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Entre grades e poemas: um estudo sobre a disciplina na escola

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

YURI FREIRE DE ALMEIDA

ENTRE GRADES E POEMAS:

UM ESTUDO SOBRE A DISCIPLINA NA ESCOLA

Natal/RN

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Yuri Freire de Almeida

ENTRE GRADES E POEMAS:

UM ESTUDO SOBRE A DISCIPLINA NA ESCOLA

Monografia apresentada como trabalho de conclusão de curso da licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho

Natal/RN

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Almeida, Yuri Freire de.

Entre grades e poemas: um estudo sobre a disciplina na escola / Yuri Freire de Almeida. - Natal, 2019.

60f.: il. color.

Monografia (graduação) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho.

1. Disciplina - Monografia. 2. Escola - Monografia. 3. Relações de poder - Monografia. I. Sousa Filho, Alípio de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.4

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YURI FREIRE DE ALMEIDA

ENTRE GRADES E POEMAS:

UM ESTUDO SOBRE A DISCIPLINA NA ESCOLA

Aprovada em: __ / __ /___

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho

Orientador (UFRN)

___________________________________________ Prof. Dra. Anne Christine Damasio

Examinadora (UFRN)

___________________________________________ Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas

Examinador (UFRN)

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A Dona Flávia, minha mãe, sustentáculo e fonte suprema de inspiração.

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AGRADECIMENTOS

Embora seja quase um clichê iniciar os agradecimentos se referindo a como um trabalho de pesquisa é sempre um construto coletivo, é inevitável não o fazer. A produção desta monografia e a consequente conclusão do curso de graduação são produtos de muitas mãos e mentes. Mãos, porque sem trabalho material não há vida possível; mentes, porque sem vasta tradição intelectual-científica, não há pensamento/ciência possível.

Agradeço, em primeiro lugar, à minha mãe, Flávia. Mesmo talvez sem saber e sem muita consciência das consequências futuras que traria, me iniciou na vida das leituras desde minha mais tenra infância, quando me contava, repetidamente, historinhas de ninar. “João e Maria” foi minha favorita e a que mais ouvi. Me estimulou à leitura de tudo, das figurinhas de chiclete, das propagandas na rua, até os textos do livro de alfabetização, que líamos juntos todo fim de tarde. Sem minha mãe e seu apoio incondicional às minhas escolhas, nenhuma conquista pessoal seria possível: só vivo e só penso por conta de seu tremendo esforço cotidiano para fazer de mim o que sou. Obrigado, mãe!

Agradeço, também, à minha família como um todo, mas especialmente a Lucélia, “Titinha”, minha tia que é minha segunda mãe. Me ensinou a virtude do estudo disciplinado, também pela exigência, mas principalmente pelo exemplo. Alguém de quem muito me orgulho e que, sem ela e seus ensinamentos, este trabalho e esta graduação não teriam sido possíveis. Te amo, titinha!

Não poderia deixar de agradecer aos meus mais fiéis, verdadeiros e antigos amigos, aqueles que herdei do ensino médio do IFRN: Pedro, Jares, Matheus, Gleyson e Kevin, o famigerado PDS. Sem vocês e seus ombros amigos nada teria muito sentido. Todas as minhas vitórias são suas também!

Na universidade, os suportes também foram vários. Agradeço a Gabi, pelo amor, pelo afeto e pelo companheirismo que muitas vezes me salvaram da ansiedade brutal que consome e inutiliza os estudantes universitários. Além disso, Gabi me ensinou muito sobre alteridade, responsabilidade e compromisso: viver com ela sempre foi – e é – uma viagem de muitos aprendizados. A ela devo também agradecer à escuta atenciosa e criteriosa, sempre ponderando e contribuindo para a sofisticação das minhas hipóteses. Gabi, obrigado pela parceria e, parafraseando Vinícius de Morais, posso dizer: sem você, eu não sou ninguém.

Também agradeço a João, grande parceiro intelectual, unidos pelo gosto paradoxal por Nietzsche e Marx. Com João, ganhei gosto por Freud, Lacan e cia. Nenhuma aula jamais será

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tão proveitosa quanto nossas conversas no Bar de Nazaré. Também não posso deixar de agradecer a Gabriel pelo bom humor, pelas lições em filosofia da ciência e por ter sido um irmão mais velho na graduação.

Também agradeço à própria UFRN, aos departamentos de Ciências Sociais e de Antropologia e a todos os seus professores que passaram por minha trajetória na graduação. Agradecimento também ao PET de Ciências Sociais, sob tutoria do prof. Alípio – que também orienta esta pesquisa – pela oportunidade de debates em altíssimo nível sobre as mais diversas teorias sociais.

Por fim, é imprescindível agradecer aos servidores e alunos da Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti, o Floca, campo onde se desenvolveu a pesquisa empírica desta monografia. Ao longo de dois anos de convivência intermitente, sempre fui muito bem recebido e acolhido. Gratidão!

Sem todas essas pessoas, esta monografia, que objetiva em si toda uma trajetória acadêmica e de vida, não seria nem de perto possível. Obrigado! Esta pesquisa é de vocês e para vocês!

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As grades do condomínio são para trazer proteção Mas também trazem a dúvida se é você que tá nessa prisão (O Rappa)

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RESUMO

Esta monografia tem como objetivo analisar a instituição escola como local de aplicação de técnicas e estratégias do poder disciplinar. Em outras palavras, se busca compreender a escola não por meio de sua dimensão potencialmente libertadora, emancipadora etc., mas por todo seu aparato disciplinar que regula o cotidiano da vida daqueles que a frequentam. Para tanto, foi escolhido como campo, para dimensão empírica da pesquisa, a Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti, colégio situado na zona sul da cidade de Natal, RN. No que diz respeito ao quadro teórico-referencial, utilizou-se especialmente a obra de Michel Foucault, que versa sobre questões atinentes às relações de poder, suas estratégias, técnicas, mecanismos, sujeitos etc. O que pôde ser constatado é que há, na escola em questão, a presença de um notável aparelho disciplinar, que não é extraordinário, mas arquetípico do modelo moderno de escola adotado no País. Assim, a pesquisa visa demonstrar, por vias de uma analítica sociológica do poder, a maneira com a qual esse arranjo disciplinar opera no caso específico abordado. Apesar de se ter tomado a disciplina como fio condutor e eixo central da pesquisa, tem-se, também, a precaução de mostrar de quais modos a disciplina do ambiente é “afrouxada” pelas diversas resistências cotidianas efetivadas dentro da escola, de modo a evitar uma possível caricaturização e redução de uma realidade profundamente complexa e multifacetada como a escola em sua realidade concreta.

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ABSTRACT

This monograph aims to analyze the school institution as a place of application of techniques and strategies of disciplinary power. In other words, we seek to understand the school not through its potentially liberating, emancipating dimension etc., but through its disciplinary apparatus that regulates the daily life of school. For this, it was chosen as field, for empirical dimension of the research, the Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti, a public school located in the south of Natal, RN. Regarding the theoretical-referential framework, Michel Foucault's work was used, which deals with issues related to power relations, their strategies, techniques, mechanisms, subjects etc. What could be seen is that there is, in the researched school, the presence of a remarkable disciplinary apparatus, which is not extraordinary, but archetypal of the modern model of school adopted in the country. Thus, the research aims to demonstrate, through an analytical of power, the manner in which this disciplinary arrangement operates in the specific case addressed. Although discipline has been taken as the guiding thread and central axis of this research, there is also caution in showing how the discipline is “loosened” by the various everyday resistances within the school so as to avoid a possible caricaturization and reduction of a deeply complex and multifaceted reality as the school in its concrete reality.

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Sumário

Introdução ... 12

Capítulo 1 – Do poder na obra de Michel Foucault ... 14

1.1 O que caracteriza o poder? ... 14

1.2 As técnicas em curso histórico: soberania, disciplina e segurança ... 18

Capítulo 2 – Do poder disciplinar e sua relação com a escola ... 22

2.1. Os recursos para o adestramento, o cotidiano e a militarização ... 22

2.2 A arquitetura, as filas e as séries ... 31

Capítulo 3 – Dos usos não disciplinares da escola ... 40

Considerações finais ... 54

Referências ... 57

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Introdução

O contexto de produção desta monografia é relativo a atividades de estágio obrigatório da licenciatura do curso de Ciências Sociais da UFRN, mais especificamente, é relativo às disciplinas de Estágio Supervisionado de Formação de Professores I, II, III e IV, cumpridas entre o início de 2018 e o final de 2019. Desse modo, a dimensão empírica, i.e., de campo, da presente pesquisa, foi realizada ao longo desses quase dois anos de experiência como professor em formação. Serviram como base para este trabalho relatórios parciais, projetos de intervenção e atividades das disciplinas de estágio, além de diários de campo produzidos durante o período de atividade na escola-campo.

A escola em questão, que serviu de campo de pesquisa e de formação docente, é a Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcanti (doravante, “Floca”, como é popularmente conhecida), localizada no bairro de Capim Macio, na zona sul de Natal. Funcionando nos turnos da manhã e da tarde, na oferta de ensino médio, a instituição dispõe de uma infraestrutura relativamente boa e funcional, diante dos padrões das escolas públicas brasileiras. A escola atende a um público que, via de regra, não reside em suas imediações, já que está situada em um bairro considerado nobre, aos arredores de grandes Shoppings Centers e do campus da UFRN. Não pude, na experiência de estágio, perceber um padrão de local de residências, mas nunca conversei com ninguém que morasse, de fato, no bairro.

Outra questão relevante é que o estágio foi realizado em parceria e sob supervisão da coordenadora pedagógica, Josefa Dantas, e da professora e Sociologia da escola, Danielle Macedo, que permitiram a execução das incursões nos espaços escolares, além de terem orientado e cedido algumas aulas para a regência obrigatória requerida pelos estágios que então se cumpriam.

As informações e dados aqui tratados foram colhidos via observação direta e observação participante (OLIVEIRA, 1996), além de conversas informais e cotidianas, no intento de coletar os “imponderáveis da vida real” (MALINOWSKI, 1976). O quadro teórico-referencial está basicamente centrado na produção de Michel Foucault, especialmente na questão do poder disciplinar e suas respectivas estratégias, técnicas, anatomias, instituições e mecanismos (FOUCAULT, 2014). A questão da disciplina, ver-se-á, foi tomada como fio condutor para a análise sociológica proposta por esta pesquisa. Assim, foi de profundo interesse compreender a escola não apenas como espaço educacional ou socializador, mas também – e especialmente – enquanto espaço atravessado e instrumentalizado pelo poder, marcado por relações

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disciplinares e técnicas de vigilância, enclausuramento, punição, normalização, hierarquização, além de sua configuração arquitetônica caracterizada por muros, grades, portões etc. Apesar disso, não é a intenção desta pesquisa reduzir a escola, como um todo, e o Floca, em particular, à sua dimensão disciplinar, tratando-se, aqui, de uma opção teórica e analítica. A escola é um lugar múltiplo, diverso e também, como se procura demonstrar neste trabalho, um espaço de resistência, inclusive à disciplina.

Ademais, do ponto de vista da estrutura formal desta monografia, o/a leitor/a encontrará, em um primeiro momento, uma fundamentação teórico-conceitual a respeito da questão do poder, suas formas e estratégias; depois, uma análise sociológica aplicada ao contexto específico do campo-escola em que a pesquisa foi feita; junto a isso, também se teve como objetivo fazer uma descrição de práticas não disciplinares ou de resistência e uso criativo do espaço escolar, de modo a não reduzir a complexidade da escola a uma caricatura monolítica; além de considerações finais, referências e apêndices.

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Capítulo 1 – Do poder na obra de Michel Foucault

1.1 O que caracteriza o poder?

Uma primeira questão fundamental para tratamento do tema diz respeito a uma provocação feita pelo próprio Michel Foucault (1995, p. 240) quando trata de delinear o problema: sobre o poder, não se trata do “o que” ou do “porquê”, mas do “como”. Assim, o filósofo francês está muito mais preocupado na constituição de uma “analítica” do poder do que na produção de uma “teoria” do poder. Ao focalizar a questão do “como”, o autor faz um movimento semântico sutil, porém poderoso. Seu objetivo é deslocar o sentido corrente da categoria poder, no intuito de “dessubstantificá-la”. O poder não se detém, se exerce. A consequência é que o poder, longe de ser uma coisa, é uma relação. De tal forma, se pode compreender que o poder apenas pode existir em “ato”, como uma ação sobre a ação (ibid., p. 242-243).

Essas colocações possuem uma segunda consequência, qual seja, uma nova forma de localizar o poder. Dessa forma, uma outra questão seria o “onde” do poder. De acordo com Foucault (2010), desde a idade Média, as sociedades ocidentais se habituaram a compreender o poder a partir de uma perspectiva centrada nas questões jurídicas e régias. O Estado, o Rei e a Lei são entendidos como núcleos que detém e concentram o poder de uma sociedade. Essa perspectiva se sustentou porque o pensamento jurídico surgiu com a intenção de legitimar a dominação monárquica, portanto, a questão da soberania sempre foi seu problema central. Dessa forma, embora exista uma compreensão ingênua de que a monarquia absolutista era o império do arbítrio, dos caprichos e dos excessos das volições individuais dos soberanos, na verdade, esses regimes ocidentais sempre se basearam em sistemas de direito, legitimados por teorias do direito e cujos mecanismos de poder atuavam pela via do direito (FOUCAULT, 2017). Em outras palavras, foi a partir de tal identificação entre Rei, Lei e poder que se consolidou a concepção jurídica de poder – ou teorias da soberania – que vigorava até a crítica foucaultiana.

O autor, enquanto afirma jocosamente que “no pensamento e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei” (ibid., p. 97), isto é, não se havia ainda superado a primazia da Lei e do Estado na concepção de poder, assume que “[...] é somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos” (ibid., p 94). Com isso, Foucault alerta para um princípio de funcionamento das sociedades: tanto mais eficiente é um processo de dominação, quanto mais invisível e silencioso ele é. O mesmo afirma Bourdieu (1980, p. 23-24 apud.

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LAHIRE, 2014, p 49): “[...] não existe poder que não deva uma parte – e não a menor delas – de sua eficácia ao desconhecimento dos mecanismos que o fundam”. O que as críticas sociológicas, como um todo, e foucaultiana, em particular, alertam, é que na medida em que as teorias da soberania focalizam a preocupação sobre o poder no Estado, elas se cegam para outras diversas relações, instituições, dispositivos e encadeamentos de que se vale o poder para dominar e assujeitar. Desse modo, se pode perceber facilmente que Foucault caminha no sentido de prescindir cada vez mais da noção “leviatânica” de poder.

Foucault, por sua vez, faz um esforço teorético para aperfeiçoar e atualizar o entendimento do poder. Seu argumento é o de que há já alguns séculos – desde meados do século XVII ou XVIII – que as teorias da soberania já não descrevem com precisão a realidade, visto que os mecanismos de poder se sofisticaram de um modo que sua complexidade não pode mais ser descrita pelas velhas teorias, que davam conta, outrora, apenas de explicar o poder soberano das sociedades europeias feudais:

[Os] novos procedimentos de poder que funcionam não pelo direito, mas pela técnica, não pela lei, mas pela normalização, não pelo castigo, mas pelo controle, e que se exercem em níveis e formas que extravasam do Estado e de seus aparelhos. Entramos já há séculos, num tipo de sociedade em que o jurídico pode codificar cada vez menos o poder ou servir-lhe de sistema de representação (FOUCAULT, 2017, p. 98).

Assim, o argumento do filósofo francês é o de que não existe “o” poder, no sentido de uma unidade de dominação soberana e global, mas, antes, essas manifestações seriam as expressões mais superficiais das relações de poder. Na verdade, o poder seria uma multiplicidade de correlações, por vezes desequilibradas, de forças, ocorridas de modo permanente e relativamente instável, em um processo incessante e dinâmico de transformações, reforços, inversões etc. Em outras palavras, essas forças podem se anularem, se contradizerem ou se sobreporem umas às outras, algumas vezes, aí sim, se cristalizando em formas institucional-estatais. Nesse sentido, o poder aparece não “lá”, na torre de marfim do Estado ou do grupo político privilegiado que por ventura poderia vir a reger a racionalidade estratégica do poder, mas “aqui”, nas microrrelações sociais cotidianas, presente nos modos de pensar, nos modos de agir, nos modos de sentir, julgar, classificar e apreciar o mundo – afinal, como já dito, atua como uma ação sobre a ação, que culmina na produção do indivíduo como efeito do poder. Caracterizado também por sua onipresença, “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo, mas porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 2017, p. 101).

Por outro lado, como corolário às teses já citadas, é muito importante discutir a questão da institucionalização ou estatização das estratégias do poder. Em suma, tem-se de tratar sobre

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o modo como determinadas técnicas podem ser “cooptadas” pelos aparelhos de Estado, a fim de serem centralizadas com um determinado interesse político. Assim, uma das lições deixadas pelo autor em questão é que sua analítica do poder opera de modo ascendente, observando como os micromecanismos locais são generalizados por operações globalizantes, em vez de buscar, de maneira equivocada, como um mecanismo já global poderia ter espraiado sua dominação a um nível “molecular”. Foucault, em crítica indireta a certas tradições mecanicistas do pensamento marxista, afirma que a burguesia – identificada por aqueles como fonte de um poder central e totalizante – não inventou as dominações mais particulares, como por exemplo a medicalização da sexualidade, mas, por ventura, pode ter se apropriado dessa técnica para aperfeiçoar seus modos de atuação política e econômica. Em suma, quando há um poder globalizante (seja ele identificado com a burguesia ou com o Estado), é porque esse poder se apropriou de técnicas locais e particulares, não porque haja um Leviatã cujos membros possam atingir até o nível mais infinitesimal da realidade social. Nas palavras de Foucault (2010, p. 29): “a burguesia não se interessa pela sexualidade da criança, mas pelo sistema de poder que controla a sexualidade da criança”.

Retomando a questão da ação sobre a ação, para aprofundá-la, nota-se que o pensamento foucaultiano entende o poder como uma estratégia de condução das ações “eventuais, ou atuais, futuras ou presentes” (FOUCAULT, 1995, p. 243). Nesse sentido, o ator social – para manter o vocabulário no mesmo campo semântico – não tem a sua agência anulada, mas conduzida. Nesse sentido, o poder não tem características negativas, mas positivas: em vez de dizer “não”, ele diz de que forma, dentro das formas possíveis, o ator vai dizer “sim”. Foucault, sobre tal propriedade do poder, afirma: “[...] ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável” (ibid., p.243). Em outras palavras, o ator social será mantido como sujeito da ação, fazendo dele não um mero objeto-alvo, mas, sim, um sujeito-instrumento do poder. Assim, o poder circula de modo dinâmico, já que “atravessa” o sujeito em vez de parar nele. Da mesma forma, seguindo a linha argumentativa, o poder apenas pode ser exercido sobre um sujeito livre, afinal, as estratégias de poder, que governam ações, só podem fazê-lo se houver, de fato, ações. Não há poder onde não há possibilidade de ação. Nas palavras do próprio autor: “Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se de uma relação física de coação)” (ibid., p. 244). Portanto, a liberdade não se contradiz com o poder. Ao contrário, a liberdade é uma condição sine qua non para a existência do poder, além de ser um suporte constante do seu exercício. Liberdade: condição e suporte do poder.

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Ademais, sobre o exercício do poder, há de se enfatizar que esse se dá por meio de maneiras muito diversas:

[...] pela ameaça das armas, dos efeitos das palavras, através das disparidades econômicas por mecanismos mais ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilância [...], segundo regras explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivos materiais (ibid., p. 244).

Assim, retomando e reforçando argumentos já citados, o poder pode se manifestar de modos muito distintos, por exemplo, com graus diferentes de “governamentalização” (FOUCAULT, 1990) ou institucionalização, estando presente em uma ou várias instituições, de modo setorial e relativamente ilhado ou compondo uma rede-arquipélago de estratégias de poder, como foi o caso do poder disciplinar, especialmente na era das sociedades disciplinares (id., 2014). Essas manifestações múltiplas e dinâmicas das formas do poder, como já exposto, têm como consequência o fato de que as diferentes estratégias podem se sobrepor, se cruzar, se combinar, se anular etc.

Devido ao fato de o poder estar sendo compreendido proeminentemente pelo seu caráter relacional, dinâmico e estratégico, deve-se, também, atentar para a questão da resistência. A famosa fórmula foucaultiana diz que onde há poder, há, também, resistência (FOUCAULT, 2017, p. 104). É nesse ponto que fica clara a questão “agônica” que envolve as relações de poder. Os alvos das estratégias, técnicas, mecanismos, enfim, dos ardis do poder, nunca são permanentemente anulados. Ao contrário, constituem uma rede múltipla de focos particulares de resistências, de modo a servirem como barreiras ou entraves para a atuação do poder. Essas resistências são plurais e, como tais, se manifestam de modos muito distintos. Elas podem ser: “possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício” (ibid., p. 104). Esse exaustivo rol de características que podem assumir as resistências mostram uma concepção de luta que não mais identifica a resistência a um sujeito histórico coletivo determinado, que teria um potencial papel bem definido a cumprir, a fim de inverter uma certa lógica de exploração. Não é que Foucault ignore as grandes disrupções, mas elas seriam, segundo o autor, mais uma exceção do que a regra. No geral, as resistências são multissituadas e microrrelacionais, reagindo a focos específicos de poder, em pontos também específicos de aplicação do poder, de modo dinâmico, móvel e transitório (FOUCAULT, 2017, p. 105).

Para terminar a primeira caracterização geral do poder e sua analítica, é preciso discutir mais alguns detalhes do sofisticado funcionamento das relações de poder. Essas questões são, precisamente, o saber e o discurso. Não se pode entender o pensamento foucaultiano e sua

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contribuição para as ciências sociais sem uma compreensão pelo menos geral das implicações recíprocas entre o poder, o saber e o discurso. Nessa mesma discussão, entra, de maneira não menos importante, a questão da verdade. Em termos sucintos poder-se-ia dizer: discurso é meio para produzir verdade; que, por sua vez, é meio para produzir saber; que, por sua vez, é meio para produzir poder. No entanto, é preciso atentar que essa formulação é mais didática do que uma expressão de uma suposta lógica linear do modo de operar do poder. Assim, também se poderia dizer: poder produz discurso, que produz saber, que produz verdade – ou ainda qualquer outro agenciamento das “variáveis” em questão. Em suma, esse encadeamento íntimo e sofisticado diz respeito às “variáveis”: “poder”, “saber”, “verdade” e “discurso”, mas não em uma ordem linear ou lógica necessária ou determinada.

Ainda sobre a mesma questão, segundo o próprio Michel Foucault (2010, p. 22),

não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer poder mediante a produção da verdade.

Assim, o autor alerta sobre mais essa sutileza do tema tratado: quando se falar em poder, também, necessariamente, será preciso falar em saber, discurso e verdade, afinal, não há poder que se exerça sem esses efeitos e agenciamentos. Além disso, esmiuçando um pouco mais especificamente a questão da verdade (e, portanto, também do saber, do poder e do discurso), Foucault discorre sobre o modo como os sujeitos são “julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a uma certa maneira de viver ou [...] de morrer, em função de discursos verdadeiros, que trazem consigo efeitos específicos de poder” (ibid., p 22). A verdade, nesse sentido, compartilhado outrora com Nietzsche (1999) e Dostoiévski (2000), longe de ser libertadora, como no sentido bíblico, é entendida como prisão. Mas seria simples assim? Esse seria o único papel da verdade na luta agonística das relações de poder? Para Foucault, não, justamente porque, como dito, o poder é uma relação não apenas dinâmica, mas também instável e agônica, o que faz com que a verdade também possa ser potencialmente utilizada e convertida em instrumento de resistência ao poder. Se de um lado se tem a verdade como efeito e instrumento do poder, do outro se tem a verdade como ponto de inflexão, isto é, como meio de uma estratégia antagônica ao próprio poder.

1.2 As técnicas em curso histórico: soberania, disciplina e segurança

Pensar o poder implica também pensar suas técnicas no decorrer da história, ou seja, observar suas diferentes conformações ao longo do tempo. Nesta seção, objetiva-se discutir

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alguns mecanismos proeminentes que marcaram as sociedades nos últimos séculos. Tal discussão geral servirá de apoio à discussão específica sobre o poder disciplinar (foco deste estudo) que se segue. As formas aqui destacadas são o mecanismo jurídico-legal (marca da soberania), o mecanismo disciplinar e o mecanismo de segurança (FOUCAULT, 2008).

O mecanismo jurídico-legal assume a forma da lei, construindo um “proibido” e um “permitido”. Àqueles que ultrapassarem a proibição será aplicado um código penal, que faz, por sua vez, a bricolagem entre o ato proibido e sua punição específica. O mecanismo disciplinar, a ser aprofundado no decorrer deste trabalho, adiciona ao esquema “proibido”/“permitido” a figura do “culpado”. Esse sujeito histórico e discursivo engendra em torno de si todo um rol de saberes médicos, policiais, pedagógicos, psicológicos, corretivos etc. O dispositivo de segurança é caracterizado pela inserção dos fenômenos dentro de um jogo de probabilidade e de custos, ou seja, dentro de cálculos precisos. Assim, esse fenômeno, em vez de criar a cisão entre “proibido”/“permitido”, calcula uma média precisa para traçar um limite seguro que não deve ser ultrapassado (ibid., p. 8-9).

De tal forma, ter-se-ia, em termos temporais, o sistema jurídico-legal operando a partir dos séculos XII e XIII; o sistema disciplinar, a partir dos séculos XVII e XVIII; e o sistema de segurança a partir de meados do século XIX. Como resultado, se teria bem esquadrinhado três eras bem definidas, caracterizadoras da Idade Média, da Modernidade e da Contemporaneidade (ibid., p. 8-9). O autor alerta, porém, que esse modelo é meramente esquemático e que, antes de qualquer coisa, cumpre uma função didática. O que ocorre, na verdade, é uma sobreposição das técnicas ao longo da história, de modo que, por exemplo, na Idade Média – quando da dominação do sistema jurídico-legal – já apareciam mecanismos disciplinares. Nesse sentido, os suplícios servem como exemplário de mecanismos disciplinares dentro do sistema jurídico-legal. Da mesma forma, no sistema disciplinar também estão presentes dispositivos de segurança. Afinal, quando se pune um culpado, também se leva em consideração uma probabilística de reincidência desse sujeito. Se os sistemas jurídico-legal e disciplinar não prescindem de mecanismos de poder exóticos (no sentido literal da palavra), a consequência lógica do argumento é a de que o mesmo ocorre com o sistema de segurança, que não prescinde dos mecanismos legais e disciplinares. Os mecanismos legais aparecem nas técnicas de segurança na medida em que há uma dilatação das legislações específicas que caracterizam cada vez mais segmentariamente as diversas variantes dos delitos – de maneira muito mais sofisticada que os códigos legais da Idade Média. Por sua vez, a disciplina se apresenta, nesse contexto, como o conjunto de técnicas que garantem o funcionamento da segurança, como por exemplo a vigilância, o exame e a classificação. Em suma, não existe “uma série na qual os

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elementos vão se suceder, os que aparecem fazendo seus predecessores desaparecerem. Não há a era do legal, a era do disciplinar, a era da segurança” (FOUCAULT, 2008, p. 11). O que existe, na verdade, é o modo como esses mecanismos se correlacionam e se sobrepõem uns aos outros. Essa questão é de fundamental importância na discussão sobre o poder, já que alerta para que não se compreenda os mecanismos por meio de um “evolucionismo” simplista que deixasse escapar a sutileza das “amálgamas” que ocorrem nas relações que o fundam.

O esquema foucaultiano dos três dispositivos também serve para discussões analíticas que são importantes fundamentos para este trabalho. O autor analisa, por exemplo, o modo como em cada época histórica os mecanismos de poder lidaram com diferentes doenças de largo alcance de modos bastante distintos e característicos. Na Idade Média, o sistema legal lidou com a lepra. Ao seu próprio modo, produziu uma divisão binária entre os leprosos e os não-leprosos. Já na Modernidade, o poder disciplinar tratou da peste. A disciplina, caracteristicamente, lidou com a cidade pestilenta (FOUCAULT, 2014, p. 193): vigilância, hierarquização e controle minucioso da entrada, da saída, da alimentação, dos contatos... Por sua vez, os dispositivos de segurança lidam com a varíola: a atenção é voltada para a quantificação de quantas pessoas contraíram a doença, com quais riscos, com qual taxa de mortalidade, com quais sequelas etc. Para Foucault (2008, p. 14), a segurança trata de “um problema que já não é o da exclusão, como na lepra, que já não é o da quarentena, como na peste, [mas] que vai ser o problema das epidemias e das campanhas médicas”. Embora não seja objetivo desta seção, se pode perceber a íntima relação entre o dispositivo de segurança e o que será chamado pelo autor de “biopolítica”.

A organização desses três mecanismos de modo esquemático, por Foucault, também permite uma caracterização, em termos simples (portanto, também parciais), dos pontos de aplicação das técnicas, algo de grande importância para a analítica do poder como um todo e para este trabalho em particular. A soberania se aplica à fronteira de um território; a disciplina, a um corpo; e a segurança, a uma população. A relação corpo-disciplina será constantemente acionada, além de aprofundada, ao longo deste trabalho. Sobre a segurança, se conclui que essa está baseada na probabilidade, na estatística e na população.

A reflexão a respeito dessa tríade das técnicas também permitiu a Michel Foucault promover uma análise do poder nos modos de configuração dos espaços das cidades. Desse modo, o autor consegue demonstrar exemplos de cidades modeladas a partir dos mecanismos de soberania, de disciplina e de segurança. Embora para este trabalho o debate sobre a cidade não seja de total relevância, a discussão a respeito da relação entre o poder e as arquiteturas dos

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espaços será aprofundada no capítulo seguinte, visando a produção de uma análise atinente, especialmente, à configuração disciplinar da arquitetura da escola.

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Capítulo 2 – Do poder disciplinar e sua relação com a escola

2.1. Os recursos para o adestramento, o cotidiano e a militarização

Como tentativa de evitar uma exposição excessivamente fragmentária, este capítulo tenta articular a discussão teórica a respeito da caracterização do poder disciplinar com o debate já analítico e aplicado da disciplina operante no campo em que a pesquisa foi executada. Sendo assim, esses dois movimentos são presentes neste segundo capítulo, ora separados, ora mesclados.

A mecânica disciplinar do poder, disseminada nos séculos XVII e XVIII, pode ser caracterizada, em um primeiro momento, como um conjunto de técnicas que possuem a capacidade de “manufaturar” um corpo. Como já discutido, o corpo é central na discussão da disciplina, já que é seu ponto principal de aplicação. Assim, na disciplina, o corpo, implicado em uma série de relações muito complexas de poder, se vê submetido a todo um rol de vetos, limitações e obrigações: o corpo é detalhadamente trabalhado, em uma coerção incessante de nível “molecular”, que dispõe das atitudes, gestos, movimentos etc. Em suma, a disciplina promove o “poder infinitesimal sobre o corpo ativo” (FOUCAULT, 2014, p. 135). De tal forma, a disciplina, por ser ininterrupta, tem um interesse processual, fazendo vigília mais dos processos do que dos resultados. Há, também, nessa mecânica, um profundo esquadrinhamento do tempo, do espaço e, como visto, dos movimentos, o que permite o “controle minucioso das operações do corpo” (ibid., p.135).

Essas formas de atuação do poder disciplinar são responsáveis pela fabricação de corpos submissos e docilizados, mas também úteis. O sujeito deve ser tão obediente quanto útil. Isso, porque a disciplina, ao fabricar o corpo, o treina e o exercita, o dotando de “habilidades”, “capacidades”, “aptidões” etc. Assim, o corpo se torna a dobradiça entre o incremento das aptidões e o incremento das dominações.

Dadas tais características, fica evidente a identificação dos assujeitados da disciplina com os soldados do exército, com os operários do capitalismo industrial cujos trabalhos são ou foram organizados pelas vias do taylorismo/fordismo, com os apenados nas prisões, bem como com os alunos das escolas. Especificamente sobre o alunado das escolas, se vê facilmente tais operações do poder disciplinar no cotidiano, nos discursos e nas práticas escolares, afinal, “a escola surge como uma das instituições destinadas a disciplinar corpos e mentes, a disciplinar o próprio saber, sua produção e transmissão” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2010). O controle minucioso dos gestos, das atitudes e dos movimentos se observa, por exemplo, nos sistemas de

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regras, explícitas ou tácitas, e nas inspeções, que vetam os gritos, as corridas, as algazarras, pelos corredores das escolas – a não ser em eventuais momentos reservado para isso. Também se expressam nos controles, tácitos ou evidentes, dos cortes de cabelo, dos modos de andar, dos modos de falar; se expressam na sala de aula, quando um estudante precisa de autorização para ter voz; quando precisa de autorização, e muitas vezes de justificativas, para entrar ou sair da sala de aula; se apresenta nos horários rigorosos de entrada e saída do prédio da escola, mediados pelos efeitos simbólicos de um sinal sonoro; também se expressa no controle rigoroso da indumentária. Todas essas marcas objetivas que manifestam o poder disciplinar foram observadas na experiencia de campo ocorrida no Floca.

As primeiras considerações a respeito das observações empíricas serão feitas sobre a questão da indumentária. No primeiro ano de observações de campo, em 2018, era notável como havia, no Floca, uma certa permissibilidade em relação ao uso de farda. Muitos estudantes não faziam uso do uniforme, embora a maioria ainda o trajasse. Ocorre que nas observações feitas durante o segundo semestre de 2019, surgiram, espalhados pelos murais da escola, diversos cartazes informativos com os seguintes dizeres:

ATENÇÃO. A direção do FLOCA comunica aos pais e alunos que o uso DIÁRIO

da FARDA é obrigatório neste Estabelecimento de Ensino. Lembramos a todos que o uniforme escolar representa organização, segurança e economia. Contamos com a compreensão de todos que fazem o ‘FLOCA’. Atenciosamente, Gestão da E. E. Des. Floriano Cavalcanti (Mantida grafia original, inclusive grifos).

Além de exprimir uma regra disciplinar clara, a do controle rigoroso da indumentária padronizada, o informe ainda justifica a regra. A justificativa se dá pela “organização, segurança e economia” supostamente conferidas pelo fardamento. A palavra “organização” faz parte do léxico da disciplina, já que esse é um dos objetivos do controle infinitesimal das operações do corpo. Um corpo disciplinado é um corpo organizado (e vice-versa). Uma coletividade disciplinada é uma coletividade organizada (e vice-versa). Segundo Foucault (2014, p. 145, grifo meu), “a primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades

organizadas”. Assim, o fardamento parece visar à unificação, transformando a coletividade

heteróclita em coletividade homogeneizada e ordenada.

Quanto à segurança, é preciso retomar uma discussão empreendida no capítulo anterior: a questão da sobreposição ou da mescla entre diferentes mecanismos de poder. No caso do informe sobre a farda, há uma espécie de “afinidade eletiva” entre a disciplina e a segurança. Embora não seja claro de qual maneira o fardamento pode contribuir para a segurança, nem de

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qual tipo de segurança se está falando, não se pode deixar de mencionar uma passagem da obra de Michel Foucault, em que o autor versa sobre os vínculos dados entre disciplina e segurança: “[...] o corpus disciplinar também é amplamente ativado e fecundado pelo estabelecimento desses mecanismos de segurança. Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso apelar [...] para toda uma série de vigilâncias.” (FOUCAULT, 2008, p. 14). Embora, como já dito, o informe não expresse a qual tipo de segurança se refere, é interessante notar o modo como, pelo menos em alguma medida, tanto “organização” quanto “segurança” mobilizam estratégias disciplinares.

Ao se referir a “economia”, o informe certamente se refere ao fato de que, ao se utilizar um uniforme, os alunos utilizariam uma menor variedade de roupas, o que representaria algum tipo de economia no orçamento doméstico. A justificativa da economia, nessa acepção do termo, não parece mobilizar, de modo subjacente, uma estratégia disciplinar, mas simplesmente servir de argumento para se fazer cumprir o regulamento disciplinar em si.

No que diz respeito às vivências cotidianas observadas, em relação ao fardamento, ficou evidente que menos alunos passaram a frequentar a escola sem farda desde que a obrigatoriedade do uniforme foi ressaltada. Ademais, dois eventos específicos, observados em campo, são emblemáticos quanto a isso. O primeiro deles ocorreu em uma observação em agosto de 2019, no turno da tarde, durante uma visita à diretoria da escola. A vice-diretora do colégio estava ao telefone com a mãe de duas alunas irmãs. A servidora cobrava o uso do fardamento para uma das garotas, já que, na situação, a outra irmã estava autorizada a ir à escola sem farda, porque saia do trabalho direto para lá. Ao que parece, a irmã que não saia do trabalho para ir à escola se aproveitou da brecha que a irmã conseguiu e passou a ir também sem fardamento para a escola. O que ocorreu, como já dito, é que a escola cobrou aos pais o uso de uniforme para essa aluna que não estava em situação extraordinária, como era o caso da irmã trabalhadora. Essa situação revela duas coisas: primeiro, mostra o modo como a escola reivindica a obrigatoriedade do fardamento (por meio de contato telefônico com os pais), o que demonstra o compromisso da instituição com as regras disciplinares; segundo, mostra como o regulamento, pelo menos nesse aspecto, não é reificado, de modo que, em circunstâncias extraordinárias, os alunos têm direito a negociar as regras estratégicas da disciplina. Isso é muito importante para não se construir imagens caricatas – e falsas – do que seria uma instituição que opera com técnicas disciplinares: na escola em questão e no tema em questão, apesar da disciplina, o alunado, em circunstâncias extraordinárias, tem direito à agência em relação à instituição.

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Outro evento importante observado ocorreu no início de 2018, durante as primeiras visitas ao campo. Fazendo observação em grupo, com mais três ou quatro colegas de universidade, ao fim de um dia de visita, uma servidora chamou um dos colegas no canto para lhe falar algo. Ocorreu que a servidora reclamou porque o estagiário estivera na escola vestindo bermuda jeans e não calça jeans, como defendem as regras da escola para os alunos. Segundo relato do colega de estágio, a servidora o interpelou para que ele começasse a seguir o código de indumentária, a partir daquele alerta, especialmente para não estimular, indiretamente, os alunos da escola a desobedecerem a regra relativa ao fardamento. Assim, havia a preocupação de que os centímetros de tecido que separam uma bermuda de uma calça desencadeassem algum tipo de rebelião (contra-)indumentária. O que isso revela sobre a disciplina é o temor de seus agentes em relação à desordem ou desorganização. Mais do que isso, exemplifica, como demonstrado por Foucault, que as punições – ou no caso citado, a advertência – têm como alvo principal não o infrator, que já cometeu o “delito”, mas os possíveis infratores do futuro, isto é, aqueles que podem repetir o “delito”. Dessa forma, “punir será então a arte dos efeitos” (FOUCAULT, 2014, p. 92). Em outras palavras, a situação demonstra que, para a gestão disciplinar, o indivíduo menos visado pela advertência é aquele que é advertido, responsável por ter violado uma regra, mas sim aqueles que possam, de alguma forma, se sentirem estimulados a violar as regras, promovendo algum tipo de distúrbio desorganizador no futuro.

Outra questão relevante, suscitável a partir do episódio da advertência sobre como se vestir, diz respeito a um dos recursos para o bom adestramento, utilizados pelo poder disciplinar: a vigilância. Antes de prosseguir, há de se notar, porém, que a questão da vigilância está intimamente ligada à configuração arquitetônica das instituições, bem como à distribuição espacial dos corpos no ambiente, de modo que a compreensão da operação da primeira, na escola, só se dá efetivamente a partir da análise das duas últimas. Dando início pela questão da vigilância ela mesma, é facilmente perceptível sua presença em âmbito escolar. No Floca, a vigilância é feita sistematicamente pelos porteiros, que se revezam entre as tarefas de guardar a entrada/saída gradeada da escola e de caminhar pelos corredores e pátios do prédio. A vigilância também é feita, obviamente, por outros servidores, como diretores, vice-diretores, coordenadores e mesmo professores. No caso dos professores, as observações de campo apontam para uma vigilância feita tanto dentro quanto fora da sala de aula.

Um caso emblemático de técnica de vigilância adotada em sala de aula por um professor foi observado em visita de campo durante o primeiro semestre de 2019, pela manhã, em uma

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turma de 3º ano1. A aula observada consistia em uma atividade do livro. Separados em grupos, os alunos não estavam muito preocupados em fazer a atividade – estavam dispersos, conversando ou no celular. O professor, após fazer alguns comentários, passa de grupo em grupo, carteira por carteira, observando/vigiando os alunos, que, diante da presença do professor próximo aos grupos, passam, pelo menos momentaneamente, a focar na lição. Nesse caso, a vigilância por si só foi capaz de impor ordem ao alunado, que talvez tenha ficado receoso ante uma possível punição, pois, “na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um pequeno mecanismo penal” (FOUCAULT, 2014, p. 175). De tal modo, a disciplina atua nos interstícios da lei, cobrindo seus vácuos, para constituir uma “infrapenalidade”, que prevê e pune comportamentos não contemplados pelos grandes sistemas penais. Na prática, isso quer dizer que a escola consegue construir uma institucionalidade que pode punir por atos muito simples, como, por exemplo, o não cumprimento de uma atividade de sala de aula. Para Michel Foucault (ibid., p. 176),

Na oficina, na escola, no exército, funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções de tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência) [...]. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações mais tênues da conduta, e de dar uma função punitiva aos elementos aparentemente indiferentes do aparelho disciplinar: levando ao extremo, que tudo possa servir para punir a mínima coisa; que cada indivíduo se encontre preso em uma universalidade punível-punidora.

Essa condição de punibilidade ao mesmo tempo universal e infinitesimal reforça a tese do poder disciplinar como sendo uma anatomia política do detalhe. Além disso, esse microssistema penal do aparato disciplinar é reconhecido por Foucault como sendo também ele um recurso para o bom adestramento, estando, portanto, no mesmo rol que a vigilância. Assim, existe uma conjugação entre as duas técnicas disciplinares – a vigilância e a sanção normalizadora2 – que parece se manifestar na ocasião de sala de aula acima citada. A vigilância, por si só, é efetiva no “ordenamento” de uma coletividade dispersa, porque o alunado teme uma possível sanção normalizadora, afinal, na instituição disciplinar, até a negligência mais sutil é punível.

1 É importante reiterar que o caso mencionado a seguir é emblemático, não um caso excepcional ou extraordinário,

haja vista que, pela própria configuração da sala de aula – alunos sentados ante o professor de pé –, a vigilância contínua e permanente por parte do professor é quase um efeito colateral da atividade profissional. Em outras palavras, vigiar faz parte da atividade docente, mesmo que o professor não queira ou não faça nada com isso.

2 Sanção normalizadora” é como o historiador francês chama a aplicação do mencionado microssistema de

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Retomando a questão da vigilância, cabem mais algumas discussões analíticas a partir de observações empíricas. Toda pessoa que chega à escola em questão, encontra um primeiro portão aberto, que dá acesso ao estacionamento da instituição. Em seguida, encontra um segundo portão fechado, com um porteiro o guardando por trás dele. Se quem aparece diante desse portão é “estranho” ao cotidiano da escola, ou, mais precisamente, desconhecido do porteiro, o visitante é obrigado a se identificar, de modo a explicar quais são seus interesses em entrar na escola. Durante as visitas, feitas ao longo de dois anos, como diferentes pessoas iam ocupando a função de porteiro, tive que me identificar diversas vezes – para diferentes pessoas – como estagiário e sempre dizendo com quem queria falar. Em uma visita feita no último semestre de 2019, foi observada uma cena de ainda maior rigor na autorização (ou não) da entrada de pessoas “estranhas”: o porteiro demandou que uma senhora lhe informasse seu número de CPF. Ele anotava em uma folha de papel, sentado atrás do portão e, enquanto a senhora não terminava de proferir seu número de identificação, ele também não permitia que ela entrasse. Terminado processo de identificação, finalmente, a senhora teve acesso ao corredor de entrada da escola.

Todo esse rigor em relação à recepção dos visitantes, não apenas no Floca, mas em muitas outras escolas, especialmente aquelas situadas em bairros periféricos, se justifica pela necessidade de “segurança”. Embora o Floca se situe em um bairro nobre, a escola fica localizada em um quarteirão residencial pouco movimentado, o que pode promover uma maior sensação de insegurança. Em diversos relatos obtidos entre servidores, a questão da segurança aparece como ponto central na organização da escola, inclusive orientando os horários da instituição. O que foi relatado por uma das funcionárias da equipe pedagógica, no primeiro semestre de 2018, e observado na prática, foi que, quando há horários vagos para os alunos nos últimos “tempos” do turno da tarde, a escola fecha mais cedo3. Ou seja, embora o turno

vespertino se encerre, oficialmente, às 17h30, em algumas ocasiões em que há a possibilidade de encerrar as atividades mais cedo, assim é feito, em virtude do temor da insegurança. Isso se torna candente, especialmente, porque os alunos e alguns servidores precisam caminhar alguns metros até chegarem às paradas de ônibus mais próximas. Como as ruas próximas à escola são pouco movimentadas, isso se agrava ainda mais ao anoitecer, piorando, talvez, a sensação de insegurança – o que justifica o encerramento de alguns dias letivos mais cedo do que o normal4.

3 É importante a informação de que o Floca, no período da pesquisa, não funciona no período noturno.

4 Há de se notar, entretanto, que o encerramento antes do horário oficial não é cotidiano, nem regra, ocorrendo

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Tal questão da sensação de insegurança que transcende os muros e grades da escola, afetando, como visto, até suas atividades cotidianas pôde ser parcialmente experienciado em um dia de observação de campo no segundo semestre de 2018. Em um dado momento da tarde, quando vários estagiários se encontravam na biblioteca, ouve-se uma pequena agitação nos corredores. O que ocorreu, segundo os relatos de servidores e alunos que puderam presenciar a cena, foi que um carro acabara de ser roubado bem de frente à escola. Como o corredor de entrada do Floca fica bem de frente para a rua, quem passa, do lado de fora, vê o corredor e vice-versa. Assim, alguns alunos e servidores puderam presenciar a imagem de violência externa, porém muito próxima. Nessas condições, é natural que haja sensação de medo, desconforto e insegurança em relação ao que é “estranho” e que vem de fora dos muros.

Esse medo do “estrangeiro” pode até ser comparado ao que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2017) chama de “paradigma imunológico”. Esse paradigma é marcado por uma fratura evidente entre dentro e fora, entre amigo e inimigo, entre familiar e estranho. Ele se baseia na lógica “ataque x defesa” e, em nome da defesa, afasta tudo que é estranho. É uma lógica nitidamente militar. Aí talvez haja uma intercessão entre as instituições militares – que defendem um Estado-Nação – e a escola protegida – que defende a si mesma –: o medo de que o “estranho”, o “alheio”, o “estrangeiro” desorganize a ordem supostamente estabelecida5.

Ocorre, porém, que essa “imunologia” que quer se proteger de eventuais danos causados pelo “alheio” também possui uma contrapartida interna. Ou seja, as grades que separam o que está fora do que está dentro são as mesmas grades separam o que está dentro do que está fora. Em outros termos, os portões gradeados não apenas protegem, mas também prendem. A proteção tem como contrapartida a submissão a lógicas (ou poderes) disciplinares. Essa discussão é longa e transcende muito a questão da escola, mas merece ser feita e usada como analogia.

A questão da segurança e da suposta obrigação do Estado para com a proteção dos indivíduos está colocada na teoria social pelo menos desde Hobbes (1986) e seu Leviatã. O leviatã é o Estado, com seu soberano e suas leis civis. Ele é fundado a partir de um “contrato” entre os indivíduos, que decidem sair do estado de natureza, abdicando de suas próprias “liberdades absolutas” em favor de segurança. Esse contrato social entre os indivíduos consiste precisamente na renúncia mútua de seus “direitos naturais”, transferindo tais poderes individuais para um soberano. Sair do estado de natureza é, no sentido hobbesiano, sair da

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condição de ameaça constante de guerra. Assim, o filósofo está postulando que a vida sob o jugo do Estado é salutar, na medida em que propõe uma segurança aos indivíduos que não lhes era disponível na guerra permanente de todos contra todos. Em síntese, de acordo com o contratualista, a função primeira e mais fundamental do Estado é a promoção da segurança. Pode-se notar que, nesse sentido, aceitar a segurança do Estado tem a ver com uma renúncia, com uma abdicação. Isso é muito bem sintetizado em uma famosa assertiva de Carl Schmitt (1992, p 78): “Protergo ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”. Parafraseado, isso significa que o fundamento do Estado é uma espécie de “protejo, logo obrigo”. Ou seja, a segurança tem um preço: a obrigação, que significa abdicar de algum tipo de liberdade. A partir disso, não se pode deixar de traçar nexos entre a obrigação e a disciplina, obviamente relacionadas de modo íntimo, já que a disciplina possui, pelo controle detalhado dos corpos, a capacidade de obrigar. A vigilância, o controle das atitudes, a punição, o registro de quem entra/sai, como visto, são recursos da disciplina, mas se poderia afirmar, também, que pode haver uma potencialização do disciplinamento justificada pela segurança e pela proteção. No caso do Floca, isso parece surgir no controle relativamente rigoroso das entradas e saídas da instituição e, talvez, na obrigatoriedade do fardamento, já que essa determinação se justifica entre outras coisas, pela “segurança”, como visto no informe citado no início do capítulo.

Essa intensificação da disciplina justificada pela segurança é fortemente disseminada na sociedade brasileira contemporânea, se materializando nas políticas públicas de segurança (se é que merecem ser chamadas assim). Não se pode esquecer das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), da intervenção militar federal feita no estado do Rio de Janeiro no ano de 2018. O que acontece, especialmente nos bairros periféricos e nas favelas do Brasil, é um constante processo de militarização dos territórios pobres, “enfeixando-os numa apertada rede de vigilância e de ação diligente por seu exército de imposição da lei” (WACQUANT, 2007, p. 215). “Lei”, “exército” e “vigilância” indiciam como esses processos de militarização justificada pela segurança mobilizam técnicas e instituições disciplinares.

Apesar de os casos citados serem recentes na história brasileira, esse procedimento é uma estratégia tão antiga quanto o próprio poder disciplinar. Um exemplo histórico é o que Foucault (2014) chama de “cidade pestilenta”. Como o próprio nome indicia, se trata daquela cidade que, ao fim do século XVII, se via enfrentando um surto de peste, elemento desorganizador da ordem. Para tratá-la, decretava-se uma quarentena de caráter como que militar, a qual promovia técnicas disciplinares, tais quais policiamento ostensivo e intensivo, vigilância, toques de recolher – que, se desrespeitados, eram punidos com morte – etc. Diferente

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do leproso, combatido outrora com o exílio, visando a uma sociedade pura, o pestilento é combatido com vigilância, punição e hierarquização, visando uma sociedade disciplinar. Assim,

a cidade pestilenta, atravessada completamente pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a sociedade imobilizada no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeitamente governada (FOUCAULT, 2014, p. 193).

Esse “sonho político da peste”, que visa a um entranhamento do regulamento nos elementos mais “moleculares” da existência, em uma capilarização infinitesimal do poder, vem sendo sonhado e implementado, como visto, pelo menos analogamente, como política de segurança pública nos guetos brasileiros. Mas de que modo esse gosto pela disciplinarização objetivado na militarização tem a ver com a escola brasileira? Na justa medida em que o Brasil se vê em uma condição extremamente favorável, por parte de amplos setores da sociedade, da militarização das escolas públicas.

O assim chamado “modelo de escola cívico-militar”, inclusive, é estimulado pelo governo federal, que visa disseminar tal arranjo, por meio da construção de 216 colégios, para todos os estados do Brasil. Segundo o portal de notícias G1 (2019), nesse modelo, os militares compartilham a gerência das escolas com educadores, cabendo aos primeiros a “monitoração” da gestão educacional. Assim, ainda segundo o portal de notícias, os professores cuidariam da “parte pedagógica” e os militares da administração e da disciplina, regulando, entre outras coisas, fardamento e cortes de cabelo6.

Outra questão relevante é o objetivo de aplicação desse modelo de organização da escola. O argumento comum, inclusive mencionado na matéria jornalística citada, é a violência ou a insegurança. É interessante que, para o governo, haveria prioridade para regiões ditas vulneráveis socioeconomicamente – mais uma manifestação da gerência militar da pobreza pelo Estado brasileiro. Assim, as forças militares, epítomes da disciplina, são acionadas, como elemento exógeno, para o combate – talvez até literalmente, já que essa é a razão de ser das forças militares – do elemento desorganizador da ordem que se espera estar estabelecida em uma escola. De tal modo, para tais gestores de políticas públicas, quando aparecem elementos de desordem, o que se precisa é convocar as instituições máximas da ordem, da organização e

6 Apesar de citar essa divisão de tarefas, a mesma matéria afirma que os militares serão responsáveis pela

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do disciplinamento: as forças armadas. Colocada a questão nesses termos, a solução parece exagerada e desproporcional.

Além disso, a militarização das escolas públicas, sob o eufemismo de “modelo cívico-militar”, impõe graves riscos à autonomia política dos estudantes secundaristas, conhecidos, em todo território nacional, por recentes demonstrações de protagonismo político. Em 2015 e 2016 houve grandes processos de ocupações de escolas em todo o Brasil, a partir de reivindicações relacionadas ao direito à educação. Para ficar em apenas um caso, Goiás pode servir como caso emblemático: nesse estado chegaram a ocorrer 27 ocupações, que, como um todo, se punham contra o fechamento de escolas de tempo integral, bem como contra a militarização das escolas públicas (SILVA; MEI, 2017).

Dado tal potencial de efervescência política, não é estranho que determinados setores da esfera pública entendam a própria mobilização política estudantil, com demandas populares de direitos sociais, como sendo um elemento desordenador, promotor de “balbúrdia”, devendo, portanto, uma instituição disciplinar impor toda sua força simbólica na reorganização da escola. Em suma, a disciplina como valor em si mesmo, objetivada no poder simbólico militar, pode ser instrumentalizada para conter movimentos sociais e organização popular na luta por direitos (OLIVEIRA, 2016). A partir disso, começam-se as violações aos direitos constitucionais mais básicos, como o direito à organização, por exemplo, a partir de reais “intervenções militares” nos grêmios estudantis (ANTUNES et al., 2017), que são um dos espaços mais importantes de mobilização política dos estudantes secundaristas. Desse modo, a disciplina desorganiza a luta popular.

2.2 A arquitetura, as filas e as séries

Outra questão imprescindível para analisar a dinâmica e a organização do poder em um campo é a sua configuração arquitetônica. A disposição geográfica dos espaços de uma escola não pode ser interpretada de maneira ingênua, afinal, dispor espaços também é dispor sujeitos. A organização do espaço divide e orienta os lugares a serem ocupados pelos estudantes. Além disso, a arquitetura, por seu silêncio estático, pode enganar ao parecer, talvez, a uma primeira vista, um “nível” de ordenamento escolar neutro e desprovido de relações de poder.

Apesar de tal aparência, a configuração arquitetônico-espacial de uma instituição é dotada de funcionalidades racionalizadas, que instrumentalizam e atribuem papéis aos elementos que compõem a “morfologia” do ambiente. É importante notar que, como esses papéis e funções são racionalmente fabricados e atribuídos, não se pode prescindir de falar em

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“saber” – afinal, onde há uma razão, há um saber que a fundamenta. Ademais, como já discutido no capítulo anterior desta monografia, o saber possui uma relação muito estreita com o poder, revelando, assim, como o saber que fundamenta e constitui a arquitetura pode estar, por sua vez, saturado de relações de poder.

Michel Foucault (2017) traz um exemplo emblemático, no âmbito dos estudos sobre sexualidade, para pensar a relação entre poder e configuração arquitetônica. Segundo o autor, aquele que tomasse para análise os colégios europeus do século XVIII, teria a impressão de que ali não se falava nunca sobre sexo. Porém, para chegar à conclusão contrária, bastava-se atentar para a configuração arquitetônica e para a organização espacial da escola. Para Foucault, ali o assunto sexo era tratado cotidianamente, porque, sem dúvida, aqueles que foram responsáveis pela construção da escola pensaram nisso ao construir o espaço. Desse modo, aqueles que gerem e organizam a escola, também levam em conta o sexo cotidianamente. Assim,

O espaço das salas, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição de dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortina) [...] tudo fala da maneira mais prolixa a respeito da sexualidade das crianças (ibid, p. 31).

Esse exemplo dá conta de demonstrar como, mesmo em suas dimensões mais silenciosas, a escola emana relações de poder. Além disso, também se deve levar em consideração que uma arquitetura é um modo objetivo – e literalmente concreto – de manifestar concepções educacionais ou pedagógicas. Não se pode esperar coisa diferente de disciplina, coerção e controle de uma escola que, porventura, compartilhe princípios arquitetônicos com uma prisão.

Embora já tenha sido discutido na seção anterior, é relevante mencionar novamente que, espacialmente, a escola, como um todo, e o Floca, em particular, por meio de seus muros e suas grades, se separam do exterior, se organizando como um núcleo fechado e supostamente alheio ao exterior. Para Foucault (2014, p. 139), “a disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo, específico a todos os outros e fechado em si mesmo”. De acordo com o autor, existiram diferentes tipos de encarceramento ao longo da história: os “grandes”, dos vagabundos e miseráveis e os mais sutis, discretos e eficazes, feitos pelos colégios e pelos quartéis.

Ainda sobre o “dentro x fora” da escola, para Dayrell (2001, p. 13),

Os muros demarcam claramente a passagem entre duas realidades: o mundo da rua e o mundo da escola, como que a tentar separar algo que insiste em se aproximar. A escola tenta se fechar em seu próprio mundo, com suas regras, ritmos e tempos.

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Dayrell (ibid) também ressalta a pobreza estética, a ausência de cores e de estímulos visuais características de boa parte das escolas brasileiras, que demonstram propostas educativas limitadas e concentradas em um conteudismo enclausurado na sala de aula. Porém, isso apenas ocorre enquanto os alunos não decidem intervir artisticamente no espaço escolar, manifestações essas que serão discutidas no próximo capítulo.

Em relação à arquitetura própria do Floca, a escola-campo em que se deu a pesquisa empírica desta monografia, algumas coisas chamam a atenção. Primeiramente, há de se notar que um estudante que chegue para assistir aulas na escola, precisa passar por três portões de ferro, sendo dois deles vigiados. O primeiro, que geralmente fica aberto, dá acesso ao estacionamento e fica sem vigilância. O segundo é a entrada, de fato, para o prédio do colégio, sendo, então, guardado por cadeados e por um porteiro. Passado tal portão, se está no corredor de entrada do colégio. Esse corredor de estende por uns dez metros em linha reta, tendo do lado direito – ao longo de toda sua extensão –, salas de administração, biblioteca e grêmio. Ao lado esquerdo do corredor, um curto terraço, arborizado, que fica de frente a um bloco de salas de aula. Em outras palavras, quem estiver nesse corredor de entrada verá, à esquerda, plantas e um bloco de salas e, à direita, salas de administração, biblioteca etc.

Ao final desse corredor há uma escada que conduz o visitante a um nível mais baixo do colégio7. Após a descida, seguindo em frente, se tem acesso ao pátio da escola, que é bastante amplo, com uma cobertura que protege do sol e da chuva. No pátio há mesas e bancos padronizados, onde os estudantes fazem refeições, conversam, brincam etc. Algumas vezes os alunos afastam as mesas para fazer jogos e brincadeiras com bolas, por exemplo. Em um dos polos do pátio há banheiros; no outro, uma cozinha, que serve as refeições para os alunos no horário de intervalo. Fora do pátio, ao lado direito, há uma cantina. Ao lado esquerdo, no mesmo sentido de onde há os blocos de aula, há uma pequena “praça”, com bancos de cimento e árvores.

Retomando o corredor de entrada como referência, se, como dito, seguindo em frente, o observador chega ao pátio, virando à esquerda se encontram os blocos de salas de aula. Porém, um elemento arquitetônico curioso: quem quiser ter acesso ao bloco de salas de aula terá de passar por um terceiro portão, constituído de barras de ferro, guardado também por um servidor. Nesse bloco de salas de aula, que é a maior parte da estrutura da escola, ficam concentrados em

7 É válido ressaltar que o Floca é uma escola muito acessível no que diz respeito a rampas. No local mencionado,

e em todas as outras menções a “escadas”, há rampas que garantem a locomoção de pessoas cadeirantes. Apesar disso, em todo o período de experiência de campo, nunca foi visto aluno ou professor cadeirante.

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