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O cheiro triste das bergamotas

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Academic year: 2017

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GUILHERME AZAMBUJA CASTRO

O CHEIRO TRISTE DAS BERGAMOTAS

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O CHEIRO TRISTE DAS BERGAMOTAS

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras, área de concentração Escrita Criativa, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Charles Kiefer

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Catalogação na Publicação

C355c Castro, Guilherme Azambuja

O cheiro triste das bergamotas / Guilherme Azambuja Castro. – Porto Alegre, 2014.

135 f.

Diss. (Mestrado) – Faculdade de Letras, Área de Concentração Escrita Criativa, PUCRS.

Orientador: Prof. Dr. Charles Kiefer

1. Conto. 2. Narrador (Literatura). 3. Escrita Criativa. I. Kiefer, Charles. II. Título.

CDD 808.3

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A memória é viva quando ela trai (...).

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Esta dissertação, “O cheiro triste das bergamotas”, é constituída por uma obra literária (livro de contos), seguida por um ensaio teórico sobre o processo de criação do autor, em forma de notas, em que aborda os seguintes aspectos: a voz, transcendência, vivência e observação, autonomia, ponto de vista, diálogo, identidade, a “esfericidade” e o enredo. A dissertação é composta, ainda, por um anexo com o histórico da escrita dos contos.

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"O cheiro triste das bergamotas" is a dissertation on Creative Writing, and consists of a literary work (short stories) followed by a theoretical essay about the author process of creation: his notes, which covers the following areas: voice, transcendence, experience and observation, autonomy, point of view, dialogue, identity, sphericity, and plot. The dissertation is also comprised of an attachment to the history of writing stories.

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I - INTRODUÇÃO ... 8

II - O CHEIRO TRISTE DAS BERGAMOTAS: CONTOS1 ... 9

O tio Mimoso ... 10

As tartarugas nadam tranquilas ... 16

Porto Alegre sob o ralo ... 25

Uma pedra no escuro ... 30

O cheiro triste das bergamotas ... 35

Um céu cor-de-rosa ... 49

Ainda madrugada ... 57

Roland ... 60

Luz no avarandado ... 67

Gosto de vinho ... 79

III - O CORPO DA VOZ: NOTAS SOBRE “O CHEIRO TRISTE DAS BERGAMOTAS” ... 92

1. A voz ... 93

2. Transcendência ... 97

3. Vivência e observação ... 100

4. Autonomia ... 104

5. Ponto de vista ... 105

6. Diálogos: três dicas de Francine Prose ... 108

7. Identidade ... 112

8. A esfericidade ... 117

9. O enredo ... 124

IV - Referências ... 133

V - ANEXO2 ... 134

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Os contos não são apresentados nesta versão, visando manter o ineditismo da obra.

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“O cheiro triste das bergamotas” é uma dissertação de Mestrado em Letras, Área de concentração Escrita Criativa. A dissertação é constituída por três partes: uma obra literária (livro de contos), um ensaio teórico sobre o processo de criação do autor, em forma de notas, e, por fim, um anexo.

Nas notas, são abordados os seguintes aspectos da criação literária: a

voz, transcendência, vivência e observação, autonomia, ponto de vista, diálogo, identidade, esfericidade e enredo.

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– III –

O CORPO DA VOZ

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1. A voz

Gosto que meus narradores falem ao leitor, que minha narrativa escrita tenha um ar de oralidade. E fala-se não com outra coisa senão com a voz. Ao escrever, pretendo que seja a voz de um sujeito a contar uma história ao ouvido do leitor.

Nesta obra há dez contos, dez narradores, portanto: dez vozes.

Como o narrador é um sujeito inventado, de algum lugar ele deve sair. Esse lugar é a imaginação do autor. Então o surgimento do narrador dependerá de como o autor vai transformar sua experiência, sua vivência, sua visão de mundo, suas observações sobre o outro, em linguagem. O “processo de la creación artística”, diz Enrique Anderson Imbert, “no sale de la nada. Sale de una mente, y esta mente a su vez, ha sido formada por el cérebro, el habla y la cultura del creador.”1.

Não raro percebo que meus narradores adquirem uma voz semelhante à minha. É involuntário. Os sotaques, as pausas, a musicalidade, a cadência das frases, o drama sentido na voz de cada um dos meus dez narradores por vezes imitam a minha própria voz, esta afetada, é claro, pelos meus próprios dramas, sofrimentos, alegrias – minha própria vivência.

Antes de falar, preciso pensar com muita atenção nas palavras antes de proferi-las, é muito comum que a minha fala saia atropelada, inaudível, quando por descuido não reflito antes sobre a forma e o conteúdo; falo pausadamente, portanto. E alguns de meus narradores também têm essa fala pausada, como numa contínua reflexão sobre a real necessidade de falar. Um zelo para não incorrer em excessos, atropelamentos, enfim, em abuso para com o leitor; como se o leitor, ao se dispor a ler e imaginar, não estivesse para perder o seu tempo.

Entretanto, nem todos narradores têm essa voz pausada (como em “As tartarugas nadam tranquilas”).

Importa dizer, entretanto, que minha intenção ao escrever estes contos foi estimular no leitor a sensação de ouvir uma história falada, ouvir as vozes dos narradores mais do que a sensação de história escrita. E é inevitável, em algumas delas o leitor presumirá um pequeno contágio de minha própria voz nas vozes dos narradores.

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Essa voz a que me refiro – a dos narradores enquanto entes criados, com identidades próprias – no texto ela é imitada pela grafia, pelo desenho que o texto recebe na página, pela arquitetura de um falar e um não falar na página. Gosto de representá-la em parágrafos curtos. Evidenciar uma palavra ou a uma frase que não seriam recebidas pelo leitor com o grifo necessário se, de outra forma, competissem a atenção do leitor com outras palavras ou frases em períodos maiores. Pode-se dizer que esta opção estética permeia quase toda a obra. Como neste pequeno trecho de “O cheiro triste das bergamotas”, em que o leitor lê e respira, lê e respira:

Era assim. Pronto. Era assim. Bebeto.

Mas por que seria famoso, eu? Daí eu disse: – Não sou famoso.

Aqui, eu quis que na voz no narrador Carlos houvesse a imitação de uma dor: a dor do sujeito que narra uma história cuja tristeza é representada também através das pausas, das frases curtas, das palavras isoladas. Quis que a dor fosse percebida também no ritmo interno do texto. Como se narrador, de tempos em tempos, parasse sua atividade de orador, refletisse em silêncio, segurasse um choro, dissimulasse com novas frases uma dor que de repente surgiu ao lembrar do pai indo embora, num dia de calor, levando o carro para nunca mais voltar.

As pausas servem não só para o leitor retomar o fôlego entre um e outro parágrafo, mas principalmente para dar verossimilhança à voz de um narrador ferido, cujas feridas devem ser notadas menos nos fatos e mais no corpo da própria voz.

Neste sentido, os “sentimentos”, diz A. Alvarez, em A voz do escritor, (...) “são expressos menos em imageria do que em movimento, no ritmo interno da linguagem. Quando um poeta está genuinamente possuído, pode-se escutar isso na maneira como os versos se movem. E quando o ritmo está morto, nenhuma quantidade de invenção pode disfarçar esse fato.”.

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há vida, um corpo de veias, artérias e, sobretudo, um coração que precisa bater e fazer esse corpo pulsar.

Isso influi na arquitetura visual do texto. Na posição exata das pausas e dos silêncios que estimulam a respiração no leitor. Por isso, nestes dez contos o leitor vai perceber por vezes a nítida opção por um texto visualmente vertical, em que a sequência de pausas e silêncios tem maior capacidade de aguçar as sensações do que os significados.

Esta é a aproximação que faço dos meus narradores ao modo lírico.

Entretanto, a narrativa não se firma apenas sobre a musicalidade. A voz, na prosa, deve adequar-se ao seu objeto. Parece-me que é o objeto narrado o responsável pela existência do tom de voz, e não ao contrário.

A verossimilhança interna do texto (para trazer um conceito aristotélico, ao falarmos em voz narrativa) depende, dentre outras coisas, da escolha pela modulação das palavras, e, sobretudo, da adequação entre o tom dessa voz narrativa ao objeto narrado.

A autoridade do narrador depende da conjugação desses elementos – tom de voz e objeto.

Ponhamos nestes termos: o tom de voz é a forma, a história é o objeto; e, neste sentido, diz Henry James: “ideia e forma são a agulha e o fio, e nunca ouvi falar de alfaiates que recomendem o uso do fio sem a agulha, ou da agulha sem o fio”.

Carlos, o narrador de “O cheiro triste das bergamotas” um dia viu o pai ir-se embora – esse ir-se embora do pai é uma ferida aberta no narrador, caso contrário não haveria a urgência2 em narrar a chegada de Bebeto –, então ele vai, antes de qualquer coisa, contar como vivenciou o anúncio da ausência do pai, como na passagem que transcrevo abaixo, em que vemos o narrador ainda não mergulhado em si mesmo, como ocorrerá no desenvolvimento, mas apenas informando que no dia em que o pai foi embora estava calor, e que o pai levou o carro:

[Bebeto] Disse isso afagando minha cabeça enquanto entrava no chalé, que é a minha casa e de onde eu vi meu pai ir se embora um dia.

Estava calor.

E ele saiu levando o nosso carro.

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É o objeto narrado que gera no narrador a urgência em narrar.

No início de “O cheiro triste...”, Carlos narra um passado afastado, fatos que ocorreram quando era criança. É uma voz imatura que narra esses fatos. A certa altura da trama, entretanto (esta divisão é marcada pelo asterisco), o narrador passa a narrar um passado recente, por isso no conto há a seguinte modulação de tons: o atual (momento da narrativa, igual ao passado recente) e o passado afastado (época a que pertencem os fatos evocados no início do conto).

Esse posicionar-se do narrador, no tempo, é essencial para que as modulações na sua voz soem verossímeis.

Quando narra seu passado afastado, Carlos assume uma voz já perdida na infância. Lembra, por exemplo, Bebeto mostrando-lhe, da janela do carro, os lugares além da cidade e assume na voz um tom melancólico:

Demos uma volta pelo centro, arrodeamos o cemitério, e a cidade e as casas já iam desaparecendo no retrovisor enquanto surgiam os alambrados na beira dos campos, os desenhos bonitos das plantações de arroz terminando lá na borda dos horizontes. Isso me lembrava de quando, sentado no carona, eu perguntava para ele: “Bebeto, quê que vem lá depois?”.

E depois sempre vinha a Lagoa Mirim. – E mais depois?

Mais campo, o mar, a África... Bebeto estendia o braço para fora do carro, o dedo mostrando qualquer lugar lá longe. Depois vinha o Japão, e depois do Japão, fazendo a volta, vinha aqui mesmo.

– Quer dizer que depois do Japão vem aqui? – Sim. Depois do Japão vem aqui, sim senhor.

A voz que conta o passado recente é distinta e está mais adequada à adolescência do narrador (a voz atual). Sentimos que Carlos retoma a voz atual quando demonstra um maior controle sobre os sentimentos. Assim é a continuação do trecho acima, quando o narrador liberta-se da recordação e, de novo, vê-se na realidade atual, que lhe é mais dolorida:

Agora Bebeto não mais apontava o dedo para a África Nem para qualquer lugar lá longe ele apontava.

Esse presente dolorido (uma dor revivida) dá ao narrador a urgência em narrar. É o fato de ter perdido as duas figuras paternas (e o cheiro das bergamotas, no desfecho, vai simbolizar essa nova ausência), que lhe dá autoridade de narrador.

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E o leitor acredita no que ouve porque consegue sentir o que ouve, e o que ele ouve é a dor e também, eventualmente – graças às modulações na voz –, a alegria de Carlos.

2. Transcendência

O “desafio e a profunda alegria proporcionada pelo romance”, diz Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e sentimental, “não ocorrem quando inferimos o caráter do protagonista baseados em sua conduta, mas quando nos identificamos com ele em pelo menos parte de nossa alma – e desse modo, ainda que temporariamente, libertamo-nos de nós mesmos, tornamo-nos outra pessoa e vemos o mundo pelos olhos de outra pessoa.”.

Aqui, cabem umas breves notas sobre a transcendência da literatura.

Transcender do particular ao universal é condição da escritura. Diria que é o principal desafio do escritor. Quando de repente o escritor percebe que aquilo que está criando não diz respeito mais a ele próprio, mas ao outro, há transcendência. Portanto, é literatura.

Para que o fato narrado seja literatura não basta que simplesmente imite realidade. Há transcendência quando os sentimentos representados no texto, através dos sentimentos dos personagens e a forma como são representados, extravasam os limites do texto e, então, passam a ser compartilhados, através de um processo de empatia, por um outro.

Esse outro é o leitor.

O leitor deve ter a chance de enxergar com os olhos do personagem, ouvir com os ouvidos do personagem, sentir como sente o personagem. Entretanto, pergunta-se: Como tornar possível essa transcendência se, ao mesmo tempo, o personagem tem uma identidade? A identidade, por si só, não seria capaz de justamente o contrário, ou seja, afastar essa empatia, já que ter uma identidade cria necessariamente um afastamento do personagem frente ao outro, o leitor, como dois seres distintos no mundo?

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Julio Cortázar são ainda lidos, relidos e interpretados pelos leitores atuais? Ora, porque são universais.

Sim, penso que eles são universais por uma razão: instauram não uma resposta, mas uma pergunta. Uma pergunta que fala ao humano e por isso é capaz de se manter viva no tempo. Como um corpo que pulsa, é o texto. O texto é a corporificação de uma voz, a do narrador. Esse pulsar interno do texto, essa vida, decorre necessariamente de um constante questionamento. O não haver respostas para tais questionamentos do texto é o que garante que ele perdure no tempo.

Textos que dão respostas são textos pragmáticos, manuais práticos de como montar estantes, e a literatura, diz Roland Barthes, não se presta a isso.

Barthes faz a distinção entre escritor e escrevente, neste sentido: a ação do escritor “é imanente ao objeto, ela se exerce paradoxalmente sobre seu próprio instrumento: a linguagem; o escritor é aquele que trabalha sua palavra (mesmo se é inspirado) e se absorve funcionalmente nesse trabalho”.

A palavra, portanto, é uma estrutura à qual se funde o próprio ser do escritor. Este conceito de Barthes lembra-me não só o texto de escritores como Marguerite Duras, Antonio Tabucchi, Raymond Carver, Luiz Vilela e Lygia Fagundes Telles (somente algumas referências), mas de cantores como Bob Dylan, Maria Betânia, Milton Nascimento, Violeta Parra e Mercedes Sosa. A música que se forma na modulação das suas vozes parece soltar-se do corpo do artista. O canto não é apenas fruto de um processo mecânico do corpo, a força do diafragma projetando voz ao espaço, o canto é constituído por pedaços, estilhaços do próprio artista.

A arte é constituída pelo próprio sujeito, diria Barthes, e assim como o cantor é a sua voz, o escritor é o seu texto, a sua escritura. Ela o constitui. Por constituir um sujeito, a escritura (a voz) também é um corpo, estilhaços de um corpo.

Para que a linguagem seja o corpo do escritor, não pode ser tributária a nenhum fim senão ela mesma. Na medida em que há um fim, há também um esgotamento da ação do sujeito – aqui, cabe o retrato do escrevente, segundo Barthes: o escrevente preocupa-se menos com a palavra por ela mesma do que com a sua serventia prática. Construída a estante, perde a razão de existência o seu manual escrito.

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técnica essencial sobre a palavra; dispõe de uma escritura comum a todos os escreventes, uma espécie de Koinè, na qual se pode, é verdade, distinguir dialetos (por exemplo, marxista, cristão, existencialista), mas muito raramente estilos”.

Terry Eagleton chama de não-pragmatismo do discurso literário.

Para Eagleton: “não existe uma „essência‟ de literatura. Qualquer fragmento de escrita pode ser lido „não pragmaticamente‟, se é isso o que significa ler um texto como literatura”. Assim, para que a escritura seja um valor em si mesmo, deverá pulsar como um corpo pulsa aos batimentos cardíacos, é agora o corpo do texto que vive, é uma outra vida imaginada.

Minha intenção ao escrever estes dez contos foi que o leitor pudesse se colocar no lugar dos narradores. Que o leitor pudesse acompanhar as ações, os pensamentos dos personagens através da palavra, que enxergasse com os olhos do outro, e que, ao fim, saísse da leitura com um vivo sentimento de que, na verdade, o texto agora o constitui.

Meus narradores não são deuses que tudo sabem sobre o humano, dada essa incompletude inexorável do sujeito, também uma incapacidade; meus narradores não formulam respostas, tampouco conselhos, não oferecem uma moral.

O leitor não encontrará nos dez contos, dez códigos de ética.

Quero que o texto, ao invés de exaurir-se – como ocorre aos manuais de estantes – ao contrário: abra-se para uma pluralidade de leituras. Como se o texto, embora finalizado na forma gráfica de um ponto final, de um desfecho físico, espiritualmente ele continuasse no leitor, constituindo-o, pois nele agora pulsará aquela pergunta sobre a condição humana, latejando, viva.

Sobre o colocar-se no lugar do outro – a empatia – gosto da comparação que Julio Cortázar faz entre conto e fotografia.

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Referindo-se ao conto e à fotografia, nessa analogia Cortázar define em poucas palavras a transcendência. A partir de um recorte, o texto abre-se a uma realidade mais ampla, mas essa universalidade somente é possível de ser alcançada quando o sujeito for capaz de se colocar no lugar do outro. Enxergar com os olhos do outro, sentir a mesma dor que o outro sente.

Assim, o escritor opera uma espécie de manipulação da imaginação – o leitor deve enxergar-se no personagem.

O autor liberta-se de si mesmo para chegar ao outro. Diz Orham Pamuk, o autor deve “pôr a prova os limites de sua identidade”. “A história do romance”, diz Pamuk, “é a história da libertação humana: ao nos colocarmos no lugar do outro, usando a imaginação para nos desprender da nossa identidade própria, podemos conquistar a liberdade”.

3. Vivência e observação

No conto “O tio Mimoso”, o narrador conta sua história, a história de um menino cuja infância é cotidianamente espremida, sufocada pela obrigação de cuidar do tio inválido, o Mimoso.

Ao invés de jogar futebol no campinho “Sarapico”, ele tem a obrigação de dar almoço ao tio; quando poderia nadar na lagoa, ele tem a obrigação de dar banho no tio, etc.

Essa condição desperta nele desejos que considera “ruins” – a morte do tio, por exemplo, seria uma libertação dele próprio – e os recalca: “Fazia um esforço pra sorrir, ele... Nem sempre dava certo. Sujeito doce. Quando eu pensava aquelas coisas feias, aquilo do tio morrer, ah, dava uma vontade de ser Deus, porque daí eu tocava fora essa coisa, sei lá, essa glândula que faz a gente torcer pela morte de um cara tão joia”.

Nunca enfrentei pessoalmente o conflito do narrador de “O tio Mimoso”. Tampouco me lembro de ter experimentado algo semelhante, exceto na literatura.

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A saúde do meu tio era precária. Ele caminhava, comia, falava com dificuldade, e por isso necessitava de constante ajuda. Quem as prestava era uma técnica em enfermagem, não eu. Eu apenas observava o que ela fazia, a sutileza com que o tratava e o ajudava nas refeições, e também a levantar da cadeira de rodas, a fazer a higiene, enfim, praticamente todas as atividades cotidianas.

E lá eu ia, todos os dias, buscá-lo no residencial onde morava, dirigindo o seu carro, um Fiat, e durante todo o dia – minha jornada de trabalho – percorríamos diversos lugares, ente eles: padarias, tabacarias, lojas, confeitarias, e à tardinha, para terminar, tomávamos cafezinho na Associação dos Magistrados do RS, onde ele tinha muitos velhos amigos da época em que ele ainda atuava como Juiz.

O tempo foi passando e, no fim das contas, em vez de estagiar no prometido escritório de advocacia, acabei virando motorista particular. Porém, em razão de ficarmos muito próximos – a maior parte do tempo estávamos um ao lado do outro, no Fiat, indo e vindo – naturalmente foi-se criando entre nós uma relação muito afetuosa e da qual sinto saudades (ele faleceu em 2008).

Era uma relação de fato muito franca, tanto que ele entendeu quando lhe informei sobre outro trabalho ao qual havia sido chamado, na Justiça Federal, mais producente para mim enquanto estudante de Direito, e que significava ter de em seguida deixar o meu “cargo” de motorista.

Falo sobre este fato biográfico porque, no começo da escrita de “O tio Mimoso”, inconscientemente voltava a ele.

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As ações do personagem não surgiram do nada, como diz Imbert. Quando descrevi o banho, por exemplo, foi na técnica em enfermagem do meu tio que pensei, a dinâmica de sua prática, da forma como ficou cristalizada em minha memória, permitiu-me dotar o personagem desta mesma aptidão. Quanto à Pepita – a cachorrinha – inspirei-me numa cachorrinha que minha avó dizia ter quando criança, ela eventualmente narrava aventuras suas junto à cachorrinha. Na voz da minha avó, havia muito afeto quando lembrava da cachorra Pepita. Então, utilizei o mesmo nome. Na voz do menino, quis que houvesse esse mesmo tom de afeto. E gosto do nome, Pepita, também pela repetição de letras, a consoante pê.

Quanto aos seguintes detalhes: a música dos Beatles, My Michelle, o personagem no telhado olhando a lagoa no horizonte, os barcos, o desejo de jogar futebol no campinho, e o próprio nome do campinho, “Sarapico”, são imagens e dados que extraí da minha infância em Santa Vitória.

Não raro as uso, as imagens de minha infância, em meus contos. “Gosto de vinho”, “O tio Mimoso”, “Luz no avarandado”, “Uma pedra no escuro”, “Ainda madrugada”, “O cheiro triste das bergamotas” e “As tartarugas nadam tranquilas” trazem detalhes que busquei da infância em minha cidade, nos anos 1980 e 1990.

A biografia e a observação do outro agem na minha escritura como uma placa que, diante da incerteza, mostra-me um caminho possível. Em “O tio Mimoso”, mostrou-me que aqueles fragmentos desconexos poderiam, sim, se desenvolver em forma de conto, e que, para isso, bastava recorrer à memória. Em “As tartarugas nadam tranquilas”, ocorreu como um exercício de relato puramente autobiográfico, sem pretensão de ser um conto, mas que, depois de um tempo (um mês, aproximadamente), se transformou em um.

Quando percebo que ingresso ao universo do outro, me apropriando do que havia observado para então poder criar no texto uma outra vida, neste momento a biografia perde a identidade e, em troca, recebe outra. O narrador de “O tio Mimoso”, ao mesmo tempo em que é composto por fragmentos da vida do autor, também é composto por fragmentos do outro.

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em sua técnica: “Deitava ele ao comprido na cama e ia limpando com um paninho úmido. Misturava sabão de glicerina com água morna numa bacia, encharcava e torcia bem pra depois retirar os mocos das narinas e as remelas dos olhos.”.

Pode-se dizer, então, que a identidade do narrador de “O tio Mimoso” é composta por fragmentos da vida do autor (a ambientação), e da sua vivência (a observação do outro), resgatados da memória, e por isso mesmo constitui-se um outro ser, uma outra realidade.

Diz Milton Hatoum: “A memória é viva quando ela trai, quando já dissipou os fatos do passado (...). Ela é mais importante quando cria um espaço de hesitação, de oscilação, de dúvida”. E que o “passado é nebuloso, um terreno fértil de incertezas e dúvidas. Por isso é mais propício à ficção”. Concordo. São os fatos passados, não os circunstanciais, que se prestam à literatura que pretendo escrever. No trânsito do passado (história) ao presente (escritura), os fatos são submetidos a uma espécie de amaciamento. Assim, na ocasião em que estou criando, só me concedo esse direito porque o passado já atingiu na memória a maleabilidade ideal. Agora, exercendo a autoridade de autor, posso já deformá-los, forjá-los, transformá-los em linguagem.

Natalie Goldman chama esse processo de período de “compostagem”: um necessário distanciamento temporal entre o autor (no presente) e os fatos que ele reconstrói (a memória).

Sobre escrever o presente, diz Goldman (e com ela compactuo dessa ideia), uma vez que as sensações ainda estão vivas no autor, elas podem restringir sua capacidade expressiva. Antes, as sensações devem “se incorporar a nós”, já que os nossos sentidos, por eles mesmos, não têm inteligência. Os sentidos “absorvem as sensações, mas precisam daquela fertilidade que surge quando sofrem a ação prolongada de nossa consciência e de todo o nosso corpo. Chamo esse processo de „Compostagem‟”.

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4. Autonomia

O material biográfico deve ser irreconhecível como tal. O leitor deve ser conduzido a apreender o mundo da ficção como um mundo autônomo, esquecendo-se durante a leitura que aquilo que lê (ou vê) na verdade esquecendo-se trata de um artifício verbal.

Quando o mundo real precisa ser consultado para validar a literatura, esta perde força. A vida dos personagens deve se parecer a uma vida que surge não do mundo do autor, mas do mundo da obra.

Entre autor e o mundo ficcional, diz Bakhtin, deve haver uma distância a que chama de posição de exotopia suprema. Somente se afastando do narrador (ente ficcional), o autor (ente empírico) conseguirá representar satisfatoriamente o mundo externo no texto. Diz Bakhtin: “encontrar um meio de aproximar-se da vida pelo lado de fora, é esta a atividade do artista. É assim que o artista e a arte em geral criam uma visão de mundo absolutamente nova, uma imagem do mundo, uma realidade da carne mortal do mundo que nenhuma outra atividade criadora poderia produzir.”.

A exotopia suprema parece-me tratar do mesmo desprendimento da bola de sabão de Julio Cortázar. O necessário distanciamento para que o autor possa, a partir do mundo real, criar um mundo novo e, é claro, autônomo, é o que Cortázar chama de “autarquia” do conto.

Ele diz que “O indício de um grande conto me é dado por aquilo que poderíamos chamar de sua autarquia, o fato de o relato se ter desprendido do seu autor como uma bolha de sabão se desprende do cachimbo de gesso”.

A bolha representa a autonomia, pois seu criador perdeu, no momento mesmo em que deu forma ao sabão, através do sopro, qualquer hierarquia ou controle sobre a bolha; ela agora é outro ser no mundo. Entretanto, dentro desta bolha, permitindo que ela flutue, está o ar que saiu dos pulmões do autor.

É esse ar que lhe garante a forma, a vida, o movimento.

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representá-los tal qual ocorreram. Escrever, diz Imbert, é objetivar o subjetivo. Escrever é deformar a memória, deixá-la irreconhecível, é retirar dos fatos passados sua identidade e lhes dar outra identidade.

5. Ponto de vista

Paul Ricoeur diz que o “ponto de vista (...) designa numa narrativa em terceira ou em primeira pessoa a orientação do olhar do narrador em direção a seus personagens e dos personagens uns em direção aos outros”. Ponto de vista e voz narrativa, para Ricoeur, são elementos íntimos, quase idênticos, cuja única diferença está no fato de que o ponto de vista “responde à questão: de onde vemos o que é mostrado pelo fato de ser narrado? E, assim, de onde se fala?”, enquanto que a voz narrativa “responde à questão: quemfala aqui?”.

A questão nuclear é esta: sempre haverá um eu falo, e sempre haverá um de onde fala esse eu, na ficção.

O discurso do narrador situa-se no campo da enunciação (narrar algo), e o do personagem no campo do enunciado (algo que se narra). Estes dois elementos não estão posicionados estaticamente um em relação ao outro. Eles são móveis, dinâmicos, sofrem aproximações e afastamentos sempre conforme a vontade do narrador.

Há, nestes dez contos, vários narradores, com várias posturas. Há os que confessam seu próprio sofrimento, como nos seguintes contos em primeira pessoa: “O cheiro triste das bergamotas”, “Gosto de vinho”, “Porto Alegre sob o ralo”, “Uma pedra no escuro” e “O tio Mimoso”. Já o narradores de “Roland”e “As tartarugas...”, por exemplo, intercalam a função de câmara que apenas registra objetivamente as ações do personagem, sempre em terceira pessoa, mas às vezes deixam sua posição exterior, asséptica, e tomam para si, numa aproximação quase física, os sentimentos do personagem. Vejamos, “Roland” começa com um relato o mais objetivo:

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Depois de um breve diálogo, o narrador abandona seu papel asséptico e aos poucos vai se encostando ao calor do personagem a ponto de fazer-nos sentir de repente o hálito perdurando no bocal do telefone:

Desliga sem falar nada. Não que ele não tivesse o que falar, tinha: a vontade louca de viajar para Urt no fim de semana, por exemplo. E, principalmente, que estava com saudades. Muitas. Mas ficou mudo: o hálito batia no bocal e voltava-lhe como uma sanção.

Da mesma forma no conto “As tartarugas....”, em que o narrador eventualmente deixa sua posição exterior de terceira pessoa onisciente – pois narra até o que o personagem não pode ver, como o sangue sobre o tapete – e vai assumir quase uma posição em primeira pessoa, narrando o próprio estado de espírito do menino. Como na cena em que o menino deita-se no chão do quarto e sente a chuva preencher seu corpo a ponto de sair-lhe pelos olhos. O narrador poderia dizer apenas: ele chorou. Mas não o faz. Ele opta em narrar como sentisse a dor do menino.

Em “Ainda madrugada” e “Luz no avarandado”, os narradores em terceira pessoa também estão próximos do personagem. Ora adentram a consciência dos personagens, ora assumem para si a voz dos personagens, através do discurso indireto livre, pois com o discurso indireto livre consigo modular justamente a posição espacial do narrador com relação a ele próprio e aos personagens.

Esta passagem de “Ainda madrugada” é o narrador falando, mas a voz que se quer escutada não é a dele, narrador, e sim a do personagem Vilmar:

Pensou: ou se livra delas ou o pneu fura antes de chegar no castelhano, que essa câmara não se aguenta mais de tanto parche, precisava botar uma nova dia desses.

Mas como, se não pega serviço faz o quê? seis mês? Na cidade. Na cidade.

Ah, na cidade se consegue muita coisa. Pois sim, mas o quê?

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modulação, a voz em terceira pessoa sai de cena e dá lugar à pureza da voz do sujeito, em primeira.

Segundo Ricoeur, ponto de vista e voz narrativa compreendem vários planos: ideológico, fraseológico, espacial e temporal, dos tempos verbais e dos aspectos, e ainda o psicológico. Entretanto, aqui me atenho ao plano “espacial e temporal” para refletir sobre os contos em terceira pessoa, pois costumo utilizar muito o discurso indireto livre para a manifestação dos personagens na história.

O narrador de “Luz no avarandado” é em terceira pessoa. Porém, ele introduz o universo ficcional ao leitor já a partir do interior do personagem Bianca, mas em seguida desloca-se até o exterior, a posição natural do narrador em terceira pessoa, o enunciador que diz: “ele”. Diz o narrador: “Parecia um erre, er-re. Maiúsculo. Dar um oi, um oizinho que fosse, nem disso Bianca foi capaz. Bobalhona! Re-na-to. Ela abriu o caderno e desenhou um e-ne.”. O conto inicia com o pensamento de Bianca, porém não prossegue em primeira pessoa, como seria o previsível. A posição do narrador logo se impõe, exatamente quando surgem as conjugações “parecia” e “Bianca foi capaz”. Se fosse Bianca narrando, ela diria “parece”, pois ela pensa no mesmo momento em que olha os cabelos de quem resolveu chamar de Renato. E também diria, na primeira pessoa, “eu fui capaz”.

Quando percebe essa distorção – onde haveria naturalmente um “eu”, agora há um “ela” – o leitor dá-se conta: neste conto haverá dois planos – às vezes o “eu”, às vezes o “ela” – e por este motivo poderei ouvir, e aceitar, duas vozes (uma neutra, outra feminina) em uma só voz, a do narrador3.

Ou seja, num mesmo conto, os pontos de vista vão se alternando como se o olho do narrador fosse o zoom de tempos em tempos sendo ajustado conforme a opção estética do autor. Esse processo é necessário por causa da dinâmica que se quer dar à narrativa, no intuito de evitar que leitor se aborreça e abandone o conto no momento mesmo em que o marasmo de repente ali se instalou.

Assim que “Luz no avarandado” inicia no indireto livre. Mas em seguida muda para o modo dramático. No dramático, o narrador pouco se intromete, apenas deixa as vozes dos personagens atuarem a sós, em diálogo:

Olhou pela janela do ônibus: – Dindo!

3

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– Fez boa viagem, meu amor? – Uma horinha de nada.

– Com esses bancos aí, bah! Pra mim seriam eras.

Bianca apagava o desenho com a borracha da ponta do lápis. – Nem percebi, tio. O ônibus meio que voou!

Guardou tudo na mochila e preparou-se para descer.

O narrador chega para o lado ao perceber sua inconveniência, uma vez que está exaurida sua função de introduzir a história. Agora, sua presença provavelmente nublaria a visão sobre os personagens, os verdadeiros donos da cena.

Quero que o leitor sinta (veja) as modulações espaciais do narrador: as aproximações, os recuos, as eventuais contaminações com o subjetivismo dos personagens, como se por um momento o leitor se esquecesse de que aquilo que lê é texto, palavras grifadas, e então se transportasse mentalmente ao mundo da linguagem, ao mundo do outro.

Quero que o leitor sinta com os personagens e também com o narrador (às vezes, ele próprio é o personagem). Sem aproximações e recuos, ou seja: um narrador estático, preguiçoso em se deslocar de onde observa, um narrador que não assume riscos de contaminação junto ao subjetivismo do outro, acaba por deixar a história a anos-luz do leitor. E este, então, permanecerá também estático, preso à sua condição de leitor.

O narrador deve ser ninguém menos do que aquele que intermedeia a relação (íntima) entre leitor e história, aquele que o toma da mão e, através da confiança e da autoridade, mostra-lhe com sua voz um outro mundo.

Há, nestes dez contos, por fim, narradores que deixam toda confissão e sentimento a cargo do personagem. Como em “Um céu cor-de-rosa”. Neste conto, o narrador em primeira pessoa deixa todo o espaço do conto à voz de Nádia. Aqui, são os diálogos que desenvolvem o conflito, não a voz do narrador Rafa. Então quero discorrer um pouco, referindo-me a “Um céu-cor-de-rosa” e “Uma pedra no escuro”, sobre as funções que o diálogo exerce num conto, quando é eficaz e quando não o é.

Francine Prose dá boas dicas sobre o diálogo.

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Primeira dica, o diálogo não deve soar como fala real. “As repetições, expressões sem sentido, hesitações e monossílabos disparatados com que expressamos hesitação, juntamente com os clichês e banalidades que constituem tanto da conversa cotidiana, não podem e não devem ser usados quando nossos personagens estão conversando.”

Quando me ouço falar – em um vídeo, por exemplo – consigo facilmente perceber as falhas em minha dicção. Pausas inconvenientes que atrapalham a fluência, gagueiras dado eventuais incertezas quanto à adequação de palavras ou termos, etc.

Isso é a oralidade cotidiana.

A fala real tem esse direito de ser anárquica. Na literatura, porém, deve ser ordenada, organizada, clara. Para imitar a fala, no texto escrito, o autor deve utilizar, sim, os matizes da oralidade cotidiana, como o tom de voz, as palavras comuns, etc, mas, sobretudo, deve saber descartar os percalços de uma fala coloquial, a serviço da clareza e da boa compreensão.

Os percalços contribuem mais à dispersão do leitor do que chamam sua atenção à fala dos personagens.

Vejamos este trecho de “Uma pedra no escuro”, em que os personagens Bruno e Mateus conversam enquanto, no escuro da noite, levam até o pai um sanduíche:

E eu disse:

– Tem ainda o dinheiro do computador.

– Ah, não, o do computador não é teu! Nem vem. – Eu que tô juntando!

– Uma ova! – gritou. Ficou me olhando, parado, então resolveu se aproximar da sanga: – É da mãe o dinheiro. Da mãe! Acho muito lindo, tu faz arte e fico eu sem o computador!

Friso a seguinte expressão de Mateus: “Acho muito lindo, tu faz arte e fico eu

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Santa Vitória, por ser uma cidade vizinha do Uruguai, as expressões em português dos seus habitantes por vezes adquirem a tônica, o ritmo, a musicalidade do espanhol.

E mais, nessa região – assim como acontece em muitas regiões fronteiriças – cria-se uma espécie de novo dialeto. Neste caso, o portunhol.

É possível, em literatura, imitar essa mistura de línguas. Mateus poderia falar portunhol sem que isso soasse inverossímil ou ilegível, todavia essa não foi a minha intenção. No conto, Mateus chama o irmão, Bruno, de “loco”, e não de “louco”. “Loco” é uma gíria uruguaia, não brasileira. Equivale, em português, a “cara”, “amigo”, “meu irmão”. E Mateus não fere a língua culta, formal, muito mais do que chamar o irmão de “loco”.

Minha intenção foi dar à voz de Mateus apenas uma leve musicalidade castelhana, sem que sua identidade brasileira fosse colocada à prova, como nesta minúscula anormalidade: o deslocamento do pronome pessoal “eu” para depois do verbo, raro no português, mas muito comum no espanhol: “tu faz arte e fico eu sem o computador!”. E ainda nesta: “Daí eu... Que vou saber?”. No português culto seria “tu faz arte e eufico sem o computador!”, e “Daí eu... Sei lá.”.

Basta-me que o leitor ouça Mateus falar seu português levemente contaminado, e não um dialeto. Não quis impor os percalços, as deformações sonoras capazes – penso – de fraturar a leitura a ponto de torná-la legível somente após um esforço intelectual do leitor.

Segunda dica, o diálogo deve ter um propósito. A voz do personagem deve mostrar ou ocultar uma intenção, um desejo. Diz Prose: “Quando nós, seres humanos, falamos, não estamos meramente comunicando informação, mas tentando causar uma impressão e alcançar uma meta”. Vejamos esse trecho de “Um céu cor-de-rosa”:

– O que tem o amor, Nádia?

– É irritante – ela disse. – Sou mais O último tango em Paris, Marlon Brando, te-são. – Sei...

– A sobremesa antes do prato principal.

Falei a ela, então, que isso daí era uma travessura, uma...

– É. Vê se não é o nosso caso escrito – ela disse. Depois ficou quieta, olhando o céu. – Rafa, o Sérgio disse que vai se atrasar, tudo bem?

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ela o agride: “irritante”, ela diz, e logo toma outro caminho, citando O Último tango em Paris, que é justo um filme sobre uma paixão fugaz, algo tão distante do amor quanto ela aparentemente está do marido.

Quando o narrador diz que aquilo era uma “travessura” (também o tema do filme), Nádia é rápida em lembrá-lo que eles já tiveram uma paixão fugaz como a do personagem de Marlon Brando; ou seja, suas falas são carregadas de segundas intenções.

Nádia busca (deseja) o passado através das lembranças comuns entre ela e Rafael, mas este, por outro lado, quer (aparentemente) é deixá-las no passado.

O diálogo transcrito acima, portanto, cumpre um papel importante no conto. Representa a intenção de Nádia em forçar uma lembrança e, com isso, reacender uma paixão adormecida.

Terceira dica: evitar diálogos como mera exposição ou apresentação do personagem. Se o narrador quer informar que o personagem tem quinze anos, a idade deve ser apreendida do texto. Um diálogo como este soa-nos artificial:

– Olá, quantos anos você tem? – Olá, tenho quinze anos.

Parece (mas poderá ter outro significado a depender do contexto) que o narrador usou-o apenas para cumprir uma tarefa, uma informação presenteada ao leitor: a idade.

Tento evitar diálogos meramente expositivos, seguindo esta dica, porém uso em algumas situações.

Como esta, em “Um céu cor-de-rosa”:

– Quê que vai ser? – ela disse.

– Macarrão, te apetece? – eu disse entregando-lhe o copo. Depois abri a cerveja na mão e bebi um gole.

Num conto onde os diálogos são, eles próprios, a força propulsora da trama, é inevitável que eventualmente pretendam nada mais que informar algo ao leitor, como o prato do jantar para o qual o personagem foi convidado.

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Após as incontáveis revisões, os diálogos meramente expositivos são os que sofrem maior número de cortes. Devem restar apenas os essenciais ao desenvolvimento da trama, os que dizem realmente algo sobre os personagens e, também, fazem a trama andar em direção ao desfecho.

Entretanto, eventualmente uma que outra fala servirá para informar ao leitor que prato será servido no jantar, ou que idade tem personagem.

Em 19/02/2013, havia escrito este diálogo, em “Um céu cor-de-rosa”:

– Quê que vai ser? – ela disse.

– Macarrão, te apetece? – eu disse, entregando-lhe o copo. – Muito.

Resolvi cortar o “muito” de Nádia e fiz com que, no seu lugar, tocasse o celular do personagem:

– Quê que vai ser? – ela disse.

– Macarrão, te apetece? – eu disse entregando-lhe o copo. Depois abri a cerveja na mão e bebi um gole.

De repente o celular dela tocou. Ela disse licencinha, foi atender no gramado e eu fiquei ali, me embalando, olhando seu reflexo distorcido na porta envidraçada.

Quis evitar que a fala durasse mais do que o necessário para dizer, apenas, que o jantar seria macarrão. Esse foi o limite da informação. O “muito” pareceu-me um excesso, porque o verdadeiro desejo de Nádia (a essa altura o leitor bem sabe disso) não está voltado à comida, ou ao evento “jantar entre velhos amigos”, mas à pessoa do narrador.

Daí vemos que, num diálogo, atrás de uma fala explícita, pode haver uma segunda intenção, um desejo velado, uma outra intenção, uma fala sugerida. O diálogo, no papel de motor dramático da história, deve ser capaz de, ao mesmo tempo em que faz a trama andar para frente, conferir identidade aos personagens, diz Prose: “Em toda a obra de [Henry] Green, o diálogo fornece tanto texto quanto subtexto, permitindo-nos observar o amplo espectro de emoções que seus personagens sentem e exibem, o modo como dizem e não dizem o que têm em mente, como tentam manipular seus cônjuges, amantes, amigos e filhos (...)”.

7. Identidade

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No começo da escrita, quando estou iniciando um conto, emprego uma busca. É a busca por uma identidade para o narrador e para os personagens, e que somente é alcançada graças a um trabalho demorado e de muita reflexão. Não surge de pronto. Esse processo pode às vezes durar dias, meses ou anos.

Minha busca pela identidade consiste em ir descobrindo, aos poucos, sem pressa, durante a escrita (e não apenas o ato de escrever, mas também o de pensar o texto), quais são as circunstâncias da vida desses personagens e narradores. São essas circunstâncias – quando encontradas – que darão a eles a condição de sujeito único no mundo.

Vejamos algumas circunstâncias sobre Carlos, o narrador de “O cheiro triste das bergamotas”:

Idade:

Sua história concentra-se na perda do pai há tempos. Agora, entretanto, com a chegada de Bebeto, o novo namorado da mãe, ele começa a ter novas esperanças em conviver com uma figura paterna. O narrador deseja um pai. Ainda que por um pai inventado, como ele diz.

A história é contata por um narrador infantil. Na versão final do conto, o narrador não diz expressamente qual a sua idade, como o fez nos meus primeiros rascunhos. Ele dizia assim: “agora que fiz treze anos”. Na versão final resolvi que a idade seria apenas sugerida. Tentei fazer com que as ações, os sentimentos, a visão de mundo do narrador parecessem verossímeis frente às ações, aos sentimentos e às visões de mundo próprias de uma pessoa de aproximadamente treze anos, sem que ele precisasse dizer: “tenho treze anos”.

Carlos conta sua história, e o faz com uma voz ainda imatura, portanto a partir de um ponto de vista mais fragmentário do que seria se a história fosse contada pelo personagem já adulto. E começa explicando a forma como enxergava o novo namorado da mãe, o Bebeto, antes de conhecê-lo de fato:

Quando a mãe disse que andava de onda com um cara, e que esse cara se chamava Bebeto, logo imaginei um homem gordo. Que nem o Bud Spencer. Por causa da letra bê de Bebeto.

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parágrafo. Num tom de voz mais culto essa repetição seria impensável. Outro elemento são as referências de entretenimento da época: a menção de um ator de filmes norte-americanos de aventuras, o Bud Spencer, por exemplo, e, mais adiante, o comediante Bill Cosby. E ainda, a linguagem: o termo “que nem” jamais seria utilizado por um narrador adulto, que falasse português culto. Esses elementos indicam ao leitor o seguinte: ouça bem, leitor, se trata de um narrador imaturo. Pode ser criança, mas também pré-adolescente, ainda não sabemos com certeza. Esperemos, ouçamos. Em todo o caso, considere essa imaturidade daqui para frente.

Antena Parabólica:

Carlos narra em uma época específica. E não se furta em indicar qual é. Há elementos no texto que dizem ao leitor. A menção ao ator norte-americano, às telenovelas, ao programa do Bill Cosby, à marca do carro (Belina), à antena parabólica, à moeda corrente, ao toca-discos, tudo isso informa ao leitor que o relato está ocorrendo durante a década de 1990, ou fim de 1980, no Brasil.

Detalhes como juntar dinheiro e vender pedras preciosas são relevantes porque individualizam o narrador, é essa a sua função, a identidade. Mas há que se considerar que o narrador Carlos pertence a um contexto social, a uma dada realidade histórica no Brasil, e isso também o identifica. Gostar de atores e programas cômicos norte-americanos, por exemplo, integra um hábito comum de uma época em que ainda não havia tantas opções, como hoje, de entretenimento. Ainda menos em cidades interioranas, como a do Carlos.

Na década de 1990, no interior do Rio Grande do Sul, apenas pessoas abastadas podiam comprar antenas parabólicas e, através delas, ter acesso a uma pluralidade de canais de televisão. (E por “pluralidade”, entenda-se: mais do que três canais.) Assim, aos domingos, podiam reunir a família na frente da tevê para assistir o programa do Silvio Santos numa qualidade de imagem impensada para a época e lugar.

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contínuo e terrível e a imagem ficava toda preta. Geralmente o volume era baixado, para alívio de todos, até que retornasse o programa.

Possuir antena parabólica, portanto, significava sucesso financeiro e que a família tinha acesso a uma diversão privilegiada frente aos demais. É um dos desejos de Carlos, ter a antena. E toda vez que fala na antena, sua fala é cheia desse desejo.

Dinheiro:

Carlos não tem antena parabólica, mas está juntando dinheiro para comprar uma. A fala de Carlos sobre o dinheiro demonstra-nos que isso, na verdade, é um problema, uma carência. Por isso, o dinheiro assume um papel destacado na história. Carlos conta que a mãe queria fazer de uma pecinha atrás de casa, um banheiro com chuveiro a gás e banheira, mas que o “pai, acho que nunca teve saco, agora a mãe não tinha era dinheiro. Nem para chuveiro, nem para banheira, dinheiro para nada, e Bebeto enchia a peça com mercadorias”. Diz, ainda, que o Bebeto trazia “brinquedos que custavam uma nota”, e que ele, o narrador, juntava dinheiro em uma meia de lã para um dia poder comprar a sonhada antena parabólica, e que lhe agradava “de noite, espalhar os dinheiros pelo edredom e ir fazendo os pares: as notas de um com as de um, as de dez com as de dez... Fingia que era rico, milionário, que nem um homem da minha cidade”. Carlos ainda confessa que era fã de juntar dinheiro, e para isso vendia pedrinhas na mureta. Enfim, não é gratuitamente que o dinheiro tem relevo em tantas passagens do conto, sua falta é uma das dores que o faz ter vontade de falar.

Música:

Há outros sentimentos, que não retratam propriamente uma dor, mas também fazem da narrativa de Carlos um relato urgente.

A alegria, por exemplo.

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O trecho que transcrevo a seguir, por ser um momento de alegria, de felicidade, acaba assumindo inclusive um ritmo menos pausado, porque lhe é menos dolorido e mais fácil de falar:

Bebeto levava a mãe até o meio da sala. A mãe perdia o peso, virava um algodão. Então eles se olhavam, se encaixavam um no outro e começavam a dançar as músicas que ele trazia lá de cima: Pelotas, Rio Grande, Porto Alegre... Nessas, os cantores até chiado falavam, era uma de só tchi tchi tchi. Dançavam. O tapete às vezes freava a mãe quando as sandálias se atrapalhavam no ritmo e não me agradava isso de ver ela se tropeçando, não. Já o Bebeto, puxa, ele era firme no bailado, o Bebeto era lindo de se ver. Ia para um lado, ia para o outro, dava mil voltas faceiro na sala. Bonito. Os dois magrinhos dançando. Bebeto pouco menos, mas a mãe era tão magrinha que eu podia enxergar ela quebrando como uma bolacha maria quando se curvava para trás. Eu assistia tudo, achando engraçado. Mas de vez em quando Bebeto bolinava ela por cima do vestido e aí me vinha uma vontade enorme de lhe dar uma surra de pau, fosse um tiquinho mais velho eu lhe dava. Daí a música parava e os dois ficavam lá, acho que não querendo nunca mais desgrudar os abraços. Colados. Então a mãe descansava o rosto no ombro dele e eu até palma batia.

Localidade:

O leitor sabe como é a cidade onde Carlos vive porque ele próprio a descreve como um lugar afastado, ermo, rodeado de campos e árvores. Mas o leitor não sabe, a partir dessas descrições e somente a partir delas, qual o seu nome e onde fica na realidade.

O nome da cidade não me parece essencial ao conto. Embora tenha em mente a minha cidade natal ao escrever, no conto ela já é outra. Eu a modifico: ponho lugares ermos onde não há, pobreza onde não há e nem houve, quando falo da infância, e às vezes chego a fazer transferências de localidades: levo um bairro para mais perto da BR, e outro para mais longe, e assim por diante.

No conto, quis valorizar o “como” – ou seja: a descrição do ambiente não de uma posição objetiva, cartográfica, mas a partir do estado de espírito do narrador – a despeito do “o quê” real, verificável nos mapas políticos.

Se o narrador disser: minha cidade é esta, dando o nome, o leitor, querendo, encontrará no mapa muitos erros de verossimilhança externa. Mas se o narrador não aponta o mapa, não nomeia a localidade, apenas a descreve ao seu modo, conforme seu ponto de vista, ainda que dê pistas sobre suas referências reais, livro-me (eu, autor) de tais provações.

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Ficava imaginando esse santo, o Nunca. Para mim era igualzinho a São Francisco – careca, inclusive. O único santo que eu conhecia de ver e não de só ouvir a mãe falar nas orações, que ela tinha uma foto do São Francisco num porta-retratos e era ali onde falava as orações dela. Eu imaginava isso, mas no fundo sabia que São Nunca significava outra coisa. Muitas. Porque muitas coisas na minha cidade só aconteciam no dia desse meu santo careca. A parabólica, as faíscas na tevê, o rádio em castelhano, bota na caderneta, menino Carlos, vai render.

E neste, mais adiante:

Era um domingo de tarde. Eu estava tocando bola com o Mazaropi. Os barulhos que se ouviam eram dos carros que de vez em quando passavam na BR sem se darem ao trabalho de entrar para conhecer a lagoa, nem mesmo ao trabalho de só olhar para o lado e ver que ali havia uma cidade.

Uma cidade onde eu moro.

A região é o que isola Carlos do resto do mundo e o faz ter pensamentos como esses. Sempre que menciona a cidade – dizendo, antes, “minha”, como numa atitude de proteção – há uma qualidade isoladora a acompanhando: seja por causa do dia de “São Nunca” dito por Bebeto, em que o próprio enigma sobre o nome do santo o faz refletir sobre o isolamento, seja por causa da proximidade do chalé à rodovia (BR), onde os carros passam sem o menor interesse pela cidade e sua lagoa e, justo porque tudo isso integra a identidade do menino, é um “menor interesse” dos outros sobre ele próprio.

Outro trecho em que a localidade se faz muito forte na narrativa de Carlos é quando este lembra o padrasto mostrando-lhe, com o dedo para fora do carro, o que existia para lá dos limites da cidade. “Mais campo, o mar, a África...”, e diz o narrador em seguida: “Bebeto estendia o braço para fora do carro, o dedo mostrando qualquer lugar lá longe. Depois vinha o Japão, e depois do Japão, fazendo a volta, vinha aqui mesmo”. Ora, Carlos sabe muito bem que o mundo não é tão pequeno assim, como queria mostrar o dedo do padrasto. Mas essa lembrança é lúdica e traz um relâmpago de felicidade à narrativa. “A vida”, ele poderia dizer, “não era tão ruim de se viver aqui na minha cidade, veja como prova, leitor, esta cena que lhes mostro.”

8. Esfericidade

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Entretanto, conto é narrativa; fotografia não.

A fotografia, por si só, não é capaz de narrar uma história, compor um enredo. Pode, sim, sugeri-los a partir da imagem congelada, e uma sequência de fotografias talvez desenvolva uma narrativa, basta que o autor as organize, no tempo, como uma série de imagens inter-relacionadas. Porque narrar é manipular o tempo.

O que a metáfora de Cortázar nos diz é o seguinte: o conto (contemporâneo) obedece a uma norma, e que se chama “brevidade”. Aqui, uma noção de limite, enquadramento, escolha estética – e aí a comparação é perfeita.

A narrativa – curta ou longa – requer a passagem de tempo. Tempo de leitura e tempo ficcional.

O tempo de leitura é cronológico. Já o segundo, é subjetivo, depende da percepção sobre o tempo do narrador, e é este olhar do sujeito sobre o tempo real que faz o tempo real capaz de ser imitado no texto.

Quando Cortázar diz que um conto com mais de vinte páginas traz consigo já um problema de gênero, fala do tempo de leitura: “o conto parte da noção de limite, e, em primeiro lugar, de limite físico, de tal modo que, na França, quando um conto ultrapassa as vinte páginas, toma já o nome de nouvelle (...).

Vinte páginas, no entanto, nada mais é que uma alusão à condição fragmentária do conto, à brevidade. O conto é uma “corrida contra o relógio”, ele diz, que elimina “todos os elementos privativos da novela e do romance, os exórdios, circunlóquios, desenvolvimentos e outros recursos narrativos”.

A esta máxima economia de meios, Cortázar chama de “esfericidade”.

Edgar Allan Poe diz algo semelhante. Conforme Poe, um relato breve – em cujo conceito inclui-se o conto contemporâneo – deve ser lido em no máximo uma hora para que não seja quebrada a “unidade de efeito”.

Poe preocupa-se com a quebra de atenção do leitor. Diz que a “unidade de efeito”“não pode ser totalmente preservada em produções cuja leitura não possa ser feita de uma sentada. (...) Uma hora de leitura é a medida ideal para que a unidade de efeito não seja quebrada.”.

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pertencer mais ao mundo do autor do que ao mundo do conto, seja por um simples excesso, quando então o conto estaria se aproximando de gêneros como o romance ou a novela.

Cortázar diz que o conto contemporâneo possui uma forma fechada. Interessa ao conto somente aquilo que lhe diz respeito. Tudo o que provenha do meio exterior ao do conto, ele diz, deve ser mantido fora do conto. Cortázar refere-se ao que Horácio Quiroga chamou, no Decálogo do perfeito contista, de “pequeno ambiente”. Diz Cortázar: “A noção de pequeno ambiente dá seu sentido mais profundo a esse conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que em outra ocasião chamei de sua esfericidade; mas a esta noção une-se outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido um dos personagens, ou seja, a situação narrativa em si deve nascer e se dar do interior para o exterior, sem que os limites do relato sejam traçados como quem modela uma esfera de argila. Em outras palavras, o sentimento da esfera deve preexistir de algum modo ao ato de escrever um conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, existisse implicitamente nela e a levasse à sua tensão extrema, o que constitui justamente a perfeição da forma esférica”.

Ao escrever, criamos o mundo interno do conto. Damos a este mundo do conto apenas o que interessa à história considerada em seu curto momento de tensão. É claro, o autor pode ser conhecedor de outros dramas do personagem que não apenas o relatado no conto, entretanto, por ser o conto uma corrida contra o tempo, reunir uma pluralidade de conflitos em “uma hora” de leitura acarretaria também uma pluralidade de lacunas, de nós não desatados adequadamente, e o conto, ao fim, não teria aquele efeito arrebatador que Cortázar, sabiamente, compara ao knockout do boxe.

A esfericidade pode ser alcançada, a começar, com uma boa imitação do tempo.

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fragmentos de tempo deixará de fora (e a atividade estética é essencialmente esta, escolher), para assim organizar no tempo delimitado do conto apenas aquilo que serve ao seu propósito.

Dada essa dualidade do tempo – subjetivo e objetivo – é possível em literatura a sua manipulação. Sua imitação. Um ano pode ser representado em um minuto de leitura, ou mesmo o inverso: um minuto pode ser representado em uma hora de leitura.

Há uma verdadeira deformação do tempo real através da forma como o narrador o enxerga, considerando seu estado de espírito e intenções. Mário Vargas Llosa explica esse fenômeno referindo-se ao conto “Um incidente na ponte de Owl Creek”, de Ambrose Bierce:

“(...) um fazendeiro sulista que tentou explodir uma ferrovia está prestes a ser enforcado em uma ponte. A história começa quando a corda aperta o pescoço do infeliz, à volta de quem se reúne um pelotão de soldados encarregados da sua execução. Quando, porém, é dada a ordem que irá pôr fim à sua vida, a corda rebenta e o condenado cai no rio. Nadando, ele alcança a margem e consegue escapar ileso das balas que os soldados disparam da ponte. O narrador onisciente narra quase em uníssono com o pensamento de Peyton Farquhar, que acompanhamos em sua fuga pela mata, com os soldados atrás deles e relembrando os episódios de seu passado. O fugitivo se aproxima da casa em que mora, onde o espera a mulher que ele ama e na qual supõe estará a salvo. A narrativa é angustiante, assim como a malfadada fuga. A casa está lá, a vista, e o perseguido vislumbra afinal o perfil da esposa. No momento que vai abraçá-la, o pescoço do condenado é apertado pela corda que começara a arrebentar no início do conto, um ou dois segundos antes”.

No exemplo, o tempo que o pensamento do personagem leva durante o trajeto de fuga aproxima-se mais ao tempo que o leitor leva para ler o conto do que ao tempo real do personagem. Todavia, são poucos os segundos que a corda precisa para enforcar o personagem narrador. Cinco segundos, talvez. E aqui, portanto, o tempo representado é muito menor do que o tempo de leitura – não empreendemos a incrível façanha de ler o conto em cinco segundos, embora o personagem pense toda a trajetória em cinco segundos. Mais verossímil que o leitor leve quinze minutos para ler os cinco segundos que a corda necessita para enforcar o personagem.

Trago o meu conto “Gosto de vinho” para ilustrar este tema, já que em muitos momentos, enquanto o escrevia, pensei estar traindo a esfericidade de Cortázar.

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Suponhamos que essa trajetória completa leve aproximadamente uma hora: é o tempo que será imitado no texto. O trabalho do narrador consiste, então, em descobrir quais fragmentos nesta linha contínua de tempo serão essenciais à história, e assim, operando suas escolhas estéticas, transformar essa um hora em uma hora verossímil quando possível de ser lida em apenas quinze minutos.

Isso demanda algumas ações: cortar, eliminar passagens, lançar mão de técnicas como o sumário e a cena.

Em “Gosto de vinho” são, aparentemente, duas histórias. Para contá-las, intercalando-as, o narrador inventa uma espécie de chave de mudança que no texto é representada pelos espaços em branco. São silêncios. Uma história é esta: entre Rafa e Ana, no cais; a outra: entre Rafa, Gordo e Ana, no pátio de casa. Quando passa de uma para outra, o narrador silencia e o leitor então é avisado de que o fragmento seguinte retomará o anterior. No desfecho, as duas histórias unem suas pontas e o conto acaba.

O que ocorre durante os silêncios é omitido. De propósito, o narrador deixa pedaços de tempo fora do conto e assim cria as dimensões do “pequeno mundo” de Quiroga. Ele age cortando, silenciando, selecionando. É igual à vida real. Na vida real, apenas narramos o que foi importante, o que significou, deixou alguma marca. Na ficção é igual. E é bom relembrar a comparação que Cortázar faz entre o conto e a fotografia. Não é apenas uma fotografia, o conto, mas sim uma fotografia que, necessariamente, signifique. O narrador apenas narra o que simbolizou, transcendeu o simples recorte de vida. Os fragmentos de tempo ordenados na trama são, portanto, fragmentos que de alguma forma – e lidos em conjunto – significam. E os fragmentos esquecidos são esquecidos porque nada significaram ao narrador.

O narrador deverá fazer escolhas. Ele está fadado a escolher a todo o momento, esta é a atividade estética. Quem escolhe, deixa de fora, esquece.

Gosto de pensar que a ficção se constrói assim, sobre esses momentos esquecidos, sobre esses silêncios. Silêncios que, muitas vezes, ao contrário do que disse há pouco, são significativos, ainda que sejam uma ausência de fala. São silêncios eloquentes, como no caso da história cifrada de “Um céu cor-de-rosa”, em que os silêncios são intencionais para, assim, dizer algo, sugerir algo: o subtexto.

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porque, segundo sua percepção, não tem nada significativo a falar durante este período.

Disse que, em “Gosto de vinho”, são “aparentemente” duas histórias, porque, na verdade, o narrador conta uma história apenas. Trata-se do fragmento de um dia – uma hora, como supus. Nesse dia ocorreu um fato marcante: a morte do cachorro Floqui. E Rafael vê-se então obrigado a enterrá-lo, auxiliado por Ana, a menina que é sua cuidadora, e pelo amigo, o Gordo, que aparece de repente e dá a notícia, retirando Rafael do estado de inércia.

Rafael é um pré-adolescente que sofre a ausência recente do pai. É uma pessoa sensível. Tem uma doença nas pernas que não consegue dizer exatamente qual é, então diz apenas que imagina um chiclete colado nos ossos. Mas é por causa dessa doença que Ana está ao seu lado, para auxiliá-lo, e Rafael acaba sentindo uma forte atração por ela.

São esses dramas do personagem que o fazem falar.

Se for pensar que à esfericidade pede, necessariamente, a eliminação de digressões, “Gosto de vinho” não seria um conto. Seria o esboço de uma novela, quem sabe.

Aqui, entretanto, as digressões têm uma função, e por serem breves não chegam a desconcentrar o leitor, nem a afrouxar a “unidade de efeito”. A função é o aprofundamento dos conflitos do protagonista, e assim mostrar que sua tristeza é autêntica, e também que suas causas, por si sós, possuem uma beleza independente do conflito externo e superficial: enterrar ou não o cachorro.

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Os sacos de adubo eram pra jogar na plantação de arroz. Naquele ano, o pai tinha pegado um dinheiro emprestado com um homem e andava contente porque enfim ia voltar a fazer as lavouras, e quando o pai andava contente assim, costumava assobiar uma milonga muito ouvida lá em casa no toca-fitas. A milonga dizia: yo tengo muchos hermanos que no los puedo contar. Em português significava que o cantor tinha tantos, mas tantos irmãos, que nem contar todos ele conseguia. Eu já imaginava uma fila de irmãos que se estendia desde o centro da cidade até os campos, depois cruzavam a lagoa, todos de mãos dadas como brincando de ciranda cirandinha, e até por Jaguarão eles passavam, porque eram tantos, mas tantos irmãos que nem se o cara tivesse um binóculo conseguia ver e contar.

Um considerável pedaço de tempo, portanto, foi reservado para que o narrador contasse o seu devaneio ao ouvir a milonga que em castelhano canta um sentimento de cumplicidade, de união latino-americana. É uma canção de Atahualpa Yupanki, músico argentino, e, de fato, é uma canção folclórica muito ouvida na fronteira do Brasil com Uruguai, onde se passa o conto.

A digressão aqui é importante porque o narrador é um sujeito que deseja cumplicidade, a cumplicidade da sua cuidadora, Ana. É um sujeito que passa por um momento de carência afetiva – a ausência recente do pai, a mãe que sofre e, por isso, nem o nota – portanto, a fileira de irmãos que se estende, em sua mente, até Jaguarão, cruzando a lagoa como seres que podem, porque estão de mãos dadas, andar magicamente sobre as águas, é um sonho que representa uma solução. De mãos dadas, o personagem fugiria dali, fugiria de si mesmo.

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9. O enredo

Na Poética, Aristóteles diz que, em uma fábula (que integra a epopeia), há sempre uma unidade de ação. A unidade de ação compreende, segundo Aristóteles, três fases: introdução, desenvolvimento e desfecho.

O conto possui essas mesmas três fases.

Introdução.

A introdução de um conto é o ponto preciso, escolhido pelo autor, dentro de uma linha de tempo sempre maior. A partir desse ponto, o narrador começa a falar. Lembrando o conceito de “esfericidade”, tudo o que está antes desse ponto, em princípio, não importa – ao menos diretamente – à narrativa. Diz David Harris Ebenbach que “A história não deveria começar quando tudo está tranquilo, quando não ocorre nada, quando tudo é parecido a como sempre foi”. A história inicia quando o narrador sente realmente a urgência em narrar. Isso se dá a partir de uma alteração do fluxo normal da vida – uma alteração de ânimo, por exemplo – e então ele sente vontade e diz a primeira palavra.

Mas todo personagem, embora soe um tanto estranho, tem para o autor uma vida anterior ao ponto em que o narrador o introduz. Às vezes, uma vida posterior. Essas “vidas” foram pensadas pelo autor; mas apenas “pensadas”. Essas “vidas” que ficam de fora apenas habitam o mundo dos rascunhos. Sua função foi somente ajudar o autor na compreensão do personagem.

Em “Luz no avarandado”, a história começava com um pequeno sumário onde o narrador explicava, já de início, o porquê de a menina ter ido visitar os tios no balneário, bem como a relação conflituosa entre os tios e os pais da menina. Entretanto, tempos depois, o cortei. O que mais me incomodava nele – além do excesso – era a aparência com os típicos começos de contos de fadas, em que o narrador, uma voz totalmente alheia à história, explica a razão pela qual a história é do jeito que é. Não queria dar essa atmosfera ao conto.

Dizia assim:

Referências

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