• Nenhum resultado encontrado

O evangelho por escrever: uma leitura do desassossego nos fragmentos de Bernardo Soares.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "O evangelho por escrever: uma leitura do desassossego nos fragmentos de Bernardo Soares."

Copied!
113
0
0

Texto

(1)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

O evangelho por escrever:

uma leitura do desassossego

nos fragmentos de Bernardo Soares

Cláudia Simone Silva de Sousa

(2)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

O evangelho por escrever:

uma leitura do desassossego

nos fragmentos de Bernardo Soares

Cláudia Simone Silva de Sousa

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa

(3)

                                               

Catalogação da Publicação na Fonte. 

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).   

 

       Sousa, Cláudia Simone Silva de.       

       O evangelho por escrever: uma leitura do desassossego nos fragmentos  de Bernardo Soares  / Cláudia Simone Silva de Sousa. – 2009.  

       129 f.  

       

      Dissertação  (Mestrado  em  Estudos  da  Linguagem)  –  Universidade  

Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e  Artes. Programa de Pós‐graduação em Estudos da Linguagem, 2009.      

    Orientador: Prof. Dr. Márcio Venício Barbosa.  

      

       1. Literatura comparada. 2. Escritura fragmentária. I. Barbosa, Márcio  Venício.  II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.      

      

       RN/BSE‐CCHLA      CDU 82.091 

(4)

CLÁUDIA SIMONE SILVA DE SOUSA

O evangelho por escrever:

uma leitura do desassossego

nos fragmentos de Bernardo Soares

FOLHA DE APROVAÇÃO

Dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre.

Data de defesa: 20 de novembro de 2009. Resultado: ________________________

Márcio Venício Barbosa - UFRN Orientador

Derivaldodos Santos - UFRN Examinador Interno

(5)

Para as pessoas que me conduziram a verdadeiros portais, sem as quais meu atual universo não teria sido descortinado... Em ordem cronológica de participação do meu processo vital:

para você minha irmã, Kátia Valéria, que numa realidade tão difícil e distante da atual, fez-me compreender que eu era capaz de retomar os estudos e ir além, para transformar-ações

radicalmente e desbravar novos caminhos. Para Chirs, pela amizade indescritível, pela orientação nos estudos e na vida e pela forte e adorável influência... Surgindo como um marco-divisor daságuas-rios da minha vida. Para Malu, ma perle e amiga atemporal, pelo afeto que não se encerra e pela doação de tempo, paciência, atenção, convergência de leituras-diálogos dedicadas

ao meu/seu prazer do texto. Para você, Aldinida, pelo reencontro dos nossos rios vitais, no momento mais afortunado possível... E, ainda, por navegares um oceano que separa dois reinos tão, tão distantes (Portugal e Brasil), abrindo espaços no seu tempo e, mesmo à distância, impulsionando-me cada vez mais no meu caminhar literário. Para Alyanne, pela dedicação inenarrável,

cumplicidade, parceria e afeto sem fim... Sem vocês, amigas-irmãs, muito do que sou hoje, não seria possível... Mas, como nada é por acaso, nossos entrelaçamentos

-vitais-afetuosos tiveram, obrigatoriamente, que acontecer!... Enfim, convergências de

(6)

Agradecimentos

Mais uma vez cronologicamente, seguem meus eternos sentimentos de gratidão... Aos meus portos-seguros de sempre: Oziel e Elinete, meus pais amados... Minhas âncoras afetuosas, em quem eu encontro amor, força, conforto e generosidade indescritíveis.

Ao Venerável Irmão Euclides Coelho, por apontar algumas das inúmeras portas que podemos desbravar... Pelo apoio e incentivo ao desenvolvimento de minhas atribuições e pesquisas acadêmicas. Agradeço à LEI DIVINA, por ter proporcionado nosso encontro nesta vida.

À amiga Nouraide Queiroz, que no início no meu processo seletivo, em meio a um turbilhão de coisas, abriu espaços no coração e na agenda; acolheu-me e doou ensinamentos sobre como elaborar um projeto. Amiga, num momento em que eu estava realmente desnorteada, norteaste-me.

Ao meu orientador, Professor Dr. Márcio Venício Barbosa, por me aceitar como orientanda, registrando esta aceitação através de um belo texto, que guardo na mente, no coração e, também, no papel. Pois, este último, eterniza o momento da acolhida! Agradeço-te, Márcio, por compartilhar leituras e traduções do francês, pela generosidade, paciência e leveza para criticar, direcionar e reelaborar juntos.

Ao Professor Dr. Afonso Henrique Fávero, pela leitura e apontamentos para melhoria do meu texto para qualificação do mestrado.

Ao Professor Dr. José Clécio Basílio Quesado que, através da Professora Dr. Christina Ramalho, cedeu gentilmente uma bibliografia valorosa para a aquisição de conhecimentos e composição desta dissertação.

À Luciana Bernardo, amiga e, também, orientanda do Professor Márcio, que me passou leveza e experiência em momentos singulares e por me deixar ciente de que as portas do seu coração estão abertas para todos os momentos que eu precisar.

Mais uma vez, cito a querida amiga Alyanne de Freitas Chacon que, apesar de ser tão recente nosso encontro, já é a amiga, que me acolheu e compartilhou traduções de leituras e mais leituras em francês, me apoiou, deu força para concentrar-a-ação e descontração nas horas que pareciam mais pesadas, pelas nossas palavras-selos-sorrisos.

(7)

que este trabalho fosse tecido e Maria Lúcia Barbosa Alves, que mesmo à distância, aconchegaram-me de modo singular até estes últimos momentos dissertativos, com dedicação, parceria e cumplicidade tamanhas.

Não posso deixar de registrar nomes da época da graduação, os quais estão cravados na minha formação literária, porque me proporcionaram ensinamentos que se perpetuam em minha mente, éter-namente: Professor Henrique Eduardo de Sousa, que me ensinou o como

fazer uma análise literária, através dos prazeres dos textos; à Professora Dr.a. Ilza Matias de Sousa, pela inesgotável fonte de sabedoria, atenção e afeto; à doçura de Professora e amiga Elisete Aparecida Ferreira Gomes que me arremessou nas linhas do desassossego pessoano, durante o curso de Literatura Portuguesa III da UFRN.

Obrigada Professora Dr.a. Conceição Flores, da Universidade Potiguar (UnP), por aceitar compor minha banca da defesa, na condição de examinadora, além da atenção, carinho e solicitude com os quais sempre me acolhe quando a procuro.

Ao Professor Dr. Derivaldo dos Santos, pela leitura deste trabalho e por aceitar o convite para compor a minha banca examinadora.

Ao auxilio de bolsa da CAPES, pelo apoio financeiro durante 24 meses de minha pesquisa.

(8)

Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde se não entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...

[...]

(9)

RESUMO

Este trabalho de pesquisa busca verticalizar estudos que revelem particularidades inerentes ao processo da escritura fragmentária. Nosso interesse por esse viés se deu a partir da poética fragmentária do Livro do desassossego, composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa e semi-heterônimo do escritor Fernando Pessoa. Nossa abordagem acerca desse gênero textual partirá de uma metodologia comparativa, a qual nos possibilite norteamentos, para que possamos estabelecer algumas relações de semelhanças e diferenças entre fragmentos, máximas, aforismos e reflexões, cujo corpus literário será o diário íntimo do desassossego soariano, bem como a própria fragmentação do simulacro de autor no decorrer dos anos em que o Livro foi escrito. O Livro do desassossego lança pulverizações reflexivas, as quais permanecem atuais, posto que, o processo da escritura fragmentária parece estar sempre num movimento contínuo e, portanto, no ambiente do porvir. Daí enfrentarmos certos obstáculos ao tentar estabelecer uma definição para o que vem a ser a escritura fragmentária. Logo, buscaremos pontos de interseções visando a estabelecer algum paradigma, para alcançarmos noções mais delimitadas acerca desse gênero textual, envolvendo máximas, aforismos e sentenças reflexivas.

(10)

RÉSUMÉ

Cette recherche a pour but d’approfondir des études qui mettent en lumière des particularités inhérentes au processus de l’écriture fragmentaire. Notre intérêt pour ce thème provient de la poétique fragmentaire du Le livre de l’intranquillité composé par Bernardo Soares, assistant de notaire et sémi-hétéronime de l’écrivain Fernado Pessoa. Notre approche de ce genre textuel commencera par une méthodologie comparative qui nous donnera des notions pour que nous puissions établir quelques rapports de ressemblances et différences entre fragments, maximes, aphorismes et réflexions dont le corpus littéraire sera le journal intime de l’intranquilité soarianne, ainsi que la fragmentation du simulacre d’auteur au cours des années pendant lesquelles le Livre a été écrit. Le livre de l’intranquillité lance des « pulvérisations » réflexives, lesquelles demeurent actuelles, étant donné que le processus de l’écriture fragmentaire semble être toujours dans un mouvement constant et, donc, dans l’ambiance du à venir. À partir de cela, nous avons passés pour quelques entraves pour essayer d’établir une définition pour ce qui serait l’écriture fragmentaire. Nous chercherons des points d’intersection visant à établir des paradigmes pour obtenir des notions plus précises sur ce genre textuel, concernant les maximes, aphorismes et sentences refléxives.

(11)

SUMÁRIO

 

 

1.  INTRODUÇÃO... 10 

2.  BREVE HISTÓRIA DO LIVRO DO DESASSOSSEGO... 16 

3.  SUJEITOS E ESCRITOS FRAGMENTÁRIOS... 32 

  3.1. Como definir a escritura fragmentária?... 34 

  3.2. Máximas, aforismos e sentenças: categorias fragmentárias a se pensar... 59 

4.  O EVANGELHO POR ESCREVER NO FAZER LITERÁRIO DE BERNARDO SOARES... 89 

5.  CONCLUSÃO... 103 

REFERÊNCIAS... 107   

(12)

1. INTRODUÇÃO

Como abordar uma obra cujo próprio autor é um simulacro de escritor? Como analisar um livro que não o é? Investigar um anti-livro ou uma subversão seria um desassossego? Talvez sim. Todavia, esta é a tarefa de um pesquisador, mesmo podendo o exercício investigativo parecer complexo, pois é justamente isso que o torna mais instigante.

É consabida a habilidade fenomenal de Fernando Pessoa em multiplicar-se em muitos. O próprio nome do autor português parece profético. Ao tomarmos, criativamente, seu primeiro nome como um gerúndio, motivados pela proximidade morfológica que ele tem com essa forma verbal, poderemos chegar a pensar que esse Fernando Pessoa se lançou a criar, num movimento de pulsão contínua, heterônimos − cujo número não se pode, ainda,

precisar − por meio dos quais ele, Fernando, viveu Formando Pessoas. Sobre algumas

aproximações dessa natureza, Érica Zíngano observa que Octavio Paz recorre à etimologia da palavra que circunda o nome do poeta português. Ela diz que, segundo o escritor mexicano, “seu segredo está escrito em seu nome, pessoa-personagem-persona: uma máscara, semelhante àquela utilizada pelos atores romanos.” (ZÍNGANO, s/d, p. 31).

O processo inventivo pessoano rendeu, rende e renderá matéria-prima para os mais variados tipos de estudos, pois, diante de cada olhar, a obra pessoana assume um caráter metamórfico, oferecendo novas possibilidades de (re)leituras. Assim, a fortuna crítica do escritor português torna-se grandiosa, num afluxo, aparentemente, de inesgotável exploração. Nesse sentido, ainda que a obra tenha esse caráter mutante, dizer algo inovador sobre Pessoa não parece tarefa simples, sobretudo, no que tange sua produção de poemas.

(13)

relativamente pouco estudado, quando consultada a fortuna crítica pessoana. Isso, provavelmente, decorre da própria história da concepção e da composição até a estrutura e organização física do Livro, cuja primeira edição foi lançada em 1982, há exatos quarenta e sete anos post mortem de Fernando Pessoa. Aspecto que buscaremos expor, sucintamente, neste trabalho, ao lado da questão de Bernardo Soares ser um semi-heterônimo pessoano e da reflexão acerca do modo como o Livro do desassossego1 pode se localizar à luz dos pressupostos históricos e literários. Um dado a ser investigado, posto que, no dizer de José Gil (2000)2, é uma obra estilhaçada, que vem lançando fragmentos desde o início do século XX para a cultura ocidental daquela época, até o tempo atual e futuro. Portando, o LD não pode ser categorizado, simplesmente, como uma obra moderna.

Pensar a grandiosidade do projeto poético de Fernando Pessoa em o LD, a exemplo, é constatar que ele conseguiu – além da poesia, epopéia, ficção, crítico e teórico literário, etc. – manifestar-se através de mais gêneros textuais, a se dizer: fragmento, máxima, aforismo e sentenças ou reflexões, mediante textos em prosa e de caráter ensaístico.

A intenção comunicativa do LD torna-se mais explícita do que a da maioria dos

corpòra literários deixados por Pessoa, uma vez que, as categorias textuais supracitadas, ainda que carregadas de valor metafórico, assumem uma proporção metonímica, no sentido de concentrar, numa só matéria literária e filosófica, a visão do mundo que podemos extrair de toda a obra pessoana, uma vez que, no Livro, constatamos a multiplicidade de vozes latentes que denunciam o estilo peculiar, tanto do criador quanto das suas criaturas. Segundo José Gil (2000), Bernardo Soares é o "heterônimo no qual embrionariamente fervilham

       

1 A partir de agora nos referiremos ao Livro do desassossego (1999) como LD, seguido do número do trecho e

da página. 

2 Fonte: Folha de São Paulo, Ilustrada - quarta-feira, 17 de maio de 2000. Disponível em http:

(14)

todos os heterônimos do escritor." Desse modo, para o professor português, tanto Pessoa – sob a égidede Bernardo Soares – quanto o LD se encontram fragmentados.

Diante disso, tratamos de explorar estudos que buscassem elaborar concepções gerais sobre o que pode vir a ser o gênero fragmento, atentando para as categorias das máximas, aforismos e sentenças ou reflexões, por observarmos a presença contundente de axiomas dessa natureza, ao longo da leitura do Livro. O que, inicialmente, era uma leitura perceptiva, guiada pelo corpus literário do LD, passou, aos poucos, a ser reelaborado num contínuo, que nos levou a pensar em vasos comunicantes teóricos que viessem dialogar com a matéria literária.

Evidentemente, ao longo das pesquisas realizadas, cada vez mais fomos confirmando que o que as nossas experiências de (re)leituras nos suscitavam, confrontavam-se com as exposições teóricas, críticas e literárias de pesquisadores da escritura fragmentária, dentre os quais citamos, sobretudo nas obras indicadas: Françoise Susini-Anastapoulos (1997), com o livro L’écriture fragmentaire (A escritura fragmentária), no qual encontramos um estudo minucioso acerca do percurso histórico-literário do fragmento como forma de expressão; Leyla Perrone-Moisés (2001) que, em Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro, traz um capítulo que aborda vários aspectos do LD, principalmente, sobre o mote de nossa pesquisa, que é o texto fragmentário; Maurice Blanchot (1980; 2005) com os livros

(15)

alguns pressupostos barthesianos acerca de como ler, sentir e refletir. Enfim, modos de se

atravessar escrituras como máximas, aforismos e sentenças ou reflexões.

Blanchot, em O livro por vir, comenta esse grau zero da escrita em Barthes, bem como diversos pontos que concorrem para a tessitura desta pesquisa, promovendo movimentos de leituras mais bem direcionadas para se pensar o LD.

Nossa intenção, entretanto, não é, de modo algum, esgotar o assunto, mas torná-lo como espaço de fruição arrolado pel’O prazer do texto (BARTHES, 1993) e contemplar ações que envolvam esses estilos literários irradiados pela escritura fragmentária.

Face ao exposto, ressaltamos que o aporte teórico para direcionar os objetivos do presente trabalho tende a seguir uma discussão baseada nos vários conceitos de fragmento, sem, contudo, desprezar outros norteamentos que se fizerem necessários para ancorar o presente estudo.

Ao reler o LD com esse filtro, passamos a definir nossa abordagem, que atenta para o modo pelo qual se dá a fragmentação do discurso soariano, plasmado no seu Livro desassossegado?

Tal questionamento está calcado no pressuposto de que os fragmentos que sugerem as categorias textuais supracitadas propõem um modelo de organização de mundo, expressando juízos de valores, com intenção de conduzir, direcionar, buscar respostas, num jogo filosófico que, em alguns momentos, parece buscar estabelecer paradigmas.

(16)

Podemos afirmar, de antemão e segundo os pressupostos do professor José Gil (2000), que

[...] há dois tipos de desassossegos: “Soares viaja nas sensações e viajando nelas tem alegria, apesar de ser um deprimido, angustiado, melancólico, o que representa um bom desassossego.” Já o mau desassossego, segundo Gil, “é o sentimento mais forte, da inquietação que produz a angústia”. A questão do livro, para Gil, é “como escapar ao mau desassossego, como sonhar”. A resposta é metamorfoseando os espaços observados do quarto andar, onde mora Soares.

[...]

Soares é um observador que mantém distância do que vê.

Para Gil, “é uma forma de proteção, mas também um ponto de partida para o sonho. Bernardo Soares é inteiramente um sonhador.”

Este Bernardo Soares “inteiramente sonhador”, que é um “observador que mantém distância do que vê”, pode estar expresso no fragmento, quando ele diz: “... e do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de guarda-livros, na cidade de Lisboa.” (LD, 4, p. 48).

O capítulo seguinte trará um apanhado geral sobre a concepção do LD. Traçaremos uma biografia deste simulacro de autor, configurando, portanto, uma incursão na

autobiografia sem factos de Bernardo Soares (ou Vicente Guedes?). Em seguida, visando a complementar a história soariana, faremos uma contextualização sobre o Livro, contemplando a época em que foi escrito e o(s) modo(s) de sua concepção e estruturação física, post mortem do autor português.

(17)

Concluiremos buscando as possíveis convergências teóricas e críticas sobre o que foi levantado mediante a pesquisa, para assim, lançarmos mão de possíveis norteamentos para leituras textos que possam configurar os gêneros fragmentários acima descritos, contidos no

(18)

2. BREVE HISTÓRIA DO LIVRO DO DESASSOSSEGO

Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera que eu não houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior parte das coisas reais, que é o sabermos que são perecíveis. Não é isto porém, que sinto e me dói no que fiz, nestes lentos momentos em que releio. O que me dói é que não valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz o não ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a pena fazê-lo. (LD, 169, p. 181).

O Livro do desassossego, de Fernando Pessoa (1888-1935), composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, vem à luz em 1982. Inicia-se uma comoção nos estudos sobre a obra estilhaçada e em prosa do poeta português. A primeira edição do Livro foi organizada e transcrita pelas especialistas em estudos pessoanos, Maria Aliete Galhóz e Teresa Sobral Cunha, que foram as primeiras a se ocuparem em recolher os escritos referentes a esse não-livro, pois não ficou estruturado nem finalizado pelo seu autor. Ao se falar no LD, não é raro observar inquietações de diversas vertentes de estudos, pois ele é por natureza complexo e multifacetado, sobretudo para a época em que foi escrito, o que o impôs como um livro. Porém, uma obra aberta e, por isso, parcialmente incompreendida. Aspecto reconhecido pelo próprio autor:

(19)

compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrevi isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver. (LD, 191, p. 198).

Por Bernardo Soares, Pessoa confessa seu potencial, sua insatisfação, sua transição e transformação interior, cujas subjetividades decorriam das suas experiências diante do mundo. Profeticamente, ele inscreveu o processo pelo qual seria reconhecido e comprovou que sempre esteve à frente do seu tempo. Cumpriu um ofício como uma espécie de sacerdote da escritura fragmentária, que em tantos momentos nos faz transitar entre os universos sagrado e profano. Profeticamente, também, ele registrou o que veio a se confirmar a exatos quarenta e sete anos após sua morte, com o LD, que vem à luz e hoje, no terceiro milênio, o processo inventivo do poeta português não foi superado. Corpòra literários e heteronímicos por ele criados renderam, rendem e renderão questionamentos inesgotáveis e, muitos, ainda permanecem sem respostas. Pois, no que tange ao LD:

[...] ficou como um projeto inconcluso, um conjunto de fragmentos escritos ao longo de toda a existência do poeta, e deixados por ele numa ordem (ou desordem) que nunca poderemos recuperar. Os textos, em sua maior parte manuscritos, numa caligrafia por vezes, críptica, foram traçados desordenadamente sobre toda a espécie de suporte. Alguns têm a menção

L. do D., outros não; alguns são datados, outros não. Pessoa hesitava muitas vezes em incluir ou não um fragmento no sempre adiado Livro, e em atribuir sua autoria semi-heteronímica. Esta foi inicialmente conferida a Vicente Guedes, posteriormente a Bernardo Soares. A revisão e ordenação final do texto ficaram, como outros projetos de Pessoa, irrealizados. (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. XVI).

(20)

vez, por diferentes organizadores e sofreu alterações na ordenação dos seus fragmentos, dadas as inúmeras possibilidades que Pessoa deixou em aberto. A prosa do desassossego é fragmentária, no mais largo sentido da palavra e, seu título não poderia ser mais pertinente, para os que dela se aproximam, tanto para ler, pesquisar, criticar, como e, sobretudo, para ordenar o que ficou um tanto desordenado, pois apesar de muitos dos fragmentos ficarem datados e com respectivos números de trechos, isso não facilitaria a composição deste anti

-livro. É justamente neste ponto que o LD exerce uma espécie de fascínio e espanto diante da capacidade inventiva de Fernando Pessoa. Segundo Jorge de Sena, a respeito de Pessoa-Soares e do Livro:

Sem talento romanesco ou dramático (que só a aceitação da vida como acção possibilita), e com faculdades de poeta lírico e de raciocinador gratuito, situado no cepticismo total (e por isso cepticamente crente de um extra-mundo esotérico que lhe compensasse a dinâmica da recusa dialética do ser e do pensar), Fernando Pessoa pulverizou-se nas suas virtualidades: «não evoluo, viajo», disse um dos Fernandos Pessoas. E era verdade – não evoluía para homem vivo, mas, como efectivamente veio a acontecer, para grande poeta morto. Um grande poeta que foi muitas pessoas, nenhuma das quais era ele mesmo, como ele mesmo não era quem se apresentava como tal. (SENA, 1984, p. 183).

(21)

“independente”, dono de uma expressão própria e de grande valor artístico? Por enquanto, somente Pessoa. Assim,

Não podemos saber quão verdadeiros foram para si mesmos, ou qual nos mentiu. São demasiados poetas, para que possamos sabê-lo, e sempre estará, entre nós eles, o que fizeram e o por que valem. [...] escreveu para ser, e ser com uma intensidade que raros poetas do mundo se deram a si mesmos; e o outro fê-lo para não ser, com uma persistência de suicídio de vida. Camões transformou suas frustrações em triunfos. Pessoa transformou em frustrações admiráveis os seus triunfos sobre si mesmo. um é o ser, o outro o não-ser.

[...]

É desse «desassossego» que se apresenta o Livro. (SENA, 1984, p. 184-5).

É desse modo que passamos a conceber o LD, como o livro que mais denuncia a dramaticidade, a qual Fernando Pessoa se dedicou: uma espécie de negação da própria vida. Um semi-heterônimo, simulacro de autor, com uma não-existência, cuja obra não ganhou uma versão, mas subverteu a tudo o que poderia se objetivar. O desassossego soariano segue uma via de mão dupla (dado que os discursos, por vezes, se contradizem) e se engrandece ao trilhar horizontes opostos.

É válido ressaltar que alguns fragmentos do LD chegaram a ser publicados por Fernando Pessoa.

(22)

Não são poucos os estudiosos da obra pessoana que afirmam constatar em Bernardo Soares uma multiplicidade de estilos de épocas literárias. Ele é (é porque, não nasceu, morreu, nem sequer existiu) fragmentário, multifacetado e, portanto, híbrido no seu ser e no seu fazer literário. Soares é puro devir.

Assim se procura (im)possível evocação daquele in fiere que é, com o do

Fausto – contrapartida poética do Livro do Desassossego recentemente revelada, ao que supomos, em toda a sua extensão –, projecção existência de Fernando Pessoa e igualmente projecção do seu devir literário, imagem mesma da complexa malha de progressos e regressos em que sempre esse fazer se institui e o Livro, em sua essência, necessariamente reproduz. Totalidade assim que, se bem entendemos , deve esta nova forma do Livro do Desassossego, em sua incerta luz, reflectir. (CUNHA, 1990, p. 16. Grifos da autora).

Luz incerta, que produz uma constelação de fragmentos, que se arremessam em vias por vir. O LD entrou para a história da literatura sorrateiramente, vindo a ser lançado pouco antes de completar meio centenário da morte de Fernando Pessoa. Todavia, após seu aparecimento, ele se dilata aos olhos dos pesquisadores e, na medida em que os anos passam, o Livro se torna uma fonte inesgotável para a crítica e teorias literárias, filosóficas, psicanalíticas, etc. Paralelamente, a escritura fragmentária – com inúmeras nuances de subjetividades –, nos permite experimentar várias travessias de leituras pelas linhas do diário íntimo, do ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Assim, “O Livro do desassossego

é uma armadilha infernal para a crítica, que nunca poderá dominá-lo como ‘obra’, nem descartá-lo como ‘lixo’.” (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 219).

(23)

integrante “Do Livro do desassossego, em preparação”. Preparação essa, que tem o marco o ano de 1913 e passou a fazer parte do resto da vida de Pessoa.

Antes de a autoria do LD ficar atribuída a Bernardo Soares, o escritor português cogitou o heterônimo Vicente Guedes para ser o autor do Livro:

[...] responsável alheio pelo Livro do Desassossego que numerosos projectos editoriais e trechos prefaciais de Pessoa-em-si [...] E, porque vem a colação, desde já se adverte para o útil cotejo dos trechos de apresentação de Vicente Guedes, por Fernando Pessoa, e daqueles, bem diferenciados, com que Bernardo Soares há-se a si mesmo prefaciar-se na outra maneira do desassossego que será mais continuadamente a sua.

(CUNHA, 1990, p. 16. Grifos da autora).

Segundo Zenith (1999, p. 20), o LD assumiu diferentes formas, ou seja, estilos textuais, com nuances de algumas tendências literárias. Inicialmente, assinado pelo próprio Pessoa, o LD apresenta fragmentos com estilo pós-simbolista e com títulos. Entretanto, ao longo do projeto do desassossego, os textos passam a ganhar um ar diarístico, íntimo e revelador das subjetividades do eu enunciador. Neste ponto, podemos observar, ainda segundo Zenith, que de “cariz mais pessoal, o autor seguiu o costume de se esconder por detrás de outros nomes, sendo o primeiro destes Vicente Guedes. Na verdade, Guedes começou por assinar só o diário (ou diários) que devia(m) fazer parte do Livro do Desassossego.” (ZENITH, 1999, p. 20).

(24)

Consolidada a autoria do LD a Bernardo Soares, sua escrita é arremessada para o universo literário. Decorre um longo período para que os fragmentos soarianos sejam organizados e publicados. Curiosamente, Pessoa não definiu a data do nascimento do semi-heterônimo autor do LD, o que o faz diferir dos heterônimos mais populares criados pelo escritor português. Soares acompanhou seu criador até os últimos dias de vida.

Sobre o processo de semi-heteronímia pessoana, destacamos:

Não esqueçamos também os semi-heterónimos, menos importantes e não tão desenvolvidos e explicitados como personalidades, mas de interesse excepcional, principalmente Bernardo Soares, “ajudante de guarda-livros” na cidade de Lisboa’. Pena é que o poeta não haja levado mais longe a sua

Teoria do desassossego figurada aqui na mobilidade das nuvens: Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam-me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens...

[...]

Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que são nada, sendo eu nada também. Nuvens...

Pode-se afirmar sem receio que, com a criação dos seus heterônimos, Fernando Pessoa pôs em causa o mundo tradicional da nossa poesia, fazendo tábua rasa de determinados valores líricos como, ao mesmo tempo fazia tábua rasa de correspondentes valores intelectuais e sociais. Que na realidade os heterónimos figuram a transmutação alquímica dos elementos, na busca do lápis philosophorum que é a chave da individualidade humana [...].(QUADROS, 1960, p. 186-7. Grifos do autor).

Diante da fala de Quadros, refletimos sobre os seguintes aspectos: a configuração da escritura em processo do LD pelas nuvens, que podem nos dar uma possível significação para a nebulosa que paira sobre o Livro, bem como o seu simulacro de autor. Essas nuvens

(25)

desassossego, porque ela permanece nas sendas de um devir e, como o próprio Bernardo Soares afirma: são tudo fragmentos.

Outro aspecto exposto por Quadros é o fato de que o escritor português “pôs em causa o mundo tradicional” não apenas da poesia, mas da prosa, das suas multifaces, desconstruindo e reconstruindo novos paradigmas para se pensar a literatura moderna, fazendo “tábua rasa de correspondentes valores intelectuais e sociais”, cujos axiomas foram extrapolados, muitas vezes pelos pensamentos filosóficos pessoanos, que fervilhavam através da sua capacidade inventiva e de sua capacidade de se multiplicar para significar a vida e as subjetividades humanas.

Esses são também os modelos de Bernardo Soares, não tão comprometido com fórmulas anteriores, mas com frequente emergência delas, há-de, por forma liberta e prevalecente, usar na sua fase final. Para esta fase se previa não só a adaptação dos anteriores caracteres psicológicos do semi-heterónimo, mas também dos trechos variadamente consistentes, conquanto diversamente atribuídos, e contemporâneos da máscara que, sob esse mesmo nome, escrevera [...]. (CUNHA, 1991, p. 16. Grifos da autora).

A prosa do desassossego pode ser uma espécie de libertação, posto que, sob o pretexto de um diário íntimo, de uma autobiografia sem factos, Pessoa atua como uma espécie de iluminado que lança seus raios para nossos processos de escritas, espaços de fruição, análises teóricas e críticas literárias, pois o LD é de “extrema modernidade: obra fragmentária, obra aberta, obra da ausência e do vazio do sujeito.”. (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 277).

(26)

dentro de um pretenso desassossego, promover certa ordem ao caos interior e exterior do seu autor.

Sobre os aspectos de várias narrativas reunidas dentro de um único corpus literário, destacamos:

O Livro do desassossego apresenta vários estratos históricos e, independentemente da data da redação de cada um de seus textos, estes ora pertencem ainda ao século XIX, ora apontam para o fim do século XX e, talvez, para o XXI. Tinha razão Jorge de Sena quando viu, no Livro, vários livros. Parece-me, entretanto, que tinha menos razão ao considerar só o último em data como o “efectivo”. Qualquer que fosse o projeto final de Pessoa, o Livro que ele nos deixou é esse conjunto de peças heteroclíticas, esse puzzle sem ajuste definitivo; e é essa heterogeneidade sem síntese que o torna, mais do que moderno, pós-moderno, se aceitarmos, heuristicamente, esse duvidoso conceito. (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 277).

Entramos no século XXI eolhamos para o LD dentro das perspectivas pós-modernas, além de tantas outras, que nos revelam diferentes vertentes para se desenvolver estudos acerca de um livro que abriga vários livros. Por vezes encontramos um Soares clássico, moderno, niilista, decadentista, etc. Entretanto, nosso objetivo geral foi o de confrontar a leitura dos fragmentos soarianos com pressupostos críticos e teóricos acerca da escritura fragmentária, como já explicitamos. Logo,

A poética do fragmento praticada por Bernardo Soares não é, assim, a assunção simples e constante da fragmentação do sujeito. Soares oscila entre a constituição e a desconstituição do sujeito, aspira à sua consistência e padece de seu fading. Como a maré, o sujeito do Livro tem suas enchentes e suas vazantes e, no movimento geral, resulta em ‘alma de espuma’ (I, 138), “ninguém” (I, 30). (PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 281. Grifos da autora).

Por toda a leitura do LD nos deparamos com esse drama de um sujeito que se apresenta em

(27)

Ruínas que podem ser produto das dúvidas em confronto com as certezas de um eu diante de uma vida caótica. Eis duas sumárias demonstrações dessas desintegrações do sujeito cartesiano:

Para compreender-me, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

[...]

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distração especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir. (LD, 48, p. 81).

Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra na sensação de carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos liga subtilmente ao que está perto, enleando-nos num leito leve de morte lenta, onde baloiçamos ao vento. Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada? Um raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa, uma brisa que se ergue, o silêncio que se ergue quando ela cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido os hieróglifos quebrados das estrelas. (LD, 167, p. 180-1).

Observamos, também, o grau sutil da escrita soariana, que pode ser olhada pelas lentes da metafísica e por tantos outros filtros e graus. Face aos fragmentos acima, podemos ilustrar esses aspectos de desintegração tanto da obra, quanto do sujeito que a redige, através da seguinte abordagem:

(28)

A imensidão que compõe esse conjunto-Pessoa, cujo espólio já soma cerca de setenta heterônimos-escritores, três figuras atraem maiores atenções, talvez porque suas obras tenham sido concluídas, com tendências literárias mais identificáveis, porém, não foram publicadas por Pessoa. Esta tríade é composta pelos heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Para cada um deles, Pessoa elaborou um conjunto descritivo, incluindo dia de nascimento, de morte e até mapa astral. Tudo elaborado pelo próprio Pessoa.

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1890, na ilha de Tavira, região do Algarve (Portugal). Formou-se em Engenharia Naval, mas não chegou a exercer a profissão. Escreveu os poemas Opiário e Tabacaria, que lhe rendeu reconhecimento como dos mais belos poemas composto pelo conjunto-Pessoa. Aderiu a tendências literárias decadentista, futurista, vanguardista, niilista. Era descrito por seu criador como uma figura impecável e um tanto esnobe. Morreu em 30 de novembro de 1935, no local que escolheu para viver: Lisboa. Curiosamente, na mesma data e ano em que morre Fernando Pessoa.

No ano de 1889, em Lisboa, nasce Alberto Caeiro da Silva, considerado o mestre de Pessoa e dos demais heterônimos. Viveu modestamente numa pequena vila do Ribatejo, devido aos seus problemas de saúde. Foi um solitário e contemplador da natureza, posto que, viveu afastado do burburinho das grandes cidades. Em suas composições poéticas, podemos identificar traços elegíacos e ingênuos. Morre prematuramente aos 26 anos de idade.

(29)

Pessoa escreveu uma correspondência destinada a Adolfo Casais Monteiro, na qual elabora uma espécie de diagnóstico para o seu processo de desdobramento heteronímico e fala um pouco sobre a gênese dos seus heterônimos, na qual o escritor português relata, em 13 de janeiro de 1935, ano de sua morte:

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – materializam-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contato com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. [...] nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia [...]. (PESSOA, 1998, p. 95).

Quanto ao processo de semi-heteronímia, destaca-se Bernardo Soares. Homem simples, que viveu modestamente na cidade de Lisboa, trabalhando como assistente contábil em um comércio de tecidos. Conheceu Fernando Pessoa em uma casa de pasto chamada

Pessoa. Ele descreve Soares como seu “colega vespertino de restaurante”, ao escrever o prefácio do LD, no qual fala sobre o semi-heterônimo como um ente que:

(30)

Até nisto – é curioso descobri-lo – as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu carácter, lhe pudesse servir, lhe foram favoráveis. (PESSOA, 1999, p. 41).

No prefácio do LD podemos relacionar algumas proximidades entre Pessoa e Soares, tais como: a infância e a orfandade; o tipo de moradia e estilo de vida modesta; o isolamento do ambiente social comum; a solidão; a condição de ter “vivido sempre com uma falsa personalidade sua”, o compromisso com a escrita, que os tornou seres à parte de certas convenções sociais, inclusive, ambos dedicaram-se a atividades empregatícias que não viessem a interferir na rotina de suas produções intelectuais. Enfim, são vias de convergências e de desassossegos encontrados entre Pessoa e Soares.

Bernardo Soares não é Fernando Pessoa, mas, ao mesmo tempo pode sê-lo, juntamente com os demais heterônimos, posto que, Soares é um semi-hetônimo, que apresenta um discurso híbrido, que denota relações íntimas com as múltiplas vozes criadas por Pessoa. Sobre esse complexo fenômeno, esclarecemos:

Bernardo Soares, o narrador principal mas não exclusivo do Livro do Desassossego, era tão próximo de Pessoa – mais até do que Campos – que não podia considerar-se um semi-heterônimo autônomo. “É um semiheterónimo”, escreveu Pessoa no último ano da sua vida, “porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela.” Não há dúvida de que muitas das reflexões estéticas e existenciais de Soares fariam parte da autobiografia de Pessoa, se este tivesse escrito uma, mas não devemos confundir a criatura com o seu criador. Soares foi uma réplica de Pessoa, nem sequer em miniatura, mas um Pessoa mutilado, com elementos em falta. (ZENITH, 1999, p. 15).

(31)

pensar. Ele vive e, ao mesmo tempo, não existe. É por ele que Pessoa escreve o LD

composto por Bernardo Soares. Desta preposição (por) podemos ir muito além nos significados que dela podem emanar e que estão plenos nas entrelinhas de um desassossego

de alta criatividade, o qual promove novas formas de se olhar para as experiências subjetivas do ser humano, diante de um mundo objetivado, porém fragmentado.

Por vários aspectos o LD parece ter sido um projeto de vida de Fernando Pessoa, dentre eles, o de não ter sido concluído e escrito incessantemente por mais de duas décadas. Pessoa deixou vários escritos relativos ao Livro e que constam da edição que trabalhamos. Através de cartas, ele registrava sua relação com a escritura em processo do desassossego. Vejamos alguns excertos (LD, p. 502-3) de algumas de suas correspondências destinadas a Armando Cortes-Rodrigues:

[...] Nada tenho escrito que valha a pena mandar-lhe. Ricardo Reis e Álvaro futurista – silenciosos. Caeiro perpetrador de algumas linhas que encontrarão talvez asilo num livro futuro. ... O que principalmente tenho feito é sociologia e desassossego. V. percebe que a última palavra diz respeito ao ‘livro’ do mesmo; de facto tenho elaborado várias páginas daquela produção doentia. A obra vai pois complexamente e tortuosamente avançando. (2 de setembro de 1914).

O meu estado de espírito actual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias ao nível do Livro do Desassossego. E alguma coisa dessa obra tenho escrito. Ainda hoje escrevi quase um capítulo todo. (4 de outubro de 1914).

Ao meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos. (19 de Novembro de 1914).

(32)

Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporânea 4) é a segunda parte; (2) Livro do Desassossego (Bernardo Soares, mas subsidiariamente, pois que o B.S. não é um heterónimo, mas uma personalidade literária); (3) Poemas Completos de Alberto Caeiro (com o prefácio de Ricardo Reis, e, em posfácio, as Notas para a Recordação do Álvaro de Campos). Mais tarde, no outro ano, seguirá, só ou com qualquer livro, Cancioneiro (ou outro título igualmente inexpressivo), onde reuniria (em Livros I a III ou I a IV) vários dos muitos poemas soltos que tenho, e que são por natureza inclassificáveis salvo de essa maneira inexpressiva. Sucede, porém, que o Livro do Desassossego tem muita coisa que equilibrar e rever, não podendo eu calcular, decentemente, que me leve menos de um ano a fazê-lo. E, quanto ao Caeiro, estou indeciso... (28 de Julho de 1932).

Diante destes trechos, possivelmente, podemos nos aproximar um pouco mais da voz de Fernando Pessoa ele mesmo. Foi pensando nisso que extraímos esses fragmentos para que o leitor tenha uma ínfima idéia de como se processava o modo inventivo pessoano e a relação dele com amigos e seus heterônimos.

Há inúmeras correspondências do autor para amigos e editores, bem como notas que sugeriam os modos pelos quais Pessoa pretendia organizar o LD, configurando um conjunto de dados que pode contemplar a gênese do Livro e do semi-heterônimo Bernardo Soares.

Essa herança pessoana, que vai além dos dados que se referem ao LD, encontra-se sob a tutela da Biblioteca Nacional de Lisboa. “Em vida, Pessoa publicou apenas doze trechos do

Livro do Desassossego. Deixou, em variadíssimos estados de elaboração, aproximadamente 450 trechos adicionais que trazem o sinal do L. do D. e/ou que foram reunidos por ele antes de sua morte.” (ZENITH, 1999, p. 31).

(33)

de excertos de algumas cartas, a exemplo, temos a citação anterior da missiva destinada a João Gaspar Simões.

A primeira compilação dos escritos pessoanos para a primeira edição do LD foi publicada pela Ática em 1982. Em seguida o Livro publicado em dois volumes, o primeiro em 1990 e o segundo, em 1991, lançados pela editora Presença, que contou com a colaboração de Teresa Sobral Cunha e Maria Aliete Galhoz na recolha, transcrição e reorganização da primeira edição do LD. Mais uma vez, o Livro sofre alterações na sua primeira versão e, em 1997, a Relógio d’Água lança uma reedição daquele volume.

Entretanto, os fragmentos do LD não deixam de aparecer e desassossegar quem deles se aproxime. E segundo o organizador da edição por nós trabalhada, Richard Zenith, que atesta:

Fiquei tentado a restringir o corpus desta edição aos textos cuja atribuição não levanta dúvidas. Seria, pelo menos, um critério claro e simples. Não sei, porém, se seria mais fiel. Pessoa teria certamente excluído vários [...] Alarguei o corpus, portanto, mas sem alargar as fronteiras definidas pelos trechos explicitamente atribuídos ao Livro. [...] estas fronteiras são incertas, e realmente são-no. Na dúvida, relativamente aos textos que andam no limite, optei pela exclusão. (ZENITH, 1999, p. 32).

Dentre essas exclusões citadas por Zenith, se incluem trechos das edições anteriores do Livro, as quais apresentam textos que estavam em envelopes que continham escritos destinados ao LD, mas que deixam em dúvida, na concepção de Zenith, se fariam uma menção mais contundente ao desassossego.

(34)

3. SUJEITOS E ESCRITOS FRAGMENTÁRIOS

Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. [...] o vivido é segmentarizado espacial e

socialmente. [...] Somos segmentarizados circularmente, em

círculos cada vez mais vastos, em discos ou coroas cada vez mais amplos, à maneira da ‘carta’ de Joyce: minhas ocupações, as ocupações de meu bairro, de minha cidade, de

meu país, do mundo... Somos segmentarizados linearmente,

numa linha reta, em linhas retas, onde cada segmento representa um episódio ou um ‘processo’: mal acabamos um processo e já estamos começando outro, demandantes ou demandados para sempre [...] Ora os diferentes segmentos remetem a diferentes indivíduos ou grupos, ora é o mesmo indivíduo ou o mesmo grupo que passa de um segmento a outro. Mas sempre estas figuras de segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas umas nas outras, e até passam umas nas outras, transformando-se de acordo com o ponto de vista. (DELEUZE; GUATARRI, 1996, p. 83-4).

(35)

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os maiores a haviam tido – sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso, nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei a nunca a Humanidade. [...] Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.[...]

A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstracção do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, facava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nervos cerebrais. (LD, 1, p. 45).

A partir disso, como poderíamos nos conduzir a possíveis formas de se pensar no fragmento como um gênero textual? No livro Roland Barthes por Roland Barthes

(BARTHES, 2003), o autor prenuncia de modo íntimo, porém de alcance coletivo, possibilidades de leituras direcionadas para as obras fragmentárias. Podemos, portanto, relacionar e aplicar a essa fala de Pessoa, por Bernardo Soares ao que Barthes traduz, de modo singular, numa experiência humano-existencial, quando diz, no fragmento intitulado

Lucidez:

(36)

Desse modo, observamos que o que a literatura moderna traz é o reflexo das identidades, cujo caráter é metamórfico. Logo, na fragmentação que habita a inscrição desses processos, pode residir um sentido de universalidade. Mesmo sendo uma escrita breve e sintética, ela tem o poder de se arremessar do micro para o macrocosmo. Torna-se aberta, assume um ar de mistério, com características da metafísica, pois o fragmento, de tão condensado, possibilita qualquer leitura, qualquer (re)ligação, qualquer experiência, posto que, paradoxalmente, ele se dilata infinitamente.

Diante disso, pensamos em como definir a escritura fragmentária. Buscaremos delinear um entrelaçamento entre teoria e corpòra literários, filtrando o olhar para as fragmentações irradiadas por uma literatura impulsionada pela multiplicidade de motivos, através das subjetividades do ser humano diante do mundo.

3.1. Como definir a escritura fragmentária?

Étymologiquement, le terme de fragment renvoie à la violence de la désintégration, à la dispersion et à la perte. Le fragment fonctionne alors comme métonymie, de la partie vers le tout. [...] Mais il ne faudra jamais oublier, comme le rappelle A. Guyaux, que « l’étymologie du mot persiste à dénoncer la coupure, la séparation, pour ne pas dire la blessure ou l’opération qui fait d’un fragment ce qu’il est : un être échappé de tout ce qui n’est pas, ou n’est plus, distrait du néant ». (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 2)3.

       

3 Etimologicamente, o termo fragmento remete à violência da desintegração, à dispersão e à perda. O

fragmento funciona, então, como metonímia, da parte em direção ao todo. [...] Mas não se deve nunca esquecer, como lembra A. Guyaux, que ‘a etimologia da palavra persiste em denunciar o corte, a separação, em não dizer o ferimento ou a operação que faz de um fragmento o que ele é: um ser liberto de tudo que não é ou não é mais, distraído do nada’.

(37)

No livro L’écriture Fragmentaire : définitions et enjeux, Françoise Susini-Anastapoulos (1997) elabora um estudo minuciosamente teórico sobre a escritura fragmentária. Ela traça um percurso histórico-literário acerca desse gênero textual, retomando os seguintes pressupostos, para iniciar sua abordagem:

La vogue que connaît l’écriture fragmentaire depuis deux décennies n’est pas sans rappeler la ferveur avec laquelle cette dernière, aphoristique ou épistolaire, fut cultivée dès le XVIIe siècle en France et dans la deuxième moitié du XVIIIe siècle en Allemagne. Il faut voir dans ce nouveau

« désir » de fragments un symptôme multiple.

(SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 1) 4.

Segundo a autora, a escritura fragmentária sofreu muita rejeição, devido a certo caráter ambíguo, revelador de identidades inconsistentes, uma vez que a visão de mundo do homem, predominante entre os séculos supracitados, era a objetiva. Logo, um escritor que se revelasse um ser fragmentado, assim como o seu leitor, teria que se submeter a « [...] toute la nébuleuse de la doxa, autocommentaire, glose et légende, tant est singulière et ambiguë l’aura dont s’entoure cette forme alternativement conspuée et portée aux nues. » (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 3. Grifos da autora) 5.

Em contrapartida, Barthes concebe o fato de se perseguir essa doxa de uma forma interessante e irônica, para se pensar a questão do fragmento, contrapondo-a com uma nova forma de expressar realidades, mediante o universo literário, quando ele se refere à doxa

como uma espécie de Medusa que formula concepções “pré-moldadas” e, até certo ponto, ultrapassadas para se ler, criticar, teorizar a literatura:

       

4 A evidência em que se encontra a escritura fragmentária desde há duas décadas não permite esquecer o fervor

com o qual esta última, aforística ou epistolar, foi cultivada desde o século XIX na França e na segunda metade do século XVII na Alemanha. É preciso ver nesse novo “desejo” de fragmentos um sintoma múltiplo.

(38)

A Doxa é a opinião corrente, o sentido repetido, como que casualmente. É a Medusa: ela petrifica os que a olham. Isso quer dizer que ela é evidente. Será vista? Nem ao menos isso; é uma massa gelatinosa que cola no fundo da retina. O remédio? Adolescente, eu me banhava um dia em Malo-les-Bains, num mar frio, infestado de medusas (por que aberração ter aceitado esse banho? Estávamos em grupo, o que justifica todas as covardias); era tão freqüente sair de lá coberto de queimaduras e de bolhas, que a zeladora das cabines nos estendia fleumaticamente um litro de água sanitária quando saíamos do banho. Do mesmo modo, poder-se-ia conceber um prazer (arrevesado) colhido nos produtos endoxais da cultura de massa, contanto que, ao sair de um banho dessa cultura, alguém nos estendesse cada vez, como que casualmente, um pouco de detergente. (BARTHES, 2003, p.139).

O autor francês não despreza a importância e a beleza da doxa, pois ela compõe um percurso e envolve aspectos de elaboração intelectual consideráveis para alguns estilos de épocas na literatura. Ele faz uma analogia com a figura mitológica da Medusa, que era bela, mas foi transformada numa criatura monstruosa e perigosa pela deusa Minerva, isto é, ela sofreu as conseqüências de seus atos.

Do mesmo modo, ele expõe – analogamente – a doxa no cenário atual, como uma ferramenta “[...] de velhas belezas adormecidas, a lembrança de uma sabedoria outrora suntuosa [...]” (BARTHES, 2003, p. 139. Um parâmetro estético adormecido e não mais pensável no contexto da escritura fragmentária, a qual se contrapõe a doxa romântica (que pressupõe opinião fixa), mediante paradoxos (que apontam para ambiguidades) que exprimem uma diversidade de perspectivas e releituras, que por sua vez resiste à apreensão do discurso.

A escrita fragmentária de Pessoa é resistente a interpretações. E em Bernardo Soares, observamos um desligamento desta doxa; dessa Medusa que aprisiona e petrifica

(39)

A persistência instintiva da vida através da aparência da inteligência é para mim das contemplações mais íntimas e mais constantes. O disfarce irreal da consciência serve somente para me destacar aquela inconsciência que não disfarça.

Da nascença à morte, o homem vive servo da mesma exterioridade de si mesmo que têm os animais. Toda a vida não vive, mas vegeta em maior grau e que por elas se guia, e as suas ideias, os seus sentimentos, os seus actos, são todos inconscientes – não porque neles falte a consciência, mas porque neles não há duas consciências.

Vislumbres de ter a ilusão – tanto, e não mais, tem o maior dos homens. Sigo num pensamento de divagação, a história vulgar das vidas vulgares. Vejo como em tudo são servos do temperamento subconsciente, das circunstâncias externas alheias, dos impulsos de convívio e desconvívio que nele, por ele e com ele se chocam pouca coisa.

[...]

E, como o inútil cadáver do vulgar à terra comum, baixa ao esquecimento comum o cadáver igualmente inútil da minha prosa feita a atender. [...] Irmãos na comum insciência, modos diferentes do mesmo sangue, formas diversas da mesma herança – qual de nós poderá renegar outro? Renega-se a mulher mas não a mãe, não o pai, não o irmão. (LD, 150, p. 166-7).

Seguindo esse afluxo, podemos nos reportar à abordagem de Susini-Anastapoulos, a qual realiza uma incursão pelas épocas literárias e enfatiza o surgimento dos documentos fragmentários, ressaltando princípios antagônicos de ideais estéticos, políticos, filosóficos, sociais, etc., dado que a inovação plasmada pelo complexo fenômeno fractal poderia promover uma idéia geral de multiplicidade e de subjetividades dentro e fora do ser versus a intenção de unidade na totalidade, instaurado até então.

Il est donc logique, comme le souligne D. Sangsue, que ce soient des romantiques qui, em littérature, aient voulu consacrer le fragment comme tel, bien que le geste puisse paraître, à première vue, en totale contradiction avec l’esprit d’une époque avide d’unité et de totalité. (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 3) 6.

       

6 É então lógico, como remarca D. Sangsue, que sejam os românticos que, na literatura, tenham querido

(40)

Contudo, o fragmento ganha cada vez mais vigor e se instaura, passando a ser uma das conquistas intelectuais maiores e mais marcantes da modernidade, muito embora, deixasse (e ainda deixe) em seu rastro motivos para desconfianças e incredulidades acerca do seu processo inventivo, pois é um gênero em aberto, de caráter ambíguo, parecendo estar suspenso por um processo, o qual pode denotar que suas possíveis interpretações estejam sempre num campo por vir. Essa desconfiança que assola o texto fragmentado decorre, basicamente, porque existe

[...] la nécessité de l’achèvement au sens classique tend à faire aujourd’hui figure d’anachronisme, et le fragment est « entré dans les mœurs ».

[...]

Discontinu et donc rebelle à la facticité de l’exhaustivité systématique, le texte aphoristique s’offrait en effet idéalement à la « potentialisation » romantique, par as manière de placer l’incertitude, voire l’ « ignorance » au cœur du processus cognitif, sans pour autant désespérer d’une synthèse future. (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 4)7.

E, desse modo, pode-se subentender que as possíveis leituras de um fragmento pode estar no ambiente da reflexão : « [...] doit bien respecter la part de silence d’une pensée qui procède sans progression argumentative manifeste, elle doit oser à la fois l’ouverture et la synthèse, et se libérter d’un certain maniérisme. ». (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 4-5)8.

       

7 [...] a necessidade de dar acabamento, no sentido clássico, tende a fazer hoje figura de anacronismo e o

fragmento está “dentro dos costumes”. [...] Descontínuo e então rebelde ao fatídico da exaustividade sistemática, o texto aforístico se oferecia em efeito idealmente à potencialização romântica, por sua maneira de localizar a incerteza, ver a ‘ignorância’ no coração dos processos cognitivos, sem portanto se desesperar com uma síntese futura.

8 [...] deve bem respeitar o que há de silêncio em um pensamento que procede sem progressão argumentativa

(41)

Nesse primeiro momento da abordagem, Susini-Anastapoulos faz opção por seguir o estilo aforístico, mas afirma que a escolha não é de fato legítima,

[...] puisque la pratique du fragment comme aphorisme « expansé » et donc stylistiquement quelque peu « négligé », n’épuise pas la question. Le fragment ainsi compris n’est sans doute même pas le plus fragmentaire de tous, dans la mesure où il est loin de présenter les effets rupteurs les plus spectaculaires et demeure une écriture « classique ». Même au paroxysme de sa volonté d’ouverture, [...] il n’évite pas la récupération affirmative, tant il vrai que la brisure de l’enchaînement rhétorique traditionnel n’empêche nullement l’écriture en fragments d’être elle-même, comme le soupçonnait R. Barthes, une écriture « à effets » et donc « contre-fragmentaire ». (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 5)9.

Essa escritura “de efeito” – pensada por Barthes e segundo Susini-Anastapoulos – aponta para diversos estilos fragmentários e não apenas para o aforismo, tal como a autora inicia seu estudo generalizando essa tipologia textual, por entender que se trata de uma espécie de fragmento “expandido”, um tanto “descuidado” e, consequentemente, não deixa que seu sentido se encerre nos “pedaços de conteúdos”. Ele se torna aberto, flexível no tempo e no espaço. É, portanto, uma escritura com efeitos por vir, num processo de elaboração intelectual contínuo, tanto por parte de quem o faz, quanto de quem o lê. O resultado desse processo será a interseção de universos, ou seja, a interseção de experiências mediadas pela leitura e das experiências humano-existenciais. Há uma fala de Barthes que concorre para essa assertiva, que diz o seguinte:

       

9 [...] já que a prática do fragmento como aforismo “expandido” é então estilisticamente um pouco

(42)

Há pois um impasse da escrita, e é o impasse da própria sociedade: os escritores de hoje o sentem: para eles, a busca de um não-estilo, ou de um estilo oral, de um grau zero ou de um grau falado da escrita é, em suma, a antecipação de um estado absolutamente homogêneo à sociedade; a maioria compreende que não pode haver linguagem universal fora de uma universalidade concreta, e não mais mística ou nominal, do mundo civil. (BARTHES, 2004, p. 76).

Ao refletir sobre o que Barthes expõe, reportamo-nos para um dado que Jean Baudrillard (2003, p. 71) expõe em De um fragmento a outro, quando cita que “Dentro desta forma” barthesiana de pensar a escrita, “podemos ir longe”... Para Baudrillard, o surgimento da escritura fragmentária envolve uma prática que parece ser um desafio fundamental. Posto que, a proposta de Barthes (1989, p. 14-5) é a de escapar ao poder de uma linguagem que se quer subserviente a determinados regimes de poder.

Escapar ao poder da linguagem – na qual “servilismo e poder se confundem inelutavelmente” – pelo preço do impossível, como diria Barthes...

Evidentemente, contra a linguagem, no sentido em que Barthes dizia que ela é fascista, já que se trata de uma intimação para falar e já o fascismo obriga a falar... As pessoas não desejam, talvez, falar nesse sentido... Nem todos os políticos são ininteligentes e, sem dúvida, alguns vislumbram a coisa, mas isso é, de qualquer maneira, inconfessável. (BAUDRILLARD, 2003, p. 71. Grifos do autor).

(43)

proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder.” (BARTHES, 1989, p. 15).

Todavia, a escritura fragmentária segue um rumo contrário, assim como expõe Susini-Anastapoulos, quando lança mão de mais alguns argumentos para adentrar em um plano que elabore Les noms du fragment10 – título de um dos capítulos do seu livro –, expandindo, assim, a concepção nominal aforística restrita ao fragmento, de modo a se pensar em outras categorias que ele possa vir a extrapolar:

L’approche retenue est typologique et comparative, ni strictement historique, ni thématique, puisque le sens du fragment ne s’inscrit pas dans ces « morceaux de contenu », mais dans la fragmentation elle-même et dans un certain agencement du Logos classique. Tout peut d’ailleurs être matière à fragment, la notation de type diariste, la réflexion morale, esthétique, métaphysique, ou les amorces de récits et anecdotes, et autres « histoires brisées ». Historiquement, cette hospitalité thématique du fragment n’a cessé de s’accentuer, au rythme de son affranchissement de la tradicion moraliste classique. Comme l’a fait remarquer G. Fieguth, l’aphorisme moderne européen est « sans objet ni matière spécifique ». Cette liberté de principe, « triomphe d’un moi désagrégé », reste cependant largement théorique, puisque la fourchette thématique de l’écriture en fragments a tendence à se refermer en vertu d’une « certaine constantce des motifs », et la lecture des fragments recèle beaucoup de scories parmi les diamants. (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 5-6)11.

A autora afirma que o nascimento do aforismo moderno europeu se dá no final do século XVIII, sob os domínios linguísticos firmados pelos alemães e franceses, cujas concepções designadas, respectivamente, seguem os seguintes parâmetros: « [...] allemand        

10 Os nomes do fragmento.

11 A abordagem escolhida é tipológica e comparativa, nem estritamente histórica, nem temática, já que o

sentido do fragmento não se inscreve nos “pedaços de conteúdo”, mas na fragmentação em si e num certo

agenciamento do Logos clássico. Tudo pode, aliás ser matéria de fragmento, a anotação do tipo diarista, a

(44)

puisque, sans projection philosophique, à la fois gnoséologique et esthétique, du romantisme d’Iéna, il n’y aurait sans doute pas de question du fragment [...]». (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 7)12. No que tange às perspectivas francesas, a autora define que coube à « [...] la tradition moraliste de référence et que, en dépit des différences de « degré » et malgré un certain décalage historique, nombreux ont été les écrivains qui [...] ont non seulement pratiqué le fragment, mais tenté également d’en théoriser l’écriture.» (SUSINI-ANASTAPOULOS, 1997, p. 7)13.

Nessa formação intelectual, buscou-se, de modo consciente e claro, uma harmonização entre a intenção da obra e a possibilidade de sua realização, assim afirma a autora. Em contrapartida, o gosto pela aparente desordem instaurada por uma escrita breve, descontínua, que atraiu a atenção dos leitores, fora a via de acesso para que relações identitárias se prefigurassem, mediante o processo irradiado por uma literatura do descontínuo, a qual ainda impossibilita uma definição categórica.

Existe portanto em toda escrita presente uma dupla postulação: há o movimento de uma ruptura e o de um advento, há o traçado mesmo de uma situação revolucionária, cuja ambigüidade fundamental está em que é necessário que a Revolução busque naquilo que ela quer destruir a imagem mesma do que ela quer possuir. Como a arte moderna em sua totalidade, a escrita literária porta ao mesmo tempo a alienação da História e o sonho da História: como Necessidade, ela atesta o dilacerar-se das linguagens, inseparável do dilacerar-se das classes: como Liberdade, ela é a consciência desse dilacerar-se e o esforço mesmo que quer ultrapassá-lo. Sentindo-se continuamente culpada de sua própria solidão, não deixa por isso de ser uma imaginação ávida de uma felicidade das palavras [...]. A multiplicação das escritas institui uma Literatura nova na medida em que esta não inventa a sua linguagem senão para ser um projeto: a Literatura se torna Utopia da linguagem. (BARTHES, 2004, p. 76).

       

12 [...] alemão pois, sem a projeção filosófica, ao mesmo tempo gnosiológica e estética, do romantismo de Iéna,

não estaríamos tratando do fragmento [...].

13 [...] a tradição moralista de referência e que, apesar das diferenças de “grau” e apesar de certo histórico,

Referências

Documentos relacionados

 Ao clicar no botão Congurar Apresentação de Slides , uma caixa de diálogo será aberta (gura 59), para que congurações sejam estabelecidas, tais como tipo

Sintetizam-se no exposto de uma profissional que atua na prática docente há mais de duas décadas alguns dos motivos pelos quais a avaliação psicológica deve

Os candidatos reclassificados deverão cumprir os mesmos procedimentos estabelecidos nos subitens 5.1.1, 5.1.1.1, e 5.1.2 deste Edital, no período de 15 e 16 de junho de 2021,

Otto: Este filósofo e teólogo toma como base para sua definição de religião a experiência religiosa e introduz na discussão um conceito que muito vai influenciar a compreensão

No final, os EUA viram a maioria das questões que tinham de ser resolvidas no sentido da criação de um tribunal que lhe fosse aceitável serem estabelecidas em sentido oposto, pelo

Em primeiro lugar, é necessário destacar que Bernardo Soares é um dos principais heterônimos criados pelo poeta português Fernando Pessoa, o que nos impõe uma

Foi observada também indução da expressão dos genes seletivos do adipócito bege (Tmem26 and Cd40) 5 no tecido adiposo branco subcutâneo, mas não no epidimal,

O período de redemocratização foi consolidado com a edição da Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, instrumento jurídico democrático que restaura a