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CAPÍTULO 2: UMA APRENDIZAGEM CONSTANTE: A ESCRITA FORMATIVA

2.3 OS RECURSOS DISCURSIVOS NA FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LÓRI

Na nota que abre o romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector apresenta a história que se seguirá como uma forma libertária que a ficcionista se permite experimentar. O livro estaria, segundo a autora, acima do percurso narrativo até então instaurado em sua literatura. Em posição de suposta humildade, Lispector notifica: “Este livro se pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu. C. L.” (LISPECTOR, 1998d, p. 9).

Fernando Sabino, em carta direcionada à escritora pela leitura que fez acerca dos originais de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, “atordoado” com o novo rumo libertário que as letras de Clarice se materializam na referida obra, escreve à amiga:

São 3 e 5 da manhã e acabo de ler seu livro há cinco minutos. Li-o desde meia noite e vinte, de uma só vez, sem interromper um segundo, e te escrevo ainda sob a parte mais grossa da emoção da leitura. [...] Deve ser um grande livro, pode ser até o seu melhor livro, mas está do lado de lá, como as coisas pensadas depois da morte, e eu estou cada vez mais do lado de cá, agarrado às coisas concretas que se movimentam ao redor de mim. [...] Esta carta não lhe dá a medida de como eu quero bem e admiro o seu livro. [...] Talvez se fosse lido com outro espírito, outra fosse a minha opinião – mais lúcida, crítica, útil e reconciliadora com o mistério dos sentimentos que não mereço desvendar. [...] Certamente vou relê-lo, como os outros, uma, muitas vezes, até que ele também acabe fazendo parte de mim (SABINO, 2001, p. 2005).

Alinhando os dois excertos – acima destacados – pode-se indicar que a liberdade de experimentação literária encontrada em O livro dos prazeres, enfocada em uma narrativa que conta “[...] uma história de evolução progressiva da mulher que caminha, corajosamente da dor ao prazer” (GOTLIB, 2009, p. 491), engloba “o mistério dos sentimentos” que estão “do lado de lá” de uma suposta razão que invalida a afeição sentimental, isto é, que se situam na contramão de uma apreensão linear, concreta e dogmática da racionalidade.

Sabino reconhece, e com admiração, a articulação criada por Clarice na narrativa em questão: “[...] há passagens que me tocaram profundamente, outras me comoveram, outras me arrepiaram” (SABINO, 2001, p. 204), entretanto, a esfera sentimental que perpassa o enredo, traço inédito nos textos de Lispector como já visto neste trabalho, filiada ao suposto pedantismo direcionado ao professor de filosofia Ulisses, “Quem é

esse homem? Que é que ele está dizendo? Por que tão pedante e professoral?” (SABINO, 2001, p. 203), faz com que o autor de O homem nu se sinta atordoado, mas não desacreditado da qualidade que a produção atual de Clarice, isto é, em 1969, tenha alcançado.

Em entrevista concedida a João Salgueiro e ao casal Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti, realizada no Museu da Imagem e do Som (RJ) em 1976, ao responder se gosta do romance de 1969, Clarice diz monossílaba e abruptamente que não. Entretanto, enfatiza que o livro “é uma história de amor, e duas pessoas já me disseram que aprenderam a amar com esse livro... Pois é”43 (LISPECTOR apud, p. 230).

Um dos primeiros registros em que Clarice fala acerca de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres foi através de uma carta que a escritora envia ao seu filho Paulo Gurgel Valente, datada de janeiro de 1969. “Acabei de copiar o resto do livro, e certamente amanhã telefono para a Editora Sabiá pedindo que mandem buscar. Se o livro é bom? Eu acho ele detestável e malfeito, mas as pessoas que o leram acham-no bom” (LISPECTOR, 2002, p. 261).

Até que ponto esse distanciamento de Clarice para com o livro de 1969 é de fato uma negação? É sabido que Clarice após o término de uma nova produção sentia-se desiludida com a realização da escritura. “Todas as vezes em que eu acabei de escrever um livro ou um conto, penso com desespero e com toda a certeza de que nunca mais escreverei nada. [....] Lendo dias depois o que escrevi, sinto certa desilusão, insatisfação” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981 p. 69).

Olga Borelli, amiga pessoal de Clarice, revela que a autora de A maçã no escuro “Não conseguia reler texto seu. E quando publicado era como livro morto. Não queria mais saber dele. Quando acontecia alguém citar algum trecho, achava ruim” (BORELLI, 1981, p. 73-74). É ainda Borelli que, ao lançar luz acerca da publicação de Água viva, romance posterior a Uma aprendizagem, complementa que, após três anos de exaustiva produção e estruturação do texto em questão, Clarice hesitou em publicá- lo: “Quando ficou pronto, sentiu-se sem coragem de publicá-lo” (BORELLI, 1981, p. 88).

43Não há dúvida de que, entre os textos [Perto do coração selvagem e A paixão segundo G.H.], Uma aprendizagem é o mais acessível. A paixão segundo G.H. chega às raias do hermetismo, e Perto do coração selvagem tampouco é o que se pode chamar de livro fácil. Já a história de Lóri e Ulisses é uma história de amor com o qual o público leitor pode superficialmente se identificar mais. Na verdade, se os dois romances anteriores de Clarice têm a parte mais densa da intriga transcorrendo em um nível profundo, como um rio subterrâneo à narrativa, Uma aprendizagem é esse rio vindo à tona e aflorando em olho d’água, fresca e agradável, embora mineralizada pela terra funda de onde brotou (PIRES, 2006, p. 2008).

Essa hesitação para publicar um novo livro ou se empenhar na produção de novos gêneros, tais como crônicas jornalísticas, entrevistas e contos com foco na sexualidade, acompanhou Clarice em cada nova publicação, entretanto, é imprescindível marcar que a hesitação comum a Clarice, como pontua Franco Júnior, “em relação à literatura, à crítica, à imprensa, ao mercado editorial, marca-se pelo cuidado de não se deixar funcionalizar, de não se deixar reduzir a rótulos” (FRANCO JÚNIOR, 2003/2004, p. 135).

Entre as possibilidades interpretativas do percurso libertário manifestado no livro que é corpus desta dissertação, sobressai a tessitura da narrativa no e recorrente ao diálogo. Até então inédito à poética da escritora, a história – “que se pediu uma liberdade maior” – consiste, dentre outras questões que trata, no desenvolvimento da protagonista Loreley em direção ao alcance de sua autoconsciência intermediada pelo outro em referências explícitas de um diálogo constante.

Na concepção bakhtiniana, o desenvolvimento da consciência é viabilizado no limiar, isto é, “na fronteira entre a minha consciência e a consciência do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 341, grifo do autor).

Empregando atenção ao processo evolutivo de Lóri, desencadeado com a interação de Ulisses, o mentor da aprendizagem, pode-se atribuir à formação da protagonista de Clarice Lispector traços do gênero diálogo socrático, com sua gênese na maiêutica, isto é, no partejar da ideia, desdobrando-se à variante do diálogo no limiar.

Discutido por Mikhail Bakhtin no livro Problemas da poética de Dostoievski, o diálogo socrático, assim como a sátira menipeia, surgem na Antiguidade Clássica, vinculados ao conceito de gêneros sério-cômicos. Gêneros densamente conjugados pelo folclore carnavalesco, isto é, debilitando ao riso “a seriedade [...], a racionalidade, a univocidade e o dogmatismo” (BAKHTIN, 2015, p. 122). Portanto, os gêneros sério- cômicos apresentam forte oposição aos limites precisos e estáveis dos gêneros sérios tidos por excelência na Grécia Antiga: a epopeia, a tragédia, a retórica, a lírica.44

Esclarece Bakhtin que o diálogo socrático “era quase um gênero memorialístico: eram [...] anotações das palestras reais proferidas por Sócrates, anotações das palestras memorizadas, organizadas numa breve narração” (BAKHTIN, 2015, p. 124). De acordo ainda com o pensador da linguagem, a par da atualização do gênero quanto ao avanço

44 É válido marcar que o processo de escrita tensionado por Clarice Lispector rearticula os matizes do romance tradicional brasileiro para concepção de uma obra questionadora dos paradigmas literários. Como já aludido: “Gênero não me pega mais” (LISPECTOR, 1998a, p.13).

dos anos, o diálogo socrático distancia-se “das limitações históricas e memorialísticas e conserva nele apenas o método propriamente socrático de revelação da verdade” (BAKHTIN, 2015, p. 124-125).

Tendo como característica fundamental “[...] a concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela” (BAKHTIN, 2015, p. 125), isto é, o partejar da ideia – o “conhece-te a ti mesmo” – por meio de uma interação com o outro, o método socrático viabiliza a concepção da autoconsciência por meio de um processo fundido ao questionamento, à provocação. Atrela-se ao diálogo socrático o posicionamento questionador da personagem diante de si mesma e da realidade que a cerca.

São duas as esferas do diálogo socrático: a ironia e a maiêutica. A primeira consiste na refutação dos preconceitos ou das opiniões subjetivas do protagonista, isto é, significa perguntar fingindo ignorar (modo de interrogar pelo qual Sócrates levava o interlocutor ao reconhecimento da sua própria ignorância); a segunda, como supracitado, incide na arte de realizar o partejar da ideia ou do conceito verdadeiro, ou seja, a descoberta de uma nova concepção.

Bakhtin considera que uma das características basilares do gênero “é a concepção socrática da natureza dialógica da verdade e do pensamento humano sobre ela.”, ou seja, o diálogo socrático se opõe às verdades dogmáticas, àquelas que sentenciam uma afirmação como única, unilateral, inquestionável, assim, o traço estético prevalente no gênero é a negação de um discurso opressor e autoritário.

Estruturando o diálogo socrático encontram-se a síncrise e a anácrise, mecanismos discursivos que viabilizam o autoconhecimento da personagem por meio da palavra e reflexão. Na tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres estes mecanismos contribuem à constituição da autoconsciência de Loreley, matéria que será examinada a seguir.

2.4 AS VARIANTES DO DIÁLOGO SOCRÁTICO EM UMA APRENDIZAGEM

OU O LIVRO DOS PRAZERES

Na obra O drama da linguagem, compilação de textos escritos por Benedito Nunes acerca da prosa de Clarice Lispector, o crítico

literário, dentre as análises atribuídas ao romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, sinaliza que o que há realmente de novo no processo escritural de Clarice em contraponto com os romances anteriores “é que a narrativa está polarizada pelo diálogo e não pelo monólogo” (NUNES, 1995, p. 78).

Sucedendo a experiência do monólogo interior vivenciado pela protagonista do livro A paixão segundo G.H.45, O livro dos prazeres impõe à obra de Clarice Lispector uma abertura conciliadora entre duas consciências – Loreley e Ulisses: “[...] duas consciências que se reconhecem, a princípio de maneira reticente, para se comunicarem em seguida através do silêncio e da palavra, da carne e do verbo” (NUNES, 1995, p. 79).

Ulisses aparece no texto clariciano como mediador do processo de autoconhecimento que Loreley iniciará. A aliança firmada entre as personagens desta narrativa tem por viso a união amorosa de ambos somente quando a aprendizagem de Lóri se consolidar, isto é, quando a heroína alcançar um conhecimento corpóreo e íntimo desencadeado na autoconsciência.

– Lóri, disse Ulisses: [...] uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de46. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar.

Apesar de, se deve morrer. Inclusive é o próprio apesar de que nos empurra pra frente. [...] Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando você, esse teu corpo [...] que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. [...] esperarei quanto tempo for preciso (LISPECTOR, 1998d, p. 26, grifo nosso).

Ulisses, como representação do ser humano, experimenta em sua vivência o aprender em todo tempo, “o estar em construção”, isto é, “no dialogismo incessante, o ser humano encontra o espaço de sua liberdade e de seu inacabamento” (FIORIN, 2008,

45

Benedito Nunes esclarece que “enquanto A paixão foi uma desaprendizagem das coisas humanas, O livro dos prazeres é, sem abstrair as verdades trágicas daquela experiência, uma recuperação corajosa do sentido da existência individual” (NUNES, 1995, p. 81).

46 Cabe pontuar que a companhia teatral Luna Lunera (MG) para criar seu espetáculo Prazer, teve como ponto de partida o excerto supracitado do romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Projeto contemplado pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE – no Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2011.

p. 28).O professor de Filosofia também é modulado por experimentações avaliativas47, mas compete a ele, aqui posto como mediador no âmbito socrático – por já estar em um desenvolvimento além do que Lóri provará48– ajudá-la quanto à passagem da ignorância à revelação dialógica da ideia, ao autoconhecimento.

Não se trata de uma inteligência de quem adquiriu uma longa experiência intelectual, e sim de um trato inteligente com a vida, isto é, de uma postura de quem não tenta fugir dela, mas desvendar seus enigmas. Essa postura já é possível a Ulisses porque ele já está aberto à escuta do apelo que a realidade lhe faz, em seu mistério. Já está na travessia (TAVARES, 2012, p. 61).

Posto luz ao desenvolvimento já alcançado por Ulisses na tessitura do texto lispectoriano, uma vez que é ele quem acompanha, quem espera, quem medeia, faz-se oportuno analisar o elo existente entre Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres às variantes do diálogo socrático.

Parte-se aqui do posicionamento de que os instrumentos discursivos intrínsecos ao diálogo socrático, a síncrise e a anácrise, bem como os outros gêneros a ele relacionados – solilóquio e diálogo no limiar –, possibilitam, na tessitura do romance de Clarice Lispector, a análise de como a professora primária toma consciência de estar no e sentir o mundo – tendo como mote a experimentação dialógica – e como essa consciência contribui para o alcance do seu autoconhecimento.

Ulisses, o professor de Filosofia, é o mestre maiêutico, o interlocutor que viabilizará a constituição da autoconsciência de Lóri em um processo atrelado à vida humana, isto é, o percurso de aprendizagem na comunhão do amor não rejeita a esfera intelectual da heroína clariciana, ao contrário, homologa-a como primazia. Para Clarice, a racionalidade não é uma condição oposta à afeição sentimental.

À concretização da autoconsciência de Loreley, o diálogo é o meio de transporte fundamental de interação e reflexão. Ulisses, pelo diálogo, compreende as palavras que são silenciadas e os silêncios que evocam falas, por conseguinte, conduz sua discípula à aprendizagem não apenas transposta da dor ao prazer, mas em uma experimentação provinda da entrada de Loreley “num realismo novo”.

– Meu mistério é simples: eu não sei como estar viva. – É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor.

– É.

– E não sabe como estar viva através do prazer?

47 Em diálogo com Lóri, Ulisses enfatiza sua inconclusibilidade: “Pronto em todos os sentidos eu nunca estarei, Lóri, eu não me engano” (LISPECTOR, 1998, p. 51).

48 “Ulisses [...] estava infinitamente mais adiantado na aprendizagem: ele reconhecia em si a alegria e a vitória” (LISPECTOR, 1998d, p. 92).

– Quase que já. Era isso o que eu queria te dizer (LISPECTOR, 1998d, p. 90- 91),

O início de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, já em seu primeiro e extenso parágrafo, sinaliza a protagonista Loreley preocupada em organizar as lacunas provenientes das faltas de sua empregada “que cada vez mais matava serviço” (LISPECTOR, 1998d, p. 13). Loreley surge ao leitor em um posicionamento que contempla o arrumar das compras que fizera, o atendimento de telefone convidando-a para participar de um coquetel beneficente e, por sua vez, a “escolher que vestido usaria para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses” (LISPECTOR, 1998d, p. 13).

Cabe salientar a pontuação empregada por Clarice no decorrer do primeiro capítulo da narrativa. Iniciado por uma vírgula, o texto clariciano materializa quase que na totalidade da extensão do seu primeiro tópico pontuações expressas exclusivamente por vírgulas: uma ruptura explícita às avaliações da gramática normativa. Coligada às vírgulas da narrativa, encontram-se os inícios de parágrafos do capítulo: iniciados em letra minúscula.

Colisões normativas que, expressas na grafia do texto, apontam para a situação existencial da protagonista, isto é, já no início da trama, “Lóri surge no caos, em linguagem que acompanha um desordenado fluxo de consciência” (GOTLIB, 2009, p. 486). Clarice, ao romper com a norma, adequa na tessitura de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres uma técnica retórica e estilística que alcança as oscilações intrínsecas à Loreley que abre o romance.

Carlos Mendes de Souza, ao sinalizar a expressão poética vinculada à pontuação existente no primeiro capítulo de Uma aprendizagem que colide com a normatividade gramatical, comenta que:

O início do romance [...] mostra a vasta mancha tipográfica que dá conta da chegada de Lóri à casa: as tarefas que executa quase sem respirar vêm acompanhadas daquilo que vai pensando. A força do monólogo (em discurso indireto livre) adequa-se ao compacto grafismo que pretende ser uma transcrição do ritmo caótico dos pensamentos que ocupam a mente da personagem (SOUSA, 2012, p. 234-235).

Desordem que lança ao leitor a compreensão de que Loreley vivencia um emaranhado de ideias, imbricado, sobretudo, à rememoração do discurso de Ulisses, que, logo na primeira página do texto, se materializa como o mentor da aprendizagem.

[...] pensou no que ele [Ulisses] estava se transformando para ela, no que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-

lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu (LISPECTOR, 1998d, p. 13).

Nesse entrelaçamento de informações, a narrativa direciona Ulisses à mediação entre Lóri e sua autoconsciência. É ele que, no compasso poético de Clarice junto a O livro dos prazeres, evidencia uma das questões recorrente à escritura de Lispector: a indagação do nome. A esse respeito, cabe citar uma das falas da personagem Riobaldo no romance Grande sertão: veredas: “Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe” (ROSA, 2001, p. 172).

O nome de Lóri recobre significações simbólicas, como já evidenciado, entretanto, para além das significações externas e/ou mitológicas, há o nome íntimo que à heroína é evidenciado conquistar: “o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir” (LISPECTOR, 1998d, p. 14). A personagem de Clarice Lispector partilha de uma relação conflituosa com o mundo, isto é, com a esfera social em que está inserida: “Seu descompasso para com o mundo chegava a ser cômico de tão grande: não conseguira acertar o passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do mundo e tornara-se engraçado: uma das pernas sempre curta demais” (LISPECTOR, 1998d, p. 20).

Cabe frisar que o descompasso vivido pela protagonista não é materializado apenas na pontuação que abre e reverbera no primeiro capítulo dO livro dos prazeres, ou no fragmento aqui exemplificado, alcança, pode-se dizer, com intencional formulação, o estado de ânimo de Lóri, isto é, no processo de sua autoconsciência, há um esvaziamento de sua racionalidade; o sublime une-se à banalidade cotidiana, “alto” abre espaço ao “baixo”, pontuando, assim, um estranho avançar que retrocede.

Ao exemplificar as três características basilares dos gêneros sério-cômico, Bakhtin esclarece que sua primeira peculiaridade “[...] é o novo tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia a dia, é o objeto, ou, o que é mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade (BAKHTIN, 2015, p. 122, 123, grifo do autor).

Acerca da segunda peculiaridade desses gêneros, o pensador da linguagem esclarece que os gêneros sério-cômicos “baseiam-se conscientemente na experiência (se bem que insuficientemente madura) e na fantasia livre” (BAKHTIN, 2015, p. 123, grifos do autor).

A terceira e última peculiaridade fundamental e comum de todos os gêneros integrantes do sério-cômico baseia-se na pluralidade de estilos e variedade de vozes de todos esses gêneros. Caracteriza-se “pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico” (BAKHTIN, 2015, p. 123, grifo nosso).

Destarte, é possível encontrar na trajetória da protagonista dO livro dos prazeres, minudências concernentes às definições bakhtinianas supracitadas, ou seja, o estranho movimento de recuo enquanto se avança, materializado na narrativa clariciana:

1. O cotidiano de Loreley estendido durante as quatro estações do ano.

2. As experiências (experimentações) da protagonista, mesmo que, de certa forma, insuficientemente maduras.

3. Na banalização do sublime, isto é, no esvaziamento de algo maior preenchido na rotina, no senso-comum.

Como exemplo dessas três características elencadas por Bakhtin e aqui direcionadas à compreensão da experimentação de Lóri ao processo de sua autoconsciência, faz-se necessário transcrever o excerto do romance citado anteriormente, complementando-o com uma frase até então omitida.

[Ulisses] dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse “Lóri” mas que pudesse responder “meu nome é eu”, pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido

branco e preto serviria, (LISPECTOR, 1998d, p. 13, grifo nosso).

A retomada da personagem ao seu cotidiano impele-a a “pausar” sua trajetória que desencadeará a uma consciência suficientemente madura, mediante a reflexão sobre si por meio do discursivo elevado e dá vazão à trivialidade, ao clichê feminino

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