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Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

THIAGO CAVALCANTE JERONIMO

FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS

DISCURSIVOS EM

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS

PRAZERES

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THIAGO CAVALCANTE JERONIMO

FIGURAÇÕES DO ROMANCE DE FORMAÇÃO E RECURSOS

DISCURSIVOS EM

UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS

PRAZERES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez

São Paulo

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Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

J56v Jeronimo, Thiago Cavalcante.

Figurações do romance de formação e recursos discursivos em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres / Thiago Cavalcante Jeronimo – São Paulo, 2016.

121 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016.

Orientador: Profª. Drª. Aurora Gedra Ruiz Alvarez Referência bibliográfica: p. 114-121

1. Lispector, Clarice. 2. Literatura brasileira. 3. Romance de formação. 4. Bildungsroman. 5. Recursos discursivos. I. Título.

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À minha mãe – Elaine – pela tal maneira de amar a mim direcionada.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus que é verbo e vive nas minhas orações. Àquele que dividiu o calendário em dois tempos: antes da vírgula, depois dos dois-pontos.

À minha família, que está bem perto do meu coração: Joaquim, Divina, Elaine (o meu mundo começou com um sim: a afirmação que a senhora disse à gestação da minha vida aqui se manifesta, outra vez, em superação), Eliseu, Diego, Stephany e Eduarda.

À minha orientadora, professora Aurora Gedra Ruiz Alvarez, exemplo eficaz e inspirador de profissionalismo. Se para Clarice Lispector “escrever é abençoar uma

alma que não foi abençoada”, para mim, sua orientação ampliou significativa e vivencialmente essa premissa: orientar é abençoar. Obrigado pela atmosfera de milagre que vi nascer em cada sugestão de pesquisa e escrita.

À professora Gloria Carneiro do Amaral e ao professor Ricardo Iannace, membros da banca examinadora, pela crença, sugestões e afabilidade com que participaram e leram este trabalho.

Às professoras que me indicaram os primeiros passos às Letras: Marisa Balthasar Soares e Wilma Rigolon: meu abraço em reconhecimento.

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Agradeço à professora Nádia Battella Gotlib o estímulo que recebi de suas aulas no

curso “Encontros com Clarice”, bem como a leitura do terceiro capítulo desta dissertação e sugestões.

A todos os meus queridos que me auxiliaram no decorrer dos anos, e em particular aos amigos que participaram mais de perto do processo desta escrita que aqui se materializa: Leandro Parreira, Wesley Oliveira e Igor Magalhães; Kátia Medeiros, Sandra Fliess e Keyla Kenya; Eliana Zuanella, Edson Santos Silva e Wallas Jefferson de Lima; Danielli Morelli, Luciana Luciani, Camila Concato, Danielle Ojima e Elaine Viacek; Danilo Castro, Paulo Roberto Farias e Mario Leão; Daniel Frateschi, Mari Pereira, Rita Barbosa e Aguinaldo Campos; Geruza e Eládio Amado; Mercedes e José Olivar; Inês e Alana Queiroz; Diógenes de Oliveira, Ivo Yonamine, Lúcio Henrique, Mauro Teixeira, Lilian Gomes e Meire Mineo.

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Ah, ter de prosseguir nesse aprendizado que se prolonga desde tempos imemoráveis, e que poderá cessar um dia abruptamente, como uma lâmpada que de repente se apaga, e muito da tarefa ainda terá restado a ser feita. E isto, sem glória, mesmo a pobre glória de puramente existir, mas existir integralmente, em todas as direções, com todas as forças, intensamente. Intensamente, como um grito que leva em si toda a carga, todo o fulgor, o fulgor da mistura de graça, de acertos e até mesmo de desatinos.

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RESUMO

A importância da renovação narrativa trazida por Clarice Lispector é inegável, não obstante a dificuldade que se interpõe, desde sua estreia, em enquadrá-la nos protótipos da literatura nacional. Busca-se nesta pesquisa uma intervenção valorativa acerca do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, um texto em simbiose com todo o processo escritural da autora. Examina-se a trajetória da protagonista Loreley na sua busca de ser e estar no mundo, sua construção identitária desencadeada numa consciência de liberdade íntima e social. As análises interpretativas alcançam a fortuna crítica de Clarice Lispector; as epígrafes desse romance; a reformulação do romance de formação alemão – Bildungsroman – à realidade do corpus; as contribuições de Mikhail Bakhtin acerca dos recursos discursivos inscritos na narrativa e as variantes do diálogo socrático; a junção do corpo da protagonista em interação com a natureza.

Palavras-chave: Clarice Lispector. Literatura brasileira. Romance de formação. Bildungsroman. Recursos discursivos.

ABSTRACT

The importance the Narrative of Renewal brought by Clarice Lispector is undeniable, despite the difficulty in framing it in the prototypes of the national literature since her debut. This work searches an evaluative intervention on the novel The apprenticeship or the book of delight, a text in symbiosis with all the entry process of the author. It examines the trajectory of Loreley, the protagonist, in her search for being in the world and her identity construction triggered in an intimate and social freedom consciousness. Interpretative analyzes reach the critical fortune of Clarice Lispector; the epigraphs of this novel; the reformulation of the German Novel of Formation -

Bildungsroman - the reality of the corpus; the contributions of Mikahil Bakhtin about subscribers discursive resources in the narrative and the Socratic dialogue variants; the interaction with the protagonist's body protagonist with nature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES ... 15

CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA FORMATIVA DE CLARICE LISPECTOR ... 37

2.1 AS EPÍGRAFES DE UMA APRENDIZAGEM ... 40

APOCALIPSE ... 41

AUGUSTO DOS ANJOS ... 44

PAUL CLAUDEL ... 47

2.2 O LIVRO DOS PRAZERES E O BILDUNGSROMAN ... 50

2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LÓRI 63 2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES ... 67

CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES ... 86

3.1 PRIMAVERA/VERÃO ... 88

3.2 OUTONO ... 97

3.3 INVERNO ... 99

3.4 PRIMAVERA ... 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 111

REFERÊNCIAS ... 114

DE CLARICE LISPECTOR ... 114

ACERCA DE CLARICE LISPECTOR ... 115

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INTRODUÇÃO

Acharam por bem dar-me uma caneta de ouro. Sempre escrevi com lápis-tinta ou, é claro, à máquina. [...] com caneta de ouro eu cairia no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez faiscante e implacável do ouro? [...] contanto que a caneta escreva, qualquer uma serve.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

as palavras também têm caminhos por dentro, há que percorrê-los.

Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores

Clarice Lispector é a autora que em todo seu processo criativo permitiu que estudiosos estabelecessem novos conceitos referentes à linguagem literária. Se comparada à figura mítica de Midas, o rei dotado do poder de transformar tudo o que estivesse ao alcance de suas mãos em ouro, a escritura clariciana, com seus desdobramentos inerentes às esferas em que atuou, modificou em amplitude satisfatória o processo criador da produção literária brasileira à sua época, isto é, de 1943, com o surgimento de Perto do coração selvagem, seu primeiro livro, até com seus textos publicados postumamente, 1977, Um sopro de vida, A descoberta do mundo, e tantos outros textos que têm surgido no decorrer de investigações acerca de suas produções.

Segundo Antonio Candido, a contribuição de Clarice Lispector à literatura nacional, já em sua estreia, vale-se pelo fato de que a escrita inovadora da autora “[...] soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm [sic] mais do que sons ou sinais” (CANDIDO, 1970, p. 131). Transformação intrínseca nos romances, novelas, contos, entrevistas, crônicas, literatura infantojuvenil, textos inclassificáveis sob a norma vigente de literatura, isto é, em todo o percurso de escrita no qual a produção lispectoriana se firmou. Desta forma, a ficção da autora passeia por diversos gêneros literários e discursivos, modificando-os em novidade de sentidos, valorando-os com significações além de seus paradigmas.

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Clarice tinha ciência de que sua escrita era de cunho transformador1. “Sei que o romance se faria muito mais romance de concepção clássica se eu o tornasse mais atraente, com a descrição de algumas das coisas que emolduram uma vida, um romance, um personagem, etc2. Mas exatamente o que não quero é a moldura” (LISPECTOR, 1999a, p. 271).

Dentro desse processo de narrativas que se erigem para registar o percurso de uma escritora que ousou ficcionalmente uma postura criativa sem rédeas, convenções ou

“molduras”, pode-se aludir ao seu livro de estreia, Perto do coração selvagem (1943), bem como ao escrito inclassificável Água viva (1973), alcançando em primazia no corpus desta dissertação o texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

A elaboração da presente dissertação tem por objetivo analisar o processo constitutivo da protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, procedimento de construção identitária que desvela de modo significativo a natureza peculiar desse romance de Clarice Lispector, publicado em 1969.

Considerado por alguns especialistas como um texto malogrado, se comparado às obras Laços de família (1960) e A paixão segundo G.H. (1964), o livro que narra a história de Loreley em uma aprendizagem centrada na personalização de sua consciência, longe de ser um projeto frustrado dentro do percurso pulsante de Clarice Lispector, vinca-se como uma obra palimpséstica, em que textos originalmente publicados no Jornal do Brasil ganham nova dimensão e valor inscritos no romance clariciano.

Dividido em três capítulos, que se somam à Introdução e às Considerações finais, este trabalho focaliza a produção ficcional de Clarice Lispector concernente ao texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, com a seguinte estrutura: o primeiro capítulo, destinado à fortuna crítica da obra da escritora, atém-se à importância da contribuição literária de Clarice Lispector no panorama da literatura brasileira.

1 Em crônica do Jornal do Brasil, a escritora esclarece: “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance.

No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida. E quando escrevo não é o clássico romance. No entanto é romance mesmo. Só o que me guia ao escrevê-lo é sempre um senso de pesquisa e de descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor, nunca

escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo” (LISPECTOR, 1999a, p. 306, grifo da

autora).

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Recuperando as análises críticas que, a exemplo de Antonio Candido, saudaram a obra de Lispector com prestígio e valoração, este capítulo ressalta o lugar do texto Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres na produção da autora.

O segundo capítulo pontua interpretações acerca das epígrafes referentes ao corpus – paratextos que desvelam o reportório de leitura da escritora e, ao mesmo tempo, preludiam o que sobrevirá na narrativa – e analisa Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres como romance de formação, reconhecendo sua gênese no Bildungsroman, isto é, o romance de formação alemão, mas adaptando-o aos conceitos de romance de formação feminino. O processo formativo de Loreley, a heroína de Clarice Lispector, é examinado sob o viés dos recursos discursivos postulados por Mikhail Bakhtin: solilóquio, diálogo socrático e diálogo no limiar, bem como dos recursos discursivos do kitsch, conforme contribuições de Arnaldo Franco Júnior, e da ironia, na esteira da pesquisa de Marcia Lúcia Vianna.

A abordagem do terceiro capítulo sinaliza uma poética do corpo da heroína de Clarice Lispector. Essa interpretação examina as fases da constituição da protagonista concernentes aos aspectos temporais da narrativa, isto é, persegue a trajetória de Loreley que se consolida durante um ano, abarcando as quatro estações. Desta forma, busca-se uma compreensão de como o corpo da personagem se reorganiza à completude de sua autoconsciência em simbiose com o fluxo da natureza. O alicerce teórico considera as sinestesias condizentes às características de Lóri em comparação ao texto bíblico

Cântico dos cânticos”; as interpretações de Mikhail Bakhtin ao permanente construto do ser humano, bem como as contribuições de Lúcia Pires acerca da andrógina escritura de Clarice Lispector: a integração das personagens desse romance. Sublinhe-se ainda um misticismo heterogêneo à escritura clariciana, isto é, nas letras de Clarice Lispector

o sincretismo religioso tem caráter de “água viva”, flui por entre as diversas religiões,

seja a judaica, a espírita, a cristã, crendices populares etc.

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CAPÍTULO 1: A FORTUNA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR E DE UMA

APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer. E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência mortal. A pungência de se ser esplendor, miséria e morte. A humilhação e a podridão perdoadas porque fazem parte da carne fatal do homem e de seu modo errado na terra. O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?

Clarice Lispector, A hora da estrela

Discorrer acerca de Clarice Lispector (1920-1977) pressupõe a análise da vasta fortuna apreciativa liada ao grande ícone feminino da literatura brasileira. Expoente ímpar do cânone literário nacional, a obra clariciana agrega qualidades artísticas que estão além de rótulos e possíveis definições. “Inútil querer me classificar: eu

simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a, p. 13), explicita a narradora de Água viva (1973).

Impelida pela vontade de pôr em letras o clímax das sensações vivenciadas por suas personagens, a experiência pulsante de “estar no mundo”, quer nos contos, quer nos romances – inclusive no grande acervo de crônicas de sua autoria – depara-se com

“a pobreza da coisa dita”3; a concretização da narrativa, para Clarice, pressupõe uma

experiência incompleta, inenarrável. Segundo a autora, “escrever é um dos modos de fracassar” (LISPECTOR, 1999a, p. 60). É por isso que o narrador de A hora da estrela,

Rodrigo S. M., expõe: “A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente

interior e não tem uma só palavra que a signifique” (LISPECTOR, 1998b, p. 11).

Clarice Lispector é uma escritora que conseguiu, ao longo de sua vasta e precursora carreira literária, percorrer, afirmando-se em renovação, os diversos gêneros

3“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior

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literários. Sua primeira obra publicada foi o repercutido romance Perto do coração selvagem (1943)4, que lhe rendeu ensaios de alguns dos principais críticos literários brasileiros da época, uma vez que sua escrita, logo de início, apontava para um abalo nos alicerces da linguagem ficcional do novo romance brasileiro.

Considerado um divisor na estética literária nacional até então produzida nos decênios de 1930/1940, Perto do coração selvagem, escrito entre março e novembro de 19425, introduz uma nova maneira de narrar, uma ruptura em que as noções cristalizadas de tempo, espaço, personagens, a exemplo de José Lins do Rego (1901-1957) e Jorge Amado (1912-2001), tornam-se subjetivadas ao universo lispectoriano de narrar, uma vez que o engajamento da escritora é com – e extrapola – a própria linguagem, como bem observou Antonio Candido. Para o crítico, Clarice fez da linguagem uma aventura em que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que narra” (CANDIDO, 1996, p. XVIII).

Sucedendo aos romances chamados “regionalistas” e “locais”, de origem, sobretudo, nordestina e gaúcha, que anos após a Semana de Arte Moderna de 1922 vincaram à escrita brasileira um processo de documentar a realidade do Brasil em tom de denúncia, num engajamento evidentemente social, mas tendo como mote a linguagem passiva à linearidade narrativa e ao tema (da miséria e escassez), Perto do coração selvagem avança numa perspectiva diferenciada de produção literária: o sertão para Clarice não está condicionado ao local físico, repercute a esfera íntima, tendo como alcance o universal. Eis aí o diferencial revelador das letras claricianas: um mergulho nas profundezas do ser. Imersão, com efeito, centralizando a soberania da palavra. Evidenciando essa premissa, João Guimarães Rosa (1908-1967), nome igualmente importante e inovador na literatura brasileira, num encontro com a autora de Felicidade clandestina expôs suas impressões acerca da escrita de Lispector, revelando que lia Clarice “não para a literatura, mas para a vida” (LISPECTOR, 1999a, p. 135).

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“Em 1944, aos 17 anos, terminou Perto do coração selvagem, seu primeiro romance. Procurou então o crítico Álvaro Lins e perguntou-lhe se valia a pena publicá-lo. O crítico pediu-lhe que telefonasse uma semana depois. Findo o prazo disse-lhe que não entendera o livro e recomendou-lhe que conversasse com outro crítico. Otto Maria Carpeaux. Ela, porém, não falou com ninguém. Dirigiu-se a uma editora importante: o original foi recusado. Publicou-o assim mesmo; fez um arranjo com A Noite: não custeou nada e também não ganhou nada” (BORELLI, 1981, p. 46) Cabe frisar que a 1ª edição de Perto do coração selvagem data 1943, e não 1944, como pontua Borelli (GOTLIB, 2009, p. 193).

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“Num de seus depoimentos, Clarice afirma ter levado muito tempo para escrever este romance: uns cinco anos, no período em que tinha a idade de treze a dezoito anos quando já estava no Rio de Janeiro. Noutros, afirma que levou doze meses, quando, então, conseguiu fazer e reunir as notas. Afirma ainda que

escreveu o livro durante dez “sofridos” meses, quando era aluna da Faculdade de Direito. E para o

jornalista Ziraldo, que lhe pergunta quanto tempo gasta em cada livro, responde: “Depende. O meu

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Carlos Mendes de Sousa orienta a atenção para o não lugar do texto clariciano no conjunto da literatura produzida no Brasil nos decênios acima pontuados, justamente por conter, em sua escrita, traços heterogêneos, descontínuos e instáveis, assim como é a alma humana. Sintetiza que Clarice Lispector “vai aparecer num período em que a afirmação se fazia via localismo, o qual mesmo quando em articulação dialética com o

universalismo, fazia supor necessariamente a especificação da região” (SOUSA, 2012, p. 14). Para o pesquisador: “A novidade de Clarice Lispector advém [... da] assunção do seu lugar a partir de um despaisamento territorial –, esse despaisamento projetar-se-á na afirmação do território-língua, território devindo escrita” (SOUSA, 2012, p. 17).

O estilo clariciano de narrar, que foge às regras lineares e à passividade de tema, tem seu viso logo na infância da escritora. Quando criança, ainda no Recife, Clarice se empenhava em escrever pequenas narrativas, encaminhando-as para a sessão infantil do Diário de Pernambuco, na expectativa de ter uma de suas histórias publicada no referido jornal. Desejo que nunca aconteceu. Na crônica intitulada Ainda impossível, a escritora, que também se debruçou nas narrativas infantojuvenis, publicando cinco livros direcionados a essa faixa etária, explica o porquê da negação às suas produções:

Eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma mesmo, foi jamais publicada. E mesmo então era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. (LISPECTOR, 1999a, p. 449).

Por transmitir em seus textos “sensações” e não apenas “acontecimentos”, Bernadete Grob-Lima aponta que Clarice “assimilou de seus antecessores um procedimento no qual a representação cede lugar à não representação, ao silêncio da escritura” (GROB-LIMA, 2009, p. 228). É de Clarice que ecoa a afirmação: “Meus livros, felizmente para mim, não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo” (LISPECTOR, 1999a, p. 392).

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Também sob essa perspectiva, ao citar a estreia impactante da então jovem de vinte e quatro anos nas letras brasileiras, Massaud Moisés aponta que “[...] Clarice Lispector vinha renovar e, de certo modo, definir a tendência introspectiva de nossa ficção dos anos 30” (MOISÉS, 2007, p. 554).

As observações postas em relevo pelos críticos acima estão em consonância com as impressões que Berta Waldman resgata da fala de Samuel Rawet, ao tecer considerações acerca da tendência introspectiva batizada nas letras claricianas:

[...] o que ocorre com Clarice é um tipo de consciência particular que ela tem. Um modo específico e completamente diferente de ver a realidade. [...] A relação de Clarice com a realidade não é a mesma, por exemplo, de José Lins do Rego. Não pode ser. José Lins tem uma relação com a realidade imediata. Um cajueiro é um cajueiro. Uma fazenda é uma fazenda. Para Clarice, muitas vezes, não é imediatamente um cajueiro. Ela tem que trabalhar interiormente até chegar ao cajueiro como cajueiro, na realidade brasileira, é claro (RAWET apud WALDMAN, 2003, p. XXIV).

E é moldada com essa consciência particular6 que Lispector percorre na escrita as diversas manifestações literárias em que se firma como escritora: romances, novelas, contos, crônicas, peça teatral, literatura infantojuvenil, entrevistas, textos sem classificações definidas, a exemplo do texto poético em prosa Água viva.

Dessa variada produção, foi selecionado para corpus desta dissertação o livro Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Publicado vinte e seis anos após a aclamação do seu primeiro romance, e cinco anos após a consagração de A paixão segundo G.H (1964), O livro dos prazeres chega para dar ênfase ao diálogo na produção clariciana, fato também constatado pela crítica canadense Claire Varin: “Depois do

aprendizado do monólogo pela eremita G.H. no quarto fechado, vem o do diálogo e do desejo” (VARIN, 2002, p. 146).

No início da década de 1960, Clarice Lispector revigora a atenção da crítica para si com a publicação de duas grandes obras; primeiramente, o livro de treze contos saudado com primazia pela academia, Laços de família (1960), que, segundo o escritor sulista Érico Veríssimo, “[...] é a mais importante coleção de histórias publicadas neste país na era pós-machadiana” (apud GOTLIB, 2009, p. 360); e a segunda obra, a já citada A paixão segundo G.H., que, como evidencia Benedito Nunes, no percurso

lispectoriano, esse livro “amplia os aspectos singulares de sua obra, extremando as

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É de Clarice, no livro póstumo Um sopro de vida, a precisa explanação: “A minha vida tem enredo

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possibilidades que nela se concretizam [...] um dos textos mais originais da moderna ficção brasileira” (NUNES, 1996, p. XXIV). Cabe pontuar que ambas as publicações, contos e romance, apresentam uma síntese à escritura de Clarice Lispector, “o estado de

graça”, segundo a autora; e em crítica, o termo se reveste da nomenclatura epifania,7 isto é, “o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação” (SANT’ANNA, 2013, p. 128).

Sem uma voz dissonante a quebrar a unicidade da crítica, a narrativa de G.H., trazida à luz num período sombrio da história do Brasil, uma vez que o país estava mergulhado no autoritarismo da ditadura, é o ápice da consolidação de Clarice no cânone literário brasileiro. A narrativa, em primeira pessoa, tem em seu início e em sua conclusão seis travessões, percurso também observado no livro que aqui é objeto de estudo, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, que traz sua introdução marcada por uma vírgula e seu desfecho assinalado com dois-pontos.

Clarice Lispector dá voz à personagem G.H. para, por meio da paixão da palavra escrita – paixão no sentido de sofrimento – expor a repercussão do clímax vivenciado pela protagonista: o confronto com a barata e o desequilíbriosentido pela heroína.

G.H., ao colocar a barata em sua boca, traz para si, num percurso ritualístico de passagem, como já apontado pela crítica, a hóstia sagrada, o corpo de Cristo. Há todo um aparato emblemático focalizado por Benedito Nunes, O itinerário místico de G.H. (NUNES, 1995, p. 58), em que o resgate de sua essência se dá, em G.H., por meio da

desestrutura, “da perda do eu” desembocada na solidão e, em última instância, ao divino.

Impossibilitada de voltar à rotina, G.H. se apossa das palavras tentando

reformular sua vida, “[...] não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe” (LISPECTOR, 1998c, p. 14). Para tanto, “a personagem, que chega à visão silenciosa onde o monólogo interior se esgota, inventa, para garantir a possibilidade da narrativa, a presença de um interlocutor imaginário que finge segurar suas mãos” (NUNES, 1995, p. 78).

7 Luciana Stegagno Picchio pontua três referências epifânicas em Clarice Lispector: “Epifania

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Ao contrário de G.H., que traz para dentro de sua confissão de sofrimento um interlocutor imaginário, Loreley, a protagonista do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, tem seu interlocutor expresso na tessitura do texto, Ulisses, para em comunhão passarem pelo processo de uma possível felicidade.

Cabe mencionar que, em O livro dos prazeres, há uma supressão no nome da protagonista, que se apresenta por meio da alcunha Lóri, sendo seu nome em extensão Loreley, informação que surge ao leitor, a exemplo da revelação do nome de Macabéa, em A hora da estrela (LISPECTOR, 1998b, p. 43), quando a narrativa já está avançada em seu fluxo, isto é, nos momentos decisivos do texto. Essa observação será distendida no decorrer deste capítulo.

Galardoado com o prêmio Golfinho de Ouro8, do Museu da Imagem e do Som, O livro dos prazeres merece destaque no conjunto da obra da escritora por se tratar de um texto que inova não apenas os atributos narrativos da moderna ficção brasileira, mas, como na observação de Benedito Nunes, Uma aprendizagem é um romance de romances” (1995, p. 81, grifo do autor), isto é, evoca nesse livro traços marcantes de todos os livros até então publicados pela autora, um tributo literário, e dialoga com textos vindouros, a exemplo de Água viva (1973) e A hora da estrela (1977). Acerca dessa questão, Olga de Sá aponta que “os romances de Clarice dialogam entre si, levando-nos a concluir que ela realizou, às vezes, nos traços de suas personagens, a paródia de si mesma” (SÁ, 1993b, p. 181).

Claire Varin articula uma abordagem entre os textos anteriores e posteriores aO livro dos prazeres, isto é, A paixão segundo G.H. e Água viva unem-se por meio do romance de 1969.

Se A paixão segundo G.H. constituía uma narrativa, G.H. nos contando o que havia passado em seu quarto às vésperas, a narradora de Água viva, dez anos depois, nos fala com as palavras ardentes de seu presente, nosso presente de leitura. Oferece-nos fragmentos de sua vida. Mas antes terá sido necessário um aprendizado dos prazeres para aceitar abandonar-se à liberdade de sentir e pensar. Ao cabo de sua iniciação, Lóri – tal como a sereia Loreley, que, de seu rochedo, joga-se no mar – abre via à Água Viva do texto Água viva. [...] O poder da água informe molda todas as formas (VARIN, 2002, p. 152).

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A narrativa de Uma aprendizagem expõe a vida recortada de Loreley, mencionada pela alcunha Lóri, professora primária, numa progressão e amadurecimento como mulher, processo intrincado para o outro protagonista da história, Ulisses9, professor de Filosofia, que, como mentor, não mais imaginário se relacioná-lo ao livro A paixão segundo G.H., é presentificado nessa narrativa com o intento de sugerir a sua companheira, esta, “autodidata” (LISPECTOR, 1998d, p. 113), o conhecimento e a identificação de si pelo amor.

Nadia Battella Gotlib, referência crítica nos estudos biográficos e ficcionais de Clarice Lispector, aponta que a originalidade de Uma aprendizagem não se regula apenas pelo teor de aprendizagem, uma vez que, como os outros escritos de Clarice, “o aprender pela desaprendizagem de saberes estereotipados” já é pano de fundo em suas criações. “Mas esse romance, diferentemente dos demais, narra uma história de

evolução progressiva da mulher que caminha, corajosamente, da dor ao prazer”

(GOTLIB, 2009. p. 491).

É o que pontua Berta Waldman. Acunhado pela crítica de “livro de experiência”,

Waldman esclarece que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres

se compõe da aprendizagem que nela vai tomando forma. Nisso é semelhante à A paixão segundo G.H. Mas a aprendizagem aponta em cada um dos romances para caminhos opostos. Enquanto em A paixão segundo G.H., G.H. se submete a uma desaprendizagem das coisas humanas, O livro dos prazeres é uma recuperação corajosa do sentido da existência humana (WALDMAN, 1992, p. 67).

Se a experiência vivenciada por G.H. a dimensiona à negação “da perda do eu”, em Lóri, a “sabedoria de que é feita dimensiona-a para a vida humana. A lucidez que vai adquirindo é tranquila, fora de qualquer espécie de transe” (WALDMAN, 1992, p.

67).

Destarte, O livro dos prazeres, cabe frisar,

pela primeira e única vez, um texto de Clarice situa a entrega amorosa sem reservas, capaz de conduzir à consciência de si no outro e à consciência da própria condição social. É fato único, ainda, que o diálogo tenha a força de aproximar e não separar as personagens (WALDMAN, 1992, p. 67, 68, grifo da autora).

9

Além de ser o título do livro mais famoso de Joyce, Ulisses é também o nome do cão de Clarice e o protagonista da história infantil Quase de verdade. Segundo Olga Borelli, Ulisses era o nome de “um

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Essa aproximação ocasionada pelo diálogo é reconhecida e ampliada por Yudith

Rosenbaum. A crítica pontua que “raros são os finais felizes na obra de Clarice, e poucas vezes, como nesse caso, o diálogo se efetiva como real comunicação”

(ROSENBAUM, 2002, p. 49). Acrescenta que “além dessa diferença, o romance se

afasta do predomínio da introspecção, marca registrada da autora, para abrir-se a uma explicitação maior da vida exterior” (ROSENBAUM, 2002, p. 49).

O processo evolutivo de Lóri, tecido numa narrativa polarizada pelo diálogo10, é apresentado ao leitor de forma destoante11 de todo o percurso romanceiro da escritora, ou seja, Clarice narra a evolução de sua personagem valendo-se de um fio condutor aparentemente perceptível em sua narrativa: progressão e continuidade nos fatos narrados, dando voz, em diálogo, tanto à protagonista feminina quanto ao protagonista masculino. O livro dos prazeres, numa primeira leitura rasa, não se isenta dessa aparente simplicidade de enredo, que, por sua vez, clareia em seus protagonistas, Lóri e Ulisses, traços caricatos de passividade e pedantismo, respectivamente.

Atendo-se à aparente simplicidade de um enredo linear com personagens facetados, Vilma Arêas rotula Uma aprendizagem como o livro “malogrado” e “falhado” de Clarice Lispector. O posicionamento de Arêas é de que “[...] não haveria

erro em se afirmar que Uma aprendizagem é um romance surpreendentemente malogrado, pois que falhado de modo mais complexo que outros textos, sobretudo se compararmos com A paixão segundo G.H.” (ARÊAS, 2005, p. 27). Para a crítica, o ápice da produção clariciana se realiza no livro de 1964; as produções posteriores seriam os escritos produzidos “com a ponta dos dedos”, metonímia utilizada para expressar uma desvalorização dessas obras.

Ainda segundo a ensaísta, “o fio por ventura muito explícito da trama” (ARÊAS, 2005, p. 25) e o processo palimpséstico que permeia a escritura de Uma aprendizagem contribuem para o erro de “tom e composição” que perpassam sua narrativa. “Na verdade, o erro – de tom e composição – é de tal modo evidente e insistente que acaba

10

Olga de Sá, elencando as contribuições de Benedito Nunes acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, conclui que a narrativa em questão “se polariza no diálogo, porque nesse romance duas consciências se reconhecem e, por fim, se comunicam” (SÁ, 1993a, p. 55).

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por fazer sentido, transformando o livro num jogo claro com regras expostas [...] uma espécie de extravio ou equívoco envolve o livro como atmosfera” (ARÊAS, 2005, p. 27, grifo da autora).

O tom errado de Uma aprendizagem, segundo Arêas, seria uma história que se preocupa em narrar o processo evolutivo da personagem que se desprende da dor para elevar-se ao prazer por meio de sua autoconsciência desencadeada no outro, uma história em que a concretização do amor é celebrada; já o erro composicional, em seu entendimento, ocorre pelo fato de Lispector ter se utilizado de outros textos de suas produções na tessitura do livro em questão. A ensaísta aborda como negativa a costura realizada por Clarice, isto é, junção de crônicas no romance. Sua negação alcança até mesmo a pontuação significativa do O livro dos prazeres: A “pontuação supostamente vanguardista que abre e fecha o livro acaba por perturbar e banalizar a expressão”

(ARÊAS, 2005, p. 31).

Postos em síntese alguns dos posicionamentos arrazoados por Vilma Arêas, cabe sinalizar o percurso de Lispector atrelado à esfera jornalística, colocando em relevo traços de sua produção como cronista junto ao Jornal do Brasil. A coluna semanal do referido jornal, efetivada de 1967 a 1973, impeliu a escritura de Clarice Lispector, nessa esfera de escrita, a uma entonação mais pessoal e próxima aos leitores. No entanto, em diversas publicações, a autora assinalava que o que escrevia não era propriamente

crônica: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas.

Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério” (LISPECTOR, 1999a, p. 379). É evidente a tentativa escapatória de Clarice para o novo rótulo de sua produção: “Clarice, a cronista.” Em crônica direcionada a Rubem Braga, a

escritora revela que telefonou para o autor, “o criador da crônica, e disse-lhe

desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?’ E ele respondeu: ‘É impossível, na

crônica, deixar de ser pessoal’” (LISPECTOR, 1999a, p. 381).

Reconhecendo a impossibilidade de se manter neutra às questões de sua vida pessoal, Clarice oferecia ao leitor de sua coluna textos dos mais variados temas, relembrando acontecimentos e experiências próprias, mas sem seguir concomitantemente às formulações intricadas ao gênero crônica12. Por essa razão, a

12 Evandro Nascimento, em seu livro Clarice Lispector: uma literatura pensante, ao pontuar a forma com

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escritora não só rompeu com o modelo tradicional de crônica ou de coluna opinativa, como em sua produção jornalística alternou textos pessoais com apontamentos filosóficos, fragmentos de romances que escrevia na época, entrevistas, e, em última instância, de forma sucursal, textos que em análise poderiam ser nomeados crônicas.

Ao apresentar a crônica Mal-estar de um anjo, na compilação organizada por Teresa Montero, Joaquim Ferreira dos Santos resume o processo criador de Clarice junto à esfera jornalística da seguinte forma:

Clarice, que já não é romancista típica, também se carregava de estranhezas quando escrevia esses textos rotulados de ligeiros. [...] Clarice é sempre a palavra inesperada, aquela que não serve para espelhar uma coisa, uma cena de rua, essas aproximações que o cronista gosta de ter com o cotidiano. Clarice jamais seria cotidiana. Há sempre um milagre acontecendo. Ela quer, nos seus romances, nos

seus contos, em “Mal-estar de um anjo” [crônicas], remexer com as sensações escondidas, desconfortos da alma que não chegam a ter nome ainda, pois estão sendo anunciados pela primeira vez. [...] Clarice deixa de lado o descritivo da crônica comum, e mergulha fundo nas relações com o desconhecido (FERREIRA DOS SANTOS, 2012, p.71-72).

Assim posto, as crônicas publicadas por Clarice evidenciam uma escrita que foge às regras do gênero jornalístico, algo comum ao estilo da autora, que em seu processo criativo fez uso de uma linguagem única, transgressora e revitalizadora. O

“mergulho nas relações com o desconhecido”, isto é, uma abordagem própria ao estilo clariciano, no enfoque recorrente à fala de Ferreira dos Santos, é tensionado em crônica da própria autora com a seguinte explanação:

[Um amigo disse-me:] escreva qualquer coisa que lhe passe pela cabeça, mesmo tolice, porque coisas sérias você já escreveu, e todos os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma questão de honestidade para com o jornal, que é bom, eu não quis escrever tolices (LISPECTOR, 1999a, p. 113).

Outra vertente da produção jornalística de Clarice Lispector vinculada ao fato de que, como cronista, a autora não escreveu banalidades, manifesta-se na preocupação que seu público literário direcionava à romancista Clarice com a seguinte recomendação: Ao escrever crônicas, “seja você mesma”.

Recomendação publicada por Clarice na crônica Perguntas grandes, com o seguinte desdobramento:

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Pessoas que são leitoras de meus livros parecem ter receio de que eu, por estar escrevendo em jornal, faça o que se chama de concessões. E

muitas disseram: “Seja você mesma.” Um dia desses, ao ouvir um

“seja você mesma”, de repente senti-me entre perplexa e desamparada. É que também de repente me vieram então perguntas terríveis: quem sou eu? como sou? o que ser? quem sou realmente? e eu sou? Mas eram perguntas maiores do que eu (LISPECTOR, 1999a, p. 180).

As perguntas grandes pontuadas por Clarice Lispector na crônica transcrita neste corpus evidenciam a preocupação central da narrativa clariciana, seja no âmbito jornalístico, com seus desdobramentos nas entrevistas que Lispector realizou, seja na produção dos seus romances, contos e textos inclassificáveis: o ser em constante indagação a si próprio. Fato, por sua vez, amplamente tensionado na tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.

Os textos Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e Água viva inserem-se no período em que Clarice transitava entre a escrita jornalística e literária13. Edgar Cézar Nolasco analisa essas duas obras, sinalizando as crônicas reescritas pela escritora na composição dos textos supracitados. Para o crítico, esse processo palimpséstico, híbrido, instaura dentro da obra de Lispector “[...] uma prática inteligente da autora de rearticular seus textos já-escritos e transformá-los em um outro, completamente novo e diferente” (2001, p. 261).

Sônia Roncador, considerando esse processo de escrita, discorre que

a hibridização de gêneros narrativos, ou a inclusão de crônicas no espaço da sua ficção literária [... apontam para] o desejo de [Clarice] manter uma certa coerência estilística, e temática, em sua escrita. Nesses textos [Uma aprendizagem e Água viva], a autora procura adaptar suas crônicas às idiossincrasias de sua ficção – não somente ficcionalizando suas crônicas (ou suprimindo delas o “eu” autobiográfico), como também adaptando-as às singularidades de sua prosa artística (RONCADOR, 2002, p. 63).

Reconhecendo a rearticulação proposta por Clarice na tessitura do romance Uma aprendizagem, e indo a contrapelo do posicionamento vincado numa expressão incondicional de Vilma Arêas, uma vez que a ensaísta conclui seu posicionamento negativo acerca de Uma aprendizagem com o vocábulo “amém”, perpassado de

13 Além destes títulos, Uma aprendizagem e Água Viva, durante o período em que foi cronista do Jornal

do Brasil, Clarice escreveu a obra infantil A mulher que matou os peixes; e lançou as antologias

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disforia, extensa parte da crítica aprecia O livro dos prazeres como um livro inovador que se soma à produção sólida e pulsante de Clarice Lispector.

Lúcia Helena Viana, refletindo acerca das discussões formais atreladas aO livro dos prazeres,

[...] como a desenvolvida por Vilma Arêas que o vê “um romance

falhado”, um texto polêmico quanto à composição formal, polêmico

quanto às questões ideológicas, apesar de não se lhe poder negar, contudo, a condição de texto provocador, transgressor, que coloca em

jogo, como ela afirma, “um novo estatuto do texto literário (VIANNA, 1999, p. 157).

Considera que apesar da rica contribuição para fortuna crítica da autora, as leituras de Arêas à época das décadas de 1980/1990 “não deram maior relevo à questão

crucial que sustenta esse livro, no qual se ousa desnudar de maneira radical o mundo da subjetividade feminina” (VIANA, 1999, p. 157). Ainda segundo a pesquisadora,

Clarice ao dar vazão a uma parte do romanesco e da fantasia que recobre as chamadas histórias de amor, que tanto atraem a afetividade feminina, abre lugar para que a mulher se pense e pense no homem como alteridades que precisam atravessar abismos para efetivarem a possibilidade de um encontro (VIANNA, 1999, p. 167).

Gabriela Ruggiero Nor, refutando, também, o argumento de Uma aprendizagem

ser “um jogo claro com regras expostas”, aponta que a afirmação levantada por Arêas,

dentro do percurso narrativo de Clarice, é redutora e “por mais produtivas que sejam as contribuições de especialistas para o entendimento de Uma aprendizagem, o incômodo provocado pelo romance indica a permanência da crítica numa leitura centrada naquilo que o livro apresenta de mais imediato” (2012, p.107). Isto é, “o suposto fio explícito da trama”. Nor atém-se aos nomes dos protagonistas para reforçar a discussão levantada em acerto por Dirce Cortês Ridel, já em 1970, acerca dos elementos paródicos tecidos na narrativa, isto é, “há distanciamento e diferenças entre o enunciado representado das personagens e o enunciado do autor”:

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A partir das reflexões referentes ao teor paródico14 apresentadas por Cortês Ridel e consideradas por Olga de Sá, Terezinha Goreti dos Santos, ao analisar Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres como romance de formação feminino15, sinaliza que diferente do Bildungsroman tradicional, em que a evolução do protagonista (masculino) e do enredo se caracteriza linearmente, no romance de formação feminino há momentos circulares, uma vez que o amadurecimento da personagem é consolidado por epifanias, proporcionando à protagonista avanços e recuos no seu desenvolvimento. Salienta que o

Bildungsroman é um gênero que dialoga intensamente com o meio social; portanto, modifica-se com ele. Além disso, o processo de formação será diferente conforme o protagonista ocupe um lugar mais ou menos privilegiado dentro do seu grupo social (SANTOS, 2006, p. 43).

Portanto, um Bildunsgroman com protagonista feminino será, evidentemente, diferente de um masculino.

Tendo por pressuposto teórico a contribuição de Mikhail Bakhtin (2011) acerca do romance de formação, Goreti dos Santos postula que Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres “corresponde à narração do processo de amadurecimento – à passagem da infância à adolescência, e desta à idade adulta” (SANTOS, 2006, p. 71).

A aprendizagem vivenciada por Lóri implica, justamente, a passagem de um estado a outro.

Lúcia Pires, ao analisar a trajetória da heroína na obra de Clarice Lispector, traçando um paralelo entre Joana, G.H. e Lóri, protagonistas de Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, respectivamente, enxerga na união das personagens claricianas a concretude do mito da Psiqué.

Joana encarnaria o estágio inicial do mito da heroína [pois...] reage diante da vida de forma muito mais apegada ao instinto do que ao sentimento ou mesmo à razão. [...] Por força de sua condição heroica, Joana perde o amor logo após encontrá-lo e é a nostalgia desse encontro que a guiará pelo sofrimento e pela solidão que se seguirão [...] G.H. é o mergulho mais profundo com os monstros primitivos, com a privação, com o delírio. [...] G.H. representa o momento em que a mulher descobre que, após enfrentar o vale sombrio da morte e

14

Lúcia Helena Vianna defende que a fina ironia e a paródia são recursos recorrentes na obra de Clarice e, discordando das posições de Márcia Lígia Guidin, que em sua dissertação de mestrado os relega a um plano secundário, pontua que estes são os principais mecanismos usados em Uma aprendizagem

(VIANNA, 1999, p. 158).

15 Goreti dos Santos dá sequência à pesquisa iniciada por Cristina Ferreira Pinto, que analisou Perto do

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dele voltar vencedora, sua maior bravura será a desistência – por meio dela atingirá a grande revelação. Cabe à frágil e incerta Lóri finalizar esse percurso (PIRES, 2006, 19, 20).

Se atreladas ao mito, Joana vivencia a separação, G.H., a iniciação, e Lóri, o retorno.

Se Joana é aquela que se separa e G.H. é quem se inicia, Lóri é a que retorna, e de diversas maneiras. De imediato, pode-se dizer que Lóri retorna para Ulisses ao fim de Uma aprendizagem. Mas, antes de retornar para Ulisses, Lóri retorna para Lóri como alguém que se extraviou de si mesma, lançou-se à sua própria procura e se reencontrou (PIRES, 2006, p. 220).

Na bem articulada hipótese da pesquisadora, tendo em vista que na trajetória de Lorí a personagem evidencia momentos de separação, iniciação e retorno, isto é, preenche em si os percursos atribuídos ao mito da Psiquê, “Lóri poderia ser a heroína clariciana completa” (PIRES, 2006, p. 221),16 pois, “Lóri termina o que as outras duas começaram e as três se unem em um só destino” (PIRES, 2006, p. 222).

Bernadete Grob-Lima, analisando o percurso das personagens de Clarice Lispector, ressalta que em Uma aprendizagem o processo de amadurecimento se consolida porque o amor é reconhecido em autonomia.

O estado de submissão de Lóri é um obstáculo à realização do amor. Ulisses, o professor de filosofia, não deseja ter ao seu lado uma mulher que aceita o comando masculino. Seu estado de submissão intelectual com relação a Ulisses é uma manifestação dos arquétipos do inconsciente coletivo, dos quais ela terá que se libertar para assumir a vida amorosa. Ulisses espera, pacientemente, o processo de

personalização da consciência em Lóri; uma paciência vigilante, que

não “queima nenhuma etapa”. Ele respeita o tempo de sua amada,

fundamentando-se na sua própria experiência (GROB-LIMA, 2009, p. 62-63).

O processo de personalização da consciência, configurado no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres no empenho de uma mulher para sobressair-se à rotina e repetição imposta pelos atributos de uma sociedade patriarcal, dá-se por meio da experiência amorosa, mas não tem aí seu início e/ou limite; em verdade, “o saber se

efetiva como suporte do prazer”:

Na concepção de Clarice, a realização amorosa depende também do desempenho mental, expoente do amor autônomo, livre da linguagem fossilizada da ancestralidade inspirada no código da ética social. Ela atribui à idealização mútua, assumida corajosamente, um valor que

16

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engrandece o ser, deslocando-o dos pesares recalcados para uma vida deliberadamente nova. Através da experiência amorosa, o homem consegue aceitar-se tal como é, restaurar a linguagem que lhe pertence e definir sua própria condição. Clarice considera que a experiência amorosa gera a linguagem que nos anima a examinar as forças que nos desfalecem quando ouvimos o chamamento de uma inesperada aurora (GROB-LIMA, 2009, p. 214-215, grifos da autora).

Considerando o saber como meio de transporte para o prazer, isto é, “a racionalidade não é uma condição oposta ao sentimento”, a protagonista de Uma aprendizagem é observada por Solange Ribeiro de Oliveira como a única personagem clariciana que, pouco à vontade num relacionamento com seu companheiro, consegue vislumbrar em si uma espécie de “Eva futura”, isto é, uma mulher emancipada, em igual poder de liberdade com seu par, que, antes de sua entrega amorosa/erótica, busca “a

conquista da própria identidade”, por meio da “personalização de sua consciência”. Fato constatado pela crítica por meio da liberdade que o amor ocasiona aos heróis da narrativa. “[...] um amor que não exclui, mas amplia a liberdade de ambos” (OLIVEIRA, 1989, p. 101).

Compete elucidar que a astúcia de um leitor atuante, requisito indispensável, como bem observa Romilda Mochiuti, terá o fito de delegar a ampliada liberdade atribuída por Lispector aos seus protagonistas, enxergando não apenas o “desnudar da intimidade profunda da mulher”, o que já é muito, mas, transcendendo-o, perceberá que Uma aprendizagem “desnuda e reverte a intimidade profunda da estrutura romanesca,

parodiando ou fazendo uma leitura do avesso das convenções teóricas, do mito e da mimesis” (MOCHIUTI, 2006, p. 45).

Mochiuti, considerando a maneira descontínua de narrar e a força poética existente em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, evidencia “uma reinvenção contínua de aprofundamento arrebatador na densidade psicológica e na estrutura romanesca” (2006, p. 46, grifos da autora). Para a pesquisadora, a pontuação de abertura e fechamento do romance que aqui é foco – uma ruptura visível a qualquer regra ou convenção –, juntamente com a aparente falha estrutural da obra, que, em sua leitura, denotam vazios e silêncios, lançam ao leitor uma participação efetiva dentro da

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Ao nomear Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, por meio de sua pontuação perceptível, como um romance que é “o meio do caminho”, Mochiuti salienta que:

A pontuação [...] incialmente é “singular” e significativa, como se

expressasse a cadência poética (travessões, dois-pontos etc.). Os espaços em branco entre as linhas e os pensamentos cuidadosa e pretensamente (des)ordenados servem como mecanismo para insinuar hesitação, pausas, enfim, silêncios significativos que algumas vezes se verbalizam através da inclusão – referências explícitas – ou exclusão – referências implícitas (MOCHIUTI, 2006, p. 50).

É de Clarice, em crônica datada de quatro de fevereiro de 1968, Ao linotipista, a

advertência: “Não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira

assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar” (LISPECTOR, 1999a, p. 74).

Constatando que a ampla significação da pontuação utilizada por Clarice no livro de 1969 vai além da vírgula e dos dois-pontos utilizados na abertura e no fechamento do romance, respectivamente, tendo seu desdobramento em vazios e silêncios perpassados na materialidade de todo texto clariciano, Romilda Mochiuti atribui silêncios, também, ao título duplo do romance: Uma aprendizagem / ou / O livro dos prazeres, disjunção passível de ser interpretada como uma adivinhação, a resolução de um enigma, ou ainda, a decisão de escolha por um dos semas, novamente atribuída ao leitor.

Revisitando as contribuições de Benedito Nunes acerca da desigualdade rítmica,

isto é, “[... a] diferenciação de temporalidade, desde o passado remoto e impessoal, de onde a personagem vem ao passado próximo de um acontecimento que a instala em sua

intimidade pessoal.” (NUNES, 1995, p. 80), Romilda postula que essa desigualdade rítmica reflete uma manobra discursiva, viabilizando uma espécie de esfera lábil do jogo discursivo da aprendizagem, por outro lado, essa cadência rítmica é a identidade da narrativa que a faz destoar dos seus demais livros. Para a pesquisadora, essa esfera de

indecisão da personagem “é instaurada semanticamente na narrativa enviesada pelos

seus pensamentos, que, como outro ponto de desequilíbrio em convivência com a sua percepção no começo do romance, viabilizada a aprendizagem ou a leitura do livro” (MOCHIUTI, 2006, p. 54).

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que essa narrativa é estruturada, com suas pontuações (respirações), na sua configuração de tempo e de espaço, pondo em evidência a participação do leitor em constante atuação de significações.

Leyla Perrone Moisés observa que:

[...] enquanto escritora, Clarice não acredita nem um pouco na

capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser,

para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as

entrelinhas”. O que ela buscava não era da ordem da representação ou

da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem, urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 177).

Arnaldo Franco Júnior lê na poética clariciana, sobretudo após a publicação de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a presença do recurso crítico kitsch e/ou mau gosto. Segundo o pesquisador, a utilização deste recurso discursivo na obra de Lispector contribui para a abertura de uma nova abordagem para com os textos publicados após o lançamento de A paixão segundo G.H., enxergando um recurso crítico da autora em articular sublime e banalidade na materialidade de suas produções.

A identificação dos elementos kitsch presentes na obra de Clarice Lispector evidencia que [...] ela os utilizava como recurso discursivo de caráter argumentativo e crítico. Tal fato abre uma nova perspectiva de leitura dos textos da escritora, sobretudo aqueles que, num primeiro momento, foram considerados por alguns como fracassos (FRANCO JÚNIOR, 2000, p. 32, grifo nosso).

Ao analisar a carga do sentido mítico das personagens de Uma aprendizagem, Vilma Arêas sinaliza que “os nomes dos protagonistas evocam imediatamente figuras heroicas e proezas extraordinárias impregnadas de significado supostamente profundo, que se chocam, entretanto, com as situações ligeiras e banais do romance” (2005, p. 32). Choque que é instaurado quase em uníssono na escrita de Clarice, uma vez que a autora se utiliza recorrentemente dos atributos do cotidiano como momento revelador para uma experimentação maior.

A esse olhar apontado para o corriqueiro, àquilo que é simples e por isso mesmo banalizado, discernindo-o como sumo de uma ascensão necessária, é lícito recorrer a um excerto da compilação de escritos organizada por Olga Borelli, em que Clarice

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sua travessia de aprendizagem do prazer, descobre o impossível no possível, o extraordinário no ordinário.

Em sua pesquisa Do silêncio à liberdade: uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Renata Tavares filia-se ao pensamento clariciano de que o cotidiano é passaporte poético para uma nova experimentação de vida, com a seguinte aclaração:

“Impossível e extraordinário significam aqui a apropriação de si mesma. [...] Essa é a grande experimentação do amor que Lóri viverá: infinito no finito e finito no infinito – liberdade propriamente dita” (TAVARES, 2012, p. 22).E mais: “A realidade não é algo estático a ser descoberto e dito em conceitos. É uma essencial disputa do limite no ilimitado, do ilimitado no limite” (TAVARES, 2012, p. 63).

Centralizando as reformulações existentes no livro clariciano acerca da épica homérica, bem como o mito da sereia, cabe arrazoar os significados dos nomes dos protagonistas e seus desdobramentos. Ao jogar luz no nome em extensão de sua personagem, Clarice acrescenta ao seu texto, intermediado por Ulisses (é Ulisses quem conduz Lóri ao reconhecimento do seu nome)17, o seu significado:

Loreley é o nome de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo poema de Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar... (LISPECTOR, 1998d, p. 98).

A lenda germânica ligada ao nome de Loreley tem sua origem na região rochosa do Reno e, portanto, uma das regiões de maior perigo e dificuldades para os barqueiros.

“Este perigo sempre suscitou fascinação e Loreley foi cantada em diversas versões. A versão mencionada por Ulisses é a do poema “Die Loreley”, de Heine, a partir do qual tenta explicar a beleza do seu nome” (TAVARES, 2012, p. 58).

Ao leitor atuante, fundamentado em Romilda Mochiuti, cabe o desdobramento de significações acoplado ao nome de Loreley e de Ulisses, isto é, as possibilidades de interpretações que o livro em questão evoca e permite para as nomenclaturas de suas personagens.

Renata Tavares direciona um olhar mais atento às possibilidades interpretativas que o nome da protagonista Loreley suscita. Sendo mítico, os significados se distendem em intensidades. É possível agregar à protagonista lispectoriana “[...] significados

17 Carlos Mendes de Souza enxerga no nome de Lóri um anagrama. Segundo o pesquisador, “O nome de

Lucrécia [personagem do romance clariciano A cidade sitiada] deixa entrever um jogo com as letras do

nome “Clarice” que estão lá. Mais elaborado é o jogo que conduz o aproveitamento das letras que

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intensos relacionados à paixão, à sedução, ao perigo, à morte, à busca, ao surpreender-se, ao render-se” (TAVARES, 2012, p. 57-58).

Sereia. Apaixonada. Perigosa. Mortal. Em busca de. Várias são as possibilidades

que definem Lóri em sua “travessia”, em sua pulsão de estar no mundo. Sobretudo, o

apelo intrínseco à condição humana de Loreley, “sua travessia não é outra coisa senão a

necessidade de corresponder ao apelo de Ser e não-Ser – o mistério de tudo. Lóri não busca outra coisa senão transformar-se no que é, originando-se, como a vida, daquilo que ainda não é” (TAVARES, 2012, p. 59).

Ulisses, como mediador desse processo de transformação e aprendizagem, não por ser presunçoso, mas por já estar em travessia consigo mesmo, possibilita e direciona a Lóri uma compreensão de ser e estar no mundo. E é refutando o entendimento crítico de que Ulisses aguça um pedantismo em suas falas, que a pesquisadora complementa:

“Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa experiência intelectual, e

sim de um trato inteligente com a vida, isto é, de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas desvendar seus enigmas” (TAVARES, 2012, p. 61).

Cabe pontuar que o percurso escolhido por Clarice para revelar o nome da protagonista de sua obra A hora da estrela é semelhante ao que é feito em O livro dos prazeres, isto é, a revelação do nome de Macabéa pinta-se aos olhos do leitor quando a narrativa já está avançada em seu fluxo, nos momentos decisivos do texto. A inversão encontrada no texto de 1977 é que a personagem Olímpico de Jesus, ao perguntar o nome da datilógrafa, não compreendendo sua sonoridade, impele à personagem a clarividência de sua nomenclatura. É Macabéa quem complementa a alcunha captada pelo metalúrgico:

– E, se me permite, qual é mesmo a sua graça?

– Macabéa.

– Maca, o quê?

– Béa, foi ela obrigada a completar. (LISPECTOR, 1998b, p. 43).

Seguindo em sua narrativa, Macabéa diz a Olímpico que não sabe ao certo quem

é. Sabe que tem um nome, “Mas não sei o que está dentro do meu nome” (LISPECTOR, 1998, p. 56).

Ao contrário de Olímpico, Ulisses não só complementa o nome de Lóri, como a indaga para além da nomenclatura, uma vez que na visão de mundo de Ulisses, em sua

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Nomear não consegue definir intimamente. É por isso que Macabéa, em diálogo com Olímpico, põe em foco o desconhecimento do que está dentro do seu nome. É por isso, também, que Clarice, já na primeira página de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, relata a solicitação que Ulisses fez à Lóri: “[...] ele dissera uma vez que queria

que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu” (LISPECTOR, 1998d, p. 13).

Assim como Loreley, o nome de Ulisses possui seus desdobramentos. Evocada à épica homérica, a viagem mítica de Ulisses, galardoada com final feliz, é distinguida por fortes tempestades que quebram navios, por perigosos acidentes, por monstros marinhos que ameaçam naufragar as frágeis embarcações e por sereias que, com seus cantos de sedução, atraem os marinhos para a ruína final, o naufrágio. O Ulisses de

Clarice, na imagem focada por Tavares, “é o barqueiro heroico, capaz de resistir ao canto de qualquer sereia” (TAVARES, 2012, p. 63).

Por já estar na travessia, Ulisses é o mentor da aprendizagem, é aquele que consegue desbravar os mares, sublimar suas provações, contornar os apelos de sedução de Loreley, visando à sua chegada ao litoral acolhedor de sua terra natal.

Inegavelmente, a figura de Ulisses remete à travessia, à busca, ao retorno para a casa, para a Terra. Remete ainda à fidelidade de nunca desistir deste retorno. O Ulisses de Clarice demonstra, na busca do amor, a mesma força e persistência do Ulisses homérico: o cumprimento heroico de um destino humano (TAVARES, 2012, p. 62).

Ulisses é o mentor que, mesmo embriagado, desvia-se da sedução imposta por

Lóri: “Já tinha sido desejada por outros homens mas era novo Ulisses querendo-a e esperando com paciência – mesmo quando estava embriagado, o que não lhe tirava o controle” (LISPECTOR, 1998, p. 41).

Como exemplificado, o episódio mítico de ligação entre os protagonistas claricianos é o da passagem de Ulisses pelas sereias, na Odisseia:

O herói manda tapar com cera os ouvidos de todos os seus marinheiros, sendo, porém, o único que escuta o seu canto. Para não se render, amarra-se ao mastro do navio e manda que os marinheiros remem o mais rápido possível. [...] Escutar, aqui, é a questão (TAVARES, 2012, p. 62).

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de si mesma. Sem máscaras, sem maquiagens, sem aparatos de sedução física. E o faz, esperando:

Foi apesar de18 que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso [...] esperarei quanto tempo for preciso (LISPECTOR, 1998d, p. 26).

Aqui há uma inversão no mito, um desdobramento de significações. Na épica homérica, é Penélope quem aguarda o retorno de Ulisses, tecendo e destecendo uma mortalha para seu sogro, na tentativa de murar os gritos de lascívia de seus pretendentes. Cabe o detalhar de seu nome, que, como clareia Adélia de Meneses:

Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (grego: Penelopéia) revela sua vocação: ‘pene’, fio de tecelagem e, por extensão, trama, tecido (daí o nosso pano, do latim, ‘pannus’). E o substantivo grego

“penelope” significa dor. Tudo se explica quando pensamos que ela

vivia na nostalgia (= dor do retorno: ‘nostos’ = volta, ‘algia’ = dor) de

Ulisses, e que o pano que ela tecia (que tem a ver com a morte: era uma mortalha para Laertes, o pai de seu marido) era a garantia de sua fidelidade, como que vedava o acesso de sua sexualidade aos pretendentes que a assediavam. Fidelidade e sedução articuladas (MENESES apud MOCHIUTI, 2006, p. 63).

Sob esta perspectiva, quem tece, na narrativa clariciana, é Ulisses. Tece esperando a aprendizagem de Loreley, sua travessia por entre as “trevas geladas” (LISPECTOR, 1998d, p.45) que a protagonista vivencia no decorrer narrativo. Enquanto espera, tece uma rede discursiva que mortifica – desconstrói – as convenções sociais machistas de submissão feminina em que Lóri se encontra inserida, submissão que é um obstáculo à concretização da aprendizagem.

Ainda sob essa perspectiva de inversão, contrariando a lenda alemã em que a sereia detém para si o aspecto da sedução, a narrativa clariciana transfere a ação de seduzir ao professor de Filosofia: “[...] quem seduz você sou eu. Sei, sei que você se enfeita para mim, mas isso já é porque eu seduzo você” (LISPECTOR, 1998d, p. 98).

Assim posto, os mitos de Ulisses, de Penélope e das Sereias, fabulados na Odisseia, são revisitados em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, mantendo ora os aspectos comuns à narrativa homérica, ora construindo novos sentidos na prosa de

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Clarice19; com isso, comungam do compasso poético lispectoriano, apontado na obra por meio de vírgula, dois-pontos, orações iniciadas com letras minúsculas, frases sem pontos finais, junção de crônicas em seu entrecho narrativo, silêncios estruturais, dentre outros.

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Referências

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