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CAPÍTULO 3: A POÉTICA DO CORPO INTEIRO EM UMA APRENDIZAGEM OU

3.1 PRIMAVERA/VERÃO

Antes da vírgula e do gerúndio que dão início ao romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, salta aos olhos do leitor, como uma espécie de subtítulo do livro, a seguinte grafia:

A Origem da Primavera Ou

A Morte Necessária em Pleno Dia

Tal como a possível disjunção concernente ao título do romance, isto é, a dicotomia existente na nomenclatura da obra Uma aprendizagem / O livro dos prazeres,

a grafia em destaque prenuncia o processo pelo qual a protagonista vivenciará: um ciclo completo com seu início na primavera, passando pelas outras estações, encerrando de forma a regressar na primavera, estação primeira que surge renovada à protagonista.

Durante a trajetória de Lóri, materializada no romance por um período de um ano, a via crucis se apresentará à personagem, e para ressurgir no alcance de uma nova dimensão de sua consciência, a morte como simbologia para a ressureição se fará necessária. “Mas se a origem da primavera é a morte necessária em pleno dia, Loreley a anela, e tal qual Penélope trama sua mortalha” (MOCHIUTI, 2006, p. 76):

Ah como queria morrer. Nunca experimentara ainda morrer – que abertura de caminho tinha ainda à frente. Morrer teria a mesma pungência indivisível do bom. A quem daria sua morte? Que seria como os primeiros calores frescos de uma nova estação (LISPECTOR, 1998d, p. 117, 118).

O processo de morte desencadeado na vida, já aludido nesta dissertação nas análises interpretativas das três epígrafes que compõem os paratextos desse romance, será distendido nas análises sequentes.

Sublinhe-se neste momento as contribuições de Olga de Sá às possibilidades interpretativas acerca da disjunção dos títulos dos romances de Clarice Lispector:

Já se disse que a poética de Cortázar é a do “escorpião encalacrado”, mordendo sua própria cauda. Clarice também trabalha desgastando a linguagem, denunciando o ato de escrever, alertando constantemente a consciência do leitor para o fato insofismável, mas esquecido, de que ele é leitor e ela escreve, isto é, faz literatura, inventa universos de palavras. Tanto o ato de escrever como o ato de ler são questionados, na ficção de Clarice, em agoniado confronto com o ser o viver61 (SÁ,

1993b, p. 20).

Sob esse viés de questionamento, pode-se afirmar que Clarice busca um leitor atuante para se ater aos seus escritos. A nota que abre o romance A paixão segundo G.H. evidencia tal premissa: “Este livro é como um livro qualquer mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada” (LISPECTOR, 1998c, p. 7). O leitor é convidado a pactuar com a escritora, a visitar seu universo de escrita, consciente de que sua criação ficcional, bem como a leitura que a ele é compreendida de sua obra, permeiam o constante confronto da linguagem, ao questionamento intrínseco ao mundo ficcional criado por Clarice, isto é, o leitor atuante de Clarice Lispector

61 Esse confronto materializado na obra de Clarice Lispector pode ser percebido também nos títulos constrativos com que a autora direcionou aos seus romances: “Quase todos os títulos de seus romances exprimem, por meio de uma contradição interna, contrastante (cantra-canto), o sopro vital de seu próprio hálito de escritora: A cidade / sitiada, A maçã / no escuro, A paixão / segundo G.H., O livro dos prazeres / Uma aprendizagem, A hora / da estrela” (SÁ, 1993b, p. 20).

entende que “antes de ser coisa narrada, a narrativa é forma que narra” (CANDIDO, 1996, p. XVIII).

Posto luz aos desdobramentos interpretativos do título do romance, bem como a possível consideração acerca do suposto subtítulo dO livro dos prazeres, o enfoque interpretativo volta-se à interpretação do corpo da heroína Lóri como elemento que contribui para a concretização da sua autoconsciência.

A primeira vez que aparece a palavra corpo no romance aponta para uma Lóri preocupada com a realização do significado do seu nome. Já na primeira linha da segunda página do romance, a grafia corpo se faz presente metaforicamente aludida à “dificuldade de um petróleo rasgando a terra” (LISPECTOR, 1998d, p. 14).

Após a rememoração da fala de Ulisses: “ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse ‘Lóri’ mas que pudesse responder ‘meu nome é eu’” (LISPECTOR, 1998d. p. 13), a personagem é focalizada ante a constatação de que teria um encontro com Ulisses, sua preocupação é: de que forma se apresentaria a ele?: “se o vestido branco e preto serviria”. O ritual de se adornar para o encontro abre espaço para que a personagem tenha uma percepção inicial e, ainda superficial, de seu corpo:

... então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo da terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo – e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra – veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra – sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil – afinal rebentados canos e veias, (LISPECTOR, 1998d, p. 13, 14, grifos nossos).

Ventre, útero, coração. A intimidade sexual e sentimental da personagem é sinalizada já no início da narrativa direcionando ao seu corpo uma contenção dessas duas esferas. O excerto acima revela ao leitor uma Lóri capaz de resguardar seus desejos e sentimentos, submetendo-os à contenção da angústia, à contenção da dor. Entretanto, o corpo da personagem pede expressão para se desprender ou minimizar o abalo da clausura a que está submetido. Com dificuldade, tremendo e abalado, o corpo de Lóri reclama o processo do choro que a protagonista, nesse primeiro momento, tenta conter: “choro seco”.

Se há contenção da passagem da sequidão à torrente de águas, isto é, se a narrativa permeia as estações do ano mediante também a compreensão de que Lóri é

materializada, tem um corpo; como é descrito o corpo de Lóri no processo de sua autoconsciência? “seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que fazia com que Ulisses a quisesse” (LISPECTOR, 1998d, p. 16).

Preparando-se para o encontro com Ulisses, a narrativa põe em cena uma Lóri extremamente preocupada com sua aparência física à visão de seu parceiro.

... escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas enfeitar-se era um ritual que a tornava grave: a fazenda já não era um mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo — como podia um simples pano ganhar tanto

movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno

terraço estavam da seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher: Lóri então pintou cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal feito, passou perfume na testa e no

nascimento dos seios [...] perfumar-se era um ato secreto e quase religioso — usaria brincos? hesitou, pois queria orelhas apenas

delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais: riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de

corça e torná-las secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando

os cabelos para trás das orelhas incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me,

meu amor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o

mais bonita quanto poderia chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta, de braços pendentes, pensativa, iria ou não ao encontro? (LISPECTOR, 1998d, p. 16, 17, grifos nossos).

Embora a personagem tenha escolhido um vestido de tecido pesado, ela está segura de que o seu corpo o molda. Registre-se a atenção também ao exame que ela faz: dos cabelos, dos lábios, dos olhos, das orelhas. Não só a preparação para o encontro segue um ritual, mas também todo o seu corpo composto para esse objetivo se projeta para o fim último – a sedução. A camada semântica dos vocábulos e das expressões em destaque trabalha para criar a isotopia da esfinge que se mostra desafiadora, provocativa, que anseia por amar (“devorar”) e ser amada (“devorada”). A imagem de Lóri neste passo alcança a imagem da mulher amada (a esposa) do Cântico dos Cânticos, de Salomão (por exemplo, o capítulo 7), aludida indiretamente no discurso da personagem. Nesse livro bíblico, o discurso do corpo é marcado por sinestesias que sublinham o desejo:

Quão formosos são os teus pés nas sandálias, ó filha de príncipe! Os contornos das tuas coxas são como joias, obra das mãos do artista. O teu umbigo como uma taça redonda, a que não falta bebida; o teu

ventre como montão de trigo, cercado de lírios. Os teus seios são como dois filhos gêmeos da gazela. O teu pescoço como a torre de marfim; os teus olhos como as piscinas de Hesbom; junto à porta de Bate-Rabim; o teu nariz é como torre de Líbano, que olha para damasco. A tua cabeça sobre ti é como o monte Carmelo, e os cabelos da tua cabeça como a púrpura; o rei está preso pelas tuas tranças. Quão formosa, e quão aprazível és, ó amor em delícias (Cântico dos cânticos, 7: 1 ao 6).

Após o ritual antigo, isto é, o processo de se autoproduzir para um encontro, uma reflexão acerca de proteção é focalizada em Lóri: “Proteção seria presença? Se fosse protegida por Ulisses ainda mais do que era, ambicionaria o máximo: ser tão protegida a ponto de não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde voltar” (LISPECTOR, 1998d, p. 19).

Mas é após ter-se visto de corpo inteiro, embora de relance, que à personagem é instaurada a reflexão de que para ser inteira, indelimitada, seu corpo necessita ligar-se ao corpo de Ulisses.

Por ter de relance se visto de corpo inteiro ao espelho, pensou que a proteção também seria não ser mais um corpo único: ser um único corpo dava-lhe, como agora, a impressão de que fora cortada de si própria. Ter um corpo único circundado pelo isolamento, tornava tão delimitado esse corpo, sentiu ela, que então se amedrontava de ser uma só, olhou-se avidamente de perto no espelho e se disse deslumbrada: como sou misteriosa, sou tão delicada e forte, e a curva dos lábios manteve a inocência.

Pareceu-lhe então, meditativa, que não havia homem ou mulher que por acaso não se tivesse olhado ao espelho e não se surpreendesse consigo próprio. Por uma fração de segundo a pessoa se via como um objeto a ser olhado, o que poderiam chamar de narcisismo mas, já influenciada por Ulisses, ela chamaria de: gosto de ser. Encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não imaginei: eu existo (LISPECTOR, 1998d, p. 19, grifos nossos).

O espelho tensiona na narrativa alguns planos interpretativos condizentes à Lóri. O primeiro se dá pela concepção de sua solidão enquanto pessoa, um único corpo, não unificado com seu parceiro. A personagem se vê só; não totalmente protegida por Ulisses. O limite, a solidão, a pequenez, a finitude humana.

O ato da autocontemplação acarreta, também, a percepção do mistério, da esfinge. Fato que povoa o romance62: “como sou misteriosa.” (LISPECTOR, 1998d, p. 19), “decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar” (LISPECTOR, 1998d, p. 17).

62 Em diálogo com Lóri, Ulisses afirma: “Teus olhos, disse ele, [...] são confusos mas tua boca tem a paixão que existe em você e de que você tem medo. Teu rosto, Lóri, tem um mistério de esfinge: decifra- me ou te devoro. Ela se surpreendeu de que também ele tivesse notado o que ela via de si mesma no

Por último, ver-se de corpo inteiro ante o espelho desencadeia em Lóri um sentimento para além do tradicional mito de Narciso, isto é, “o gosto de ser”, a percepção de se ter um corpo e de existir nele e através dele, direcionando-o à busca do autoconhecimento.

Corroborando essa premissa, Aurora Gedra Ruiz Alvarez, ao analisar as versões do mito de Narciso, esclarece que: “O mito de Narciso encerra uma concepção solipsista do homem que, da esfera do não ser, do vazio que o angustia e o aniquila, busca a unidade perdida” (ALVAREZ, 2011, p. 94).

Em relação ao ato da contemplação, Mikhail Bakhtin pontua que: “vemos o reflexo da nossa imagem externa, mas não a nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao todo, estamos diante e não dentro do espelho” (BAKHTIN, 2011, p. 30).

Destarte, embora o espelho intermedeia Lóri à percepção do seu corpo, seu aprendizado não se fixa apenas no vislumbre de seu atilamento externo. “O espelho”, completa Bakhtin, “só pode fornecer o material para a auto-objetivação, e ademais um material não genuíno”63 (BAKHTIN, 2011, p. 30).

A narrativa prossegue a direcionar a protagonista em diálogo com Ulisses, esse por sua vez, evidencia estar adiantado ao processo de autoconsciência se comparado ao de Lóri: “Eu já poderia ter você com o meu corpo e minha alma. Esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar” (LISPECTOR, 1998d, p. 47). Lóri, entretanto, na sua incompletude de corpo e de alma, ao ouvir o posicionamento de espera de Ulisses, sente-se à mercê de um suposto abandono do parceiro:

Mas apesar de ele poder compreender, receava sua censura ou de que ele desanimasse e a abandonasse, e nunca lhe dissera que o “mal” muitas vezes voltava: o ar dentro dela tinha então cheiro de poeira molhada. [...] E reunia toda a sua força para parar a dor. Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter nascido? (LISPECTOR, 1998d, p. 49).

As oscilações constantes que à personagem são comuns, materializadas no romance como dor, angústia, sequidão, evidenciam o medo que a protagonista sente de espelho. – Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva. – É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor. – É” (LISPECTOR, 1998d, p. 90).

63 Assim, o espelho pode refletir uma imagem confortante, mesmo que o íntimo esteja em desacordo com o exterior. Cabe uma estrofe do poema Bendito, de Adélia Prado, para melhor aludir: “Louvado sejas Deus meu Senhor/ porque o meu coração está cortado a lâmina,/ mas sorrio no espelho ao que,/ à revelia de tudo, se promete” (PRADO, 2007a, p. 64).

se reconhecer na dor para sobressair-se do próprio sofrimento. “A vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.” (LISPECTOR, 1998d, p. 56), mas compete à professora a percepção de si como pessoa para se autoconhecer corpórea e mentalmente. “Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo” (LISPECTOR, 1998d, p. 56).

A narrativa, então, apresenta Lóri atendendo ao convite de Ulisses para encontrá-lo no clube, junto às águas da piscina: “era só dizer na portaria que era convidada dele” (LISPECTOR, 1998d, p. 67). O fato de “se verem quase nus” (LISPECTOR, 1998d, p. 67) temoriza a personagem que se sente inibida ao se deixar contemplar em trajes de banho publicamente: “Procurou disfarçar a dura relutância em ficar praticamente nua, afinal tirou o roupão, ela nem sequer o olhava” (LISPECTOR, 1998d, p. 68).

Rompendo o silêncio ocasionado pela timidez da personagem, Ulisses põe em questão a insegurança de Lóri em duas esferas de sua vida: sua alma e seu corpo: “Veja aquela moça ali, por exemplo, a de maiô vermelho. Veja como anda com um orgulho natural de quem tem um corpo. Você, além de esconder o que se chama alma, tem vergonha de ter um corpo” (LISPECTOR, 1998d, p. 68, grifo nosso).

Lóri, ao refletir acerca do “longo caminho andado até chegar àquele momento possível em que suas pernas se balançavam dentro da piscina” (LISPECTOR, 1998d, p. 68), vê-se, de leve, “semivivendo”, isto é, à experimentação “do gosto do ser”, de seduzir e ser seduzida.

A um movimento seu, que era o de jogar os cabelos para trás, viu num relance o rosto dele, percebeu que ele a olhava e que a desejava. Sentiu então um pudor que já diferia do que ele chamara de pudor de ter um corpo. Era um pudor de quem também deseja, assim como Lóri desejara colar o peito e os membros no Deus. Ao perceber muito claro o próprio desejo, tornou-se arisca e dura, e ficaram em silêncio o resto da tarde. Ela foi se tranquilizando e perdeu o medo maior que tinha: o de perdê-lo por se atardar tanto (LISPECTOR, 1998d, p. 68).

O constante refluxo, o recuo que é instaurado à concretude das realizações da personagem, como já aludido, evidencia a preocupação que a personagem nutre para não se expor à dor. Ela que “era uma adoradora de homens” (LISPECTOR, 1998d, p. 70), que já se deixou relacionar com cinco amantes que “não foram propriamente amantes porque [ela] não os amava” (LISPECTOR, 1998d. p. 50), permite-se, “sob a nova luz”, à percepção da beleza e virilidade de Ulisses:

Quanto a Ulisses, nessas novas cores que enfim Lóri tinha a capacidade de ver quanto a Ulisses estava agora a um tempo sólido e transparente, o que o enriquecia de ressonâncias e esplendor. Podia-se chamá-lo de homem belo.

Pela primeira vez então olhou-o sob o ponto de vista de beleza

estritamente masculina, e viu que havia nele uma calma virilidade. Sob a nova luz, Ulisses estava irreal e no entanto verossímil (LISPECTOR, 1998d, p. 69, 70).

Essa constatação, o fato de se permitir ao prazer da contemplação do corpo de Ulisses, materializa nO livro dos prazeres, mais uma vez, o recuo, enquanto se avança, da aprendizagem da personagem.

Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo (LISPECTOR, 1998d, p. 73).

Retomando “em alerta” o processo de aprendizagem, o capítulo que se segue à descrição acima evidencia Lóri na tentativa de se desprender das suas origens: ela “era de Campos, terra sem mar, e nunca chegara a pegar o hábito de ir à praia que ficava tão próxima de seu apartamento” (LISPECTOR, 1998d, p. 76).

A simbologia das águas, constante no romance, aponta à necessidade da protagonista de desligar-se da esfera continental, do hábito da sequidão, do aprisionamento social, direcionando sua aprendizagem ao prazer e imensidão das águas.

A solidão na aprendizagem se faz necessária e a heroína clariciana escolhe o mar para experimentação de um novo posicionamento de vida, não sem antes enfrentar um “corpo a corpo consigo mesma. [...] iria perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo a corpo com a vida. Alguma coisa se desencandeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar.” (LISPECTOR, 1998d, p. 76, 77).

Diante do mar, “Lóri aceita seu destino de amanhecer, aceita a dor da condição humana e a solidão que lhe é intrínseca. Entre a vida e a morte, ela escolhe viver e prepara-se para o ritual de imersão na vida, no mar, ao raiar do dia” (PIRES, 2006, p. 239). Desta forma, o corpo de Lóri é apresentado ao leitor de forma limitada e por isso mesmo quente, ao contrário da vastidão que o mar ocasiona.

Seu corpo se consola de sua própria exiguidade em relação à vastidão do mar porque é a exiguidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada (LISPECTOR, 1998d, p. 78, 79, grifos nossos).

A voz narrativa esclarece que o corpo da personagem é destinado ao encontro do ilimitado frio do silêncio da madrugada. “Lóri está sozinha” (p. 79) e é com essa condição que se permite confluir à iniciação propiciada ao batismo das águas. É no seu corpo inteiro que a água se fará sentir, fertilizando-a à passagem de um estado a outro.

Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frigido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. [...] com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo.

E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. [...] E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso (LISPECTOR, 1998d, p. 79, 80, 81, grifo nosso).

O mar possibilita à heroína de Clarice Lispector a concretude de um ritual de renovação, “no qual Lóri morre simbolicamente unindo-se ao masculino não humano e renasce [...] para se unir ao masculino humano, o que antes lhe era impossível. O encontro de Lóri com o mar é, portanto, um hièros gamos, um casamento sagrado” (PIRES, 2006, p. 244).

Ritual que, para além de uma projeção à união amorosa entre os protagonistas, desperta em Lóri seus sentidos aparentemente congelados pelo medo que nutria antes da

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