorientador: Hélio Arthur Reis Irigaray. Inclui bibliografia.
1. Missão organizacional. 2. Análise do discurso. 3. Simbolismo nas
organizações. 4. Cultura organizacional. I. Rego, Marcos Lopez. II. Irigaray, Hélio Arthur. III. Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa. IV. Título.
RESUMO
A partir do entendimento de que as grandes corporações são poderosos agentes
políticos, econômicos e sociais e que suas missões organizacionais sintetizam a sua razão de
ser e existir, o estudo tem como objetivo desvelar o conteúdo político e ideológico subjacente
ao discurso empresarial das missões das maiores empresas do Brasil. Assim, foram analisadas
as missões divulgadas nas homepages institucionais e/ ou de relações com investidores das 64
empresas que compõem a carteira teórica do Ibovespa, principal indicador do desempenho
médio das cotações do mercado de ações brasileiro. Os dados foram analisados à luz das
tendências de apropriação do simbolismo pela cultura organizacional, da Análise Crítica do
Discurso (ACD), instrumento teórico transdisciplinar que busca compreender a relação entre
linguagem, poder, ideologia e sociedade e da perspectiva foucaultiana de discurso,
entendendo-o como um espaço de luta pela estabilização dos sentidos, que se pretendem
hegemônicos. Os dados foram tratados de forma quantitativa, em busca das palavras de uso
mais frequente e, consequentemente de maior relevância, e qualitativa, agrupando-as em
categorias lexicais em função de seu significado e de seu papel na declaração de missão
organizacional. Os resultados revelam a estrutura subjacente do discurso das missões,
permitindo a identificação de perfis específicos de empresas segundo suas características
discursivas. Além disso, o trabalho discute como o discurso empresarial se apropria da
dimensão simbólica com o propósito de controlar e manipular os trabalhadores, legitimar a
atuação das empresas perante a sociedade e naturalizar os preceitos da ideologia neoliberal,
apresentando o sistema capitalista atual como a única, melhor e inexorável forma de
organização e de produção societária.
Palavras chave: Análise crítica do discurso. Missão organizacional. Simbolismo
ABSTRACT
Through the understanding that great corporations are political, economic and social
powerful agents and that their mission statements synthesize their reason of being and
existing, this study aims to unveiling the political and ideological content underlying the
enterprise discourse on the missions of the largest companies of Brazil. Therefore, the mission
statements disclosed in the institutional and/or investor relations homepages of the 64
companies from Ibovespa, main indicator of average share prices from the Brazilian stock
market, have been analyzed. The analysis were made through the appropriation of
organizational culture symbolism, the critical discourse analyses, transdisciplinary theoretical
instrument aiming to understand the relation between language, power, ideology and society, and from the Foucault’s discourse perspective, understanding it as an space of struggle for stabilization of the senses, which intend to be hegemonic. The data was treated in the
quantitative form, searching for the most frequent words and consequently of most relevance,
and in the qualitative form, grouping it in lexical categories according to their significance
and its role in organizational mission statement. The results reveal the structure underlying the
mission discourse, allowing the identification of specific corporative profiles according to
their discursive features. Furthermore, the paper discusses how the corporative discourse
appropriates the symbolic dimension with the intention of controlling and manipulating the
workers, legitimize the role of corporations in society and naturalize the precepts of neoliberal
ideology, presenting the current capitalist system as the only, best and inexorable form of
corporate organization and production.
SUMÁRIO
1. O PROBLEMA ... 7
1.1 Introdução ... 7
1.2 Objetivos do estudo ... 10
1.3 Delimitação do estudo ... 10
1.4 Relevância do estudo ... 11
1.5 Questões a serem respondidas ... 12
2. MARCO TEÓRICO ... 14
2.1 Simbolismo e o discurso empresarial... 14
2.1.2 Missão como discurso empresarial. ... 21
2.1.3 Missão e sua importância como ferramenta estratégica. ... 24
2.2 Análise Crítica do Discurso (ACD) ... 27
2.2.1 Introdução ... 27
2.2.2 Linguística, semiologia e semiótica ... 28
2.2.3 Semiótica Social ... 30
2.2.3.1 Gramática Sistêmico Funcional (GSF) ... 31
2.2.4 Análise crítica do discurso: origem e objetivo ... 32
2.2.5 Concepção de discurso e crítica para a análise crítica do discurso ... 33
2.2.6 Aplicações da Análise Crítica do Discurso ... 34
2.3 Foucault e o discurso como espaço de luta pela estabilização dos sentidos ... 35
2.3.1 Princípios externos de exclusão do discurso ... 37
2.3.2 Princípios internos de exclusão do discurso ... 40
2.3.3 Princípios de imposição de regras aos sujeitos do discurso ... 43
3. ESTRATÉGIA METODOLÓGICA ... 46
3.1. Tipo de pesquisa ... 46
3.2 Universo e amostra ... 46
3.4. Tratamento dos dados ... 48
4. REVELAÇÕES DE CAMPO ... 49
4.1 Revelações quantitativas ... 49
4.2 Revelações qualitativas ... 54
5. DISCUSSÃO ... 60
5.1 Os perfis empresariais: Pragmático, Idealista, Onipresente e Bom Samaritano ... 61
5.1.1 Perfil empresarial pragmático ... 61
5.1.2 Perfil empresarial idealista ... 61
5.1.3 Perfil empresarial onipresente ... 62
5.1.4 Perfil empresarial bom samaritano ... 63
5.2 Missões como mecanismos de manipulação simbólica ... 65
5.3 Discurso empresarial e a instauração de uma vontade de verdade neoliberal ... 72
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 80
REFERÊNCIAS ... 84
1. O PROBLEMA
1.1 Introdução
O capitalismo financeiro global transformou as empresas em uma das instituições mais
poderosas, influentes e relevantes da sociedade contemporânea: “so powerful have large corporations become that their decisions affect the welfare of entire states and nations”
(BARLEY, 2007, p.201) 1. Munidas dos pressupostos do gerenciamento estratégico, as grandes corporações clamam para si a responsabilidade de liderar o sistema capitalista,
passando a operar não só no âmbito econômico, mas nas esferas política, social e cultural,
enxergando-as como variáveis mercadológicas, afinal “societal needs, not just conventional
economic needs, define markets” (PORTER, 2011, p.67) 2. Graças às limitações do Estado
em ofertar cidadania de forma efetiva à população, gradativamente as empresas ocupam seu
espaço (BARLEY, 2007) e se apresentam como a solução única e definitiva para as
necessidades e desafios da sociedade, como assevera Porter (2011) “the solution lies in the principle of shared value, which involves creating economic value in a way that also creates
value for society by addressing its needs and challenges” (PORTER, 2011 p.66) 3. Ademais,
por meio da manipulação simbólica e de uma gestão pautada pela afetividade, as empresas se
apropriam da subjetividade de seus funcionários, oferecendo, além de um emprego, o direto
de pertencimento a uma cultura organizacional vencedora, convertendo o mundo corporativo
em um “universo mágico” (WOOD, 2002, p.44), reinado pela excelência e repleto de mitos e
histórias de sucesso.
1
As grandes corporações se tornaram tão poderosas a ponto de suas decisões afetarem o bem estar de Estados e até mesmo de nações. (Tradução nossa)
2
Necessidades sociais e não somente necessidades econômicas convencionais definem os mercados. (Tradução nossa)
3
Assim, evidencia-se o poder de influencia exercido pelas empresas na construção da
sociedade contemporânea na formação dos indivíduos, tornando relevante, portanto, a
investigação dos propósitos e princípios, implícitos ou explícitos, que norteiam seu modo de
atuação.
No nível ideológico, os discursos empresariais configuram as práticas da organização
(IRIGARAY, 2009). A missão ocupa o topo da hierarquia desses discursos (COLLINS;
RUKSTAD, 2008), sendo o ponto de partida da formulação estratégica do negócio (HAX;
MAJLUF, 1984) e a síntese de seu propósito fundamental (PEARCE; ROBINSON, 1991), ou
seja, “the underlying motivation for being in business in the first place – the contribution to
society that the firm aspires to make” (COLLINS; RUKSTAD, 2008, p.85) 4. De 1980 até
1990, o número de companhias estadunidenses que tinha formalizada uma missão e/ou visão
dobrou, superando a metade das empresas do País (LEVERING, 1993). A tentativa de
capturar a natureza inata das empresas, ou seja, a sua essência, explica a sua popularidade
(VERMA, 2009). Hoje, toda empresa, qualquer que seja seu tamanho, precisa ser hábil em
articular sua missão para se tornar uma grande competidora no mercado (BART, 2006).
As missões, portanto, são relevantes fontes de informação sobre como as empresas entendem e comunicam seu propósito fundamental junto aos seus públicos de interesse
(acionistas, investidores, empregados, sindicatos, comunidade, clientes etc.). Ademais, ao provocar uma ligação emocional dos funcionários com o negócio, dão sentido às organizações, elevando o comprometimento dos trabalhadores e alavancando resultados, o
que demonstra a legitimação da dimensão simbólica como uma ferramenta gerencial
fundamental, como asseveram Panda e Gupta:
4
The greater challenge for the organizational leaders is how to elicit emotional
commitment from or create a sense of mission among the organizational members.
When organizational leaders become successful in eliciting emotional commitment
from the employees, the employees, in most cases, would become committed to the
organizational goal which might enhance the performance of the
organization (2003, p.24).5
Por conseguinte, o estudo tem como objetivo desvelar o conteúdo político e ideológico
subjacente à forma como as empresas definem e difundem a sua razão de ser e de existir
buscando responder a seguinte questão: o que a análise crítica do discurso empresarial das
missões das maiores empresas do Brasil revela?
A discussão se dá à luz da Análise Crítica do Discurso (ACD), “um instrumento
teórico-metodológico transdisciplinar que analisa criticamente a relação entre linguagem,
poder, ideologia e sociedade” (BRENT, 2009, p.118) e segue a concepção foucaultiana de
discurso, entendendo-o como um espaço de luta pela estabilização dos sentidos, que se
pretendem hegemônicos (FOUCAULT, 2012), permeado por princípios de exclusão que
determinam suas condições de funcionamento e impõem regras aos indivíduos que os
pronunciam (FOUCAULT, 2011).
Foram analisadas as missões das 64 empresas que compõe o Ibovespa
(BM&FBOVESPA, 2013), principal indicador do desempenho do mercado de ações do
Brasil, o que ratifica sua relevância na sociedade brasileira.
O trabalho está estruturado em oito capítulos, incluindo sua introdução. O segundo
capítulo resgata os principais pressupostos teóricos discutidos na academia relativos à
apropriação do simbolismo nas organizações, à conceituação de missão organizacional, à
5
constituição da ACD como metodologia de análise e à concepção foucaultiana de discurso e
seus princípios de restrição. O terceiro capítulo trata do percurso metodológico da pesquisa: a
seleção da amostra, a coleta e o tratamento dos dados. Os capítulos quatro e cinco descrevem
e discutem as revelações do campo, com base no conteúdo relativo às missões divulgado nas
homepages oficiais das empresas pesquisadas. O sexto capítulo apresenta as considerações
finais do estudo. Por último, as referências bibliográficas e os anexos relativos à pesquisa são
compilados, respectivamente, nos capítulos sete e oito.
1.2 Objetivos do estudo
O objetivo final do estudo é desvelar o conteúdo político e ideológico subjacente à
forma como as maiores empresas do Brasil definem e difundem a sua razão de ser e de existir
a partir da análise crítica do discurso de suas missões.
1.3 Delimitação do estudo
O estudo considera que as missões são discursos, “conhecimentos socialmente
construídos sobre (algum aspecto da) realidade” (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001, p.4), ou
seja, “desenvolvidos em contextos sociais específicos e que servem aos interesses dos atores
sociais destes contextos” (NATIVIDADE; PIMENTA, 2009, p.25). A pesquisa tem como
proposta discutir os valores e visões de mundo subjacentes à construção do discurso
empresarial por meio da análise do conteúdo das missões das maiores empresas do Brasil,
rejeitando enxergar a linguagem como um sistema imparcial, meramente referencial, e
teorizando-a como prática e representação de práticas. A investigação se dá à luz da ACD,
interpretação dos modos como os discursos dominantes influenciam o conhecimento, os
saberes, as atitudes e as ideologias dos indivíduos (PEDRO, 1997).
Ademais, o estudo relaciona o conteúdo das missões das maiores empresas do Brasil
às tendências de uma cultura organizacional pautada pelo simbolismo, entendendo-as como
uma ferramenta gerencial fundamental para controlar e manipular o comportamento dos
trabalhadores (WOOD, 2000, 2002; SARAIVA; CARRIERI, 2008; FREITAS, 2000, 20007).
Por último, o estudo discute a profusão do discurso empresarial como um processo de
constituição de uma vontade de verdade (FOUCAULT 2011), ou seja, um olhar particular sob
a realidade que naturaliza e universaliza o que na verdade é particular e socialmente construído, com o propósito de legitimar a atuação das empresas perante a sociedade e os preceitos neoliberais que fundamentam o sistema capitalista atual.
Dessa forma, o presente trabalho não se propõe a analisar aspectos relativos à efetividade da formulação, adoção e/ou conhecimento das missões, embora estes sejam
assuntos relevantes para o campo dos estudos organizacionais que poderão ser abordados em
pesquisas posteriores.
1.4 Relevância do estudo
As empresas são poderosos agentes políticos, econômicos, e sociais e suas missões são
o discurso empresarial que se propõe a sintetizar sua razão de ser e de existir. Logo, o estudo
é relevante ao discutir as visões políticas e ideológicas que as maiores empresas do Brasil
representam e difundem, de forma explícita ou velada, por meio de suas missões, permitindo
uma melhor avaliação de seus interesses e de seus impactos na sociedade brasileira.
Sob a ótica dos empregados, o estudo é relevante ao fomentar o senso crítico,
supera os limites capitalistas cotidianos com a promessa de acolhimento e reconhecimento
meritocrático, mas que, por essência, objetiva promover a adesão dos trabalhadores a um
projeto que os antecede e que sucumbe sem seu apoio, embora pretenda deles independer
(SENNETT, 1999) e que não hesitará em descartá-los, de forma impessoal e instrumental, em
caso de mau desempenho ou conjuntura desfavorável.
Sob a ótica do empregador, o estudo é relevante ao suscitar uma autorreflexão sobre a
importância de as empresas avaliarem eticamente seus limites de atuação e seu código de
conduta, visto seu alto potencial de influência e impacto na sociedade.
Por último, o estudo é relevante para o campo dos estudos organizacionais por pensar
criticamente os efeitos e impactos que a profusão do discurso empresarial das maiores
empresas do Brasil provoca na sociedade, nas relações de trabalho e na dimensão subjetiva
dos indivíduos.
1.5 Questões a serem respondidas
- O que é missão? Por que é relevante pesquisar o discurso das missões das maiores
empresas do Brasil? Qual é a relação entre uma cultura organizacional pautada pelo
simbolismo e o conteúdo das missões?
- O que é ACD? Por que essa metodologia de análise se adequa ao objeto e ao propósito
do estudo?
- Como a concepção Foucaultiana de discurso e seus princípios de restrição podem ser
- É possível definir uma estrutura subjacente do discurso das missões das maiores
empresas do Brasil? Quais são suas principais características? Quais são os termos mais
utilizados? O que a análise crítica dessa estrutura revela?
2. MARCO TEÓRICO
2.1 Simbolismo e o discurso empresarial
Uma diferença fundamental entre o homem e os outros animais é sua capacidade de
reproduzir diferentes olhares e interpretações sobre o mundo por meio da cultura. Mitos,
linguagem, religião, artes e história exemplificam a inerente necessidade do homem de
plasmar a realidade por meio de símbolos que estruturam suas relações com o mundo, como
propõe o filósofo Ernst Cassirer (1997):
A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do
homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo,
conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas
linguísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não
consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio
artificial. (1997, p. 48-9)
O mesmo vale para as organizações, inventadas pelo homem e como tal,
essencialmente sociais e atravessadas pelo simbólico. Afinal, “por mais totalizantes que
possam ser as experiências organizacionais, ainda assim as organizações estão imersas em
um quadro social mais amplo” (SARAIVA; CARRIERI, 2008). Dessa forma, o estudo da
dinâmica organizacional deve considerar tanto seus aspectos formais (objetivos, tangíveis e
racionais) quanto sua dimensão informal (subjetiva intangível e relacional).
Entretanto, por décadas, prevaleceu no campo científico dos estudos organizacionais a
corrente teórica funcionalista que impôs um olhar objetivo e determinista para os problemas
organizacionais, buscando relações de causa e efeito com o intuito de elaborar leis, princípios
Fundamentado na lógica positivista de que a sociedade e as organizações são concretas e reais
e representam um sistema orientado para a ordem e a regulação (MORGAN, 2005), o
paradigma funcionalista atribui ao indivíduo o papel de coadjuvante na dinâmica
organizacional (BURREL; MORGAN, 1998; HOMANS, 1977). Desenvolvidos no início do
século XX, porém ainda influentes no campo da Administração, são exemplos de estudos
pautados pela ótica funcionalista: a administração científica de Taylor, a teoria clássica da
Administração de Henry Fayol e os estudos da psicologia industrial. A busca por soluções
para problemas de eficiência com um olhar meramente racional, objetivo e determinista,
notável ainda hoje especialmente em áreas operacionais (como logística ou gestão da
produção), se deve, em parte, a uma herança dessa lógica funcionalista.
Mas, afinal, por que os aspectos informais das organizações foram por tanto tempo
ignorados pelos teóricos da administração, muito embora tenham sido identificados já na
década de 1930? A razão para tal negligência se deve a um histórico “processo de duplo
cerceamento da perspectiva simbólica das organizações” (SARAIVA; CARRIERI, 2008, p.
4). De um lado, uma guerra epistêmica: a forte supressão exercida pela corrente teórica
funcionalista a qualquer novo olhar para a administração, classificando de exóticos ou
improdutivos temas como poder, cultura e identidade, hoje vistos como essenciais para o
entendimento da dinâmica organizacional. De outro, um mecanismo de manutenção de
poder: a possibilidade de o corpo gerencial manipular livremente a perspectiva simbólica, já
reconhecida como capaz de interpretar e lidar com aspectos inatingíveis ao paradigma
funcionalista, em prol do atingimento dos objetivos estabelecidos e da manutenção de sua
posição de poder na organização.
O cerceamento da perspectiva simbólica das organizações reforça sua relevância como
discurso empresarial e como ferramenta de gestão do negócio. Não se trata de desconsiderar a
aspectos são apenas a ponta do iceberg, porque não conseguem esgotar, e na verdade nem
perto disso chegam, a complexidade do que se passa nas organizações” (SARAIVA;
CARRIERI, 2008, p.3). Dessa forma, progressivamente, as empresas passam a aceitar a
importância de elementos além da racionalidade na gestão do negócio, permitindo uma visão
mais humanizada sobre sua dinâmica. Assim, mais do que reconhecida, a dimensão simbólica
passa a ser legitimada como uma ferramenta gerencial fundamental, como assevera Girin:
A evolução dos produtos [organizacionais] cede um lugar cada vez maior aos bens
imateriais, como a informação ou as produções culturais, enquanto, com a
automação, a informatização, a robotização dos meios de produção, uma parte
cada vez mais importante da atividade desenvolvida pelos homens nas empresas
consiste na manipulação de signos e símbolos. (1996, p.24):
Instaura-se, portanto, a noção de que novos valores e significados podem ser
desenvolvidos para melhorar o desempenho organizacional, ou seja, que “há todo um mundo
não-objetivo, não-racional (do ponto de vista empresarial) e não pautado pela ótica da
performatividade que integra – e dir-se-ia mais, que sustenta as organizações” (SARAIVA;
CARRIERI, 2008). Assim, durante a década de 1980, a produção acadêmica e as publicações
dirigidas ao publico empresarial estabelecem a cultura organizacional como um discurso forte
(FREITAS, 2007). Concomitantemente, as organizações impõem um “novo contrato social”
(WOOD, 2002, p. 44) entre o corpo gerencial e seus subordinados, ou seja, uma nova relação
de trabalho fundamentada na descentralização do poder, no comprometimento e na
participação dos empregados, em substituição ao modelo burocrático e hierárquico, que era
baseado na opressão dos trabalhadores por meio de uma liderança autoritária, restringindo o
poder às posições de chefia, inalcançáveis para a maioria. Entretanto, ao compartilhar o
gestão do negócio, supostamente eliminando a opressão imposta pelo modelo burocrático e
hierárquico. Supostamente, pois, para garantir seu funcionamento, as organizações recorrem
ao universo simbólico para controlar os comportamentos e as atitudes dos trabalhadores,
amenizando e/ou substituindo os mecanismos e as normas de controle por declarações de
missões e visões compartilhadas, símbolos, artefatos e retórica (WOOD, 2002). Assim, a
possibilidade de ascensão aos cargos de liderança das empresas permanece restrita, porém,
progressivamente a retorica gerencial deixa de ser monopólio da cúpula organizacional e
passa a ser praticada por todos (WOOD, 2002). Afinal, introjetar a cultura de gerenciamento
em todo o corpo de empregados é mais eficiente do que assumir o custo de promovê-los a
gerentes.
A cultura organizacional das empresas, portanto, passa a refletir as necessidades dessa
nova relação de trabalho, com implicações diretas na manipulação simbólica e no controle
cultural dos empregados, resumidas por Wood (2000) em nove principais tendências,
consolidadas no quadro 2.1:
Tendências da apropriação do simbolismo na cultura organizacional
1 A tentativa de uso da cultura organizacional com o propósito de coordenação e controle. 2 O uso maciço de rituais para celebrar o comprometimento com o processo de mudança e com os
líderes da mudança.
3 Um esforço coletivo de reorganização do passado, conduzido pelos líderes da mudança. 4 A construção e uso de histórias de sucesso.
5 A da supersimplificação da realidade.
6 A popularização de clichês da literatura de pop- management. 7 A exclusão de vozes destoantes.
8 A difusão do discurso da participação.
9 A celebração de heróis e campeões do processo de mudança.
A primeira tendência da apropriação do simbolismo na cultura organizacional se
traduz na tentativa de utilizá-la “com o propósito de coordenação e controle” (WOOD, 2000,
p.22) acreditando que, ao institucionalizar e compartilhar as noções de certo e errado, a
manipulação cultural complementa a função de controlar e coordenar os trabalhadores,
originalmente atribuída à estrutura formal, como, por exemplo, a supervisão de um gerente. A
segunda tendência observa o “uso maciço de rituais para celebrar o comprometimento com o
processo de mudança e com os líderes da mudança” (WOOD, 2000, p.22), com a finalidade
de compartilhar novos significados e reforçar a nova ordem. A terceira tendência nota “um
esforço coletivo de reorganização do passado, conduzido pelos líderes da mudança”
(WOOD, 2000, p.22) por meio da difamação da ordem antiga e supervalorização da nova
ordem, com o objetivo de legitimá-la. A quarta tendência vê na “construção e o uso de
histórias de sucesso” (WOOD, 2000, p.22), uma forma de facilitar a transmissão de ideias e
valores dos líderes por meio de verdadeiras fábulas corporativas, repletas de mitos e heróis. A
quinta tendência observa um discurso empresarial caracterizado pela “supersimplifcação da
realidade” (WOOD, 2000, p.22) ao lidar com a complexidade e ambiguidade inerentes a um
contexto de mudança, estimulando a adesão dos trabalhadores por meio do uso de retórica,
slogans e palavras de efeito. A sexta tendência nota a criação de uma nova gramática da
cultura organizacional a partir da “popularização de clichês da literatura de
pop-management” (WOOD, 2000, p.22), capaz de “aliviar as tensões e a mitigar as frustrações
dos profissionais, supostamente provendo respostas para suas ansiedades e problemas”
(WOOD, 2002, p.39). A sétima tendência enxerga na “exclusão de vozes destoantes” uma
forma de supressão do espaço de crítica nos processos de intervenção cultural por parte das
organizações. A oitava tendência vê a “difusão do discurso da participação” (WOOD, 2000,
p.22) que transforma o processo decisório em uma prática participativa, levando ao
última tendência observa a “celebração de heróis e campeões do processo de mudança”
(WOOD, 2000, p.22) como uma forma de supressão de atos de rebeldia no processo de
intervenção cultural, transformando em heróis os rebeldes em potencial e eliminando da
narrativa os demais.
Assim, ao se apropriar do simbolismo, a cultura organizacional contribui para a
conversão do mundo corporativo em um “universo mágico” (WOOD, 2002), porém de acesso
restrito e altamente concorrido. Ademais, as empresas absorvem o imaginário e a vida
psíquica do indivíduo, transformando a direção pela afetividade e a gestão da paixão em
práticas gerenciais (Enriquez, 2000). Dessa forma, mais do que um bom salário e um plano de
carreira, as empresas passam a oferecer aos seus funcionários a oportunidade única de
ingressão em uma organização vencedora, gerando um sentimento de pertencimento a uma
coletividade, a uma ideologia de vida, a algo maior que não seria possível fora do ambiente do
trabalho. Ao impor um controle por meio do sentimento amoroso, em substituição à
tradicional burocracia, as empresas estimulam a identificação e a fusão dos trabalhadores com
um ser fascinante que anuncia que todos podem ser deuses a sua semelhança (MOTTA,
2000). Dessa forma, os indivíduos têm a sensação de que podem ser tão poderosos quanto às
organizações as quais pertencem desde que compartilhem de seus ideais (FREITAS, 2000),
reforçando seu laço de dependência com as mesmas. Além disso, alçados a categoria de
estratégia (SARAIVA et al, 2004), os discursos empresariais se apropriam da dimensão
simbólica para disseminar “uma visão coerente e unívoca da organização e de suas ações”
(IRIGARAY, 2009, p. 337) legitimando a atuação das empresas perante a sociedade,
apresentando-as como instituições indispensáveis, afetuosas e preocupadas com a
Entretanto, a dominação simbólica das empresas não se exerce sem sofrer resistência
por parte dos trabalhadores, visto que cada indivíduo percebe e se relaciona com a cultura
organizacional de uma forma diferente, como ressalvam Saraiva e Carrieri:
É provável que a reação se trate de com contínuo (sic), misto de conformismo – pela
adesão ao projeto da empresa, pela percepção de ausência de alternativas, pela
ameaça do desemprego etc. – e de resistência, pelas possibilidades de contra
interpretação inerentes ao homem (2008, p.12).
Logo, o individuo passa a conviver com uma dualidade de sentimentos. No ambiente
do trabalho, aceita as regras do jogo por medo de perder seu emprego em um ambiente
altamente competitivo, porém, fora do contexto profissional, mantém o senso crítico a
respeito da violência simbólica imposta pela cultura organizacional na qual está inserido. Essa
ambivalência de atitudes revela que o domínio simbólico não é totalmente passível de
controle pelas organizações, visto que cada empregado é capaz de reinterpretar a cultura
organizacional segundo seus próprios referenciais.
(...) de qualquer forma, um consistente passo rumo à conformidade ocorrerá e,
conforme os processos de mudança avançam e o espírito da época impõe-se, as
organizações tornam-se palcos em que a substância e a imagem distanciam-se e a
intensidade simbólica aumenta (WOOD, 2000, p. 22).
Pode-se concluir, portanto, que, apesar das possibilidades de resistência dos
trabalhadores, é cada vez mais comum na dinâmica das empresas a instauração de uma cultura
organizacional pautada pelo simbolismo. Dessa forma, para que esse estudo se aproxime de
missões das maiores empresas do Brasil na tentativa de desvelar o conteúdo político e
ideológico subjacente à sua construção.
Uma vez discutido o processo de simbolização do discurso empresarial, seus impactos
na cultura organizacional e sua relevância como ferramenta estratégica de gestão, o capítulo
seguinte analisa o conceito de missão, um produto desse processo e objeto de pesquisa desse
trabalho.
2.1.2 Missão como discurso empresarial.
O capítulo apresenta e discute o conceito de missão, entendendo-o como um discurso
empresarial pautado pelo simbolismo. Além disso, esclarece as diferenças entre missão e de
visão, conceitos por vezes utilizados em conjunto pelas empresas, porém com propósitos
distintos.
O conceito de missão pode ser entendido por duas perspectivas teóricas distintas. A
primeira reflete um olhar funcionalista que enxerga as empresas por seus aspectos formais,
racionais e objetivos, como, por exemplo, a estrutura hierárquica, a divisão de cargos e os
planos de negócio. A segunda, por sua vez, considera as organizações enquanto sistemas de
significados socialmente construídos, focando o estudo de seus aspectos subjetivos, afetivos,
como as crenças, a cultura organizacional e a construção de relações informais de trabalho.
Sob a ótica funcionalista, a missão tem como objetivo estabelecer a base de
racionalidade das empresas, o ponto de partida para a definição de seu propósito e de seus
objetivos (DRUCKER, 1973). Dessa forma, um negócio não é definido pelo seu nome,
estatutos, artigos de incorporação, mas pela sua missão e somente uma clara definição da
corroboram com a visão de Drucker (1973) ao afirmar que a missão exprime “a proposta para
a qual, ou a razão pela qual, uma organização existe” (CERTO e PETER, 1993, p. 76).
Nota-se a associação do conceito de missão a aspectos objetivos, reais e tangíveis,
diretamente relacionados ao core business das empresas.
Entretanto, a missão também atua na dimensão simbólica das empresas, suportando a
construção de sua cultura e de sua identidade organizacional. Para Furman (1998), definir a
missão equivale a dar à empresa qualidades humanas para um propósito maior. Essa
caracterização possibilita que seus diversos stakeholders decidam se vale ou não a pena se
relacionar com ela (BARTKUS, GLASSMAN e MCAFEE, 2004). Richers (1994) ressalta o
aspecto simbólico da missão como discurso empresarial ao afirmar que ela “não só define as
áreas de ação prioritária nas quais devem ser aplicados os recursos à disposição, mas
formula também uma espécie de credo, ou consenso de opinião, de que os esforços dirigidos
a determinados alvos serão bem-sucedidos” (RICHERS, 1994, p.55). Para Pearce e David
(1987), a missão deve criar uma identidade organizacional que esteja acima de qualquer
indivíduo, ou seja, deve guiar os valores e as normas de agir das empresas através do tempo.
Missão e visão são conceitos distintos. Denton (2001) esclarece que a missão se
relaciona à maneira pela qual serão atendidas as necessidades competitivas dos acionistas e
demais públicos de interesse, enquanto a visão indica um destino satisfatório, ou seja, onde a
empresa vislumbra chegar no futuro. A análise de um caso real evidencia a diferenciação
entre os conceitos. A empresa de aviação Gol, por exemplo, tem como missão “aproximar
pessoas com segurança e inteligência” (Missão da GOL, 2013) e visão “ser a melhor
companhia aérea para viajar, trabalhar e investir” (Visão da GOL, 2013). Enquanto a missão
sintetiza a razão de ser da companhia aérea, expressa de forma mais emocional do que
racional (aproximar as pessoas versus transportar pessoas), e os valores que permeiam sua
patamar que a Gol aspira atingir (ser a melhor companhia aérea) e quais são seus focos de
excelência (para viajar, trabalhar e investir).
Logo, a missão de uma empresa se apresenta como um discurso capaz de sintetizar seu
propósito fundamental e de ressaltar aquilo que a distingue e a identifica, aliando aspectos
racionais (sua oferta e objetivos estratégicos) e simbólicos (suas crenças e normas de
conduta). Ou seja, “a missão de uma empresa descreve seu produto, seu mercado e sua
tecnologia de um modo que reflita seus valores e as prioridades que norteiam suas decisões
estratégicas”(MUSSOI et al., 2011, p. 364).
Cabe ressaltar que existem inúmeros autores e trabalhos que analisam o conteúdo das
missões organizacionais com propósitos semelhantes e complementares a esse estudo. Um
exemplo é a pesquisa de Pearce e David (1987). Tomando como base o ranking anual da
revista norte americana de negócios Fortune, os autores analisaram as missões das 500
maiores empresas dos Estados Unidos com o objetivo de determinar uma possível estrutura
padrão de discurso. No Brasil, destacam-se, por exemplo, o estudo de Silva, Ferreira e Castro
(2006), que faz o levantamento de elementos que compõem as missões de nove bancos
brasileiros segundo a moldura proposta por Pearce (1982), e o trabalho de Aquino (2003), que
analisa 21 instituições de ensino superior no estado do Ceará mediante a aplicação de
questionários (MUSSOI et al., 2011). No entanto, é importante ressaltar que não há um
consenso na literatura sobre quais elementos devem compor uma missão organizacional,
apesar dos inúmeros trabalhos que discutem sua estrutura padrão/ideal. Graham e Havlick
(1994), por exemplo, atribuem a dificuldade de se definir, de forma genérica, a estrutura de
uma missão ideal às especificidades de cada empresa/setor e seus respectivos contextos
2.1.3 Missão e sua importância como ferramenta estratégica.
As empresas, segundo Herbert Simont (1979), constituem-se de sistemas de
comportamentos cooperativos, onde se espera que os seus membros orientem seu
comportamento de acordo com certos fins que são considerados como objetivos da
organização. Assim, pode-se inferir que não há empresa sem objetivos, muito embora nem
sempre eles sejam formalmente externalizados, como no caso de empresas que definem e
divulgam uma missão organizacional.
A manifestação formal dos objetivos do negócio depende de uma série de fatores como:
tamanho, tipo e maturidade da empresa (Richers, 1994). Em uma grande corporação, por
exemplo, a ordem imposta pelo planejamento estratégico evita desperdícios e atritos entre os
executivos. Por sua vez, em uma empresa de menor porte, a estruturação formal de uma
estratégia pode limitar um fator fundamental para a sua sobrevivência no cenário competitivo:
a flexibilidade de sua gestão. No caso de organizações empresariais familiares, caracterizadas
pela alta centralização de poder, a sua principal estratégia muitas vezes é atender aos anseios e
desejos do dono, o que diminui a importância de se formalizar e divulgar objetivos. Por outro
lado, para as empresas organizadas como sociedades anônimas (S.A.), estruturar e comunicar
uma estratégia clara é fundamental para a prestação de contas com seus acionistas e
investidores, atendendo as obrigações impostas pelo mercado de capitais
Sendo assim, à medida que as empresas crescem e passam a descentralizar as suas
responsabilidades, criando um ambiente interno voltado à prática do planejamento por
unidades operacionais, definir e difundir os objetivos formais do negócio e promover uma
cultura organizacional que represente os valores e as visões de mundo necessárias para o
atingimento desses objetivos tornam-se condições primordiais para que as empresas sejam
empresarial fundamental por exprimir a essência dessa cultura organizacional além de ser o
ponto de partida para a definição dos objetivos estratégicos do negócio.
King e Cleland (1979) apresentam os inúmeros benefícios estratégicos que uma
empresa pode obter ao formalizar sua missão. Segundo os autores, as missões: asseguram a
prevalência de um propósito dentro da organização; oferecem uma base para a alocação de
recursos; especificam os propósitos organizacionais e traduzem-nos em objetivos, de tal
forma que custos, tempo e desempenho possam ser gerenciados; servem como foco para os
indivíduos identificarem-se com os propósitos da organização; detém aqueles que não
compartilham dos mesmos ideais e facilitam a tradução dos objetivos na estrutura
organizacional.
Pearce (1982) corrobora com a visão de King e Cleland (1979) ao defender que a
adoção de uma missão também traz uma série de vantagens às empresas, dentre elas: o
alinhamento dos funcionários numa direção única, que supere as necessidades individuais,
paroquiais e transitórias; a consolidação dos valores no tempo, que se sobrepõe ao
individualismo e aos grupos de interesses; a promoção de um sentimento de expectativas
compartilhadas entre todas as gerações e níveis de empregados; a projeção de um sentimento
de valor e intenção que pode ser identificado e assimilado por pessoas externas à companhia
e, por fim, a afirmação do comprometimento da companhia com ações responsáveis,
associando-a, por exemplo, aos conceitos de sustentabilidade e responsabilidade social.
Entretanto, para que a declaração de uma missão seja efetiva, não basta apenas a criação
e adoção de uma frase bem escrita. Segundo Bart (1997) o poder do enunciado de uma
missão está atrelado a dois aspectos fundamentais. O primeiro, subjetivo, se relaciona à
capacidade da missão em influenciar o comportamento dos trabalhadores, inspirando-os a
direcionar o processo de alocação de recursos de maneira consistente. Segundo o autor, para
que a missão seja bem sucedida nesses dois aspectos, ela deve prover um senso de direção e
de propósito, garantir que os interesses de importantes stakeholders não serão ignorados,
melhorar o foco do negócio e o controle sobre os empregados.
Além dos benefícios estratégicos e institucionais, uma efetiva missão organizacional
pode contribuir, de forma indireta, para a performance financeira da empresa. Pearce e David
(1987), por exemplo, afirmam que as companhias de alta performance têm uma missão
organizacional mais compreensiva quando comparadas a companhias de desempenho médio.
Para os autores, missões bem articuladas abordam, em sua maioria, a filosofia corporativa, o
conceito próprio da empresa e a sua imagem pública. Além disso, cada vez mais o mercado
avalia as empresas não só por seus aspectos tangíveis (ativos físicos, resultados financeiros
etc.), mas também por aspectos intangíveis, não monetários, como imagem de marca,
reputação institucional etc. que podem ser fomentados nas declarações das missões das
empresas.
Por último, é importante ressaltar que a correta elaboração de uma missão por si só
não garante o seu sucesso como ferramenta estratégica. Isso porque o processo de criação e
implementação de uma missão é tão importante quanto a elaboração do seu conteúdo. Afinal,
de nada adianta um belo discurso se ele torna a missão ambígua, pouco clara em seus
objetivos. Uma missão que não gere envolvimento com os trabalhadores ou que prejudique
algum stakeholder fatalmente não será aplicada na prática. Assim, cabe a liderança das
organizações a tarefa de evitar que a construção da missão organizacional se torne mais uma
2.2 Análise Crítica do Discurso (ACD)
2.2.1 Introdução
É por meio da linguagem que o ser humano se comunica, expressa suas ideias e se
socializa afinal “somos seres linguísticos e sempre nos encontramos dentro da linguagem e
da cultura sem possibilidade de definição fora destas” (NATIVIDADE; PIMENTA, 2009, p.
27).
Diariamente realizamos milhares de escolhas linguísticas (palavras, gestos, tons de voz
etc.) para nos comunicar. Mesmo que inconscientes ou automáticas, nossas escolhas revelam
muito sobre o que somos e como pensamos uma vez que “qualquer uso da linguagem é
motivado por um propósito” (EGGINS, 2004, p.5).
O contexto social influencia a construção de nossa identidade, a forma como
enxergamos e interpretamos o mundo. Ao interagirmos socialmente, informações são
trocadas, posições particulares e individuais são negociadas e, ao mesmo tempo, “o que
falamos é preenchido por padrões de organização social” (JAWORKSI & COUPLAND,
1999, p. 12).
Entretanto, escolhas linguísticas idênticas inseridas em um mesmo contexto podem
carregar diferentes significados dependendo de sua autoria, visto que “a linguagem não tem
poder em si mesma, ela adquire poder quando sujeitos que possuem poder fazem uso dela”
(WODAK, 2004). Dessa forma, conhecer as características, os valores e a posição social do
sujeito que fala é fundamental para ampliar a compreensão do que é dito.
Os parágrafos anteriores ressaltam a multiplicidade de fatores que influenciam a
construção e compreensão do(s) significado(s) de determinada mensagem, por mais simples
Antiguidade, seja por motivos religiosos, filosóficos, estéticos ou literários. Inspira este
trabalho um novo campo de estudos da linguagem, a Análise Crítica do Discurso (ACD), que
congrega várias abordagens teóricas e metodológicas. Segundo Brent (2009), cinco são as
principais: Linguística Sistêmico–Funcional (Halliday), Semiótica Social (Kress e Van
Leeuwen), abordagem sociocultural da mudança discursiva (Norman Fairclough), método
histórico discursivo (Ruth Wodak) e a abordagem sociocognitiva (Van Dijk). Para uma
melhor compreensão da ACD, esse capítulo faz uma breve introdução sobre sua origem e os
principais conceitos propostos por seus idealizadores. O objetivo não é realizar um resumo
e/ou retrospecto histórico dos estudos da linguagem, muito menos aprofundar a discussão
sobre as bases teóricas que os fundam, mas destacar aspectos de diferentes linhas de pesquisa
que convergem para o mesmo fim: a difusão de uma metodologia de análise crítica do
discurso que permita desvelar os valores e as visões de mundo subjacentes a sua construção.
2.2.2 Linguística, semiologia e semiótica
Considerado o fundador da linguística moderna, Saussure (1972) batiza de semiologia
a “ciência geral dos signos” a ser inventada, dentro da qual a linguística, estudo sistemático
da língua, estaria em primeiro lugar e seria seu campo de estudos. Para o autor, o ponto
central da língua é a noção de signo linguístico. Ao estudar sua natureza, Saussure descreve o
signo como “uma entidade psíquica de duas faces indissociáveis” que une um significante (os
sons) a um significado (o conceito). Saussure ressalta a arbitrariedade da relação entre sons e
sentido, ou entre significante e significado, em oposição a uma relação dita motivada: “(...) o
significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem
nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE 1972, p. 83). O autor entendia que, por
A língua, o sistema de expressão mais complexo e difundido, é também, o mais
característico de todos; nesse sentido, a linguística pode se tornar o padrão geral
de qualquer semiologia, embora a língua seja apenas um sistema particular
(SAUSURRE, 1972, p.101).
Pierce (1978) amplia a perspectiva saussuriana de estudo da linguagem ao trabalhar
uma teoria geral dos signos, definindo-os como algo que está no lugar de alguma coisa, para
alguém, em alguma relação ou alguma qualidade (PIERCE, 1978). A definição de Pierce é um
marco fundamental no campo das ciências da linguagem, como assevera Joly (1996):
O mérito desta definição é mostrar que o signo mantém uma relação com pelo
menos três polos (e não apenas dois como em Sausurre): “a parte perceptível do signo, “representamen” ou significante; o que ele representa, “objeto” ou referente; e o que significa, “interpretante” ou significado. Essa triangulação também representa bem a dinâmica de qualquer signo como processo semiótico,
cuja significação depende do contexto de seu aparecimento, assim como da
expectativa do seu receptor (1996, p.33).
Dessa forma, signos podem ser vistos (cores, gestos, objetos), ouvidos (música, ruído,
fala), sentidos (perfumes, fumaça), tocados (artefato religioso) etc., ou seja, “tudo pode ser
signo, a partir do momento em que dele deduzo uma significação que depende da minha
cultura, assim como do contexto de surgimento” (Joly, 1996, p.33). Os signos, portanto,
passam a ser interpretados como “um modo de produção de sentido” (Joly, 1996, p.29),
2.2.3 Semiótica Social
A Semiótica Social questiona o caráter imotivado do signo e ressalta a relevância do
contexto no estudo da linguagem, apresentando uma mudança ontológica fundamental em
relação às propostas de Saussure, como asseveram Natividade e Pimenta (2009):
O ponto central da semiótica é a noção de signo e, para a Semiótica Social, a ênfase
recai sobre o processo de produção do signo. Isto implica na compreensão de que o
signo não é uma conjunção preexistente de significante e significado, da forma
como a semiologia tradicionalmente o trata (...) mas ‘como um processo de
produção sígnica’ enquanto ação social que pressupõe um uso específico em um
contexto específico (2009, pp. 21-22).
Para a Semiótica Social, os interesses particulares motivam a escolha de signos e a
construção de significados, selecionados dentro uma infinidade de possibilidades através de
uma análise lógica relacionada a um contexto social (LIMA; SANTOS, 2009). O foco de
pesquisa passa do signo em si para a “forma como as pessoas usam os recursos semióticos
para produzirem artefatos comunicativos e eventos e para interpretá-los — que é uma forma
de produção semiótica — no contexto de situações sociais e práticas específicas” (VAN
LEEUWEN, 2005, p.11).
A semiótica social, portanto, procura “tematizar quem produz o significado, as escolhas
eleitas para construí-lo, o contexto no qual ele é veiculado, as marcas ideológicas e de poder
que ele perpetua, modifica ou subverte” com a intenção de “promover reflexões políticas,
críticas, historicizadas e culturalmente sensíveis” (NATIVIDADE; PIMENTA, 2009, p.29).
A Semiótica social e a ACD, metodologia adotada por este estudo, compartilham das
uma ampliação da Análise Crítica do Discurso, que adota uma dimensão crítica sobre a
linguagem, considerando-a determinante para a transformação social e reprodutora de
práticas sociais e ideológicas” (LIMA; SANTOS, 2009, p.30).
A semiótica social acredita que, assim como a língua, o processo de significação,
também é regido por um conjunto de regras e princípios consolidados em uma gramática,
denominada de sistêmico funcional. Sistêmico por enxerga-la como um sistema de potenciais
escolhas motivadas (não arbitrárias) e funcional por analisar os efeitos que determinada
seleção dentro de um desses sistemas gera no processo de comunicação. Assim, a
compreensão de suas bases teóricas colabora para um entendimento mais amplo do campo da
ACD.
2.2.3.1 Gramática Sistêmico Funcional (GSF)
Quem fala ou escreve produz um texto (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004). O termo
compreende “qualquer instância da linguagem, seja por que meio for desde que faça sentido
para quem conhece a linguagem” (ANDRADE; TAVEIRA, 2009, p.48). Direcionada para o
estudo do texto linguístico, a Gramática Sistêmico Funcional (GSF) não deve ser confundida
com a gramática tradicional (o conjunto de princípios que regem o funcionamento de uma
língua). “A diferença entre a perspectiva Hallidayana e a análise estrutural tradicional reside
no fato de Halliday focalizar a análise funcional da gramática, ou seja, sua produção de
significados” (ANDRADE; TAVEIRA, 2009, p.49). Ou seja, a linguagem é entendida como
prática social, “é mais do que um processo de representação, é construtora da realidade
social, e cada escolha feita no sistema semiótico adquire seu significado contra o pano de
De acordo com a GSF, a linguagem se estrutura em três sentidos, denominados
metafunções: textual, interpessoal e ideacional. A metafunção textual relaciona-se ao processo
de escolha dos termos utilizados para organizar a mensagem de forma linear e coerente, a
metafunção interpessoal engloba o aspecto pessoal do significado estabelecido no texto e a
metafunção ideacional refere-se ao que está representado no mundo por meio da linguagem
(RAVELLI, 2005).
A GSF defende que “não existe texto livre de ideologia, e esta é definida inclusive em
cada escolha lexical determinando posições e valores particulares” (LIMA; SANTOS, 2009,
p.38). Logo, a análise de um texto deve desvelar as escolhas significativas realizadas em
detrimento a outras escolhas possíveis, tornando evidente a organização funcional de sua
estrutura (HALLIDAY, 2004).
2.2.4 Análise crítica do discurso: origem e objetivo
A ACD surge como “uma rede de estudiosos” (WODAK, 2004, p. 227) no início de
1990, após a reunião dos pesquisadores Kress, Faiclough, Wodak, Van Dijk e Van Leeuwen
em um simpósio em Amsterdã (BRENT, 2009). Apesar de recente, a ACD já se apresenta
como uma linha de pesquisa consolidada dentro do campo das ciências da linguagem, um
“paradigma estabelecido dentro da linguística” (WODAK, 2004, p.228). Essencialmente
multidisciplinar, tem inspiração nas ideias de Marx, Adorno, Habermas, Gramsci, Bakhtin,
Foucault, Pêcheux, Althusser e Giddens. Kress e Fairclough são considerados seus criadores e
principais pesquisadores (BRENT, 2009).
O objetivo da ACD é “aumentar a consciência de como a linguagem contribui para a
dominação de umas pessoas por outras” (FAIRCLOUGHT, 1989, p.1). Dessa forma, os
entender, expor e resistir às desigualdades sociais (VAN DIJK, 2001). Para Pedro (1997), o
papel da ACD é desenvolver uma descrição, uma explicação e uma interpretação dos modos
como os discursos dominantes influenciam o conhecimento, os saberes, as atitudes e as
ideologias dos indivíduos, ou seja, a ACD deve entender as visões de mundo materializadas
nos discursos e qual a relação da linguagem, do poder e da ideologia nesse processo.
2.2.5 Concepção de discurso e crítica para a análise crítica do discurso
Fairclough (1989; 2001a; 1995a; 1995b) e Chouliaraki e Fairclough (1999) definem
discurso com um processo circular em que práticas sociais influenciam textos (modelando o
contexto e o modo em que esses textos são produzidos) e os textos, por sua vez, ajudam a
influenciar a sociedade (modelando os pontos de vista daqueles que leem ou consomem esses
textos). Logo, a ACD rejeita a possibilidade de a linguagem representar, de forma isenta e
fidedigna, a Verdade, o Real. Isso ocorre porque o contexto, os interesses e os valores de
quem enxerga, interpreta e enuncia um texto influenciam diretamente no que está sendo visto,
interpretado e dito: “o mundo que os seres humanos vivem é um mundo maciçamente
humanamente criado, um mundo criado no curso da prática social” (FAIRCLOUGH, 1989,
p.37). Assim, discursos são as inúmeras formas de criação, interpretação e reprodução do
Real, são práticas sociais tanto de representação quanto de significação do mundo,
constituindo e construindo identidades, relações sociais e os sistemas de crenças
(FAIRCLOUGH, 2001).
Esclarecido o conceito de discurso, é importante discorrer sobre o que a ACD entende
por análise crítica. Criticar é “tornar visível a interligação das coisas” (FAIRCLOUGH,
1995b, p.36), “significa distanciar-se dos dados, situar os dados no social, adotar uma
que estão fazendo pesquisa” (WODAK, 2004, p.234). A análise crítica, portanto, ‘des-vela’
(evidencia) as inconsistências, as contradições e os dilemas nas estruturas internas dos textos
e dos discursos, como assevera Fairclough:
Por análise crítica do discurso quero dizer análise de discurso que visa a explorar
sistematicamente relações frequentemente opacas de causalidade e determinação
entre (a) práticas discursivas, eventos e textos e (b) estruturas sociais e culturais,
relações e processos mais amplos; a investigar como essas práticas, eventos e textos
surgem de relações e lutas de poder, sendo formados ideologicamente por estas; e a
explorar como a opacidade dessas relações entre o discurso e a sociedade é ela
própria um fator que assegura o poder e a hegemonia (2001b, p.35).
Para a ACD, portanto, a análise genuinamente crítica é vista como uma prática política
e ideológica. Política uma vez que o discurso “estabelece, mantém e transforma as relações
de poder e as entidades coletivas (...) entre as quais existem relações de poder” e ideológica
visto que o discurso “constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de
posições diversas de relação de poder” (FAIRCLOUGH, 2001a, p.94). Assim, fica evidente
a pertinência entre os pressupostos de uma análise crítica para a ACD e o objetivo desse
trabalho de desvelar o conteúdo político e ideológico subjacente ao discurso empresarial das
missões. Dessa forma, o tópico a seguir aprofunda a discussão sobre as inúmeras
possibilidades de aplicação da ACD.
2.2.6 Aplicações da Análise Crítica do Discurso
Os objetos de pesquisa no campo da ACD variam muito e essa variedade implica no uso
de diferentes metodologias o que torna a ACD um método versátil, aplicável ao estudo das
A ACD oferece uma valiosa contribuição de linguistas para o debate de questões
relacionadas à identidade, minorias e questões ligadas ao racismo, à discriminação
baseada no sexo, ao controle e à manipulação institucional, à violência, à
identidade nacional, à autoidentidade e à identidade de gênero, à exclusão social
(2005, p.3, grifo nosso).
A ACD estabelece um diálogo com outras teorias e métodos (CHOULIARAKI;
FAIRCLOUGH, 1999) buscando desenvolver uma pesquisa crítica própria que possa dar
conta da relação entre objeto de pesquisa, teoria e método. A ACD, portanto, não propõe uma
única teoria específica, nem uma metodologia característica de pesquisa, mas está sempre
desenvolvendo suas teorias e seus métodos a encontro de novos objetos de pesquisa.
Entretanto, os objetivos e as finalidades em comum fazem de cada investigador um membro
de um projeto comum fiel ao projeto da ACD (KRESS, 1990).
2.3 Foucault e o discurso como espaço de luta pela estabilização dos sentidos
A obra a Ordem do Discurso, que reproduz a aula inaugural de Michel Foucault no
Collège de France no final dos anos de 1970, é um marco no campo de estudos do discurso ao
desvelar a relação entre as práticas discursivas e os poderes que as permeiam. O autor inicia a
aula com a proposição de que toda sociedade apresenta uma série de mecanismos de controle
do discurso e, ao longo de seu texto, busca identificá-los e discutir seu funcionamento:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade
Assim, mesmo em um contexto democrático, diretamente associado à liberdade de
expressão e a pluralidade de ideias, Foucault propõe que há um processo intencional
(procedimentos) que controla, seleciona, organiza e redistribui a produção dos discursos,
entendidos como um espaço de luta pela estabilização dos sentidos, que se pretendem
hegemônicos (FOUCAULT, 2012). Afinal, mais do que representar a realidade social, o
discurso é responsável por construí-la, tornando-se alvo de uma disputa de poder constante:
O discurso, como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto de desejo; e visto
que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo
que se lutar, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT 2011 p.10).
As diferentes formas de restrição de acesso ao discurso, denominadas por Foucault de
procedimentos ou princípios de exclusão, são a base dessa disputa de poder. “Por mais que o
discurso seja aparentemente pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo,
rapidamente, sua ligação com o desejo e poder”. (FOUCAULT, 2011, p.10). Assim, o autor
busca identificar e analisar os princípios de exclusão que acometem os discursos,
separando-os em três grupseparando-os. O primeiro conjuga as limitações que vem de fora para dentro, ou seja,
externas, impostas pela sociedade à produção de discursos. Já o segundo reúne as restrições
que partem do próprio discurso, ou seja, internas, com a função de classificar, ordenar e ditar
sua distribuição, sendo chamado de princípios internos. Por sua vez, o terceiro controla e
restringe os discursos por meio da determinação de suas condições de funcionamento e da
2.3.1 Princípios externos de exclusão do discurso
Os princípios externos de exclusão do discurso são denominados de interdição,
separação/rejeição e vontade de verdade. O primeiro e de mais fácil percepção, a interdição,
se refere à impossibilidade do sujeito poder falar de qualquer coisa, a qualquer momento para
qualquer pessoa. Foucault destaca a sexualidade e a política como os principais temas alvo de
interdição em nossa sociedade. A interdição se manifesta de três formas distintas
denominadas de: tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo de
quem fala. A primeira, tabu do objeto, se refere ao que não se pode ou não se deve falar,
como, por exemplo, o tema do suicídio e a maneira como ele (não) é tratado pela mídia de
massa. A segunda, ritual da circunstância, diz respeito aos discursos que só podem ser
enunciados em condições específicas, como no caso de questões jurídicas, restritas ao
contexto de um tribunal. A terceira, o direito privilegiado ou exclusivo de quem fala, se
relaciona aos discursos que só podem ser proferidos por determinados sujeitos, como, por
exemplo, o discurso da medicina que ignora e desqualifica outras fontes de saber e atribui
única e exclusivamente ao médico o direito legítimo de abordar o tema da saúde.
O segundo princípio de exclusão, denominado separação/ rejeição, é conceituado a
partir da oposição entre a razão e a loucura. Ao longo da idade média, a dimensão discursiva
da loucura era ignorada pelo saber médico. A palavra do louco, encarada como nula ou como
detentora de uma astúcia ingênua com poderes premonitórios, em suma, inexistia. Entretanto,
apesar de nunca serem recolhidas nem escutadas, era por meio das palavras que se reconhecia
a loucura do louco, “elas eram o lugar onde se exercia a separação” (FOUCAULT, 2011,
p.10). A restrição à enunciação discursiva, portanto, definia a exclusão social do louco,
“aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros” (FOUCAULT, 2011, p.10),
impedindo-o, por exemplo, de testemunhar na justiça, firmar contratos, se confessar na missa