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A prisão preventiva decretada com fundamentação na garantia da “Ordem Pública”: uma análise crítica sob a ótica dos princípios da Constituição Federal de 1988

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GRANDE DO SUL

PAULA TISSOTT OLIVEIRA

A PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM FUNDAMENTAÇÃO NA GARANTIA DA “ORDEM PÚBLICA”: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A ÓTICA

DOS PRINCÍPIOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Ijuí (RS) 2018

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PAULA TISSOTT OLVEIRA

A PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COM FUNDAMENTAÇÃO NA GARANTIA DA “ORDEM PÚBLICA”: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A ÓTICA

DOS PRINCÍPIOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Conclusão do Curso – TCC.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS – Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

Ijuí (RS) 2018

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Dedico este trabalho à minha família, pelo incentivo e apoio em mim depositados durante toda a minha jornada acadêmica.

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À minha família, que esteve presente em todo momento e me incentivou a seguir a minha jornada com dedicação e persistência, e com quem aprendi que os empecilhos em meu caminho encontrados são, na verdade, ferramentas para a minha evolução e desenvolvimento profissional e pessoal.

Ao meu orientador, Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, com quem eu tive o privilégio de contar com sua dedicação e sabedoria, me guiando pelo caminho do conhecimento.

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“A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Martin Luther King

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A pesquisa analisa criticamente o instituto da prisão preventiva decretada como garantia da “ordem pública” no âmbito do Direito Processual Penal brasileiro sob a ótica dos princípios elencados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Aborda o conceito e a história da prisão preventiva, à medida que analisa o contexto em que o Código de Processo Penal estava inserido quando elaborado, bem como os requisitos imprescindíveis para a decretação da referida medida cautelar. Investiga as situações ensejadoras da decretação da prisão preventiva no ordenamento jurídico-penal brasileiro. Evidencia que, na atualidade, a vulgarização da prisão preventiva ocorre em razão da indeterminação do conceito jurídico da expressão “ordem pública”, bem como a busca pela satisfação do “clamor público”. Demonstra que ocorre a violação dos princípios constitucionais relacionados à prisão preventiva no processo penal brasileiro da atualidade diante das inúmeras prisões desnecessárias e fundamentadas em conceitos amplos. Finaliza concluindo que a prisão preventiva decretada com fundamento na garantia da “ordem pública” é usada como regra e causa o retrocesso processual penal brasileiro.

Palavras-Chave: Prisão Preventiva. Ordem Pública. Princípios Constitucionais. Retrocesso Penal.

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The research critically analyzes the institute of pre-trial detention as a guarantee of "public order" within the framework of Brazilian Criminal Procedural Law, based on the principles set forth in the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. It addresses the concept and history of pretrial detention, as it analyzes the context in which the Code of Criminal Procedure was inserted when drafted, as well as the essential requirements for the enactment of the said precautionary measure. Investigates the situations leading to the enactment of preventive detention in the Brazilian legal system. It shows that, currently, the popularization of pre-trial detention occurs because of the indeterminacy of the legal concept of the term "public order", as well as the search for satisfaction of "public outcry." It demonstrates that there is a violation of the constitutional principles related to pre-trial detention in Brazil's criminal proceedings today in the face of innumerable unnecessary prisons and based on broad concepts. It concludes by concluding that the preventive detention ordered on the basis of the guarantee of "public order" is used as a rule and causes the Brazilian criminal procedural retrogression.

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INTRODUÇÃO...8

1 CONCEPÇÃO E ORIGEM DA PRISÃO PREVENTIVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO...12

1.1 Aspectos conceituais e história da prisão preventiva no Brasil...12

1.2 Os requisitos para a decretação da prisão preventiva no Código de Processo Penal brasileiro...18

1.3 A indeterminação do conceito de “ordem pública” na decretação da prisão preventiva e a arbitrariedade judicial em terrae brasilis...22

2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À PRISÃO PREVENTIVA E A BANALIZAÇÃO DO INSTITUTO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO EM NOME DA GARANTIA DA “ORDEM PÚBLICA”...30

2.1 Princípios constitucionais relacionados à Prisão Preventiva...31

2.1.1 Dignidade da Pessoa Humana...31

2.1.2 Devido Processo Legal...34

2.1.3 Presunção de Inocência...35

2.1.4 Motivação das decisões...37

2.2 A violação dos princípios basilares do Processo Penal de garantias e a decretação da prisão preventiva para garantia da “ordem pública”: uma realidade do processo penal brasileiro...38

2.3 A prisão preventiva usada como regra e o consequente retrocesso processual penal no Brasil...42

CONCLUSÃO...45

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa criticamente o instituto da prisão preventiva decretada como garantia da “ordem pública” no âmbito do Direito Processual Penal brasileiro. A pesquisa é perspectivada sob a ótica dos princípios elencados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Em face desse contexto, a presente pesquisa busca responder ao seguinte problema de pesquisa: O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro, em seu capítulo III, trata acerca da prisão preventiva, que é a prisão cautelar mais típica do ordenamento jurídico pátrio. Os fundamentos para sua decretação estão contidos no artigo 312 do mencionado diploma legal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Na prática, entretanto, a maioria das decisões que decretam a prisão preventiva possuem como fundamento a ordem pública, que é uma cláusula genérica, de conteúdo vago e impreciso – na medida em que não há, no campo legislativo, uma definição do que tal “ordem” representaria, o que abre um amplo espaço de arbitrariedade ao julgador. Além da lacuna legal, inexiste uma construção jurisprudencial que delimite a ideia de ordem pública, razão pela qual o tema é exposto ao sabor do arbítrio do intérprete. Em que pese seja um instrumento que possui a finalidade de garantir o regular prosseguimento do processo é possível afirmar que – em determinadas e inúmeras situações – a prisão preventiva não é utilizada com esse propósito.

O Brasil é conhecido internacionalmente como um país que extrapola o limite no número de prisões preventivas. Neste contexto, questiona-se: o que torna a prisão preventiva

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uma medida cautelar usada como regra no ordenamento jurídico brasileiro? Sob quais parâmetros a prisão preventiva configura-se como inconstitucional em face dos princípios garantidos pela Carta Magna? É possível a harmonização de tal medida cautelar decretada com base na garantia da ordem pública com o Texto Constitucional brasileiro, os Direitos Humanos e os princípios que lhe subjazem?

Como hipótese inicial, partiu-se da compreensão de que o instituto da prisão preventiva não está sendo aplicado corretamente, uma vez que, em diversos casos, o magistrado utiliza a referida medida cautelar sem verificar seus respectivos requisitos autorizadores, o que, por si só, a torna inconstitucional. Ademais, a prisão preventiva não está sendo aplicada de forma correta devido à abrangência do instituto e à falta de posição jurisprudencial e doutrinária, o que favorece a abstração quanto à aplicação da mesma, bem como autoriza a sua decretação, muitas vezes, em desconformidade com os princípios garantidos pela Carta Magna.

A primeira e mais utilizada hipótese de decretação de uma prisão preventiva, prevista no Código de Processo Penal, é para a garantia da “ordem pública”, uma vez que tal argumento, considerando sua imprecisão, se torna uma espécie de “coringa” que substitui a falta de fundamentação. Diante da violação dos princípios constitucionais relacionados à decretação da prisão preventiva sob o fundamento da garantia/preservação da “ordem pública”, é possível observar que ocorre a busca pela satisfação do clamor público por parte do Estado-juiz. É notável que quando se prende para garantir a “ordem pública” não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório.

Com a decretação da prisão preventiva, o que se está pretendendo, da veracidade dos fatos e na maioria dos casos, é a antecipação dos efeitos práticos da condenação penal, bem como uma (falsa) resposta para satisfazer a sociedade que clama por justiça. Tal situação, além de violar os preceitos constitucionais, alimenta o retrocesso processual penal.

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O objetivo geral da pesquisa consiste em analisar criticamente o instituto da prisão preventiva quando decretada com fundamento na necessidade de garantia da chamada “ordem pública” no Direito Processual Penal brasileiro à luz dos princípios constitucionais relativos à proteção dos Direitos Humanos.

Já no que diz respeito aos objetivos específicos, busca-se investigar as situações ensejadoras de decretação da prisão preventiva no ordenamento jurídico-penal brasileiro, bem como evidenciar que, na atualidade, a vulgarização da prisão preventiva ocorre em razão da indeterminação do conceito jurídico da expressão “ordem pública”, bem como a busca pela satisfação do “clamor público”. Busca-se, ainda, demonstrar que ocorre a violação dos princípios constitucionais relacionados à prisão preventiva no processo penal brasileiro da atualidade, na medida em que, hodiernamente, tal cautelar é usada como regra, quando deveria ser uma medida extremamente excepcional.

A técnica de pesquisa empregada foi do tipo exploratória, tendo em vista que utilizou-se no utilizou-seu delineamento a coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede de computadores. Quanto ao método de abordagem empregado, utilizou-se o abordagem hipotético-dedutivo, ocasião em que procedeu-se a seleção de bibliografia e documentos afins à temática e em meios físicos e na Internet, interdisciplinares, capazes e suficientes para que o pesquisador construa um referencial teórico coerente sobre o tema em estudo, responda o problema proposto, corrobore ou refute as hipóteses levantadas e atinja os objetivos propostos na pesquisa. Ademais, houve a produção de leitura e fichamento do material selecionado, bem como a reflexão crítica sobre o material selecionado e a exposição dos resultados obtidos através de um texto escrito monográfico.

Para tanto, o trabalho encontra-se estruturado em dois capítulos. No primeiro, analisa-se o conceito e a história da prisão preventiva no Processo Penal Brasileiro, sob a fim de esclarecer acerca de seus requisitos autorizadores, bem como dos fundamentos imprescindíveis para a sua decretação. Após a apresentação das características inerentes à prisão preventiva enquanto medida cautelar, buscou-se demonstrar a imprecisão contida na expressão “ordem pública”, fundamento frequentemente usado para a decretação da modalidade de prisão em comento.

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Já o segundo capítulo, num primeiro momento, se destina à abordagem dos princípios garantidos pela Carta Magna de 1988 que se referem à prisão preventiva, a fim de que, numa construção dialética e num ambiente de reflexão, fosse possível compreender a essência de cada um deles dentro do contexto da medida cautelar em análise. Após, evidencia a ocorrência da violação dos princípios analisados no direito processual penal brasileiro, a fim de demonstrar que a fórmula de “garantia da ordem pública” dificilmente se coaduna com o texto constitucional. E, ao finalizar o presente capítulo, o trabalho denuncia a infeliz realidade do processo penal brasileiro no que concerne ao fato de que a prisão preventiva é uma medida cautelar usada como regra e, atualmente, tal premissa é uma das causas do retrocesso penal no Brasil.

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1 CONCEPÇÃO E ORIGEM DA PRISÃO PREVENTIVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O presente capítulo objetiva abordar o conceito e a história da prisão preventiva no Processo Penal brasileiro, sob o viés crítico, a fim de esclarecer acerca de seus requisitos autorizadores, bem como dos fundamentos imprescindíveis para a sua decretação. Após a apresentação das características inerentes à prisão preventiva enquanto medida cautelar, busca-se demonstrar a imprecisão contida no termo “ordem pública”, fundamento frequentemente usado para a decretação da modalidade de prisão em comento.

1.1 Aspectos conceituais e história da prisão preventiva no Brasil

Faz-se necessária a análise dos aspectos históricos da prisão preventiva a fim de possibilitar a maior compreensão de suas características e particularidades, uma vez que a própria história é, enquanto ciência, fundamento essencial para a percepção do atual funcionamento da sociedade.

A necessidade de uma profunda reflexão acerca dos limites da motivação da decretação da prisão, bem como sobre seus fundamentos tem como principal objetivo causar a sua melhor adequação. Deve existir harmonia entre o direito à liberdade e o poder punitivo do Estado, sem confrontar com os princípios constitucionais que se referem ao instituto da prisão preventiva.

Para início de discussão, convém conceituar o que se entende por prisão preventiva. Nesse sentido, pode-se conceituar a prisão preventiva como uma medida de cautela decretada no interesse da justiça, mesmo antes da condenação.

De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 597) a prisão preventiva configura-se como

uma espécie de prisão cautelar, com o objetivo de assegurar a aplicação da lei penal, a conveniência da instrução criminal ou garantir a ordem pública e econômica, desde que provada desde que provada a materialidade do crime e indícios suficientes de autoria.

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Assim, para o supracitado autor, a prisão preventiva tem a finalidade de assegurar o regular andamento da instrução criminal, e está não poderá se prolongar indefinitivamente, por culpa do juiz ou em razão de atos procrastinatórios do órgão acusatório: caso isso ocorra, configurar-se-á constrangimento ilegal.

Na lição de Paulo Rangel (2000, p. 365) “a prisão cautelar é uma espécie de medida cautelar, ou seja, é aquela que recai sobre o indivíduo, privando-o de sua liberdade de locomoção, mesmo sem sentença definitiva”. Conceitua-se, nas palavras de Norberto Avena (2016, p. 1012) “como uma modalidade de segregação provisória, a qual é decretada judicialmente quando presentes os pressupostos que a autorizam, bem como as hipóteses que a admitem”.

O objeto da prisão preventiva, conforme explica Wedy (2013, p. 109), é a garantia do desenvolvimento regular do processo, com o fim de, nas palavras do autor “garantir a eficaz aplicação do poder de penar, bem como para proteger a intangibilidade da ordem pública e da ordem econômica”. Trata-se, como assegura Nicolitt (2015, p. 92) de “medida cautelar regida pelo princípio da reserva de jurisdição, ou seja, somente juízes e Tribunais podem decretá-la”.

A referida medida cautelar é definida por Miguel Fenech (apud CÂMARA, 2011, p.122), como

ato cautelar pelo qual se produz a limitação da liberdade individual de uma pessoa em virtude de declaração judicial e que tem por objeto o ingresso daquela em estabelecimento de custódia com o objetivo de assegurar os fins do processo e a eventual execução da pena, pois apesar de serem assemelhadas em sua aparência externa, diferenciam-se por sua finalidade.

Para Nestor Távora (2012, p. 579), “é medida de exceção, devendo ser interpretada restritivamente, para compatibilizá-la com o princípio da presunção de inocência, afinal, o estigma do encarceramento cautelar é por demais deletério à figura do infrator.”

No que tange aos aspectos históricos, cabe mencionar, primeiramente, que, em um contexto mundial, a prisão preventiva surgiu na Alemanha, na década de 1930, período em que, conforme ensina Aury Lopes Junior (2014),

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o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.

Quanto ao surgimento da medida em comento no Brasil, sua história inicia-se no período colonial, com aplicação do direito português vigente naquela época. Naquele tempo, ninguém seria preso sem a chamada “culpa formada” e sem mandado do juiz.

Acerca do surgimento da prisão preventiva, Wunderlich (2006, p. 3) afirma que:

No Brasil, a prisão preventiva surgiu, legalmente, apenas em 1822, com a proclamação da Independência. A Constituição Imperial de 1824, em seu art. 179 § 8°, admitiu a custódia preventiva, nos casos declarados em lei, mediante ordem escrita do juiz. O Código de Processo Criminal do Império, de 1832, posterga ao mesmo tempo a prisão sem culpa formada para os crimes inafiançáveis, por ordem escrita da autoridade legítima, até que o Código de Processo Penal – CPP de 03 de outubro de 1941, respaldado no Código de Processo Penal italiano de 1930, veio sistematizar, com rigor dogmático, a prisão preventiva no processo penal brasileiro.

Em 1821, Dom Pedro verificou que ocorriam inúmeros abusos das autoridades judiciais e políticas quanto às determinações concernentes à prisão preventiva, considerando que observou que alguns governadores, juízes criminais e magistrados violavam o sagrado depósito da jurisdição que lhes fora confiada, mandando prender por mero arbítrio, antes mesmo da formação de culpa do indivíduo.

Após isso, Dom Pedro decretou o ato editado em 23 de maio de 1821, o qual assegurava aos cidadãos que nenhuma pessoa livre no Brasil pudesse jamais ser presa sem ordem por escrito do juiz ou magistrado criminal do território, exceto no caso de flagrante delito, em que qualquer do povo deveria prender o delinquente.

Decorrente da declaração da independência política, em 1824 a Constituição do Império fora outorgada, dispondo, em seu artigo 179, que “ninguém será preso sem culpa formada, exceto nos casos previstos em lei” (BRASIL, 1824).

Sob a vigência do Código de Processo de 1832, conforme seu artigo 175, também poderiam ser presos sem culpa formada os que fossem indiciados em crimes em que não tem lugar fiança; porém, nestes e em todos os mais casos, à exceção dos de flagrante delito, a

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prisão não poderia ser executada senão por ordem escrita da autoridade legítima. Assim prescrevia a redação do referido artigo:

Poderão tambem ser presos sem culpa formada os que forem indiciados em crimes, em que não tem lugar a fiança; porém nestes, e em todos os mais casos, á excepção dos de flagrante delicto, a prisão não pode ser executada, senão por ordem escripta da autoridade legitima (BRASIL, 1832).

Nesse sentido, a suposta prática de crime inafiançável autorizaria a decretação da prisão preventiva. Essa disposição se mostrou insuficiente para a sua época, uma vez que bastava, para a realização da prisão preventiva, a mera possibilidade de que o acusado cometera um crime em que não era possível pagar fiança.

O Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 foi elaborado durante o regime político do intitulado Estado Novo, instaurado pelo ex-presidente Getúlio Vargas. Este Código fora produzido, conforme assevera Marques (2003), sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é – como já não era – “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”.

O autoritarismo de Vargas, alimentado pelas tendências fascistas adotadas naquela época, nitidamente se manifestou nas normas do Direito Processual Penal Brasileiro, haja vista que o direito de defesa do cidadão se encontrava – e ainda se encontra, diga-se de passagem – expressamente limitado a favor da “defesa da sociedade”. Convém registrar que tais normas foram elaboradas pelo Ministro da Justiça Francisco Campos, o mesmo jurista que formulou a redação da Constituição de 1937, a qual era autoritária e concedia poderes extremos ao governo. Essa cultura inquisitória, herdada da Idade Média, supervalorizava o papel do juiz durante a instrução e produz efeitos até os dias de hoje.

Em 1942, o Código de Processo Penal passou a prever a prisão preventiva obrigatória, nos seguintes termos, em seu artigo 312: “a prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos”.

Naquela época, as legislações preocupavam-se em conter os movimentos sociais e políticos contrários ao modelo autoritário, motivo pelo qual para a decretação da prisão preventiva bastava somente a prova indiciária contra o acusado. Nesse contexto, pode-se

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afirmar que os diplomas legais significavam uma tentativa de combate aos movimentos oposicionistas e, ainda, visavam à legalização de uma prática ilegal: a detenção por tempo indeterminado.

Nesse contexto, como bem assegura Wermuth (2018) “para a sustentação de um modelo alicerçado em flexibilização/supressão de garantias, a demonização do indivíduo delinquente é uma estratégia largamente utilizada”. Permite-se, assim, um paralelo das políticas contemporâneas com um dos traços essenciais do Direito Penal dos regimes totalitários europeus do início do século XX.

A futilidade da punição severa e o tratamento cruel podem ser testados mais de mil vezes, mas enquanto a sociedade não estiver apta a resolver seus problemas sociais, a repressão, o caminho aparentemente mais fácil, será sempre bem aceita. Ela possibilita a ilusão de segurança encobrindo os sintomas da doença social com um sistema legal e julgamentos de valor moral. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).

Houve uma importante alteração na legislação a partir da Lei n.º 6.416/77, a qual inseriu um parágrafo único ao artigo 310 do Código de Processo Penal, que assim passou a vigorar:

Art. 310. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva.

Desta forma, a prisão preventiva deixou de fundamentar sua decretação somente na mera possibilidade de cometimento de um crime não sujeito à fiança, para compatibilizar-se com os elementos de cautelaridade.

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil se tornou um Estado Democrático de Direito e deu-se início a inúmeras mudanças no panorama jurídico-social, inclusive no âmbito do processo penal, ocasião em que a liberdade passou a ser a regra e a prisão a exceção. Tal conclusão se extrai do texto constitucional, o qual refere que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e ainda que

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“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, 1988, art. 5º, inciso LIV).

Acerca do conceito de Estado Democrático de Direito, cabe destacar a lição de Moraes (2005, p. 17), o qual refere que

o Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do artigo, adotou, igualmente o parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

O termo “Estado de Direito” foi substituído por “Estado Democrático de Direito”, incorporado na Constituição Federal de 1988 como o garantidor do efetivo exercício dos direitos civis, sociais, liberdades, entre outros direitos. (CANOTILHO, 2013).

Como bem assegura Dantas (2014) o Estado Democrático de Direito caracteriza-se como a conjugação do Estado de Direito com o regime democrático. Não é exagero afirmar que se trata do Estado submetido a um conjunto de normas que criam seus órgãos e estabelecem suas respectivas competências, que preveem a separação dos poderes, e que fixam direitos e garantias fundamentais para o fim de proteger o indivíduo contra possíveis arbitrariedades estatais.

O referido conceito, conforme Soares (2004, p. 221), “pressupõe a pré-compreensão do conceito de direito fundamental como categoria básica do modelo constitucional ocidental”. Para o autor, este Estado constitucional é subordinado aos conceitos de direito fundamental, democracia, Estado de direito, primazia do direito e distribuição de competências de poderes do Estado, moldando-se, assim, sua imagem de democracia. Fundado na harmonia social, o Estado Democrático de Direito assume o compromisso (na ordem interna e internacional) com a solução pacífica de controvérsias (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2014).

Entretanto, apesar do novo panorama constitucional que passou a vigorar em 1988 e considerou a prisão como sendo a exceção – e não mais regra – não é possível visualizar tal cenário se concretizar na prática: o que ocorre, na verdade, é o uso desmedido da medida

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cautelar em análise, tendo em vista que seu caráter de excepcionalidade é (muito) pouco considerado, conforme análise que será aprofundada, mais adiante, no presente trabalho.

1.2 Os requisitos para a decretação da prisão preventiva no Código de Processo Penal brasileiro

Poderá ser decretada a prisão preventiva quando presentes os requisitos autorizadores expressamente previstos pelo artigo 312 do Código de Processo Penal. Assim sendo, caberá a medida restritiva de liberdade cautelar para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, devendo haver, em qualquer das hipóteses, comprovação quanto à materialidade do crime e indícios suficientes de autoria.

A decretação da mencionada medida cautelar deverá ser fundamentada e pode ocorrer durante a investigação policial, no curso do processo penal, ou após a prolação de sentença condenatória não transitada em julgado, desde que presentes estejam os mencionados requisitos autorizadores.

Acerca dos requisitos autorizadores de tal medida cautelar, Dalabrida (2009, p. 54) esclarece que:

Toda medida cautelar está subordinada ao atendimento de dois requisitos básicos, sem os quais se tem como inadmissível qualquer antecipação do resultado final. Trata-se do fumus boni juris (fumus comissi delicti) e periculum in mora (periculum libertatis).

Por ser uma prisão de natureza cautelar, é correto afirmar, portanto, que só poderá ser decretada a prisão preventiva caso estejam presentes seus dois elementos, quais sejam, o

fumus comissi delicti e o periculum libertatis, sendo este o fundamento e aquele o requisito. O

primeiro elemento se refere aos requisitos e é composto pela prova da materialidade do crime e pelos os indícios suficientes de autoria. É a conduta que, em tese, teria sido praticada pelo denunciado, a qual deverá apresentar, conforme Aury Lopes Junior (2009, p. 96) “uma fumaça densa de que a conduta é aparentemente típica, ilícita e culpável”. Explica o autor que o requisito para a decretação de uma medida coercitiva, no processo penal, não é a probabilidade de existência do direito de acusação alegado, mas de um fato punível. Já o segundo elemento se refere aos fundamentos e caracteriza-se como o perigo que decorre do

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estado de liberdade do sujeito passivo, como risco da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Em relação à prova da materialidade do crime, trata-se da “documentação que demonstra, nos autos, a efetiva ocorrência da infração penal”. Nessa senda, portanto, existirá prova da existência do crime quando for demonstrada a prática de fato típico na integralidade de seus elementos, assim como haverá indícios de autoria quando o réu for considerado o provável autor do crime (MARQUES, 1965, p. 46-47).

Quanto aos indícios suficientes de autoria, é necessário que exista prova incontestável de ocorrência da infração, uma vez que a mera suspeição de que o delito fora cometido não autoriza a decretação da medida cautelar. A lei exige prova da existência do crime (TOURINHO FILHO, 2001, p. 480).

Assim, não basta somente a suspeita: é imprescindível que esteja presente a prova da materialidade delitiva. Assevera Norberto Avena (2016, p. 1020) que o indício suficiente de autoria “muito embora situado no campo da probabilidade, baseia-se em fatos concretos indicativos de que o indivíduo, efetivamente, possa ter praticado a infração sob apuração”.

Quanto ao periculum libertatis, ao conceituar o tema, o referido autor assevera que tal fundamento se refere ao perigo que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, previsto no Código de Processo Penal, como o risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal”. Tratam-se, conforme Norberto Avena (2006, p. 1021), dos motivos que provocam a decretação da custódia “e sobre os quais deve-se assentar a decisão judicial deferitória”. Explica, ainda, que, em que pese haja quatro fundamentos para a decretação da medida cautelar, “evidentemente, a prisão preventiva poderá ser decretada a partir da presença de apenas um destes elementos”.

No que concerne, especificamente, aos quatro fundamentos de decretação da prisão preventiva, explica Avena (2016, p. 1022) que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública “é justificável quando a permanência do acusado em liberdade, pela sua elevada periculosidade, importar intranquilidade social em razão do justificado receio de que volte a delinquir”.

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Quanto ao fundamento da ordem econômica, “trata-se de variável da garantia da ordem pública, apenas um pouco mais específica do que esta, sendo relacionada a uma determinada categoria de crimes”. Nesse caso, o autor se refere aos crimes que “tenham por objetivo limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou livre iniciativa”. (AVENA, 2016, p. 1023).

No que tange à conveniência da instrução criminal, a prisão preventiva decretada sob tal fundamento “visa a impedir que o agente, em liberdade, alicie testemunhas, forje provas, destrua ou oculte elementos que possam servir de base à futura condenação”. (AVENA, 2016, p. 1024). Esse fundamento consiste em um meio para assegurar a eficácia da futura prolação decisória e visa à garantir o bom andamento do processo.

Por fim, a segurança da aplicação da lei penal “se fundamenta no receio justificado de que o agente se afaste do distrito da culpa, impedindo a execução da pena imposta em eventual sentença condenatória”. (AVENA, 2016, p. 1025).

Sobre o tema, cumpre registrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da prisão preventiva:

A prisão preventiva é a medida acauteladora mais grave no processo penal, a desafiar o direito fundamental da presunção de inocência, razão pela qual somente deveria ser decretada […] em situações nas quais fosse o único meio eficiente para preservar os valores jurídicos que a lei penal visa a proteger, segundo o art. 312 do CPP. Fora dessas hipóteses excepcionais, representaria mera antecipação de pena, inadmissível pela jurisprudência da Corte. (STF, HC 127.186).

A partir de uma leitura garantista do processo penal, Luigi Ferrajoli (2006) defende a necessidade de a prova da culpa ser demonstrada e não a da inocência. A existência da culpa deve, desde o início, formar o objeto do juízo. Assim, uma das premissas garantistas fundamenta-se no fato de que não se pode punir um indivíduo só porque isso satisfaz o interesse da maioria, pois nenhuma maioria pode tornar legítima a condenação de um inocente ou sanar um erro cometido em prejuízo de um cidadão, único que seja.

No que concerne às hipóteses de cabimento, a prisão preventiva somente poderá ser decretada nos crimes dolosos contra a vida. Desta forma, não poderá ser decretada em razão de crimes culposos, em nenhuma hipótese. Além disso, nos termos do artigo 313 do Código

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Processual Penal, só cabe prisão preventiva para crimes dolosos punidos com pena máxima superior a quatro anos, bem como condenação por outro crime doloso em sentença transitada em julgado, ou em caso de crime que envolva violência doméstica.

Cumpre registrar, ainda, que caso ocorra fato típico comprovado e o juiz verifique que a conduta do réu não é antijurídica, pela ocorrência de uma das justificativas do artigo 23 do Código Penal, não é possível a decretação da prisão preventiva, nos termos do artigo 314 do Código Processual Penal Brasileiro. Assim, a probabilidade da imputação pressupõe a existência não somente de fato típico, mas também de fato antijurídico.

Ademais, a decisão sobre a prisão preventiva deve sempre ser fundamentada, conforme estabelece a redação do artigo 315 do Código Processual Penal Brasileiro, tanto para a concessão da medida, quanto para substituí-la ou denegá-la, sob pena de o ato decisório ser considerado absolutamente nulo.

Cabe destacar, nessa senda, o ensinamento de Ada Pelegrini Grinover (2009), a qual explica que, diante do reconhecimento da existência do crime e de sua autoria, a decretação da prisão preventiva não pode ser automática, uma vez que deve resultar da apreciação sobre a presença do periculum libertatis, “levando em conta os fatos e as exigências cautelares que se apresentam no momento da decisão que reconhece a procedência da acusação”.

Além da exposição legal, doutrinária e/ou jurisprudencial, no plano hipotético, é necessário adequar a norma jurídica ao caso concreto, utilizando-se dados reais que demonstrem a necessidade da medida cautelar, a fim de que a prisão preventiva possa ser decretada legalmente.

Nessa linha de raciocínio, ao decretar a prisão preventiva do acusado, o juiz deve demonstrar, nos autos do processo, a presença dos requisitos que a autorizam, não somente transcrevendo a redação da legislação, mas demonstrando e indicando a necessidade de garantir a ordem pública com a prisão do acusado.

Explica Paulo Rangel (2007, p. 622-623) que, diante da ausência de fundamentação da decisão que decreta a prisão do acusado, ocorre a sua nulidade, a qual deverá, via habeas

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corpus, ser reconhecida pelo Tribunal. Nesse sentido, também faz-se necessária a reprodução das palavras de Edilson Mougenot Bonfim (2009, p. 55):

Se por um lado o juiz é livre para formar seu convencimento acerca da prova, é imperativo que exponha, motivando as decisões que proferir, os elementos de prova que fundamentam suas decisões e as razões pelas quais esses elementos serão considerados determinantes. A motivação inclui, ainda, a fundamentação legal da decisão, por referência aos dispositivos normativos que, confrontados aos elementos de prova, determinam a decisão proferida.

Diante do exposto, portanto, além da imprescindibilidade dos requisitos autorizadores para a decretação da prisão preventiva, é essencial que a decisão judicial seja fundamentada e indique os elementos que a embasam, bem como as razões pelas quais tais elementos são determinantes.

Feitas essas considerações, passa-se, na sequência, a analisar a vagueza e a ambiguidade do termo “ordem pública”. Trata-se de uma hipótese ensejadora da decretação de prisão preventiva legalmente prevista, como salientado, mas que tem dado margem à verdadeira banalização do instituto, o que culmina em altos índices de pessoas encarceradas em decorrência de arbitrariedade judicial envolvendo a má aplicação da norma.

1.3 A indeterminação do conceito de “ordem pública” na decretação da prisão preventiva e a arbitrariedade judicial em terrae brasilis

Um dos quatro pilares que sustenta a prisão preventiva é a garantia da ordem pública, a qual, por sua vez, é a mais usada pelos magistrados. Conforme Nestor Távora (2012, p. 581),

a ordem pública é expressão de tranquilidade e paz no seio social. Em havendo risco demonstrado de que o infrator, se solto permanecer, continuará delinquindo, é sinal de que a prisão cautelar se faz necessária, pois não se pode esperar o trânsito em julgado da sentença condenatória. É necessário que se comprove este risco. As expressões usuais, porém evasivas, sem nenhuma demonstração probatória, de que o indivíduo é um criminoso contumaz, possuidor de uma personalidade voltada para o crime etc., não se prestam, sem verificação, a autorizar o encarceramento.

A ordem pública, conforme Norberto Bobbio (1998, p. 851), pode ser definida sob dois aspectos distintos e igualmente relevantes: a ordem pública material e a ordem pública constitucional. A primeira, tendo como direcionamento o ordenamento político e de Estado, presente nas disciplinas de direito público e de organização estatal, é definida “como

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sinônimo de convivência ordenada, segura, pacífica e equilibrada, isto é, normal e conveniente aos princípios gerais de ordem desejados pelas opções de base que disciplinam a dinâmica de um ordenamento”. Já na perspectiva constitucional, ordem pública

é o limite ao exercício de direitos e assume particular importância quando referida aos direitos de liberdade assegurados pela constituição: neste caso se indica que não é possível questionar um limite de caráter geral ligado à chamada Ordem pública constitucional − que parece fazerem coincidir com o conjunto dos princípios fundamentais de um ordenamento − porquanto dos princípios gerais não se poderiam originar limites situados além dos já previstos no âmbito da disciplina constitucional de cada um aos direitos. (BOBBIO, 1998, p. 851).

Assim, na ótica do autor citado, em ambos os aspectos analisados (ordem pública material ou constitucional), tem-se estabelecido “uma noção elástica de ordem pública que trouxe consigo a ampliação dos limites e que permite uma maior redução dos direitos de liberdade” (BOBBIO, 1998, p. 851-852).

A “ordem pública”, conforme ensina Wedy (2013, p.128), tem servido para o decreto de prisão em inúmeros casos, ora para evitar a reiteração delitiva do agente, ora em virtude do clamor social. Assim, nas palavras do autor, “quase tudo serve para prender em nome da ordem pública, menos a ocorrência de uma efetiva situação cautelanda”.

Quando somente se faz referência ao texto legal, sem especificação do motivo real da previsão, ocorre um abuso. Portanto, conforme refere o mesmo autor, “a noção de ordem pública deve ser repelida, pois não possui característica instrumental”. Em face do exposto, ele conclui que “trata-se de uma fragorosa violação do sistema garantista, que não pode tolerar a adoção de penas antecipadas”. Por fim, acrescenta que “as razões utilizadas pra a prisão preventiva baseada na ordem pública não têm natureza cautelar, mas possuem um notório e translúcido caráter de justiçamento antecipado e de prevenção geral e especial” (WEDY, 2013, p. 130).

Nessa linha de raciocínio, a prisão decretada com fundamento na garantia da “ordem pública”, dada a imprecisão de tal expressão, é utilizada de maneiras distintas. Tal expressão é vaga e imprecisa. Inexiste um conceito exato de seu significado no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que, na ausência de uma definição jurídica da referida expressão, cada aplicador da norma julga de acordo com seu subjetivo entendimento.

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Verifica-se, nessa perspectiva, que a ordem pública é um conceito variável que serve tanto a regimes autoritários quanto aos democráticos e que pode ampliar ou restringir garantias conforme os interesses ideológicos que estão sendo disputados. Diante da indeterminação do referido conceito, o que – fatalmente – ocorre é a violação da segurança jurídica, uma vez que essa imprecisão no termo citado possibilita o arbítrio nos decretos de prisão preventiva.

Em que pese seja um instrumento que possui a função de garantir o prosseguimento regular do processo, visualiza-se, atualmente, no Processo Penal brasileiro, que em inúmeras situações a prisão preventiva é medida cautelar usada em excesso, de forma desmedida e com vagas fundamentações, o que a torna inconstitucional devido ao fato de ferir os princípios constitucionais previstos na Carta política de 1988.

Diante desse contexto, cabe destacar o pensamento de Gustavo Badaró (2009, p. 193-194), o qual assevera que

a expressão “ordem pública” é vaga, de conteúdo indeterminado. A ausência de um referencial semântico seguro para a “garantia da ordem pública” coloca em risco a liberdade individual. (...) Quando se prende para “garantir a ordem pública” não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório. Ao contrário, o que se está pretendendo é a antecipação de alguns efeitos práticos da condenação penal.

Considerando a imprecisão da “ordem pública”, a expressão pode ser utilizada de várias maneiras e sua fundamentação torna-se sujeita à subjetividade do julgador. Essa circunstância pode facilmente se amoldar a qualquer situação e gerar um risco à liberdade dos indivíduos. Nessa expressão, inexiste significado exato e tal situação é uma das inúmeras nas quais a lei é vaga e imprecisa.

Para Aury Lopes Junior (2013), a expressão “ordem pública” é o fundamento preferido em razão de sua vagueza, considerando que ninguém sabe ao certo o que significa. Nessa linha, explica o autor que

é recorrente a definição de risco para ordem pública como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera abalo social, uma comoção na comunidade, que perturba a ´tranquilidade´. Alguns, fazendo uma confusão de conceitos ainda mais grosseiros, invocam a “gravidade” ou “brutalidade” do delito como fundamento da prisão preventiva. Também há quem recorra à “credibilidade das instituições” como fundamento legitimante da segregação, no sentido de que se não houver a prisão, o

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sistema de administração de justiça perderá credibilidade. A prisão seria um antídoto para omissão do Poder Judiciário, Polícia e Ministério Público. É prender para reafirmar a “crença” no aparelho estatal repressor.

Assim, para o autor, sob o ponto de vista das conquistas democráticas até então obtidas, é preocupante o fato de que a crença nas instituições jurídicas dependa da prisão dos indivíduos. Nesse sentido, quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-se, verifica-se um retrocesso gravíssimo para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado.

Refere, ainda, Aury Lopes Junior (2013) que é inadmissível a decretação da prisão preventiva sob o argumento de “perigo de reiteração” de condutas criminosas, uma vez que, desta forma, o julgador estaria, nas palavras do autor, realizando um “exercício de vidência ao quantificar o grau de periculosidade que o acusado possui”. Ademais, acrescenta que é um “diagnóstico absolutamente impossível de ser feito, é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros”. Para o mesmo autor, “quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado” (LOPES JUNIOR, 2013).

Resta comprovado que a garantia da ordem pública é a mais ampla hipótese de interpretação na decretação da prisão preventiva. Essa ampla possibilidade de interpretações contida no termo “ordem pública” fomenta a arbitrariedade das decisões judiciais, as quais, inúmeras vezes, determinam a decretação da prisão preventiva equivocadamente, causando a violação dos princípios elencados na Constituição Federal de 1988.

Ademais, é imprescindível avaliar a natureza cautelar do instituto, a fim de analisar o que se entende por tutela cautelar. Nesse contexto, cumpre registrar o ensinamento de Calamandrei (apud LOPES JUNIOR, 2013, p. 107), o qual explica que a tutela cautelar, quando comparada com o direito material,

é uma tutela mediata: mais que fazer justiça, serve para garantir o eficaz funcionamento da Justiça. Se todos os provimentos jurisdicionais são instrumentos do direito material que através dele se atua, nos provimentos cautelares encontra-se uma neutralidade qualificada, ou seja, por assim dizer, ao quadrado: esses são de fato, infalivelmente, um meio predisposto para melhor resultado do provimento

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definitivo, que, por sua vez, é um meio para a atuação o direito (material); são, portanto, em relação à finalidade última da atividade jurisdicional, instrumento do instrumento. Posto isto, é de se concluir que os dois primeiros requisitos demonstradores do periculum libertatis, garantia da ordem pública e da ordem econômica, no entendimento predominante da doutrina, não constituem modalidades cautelares, com aspectos, então, de inconstitucionalidades.

O alerta que faz Hassemer (2003) é no sentido de que a prisão preventiva não deve perseguir objetivos do direito penal material com fins de prevenção geral ou especial, já que é uma medida de natureza cautelar. Assim, considerando que a prisão preventiva fundada na garantia da ordem pública sequer possui natureza cautelar, verifica-se que ela é substancialmente inconstitucional: consiste na utilização de uma medida processual para o cumprimento de atividade que se refere à segurança pública.

Deve a prisão preventiva ser analisada de forma que todas as suas peculiaridades sejam consideradas para que não ocorra a execução antecipada da pena. O que, essencialmente, não se pode perder de vista, é sua natureza cautelar. Acerca do tema, cabe destacar as observações do autor Tourinho Filho (2010, p. 849):

Se o criminoso demonstrou profunda insensibilidade moral, por que prendê-lo preventivamente? Se toda prisão provisória há de apresentar, necessariamente, caráter cautelar, se a cautela está em prevenir possíveis danos que a liberdade do imputado possa causar ao processo condenatório, indaga-se: que reflexo poderá recair sobre o processo pelo fato de o réu haver cometido crime grave, de repercussão? Não se pode falar em prisão preventiva sem estar com as vistas voltadas para o princípio da presunção de inocência. Do contrário, para que serviria esse princípio? Se é dogma constitucional, todos devem respeitá-lo. Na hipótese de “preservação da ordem pública”, a prisão preventiva não tem nenhum caráter cautelar; ela não acautela o processo condenatório a 9 que está instrumentalmente conexa. Que espécie de dano a, liberdade do réu pode causar ao processo se o crime foi cometido com requintes de perversidade? O que ela tutela não é o processo condenatório; é a própria ordem pública. E como a ordem pública nada tem que ver com o processo, havendo cem léguas de distância entre ela e o processo, logo, não pode servir de fundamento para a medida extrema.

Como bem assegura Baldez Kato (2005), a prisão como garantia da ordem pública fere o princípio da legalidade, pelo seu conceito indefinido, subjetivo e amplo. Esse conceito de conteúdo ideológico alimenta a possibilidade do exercício arbitrário das prisões e torna legítimas decisões injustas e ilegais.

Considerando o uso desmedido da medida cautelar em comento, o pensador clássico Marquês de Beccaria (2004, p. 38) utiliza-se da seguinte argumentação: “um homem não pode

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ser chamado de réu antes da sentença do juiz, nem a sociedade pode tolher-lhe a proteção pública senão quando seja decidido que ele violou os pactos com os quais ela foi instituída”.

A possibilidade de um indivíduo causar ameaça à “ordem pública” deve corresponder a situações que sejam potencialmente capazes de desencadear algum distúrbio social, cuja dimensão seja suficiente para aterrorizar o regular funcionamento da coletividade e pôr em risco a harmonia da sociedade. Assim, conclui Machado (2009) que a ameaça capaz de causar dano a ordem pública precisa atingir toda a coletividade, e não apenas as vítimas atingidas pelo delito.

A problemática de interpretação das normas positivadas se encontra na existência de conceitos jurídicos indeterminados, bem como nas normas abertas. Essas normas abertas são definidas como aquelas que apresentam definição genérica, permissiva à interpretação de grande amplitude por parte do julgador, que poderá se valer de acepções diversas. Acerca do universo das normas, o filósofo Norberto Bobbio (2008, p. 24) entende que

a nossa vida se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos ser livres, mas na realidade estamos em uma rede muito espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte, dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações. [...] E, por isso, um dos primeiros resultados do estudo do direito é o de nos tornar conscientes da importância do “normativo” na nossa existência individual e social.

As normas de conceito jurídico indeterminado, de modo similar às normas abertas, são entendidas como dispositivos vagos, que possibilitam ampla interpretação discricionária ao julgador. O conceito jurídico indeterminado cria lacunas no ordenamento jurídico, ocasião em que gera dúvidas acerca de qual seria a interpretação correta a ser empregada ao texto normativo, o que, consequentemente, origina a insegurança jurídica.

A expressão em comento não remete quem a analisa a um significado definido, deixando sua interpretação e utilização a cargo do entendimento de cada julgador. Assim, conforme explica Dalabrida (2009), a jurisprudência ainda não conseguiu construir linhas valorativas para conceituar a ideia de ordem pública, bem como vem aproximando esse conceito com a credibilidade de Justiça e com a potencialidade lesiva do crime. A ideia de ordem pública constitui um recurso retórico utilizado com o propósito de superar os limites impostos pelo princípio da legalidade estrita e propicia ao julgador um amplo poder discricionário.

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Considerando a lógica de que o ordenamento jurídico vigente não permite o uso de expressões que possuem conceitos vagos, é inconstitucional a margem de liberdade e discricionariedade dada aos juízes quando da análise do significado e aplicação da prisão preventiva. Essa possibilidade de fundamentação da prisão preventiva em elementos ilimitados permite que o acusado seja segregado provisoriamente e conforme a visão pessoal do julgador, que pode adotar o termo vago para satisfazer entendimento próprio.

Inúmeras são as fundamentações que ensejam à decretação da prisão preventiva para garantia da ordem pública. As principais que merecem destaque são aquelas motivadas pelo clamor público. Nota-se que a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental: ela se torna, conforme sintetiza Delmanto Junior (1998, p. 156) “instrumento de justiça sumária e vingança social”. A medida cautelar perde sua real finalidade – que é a de tutela do bom andamento do processo – e se torna um meio de resposta para tranquilizar o clamor público.

Nessa mesma perspectiva, explica Odone Sanguiné (2003, p. 113) que o clamor público foi tomado como fundamento para a decretação da prisão preventiva e erroneamente transferido para a indeterminada hipótese garantia da ordem pública. Acerca de tal fundamentação, o autor assevera que

são fundamentos apócrifos da prisão preventiva – que também poderiam denominar-se fundamentos não-escritos, ocultos ou falsos -, além de supor uma vulneração do princípio constitucional da legalidade da repressão (nulla coactio sine lege), permitem que a prisão preventiva cumpra funções encobertas, não declaradas, mas que desempenham um papel mais importante na práxis processual do que as funções oficiais propriamente ditas.

O conceito de ordem pública, como bem assegura Sanguiné (2003, p.171) tem sido utilizado como cláusula geral a fim de se justificar o uso de “medidas necessárias” para assegurar a manutenção da paz pública ou da convivência social pacífica e ordenada dos cidadãos dentro do grupo social, frente a todo tipo de ameaças ou de perturbações, com a independência de que o ordenamento jurídico tenha estabelecido uma resposta adequada para isso.

Sobre essa possível supremacia dos direitos da sociedade sobre os direitos do indivíduo, ensina Aury Lopes Junior (2011, p. 11):

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Argumento recorrente em matéria penal é o de que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados) frente à “supremacia” do interesse público. É uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder. Inicialmente, há que se compreender que tal reducionismo (público-privado) está completamente superado pela complexidade das relações sociais, que não comportam mais essa dualidade cartesiana.

O autor afirma, ainda, que os direitos individuais, especialmente os destinados ao réu, não devem ser superados por direitos coletivos. Ademais, os direitos fundamentais individuais são ferramentas constitucionalmente garantidas contra o abuso de poder, que os direitos discutidos, em especial na relação processual, ultrapassam a esfera privada, constituindo-se, por seus caráteres de cunho fundamental, em direitos públicos.

Em relação aos princípios vinculados à referida medida, merecem destaque o princípio da culpabilidade, o princípio da ofensividade, o princípio da humanidade, o princípio a dignidade da pessoa humana, o princípio da presunção da inocência, o princípio da legalidade e o princípio da proporcionalidade. Em que pese estas e inúmeras outras sejam as críticas direcionadas à medida, destacada corrente doutrinária defende seu uso e decretação.

A supremacia dos direitos coletivos, como a segurança pública, embora possua relevância, em determinados casos, como na decretação da prisão preventiva com fundamentação na garantia da ordem pública, deve ser preponderada, frente à inconstitucionalidade da limitação desproporcional de direitos de cunho individual.

Em que pese seja um instrumento que possui a função de garantir o prosseguimento regular do processo, visualiza-se, atualmente, no Processo Penal brasileiro, que em inúmeras situações a prisão preventiva é medida cautelar usada em excesso, de forma desmedida e com vagas fundamentações, em razão da inexistência de um conceito para a expressão “ordem pública”, o que a torna inconstitucional devido ao fato de ferir os princípios constitucionais previstos na Carta política vigente.

Assim, é nítido o fato de que a prisão preventiva decretada para a tutela da ordem pública, considerando a imprecisão de tal expressão, em inúmeros casos é utilizada em desconformidade com os princípios constitucionais e, consequentemente, transforma-se em medida de caráter penal: representa uma antecipação de pena durante a persecução penal.

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2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À PRISÃO PREVENTIVA E A BANALIZAÇÃO DO INSTITUTO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO EM NOME DA GARANTIA DA “ORDEM PÚBLICA”

No presente capítulo, serão abordados os princípios garantidos pela Carta Magna de 1988 que se referem à prisão preventiva, a fim de que, numa construção dialética e num ambiente de reflexão, seja possível compreender a essência de cada um deles dentro do contexto da medida cautelar em análise. Assim, buscou-se demonstrar a extrema relevância de cada princípio como pilar para a sustentação de um sistema jurídico democrático e – principalmente – como garantia inerente aos indivíduos.

No âmbito jurídico, os princípios caracterizam-se como vetores explícitos ou implícitos que subsidiam os fundamentos e alicerces de um sistema legal. Em um Estado Constitucional, assegura Wedy (2013) que os princípios adquirem o papel de verdadeira força motriz do Direito, uma vez que assentam o sistema jurídico sobre uma base sólida. Assim, os princípios são, conforme pontuado por Bobbio (1999), normas fundamentais dos sistemas, as quais se igualam às outras formas de direito positivo: os princípios gerais são normas como todas as outras.

Gomes (2011) ensina que nenhum ramo do direito pode ser estudado sem o auxílio dos princípios. Portanto, conforme o pensamento de Tucci (1986), os princípios são convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais. Nucci (2011) pontua que os princípios constitucionais, penais e processuais penais, “devem ser interpretados à luz do princípio maior da dignidade humana, além de todos convergirem para o devido processo legal”.

Nessa perspectiva, o presente capítulo, em um primeiro momento, analisa os princípios da dignidade da pessoa humana, devido processo legal, presunção de inocência e motivação das decisões. Na segunda parte do capítulo, buscou-se evidenciar a ocorrência da violação dos princípios analisados no direito processual penal brasileiro. Verificou-se que a fórmula de “garantia da ordem pública” dificilmente se coaduna com o texto constitucional. E, por fim, conforme se demonstrará na terceira parte deste capítulo, a prisão preventiva é uma medida cautelar usada como regra e, atualmente, tal premissa é uma das causas do retrocesso penal no Brasil.

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2.1 Princípios constitucionais relacionados à Prisão Preventiva

2.1.1 Dignidade da Pessoa Humana

As medidas cautelares possuem o objetivo de preservar o processo de conhecimento ou de execução. Entretanto, conforme destaca Nicolitt (2015), elas não podem ser lesivas ao homem que se encontra por trás do processo. Nessa senda, refere o autor que, apesar da função utilitária e instrumental de tais medidas, elas possuem como primeiro limite o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio faz do homem fundamento e fim da sociedade e do Estado (MIRANDA, 2000, p. 180-181).

Previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, cujo objetivo principal é garantir aos indivíduos um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público. Acerca deste princípio, cumpre registrar a lição do jurista português José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 225):

Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Nesse sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos políticos-organizatórios.

Sarlet (1988) pontua que, desde a época em que predominava o pensamento clássico, há um consenso de que a dignidade da pessoa humana é um valor inerente aos indivíduos, uma vez que é irrenunciável e inalienável. O autor ensina que tal princípio é qualidade integrante e irrenunciável da condição humana que deve ser reconhecida, respeitada e protegida. Nessa linha de raciocínio, o autor, portanto, conclui que o princípio da dignidade da pessoa humana é

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

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existenciais mínimas para uma vida saudável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 1988, p. 62).

A pessoa humana, na sua condição natural de ser, se destaca no meio e se diferencia do ser irracional em razão de sua inteligência, bem como devido à possibilidade de exercer sua liberdade. Chaves Camargo (1994, p. 27-28) assevera que as referidas características

expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.

A dignidade é abordada por Kant (2006) a partir da autodeterminação ética do ser humano, tendo em vista que a autonomia é o alicerce da dignidade. O ser humano é capaz de autodeterminar-se e agir conforme as normas legais, segundo a teoria da autonomia da vontade. Essa qualidade é encontrada apenas em criaturas racionais e, portanto, todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não como um meio para a imposição de vontades arbitrárias. Nessa mesma ótica, ensina o autor:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisas tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT, 2006, p. 131).

Contribui para o entendimento deste princípio o pensamento de Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 124):

Poder entender, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível de cada individuo e, neste sentido, um estreito entrelaçamento entre os direitos fundamentais. Salienta-se que para além da tríada vida, liberdade e igualdade, também há outros direitos fundamentais que podem ser reconduzidos e considerados como exigência ao princípio da dignidade humana.

De maneira objetiva, Kloepfer (2009) esclarece que, independentemente de cor, etnia, sexo, idade ou nacionalidade, a dignidade é um valor intrínseco de todo e qualquer ser humano. Assim, é irrelevante que o titular seja consciente de sua dignidade: ela começa com a existência humana e termina com a sua morte. Dentro desse contexto, Flávia Piovesan (2004, p. 92) pontua que “é no valor da dignidade da

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pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido”. Refere a autora que tal princípio é o ponto de partida e seu ponto de chegada na tarefa de interpretação normativa.

No universo do processo penal brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana visa a garantir ao acusado – sobre o qual recai a persecução penal – o recebimento de um tratamento digno, apropriado e respeitável por parte do Estado. Nessa senda, para Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 28):

O processo penal lida com liberdades públicas, direitos indisponíveis, tutelando a dignidade da pessoa humana e outros interesses dos quais não se pode abrir mão, como a vida, a liberdade, a integridade física e moral, o patrimônio, etc.

Assim, para o autor, o processo penal deve ser estudado conjuntamente com os direitos e garantias fundamentais, considerando que estas restringem a possibilidade de o Estado praticar excessos contra o indivíduo. Nesse viés, sustenta Gemaque (2006) que ocorre violação ao princípio da dignidade da pessoa humana ao se verificarem medidas cautelares aplicadas com o intuito de antecipar a pena ou ainda compelir o indivíduo a cooperar com a investigação. Esse mesmo autor conclui que as prisões cautelares injustas devem gerar o direito à indenização por erro judiciário, como forma de combater esse tipo de atuação violadora de direitos fundamentais e, desta forma, promover a garantia da dignidade da pessoa humana.

Explica Carvalho (2007) que, por representar um valor supremo no ordenamento jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana exerce influência sobre o Direito Penal e Processual Penal, de modo que todos os atos praticados nessa esfera jurídica devem estar de acordo com esse princípio, como os relacionados às sanções penais, custódias cautelares, execução penal, entre outros institutos. O mesmo autor observa que as ações dos agentes públicos e órgãos que atuam contra a criminalidade devem ser regidas pela Constituição com o intuito de preservar a dignidade. Tal cenário de preservação do princípio em análise se concretiza, por exemplo, quando são cumpridos os requisitos legais para a aplicação da prisão cautelar no caso concreto.

Referências

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