• Nenhum resultado encontrado

2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À PRISÃO

2.3 A prisão preventiva usada como regra e o consequente retrocesso processual penal

Para início de discussão neste tópico, registra-se o pensamento de Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 29), o qual assevera que “deve-se ressaltar constituir a liberdade a regra, no Brasil; a prisão a exceção”. A prisão preventiva deve ser usada como medida excepcional quando presentes os requisitos que autorizam a sua decretação. Na realidade, entretanto, ela é usada como regra, motivo pelo qual se verifica o aumento excessivo de presos provisórios nas instituições prisionais brasileiras.

Eis uma das características do cenário processual penal brasileiro: recorre-se à prisão de forma simbólica para o fim de dar a sociedade uma rápida – mas enganadora – resposta. Atualmente, a maioria das prisões preventivas decretadas são

desnecessárias, tendo em vista que, em que pese atendam à legalidade prevista no art. 313 do Código de Processo penal Brasileiro, que prevê o cabimento da referida prisão, não possuem amparo na necessidade cautelar prevista na redação do art. 321 do mesmo dispositivo legal, o qual prevê que “ausentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz deverá conceder liberdade provisória, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no art. 319 deste Código e observados os critérios constantes do art. 282 deste Código”.

Visualiza-se que, na maioria das situações de decretação da prisão preventiva, a função cautelar da medida em análise é objetivo secundário: o que se percebe, nitidamente e em primeiro plano, é a antecipação dos efeitos da pena e o anseio – tanto das autoridades policiais e ministeriais quanto dos magistrados – para oferecer à sociedade uma falsa resposta ou uma solução para a criminalidade. Essa possível solução é atingida somente no mundo utópico e imaginário, uma vez que, hodiernamente, o que se verifica é o aumento do já existente retrocesso processual penal. Nesse cenário, inexiste possibilidade de o processo penal atingir sua finalidade constitucional, e tal fato culmina com o agravamento do sistema penitenciário brasileiro.

Nesse contexto, é – urgentemente – necessário destacar a pesquisa de março de 2015 feita em parceria entre DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) e IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) concluiu que, em 37,2% dos casos em que há aplicação de prisão provisória, os réus não são condenados à prisão ao final do processo ou recebem penas menores que seu período de encarceramento inicial.

Cabe aqui registrar outra pesquisa, divulgada em 08 de dezembro de 2017, pelo Ministério da Justiça, cuja informação é da INFOPEN – sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro – a qual revelou que quatro em cada dez das 726 mil pessoas presas no Brasil ainda não foram condenadas pelo Judiciário. A pesquisa demonstrou que 292 mil é o número de presos provisórios no sistema prisional brasileiro, que foram encarcerados, mas ainda aguardam julgamento.

É bastante pertinente a visão de Wedy (2013, p. 82) quanto à inconstitucionalidade de decisões vagas e imprecisas:

Desse modo, são inconstitucionais, de forma fragorosa, as decisões judiciais simplesmente homologatórias do tipo “decreto a prisão, pois presentes os requisitos das cautelares, como a ordem pública”. Ora, nada se disse com tal

fundamentação! Em verdade, inexiste fundamentação.

A decretação da prisão preventiva deve estar fundamentada, conforme Wedy (2013, p. 84), “deve estar fundamentada num dado da realidade, sem jamais atentar para critérios de índole subjetiva, afastados das características da cautelaridade”. Diante dessa ausência de fundamentação das decisões judiciais que decretam a prisão preventiva com base no fundamento extremamente impreciso da “garantia da ordem pública”, resta evidente que a prisão preventiva tem sido usada como regra no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa realidade do retrocesso processual penal, Ferrajoli (2006) conclui que o encarceramento preventivo tornou-se o mais vistoso sinal da crise da jurisdição, da tendência de tornar mais administrativo o processo penal e da sua degeneração no sentido punitivo.

Esse uso desmedido e ilimitado da prisão preventiva como garantia da “ordem pública” tornou-se um conceito banalizado, na medida em que basta o magistrado referir que a prisão se fundamenta em tal conceito e, logo após, de forma tão simplória, sucinta e trivial, expede-se o mandado de prisão. A legitimidade da prisão preventiva deveria se restringir – e assim prevê o Código de Processo Penal – a situações específicas que exigem fundamentações coerentes e argumentativas para a decretação da medida. Entretanto, o cenário é de descaso e desleixo com a fundamentação da decisão judicial que decreta tal prisão.

Por fim, todo legislador coerente deve primeiro procurar impedir o mal que repará-lo, pois, uma boa legislação, nas sábias palavras de Beccaria (1764, p. 101), as quais merecem destaque, “não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar”.

CONCLUSÃO

Considerada medida cautelar excepcional, a prisão preventiva é cabível somente quando inviável a sua substituição por outra medida cautelar diversa da prisão, bem como desde que preenchidos os requisitos por lei exigidos. A partir dessa premissa, o propósito da referida medida cautelar é ser usada como exceção. Da veracidade dos fatos, entretanto, é possível verificar, na realidade do ordenamento jurídico brasileiro, que tal medida é usava como regra, tendo em vista os inúmeros casos desnecessários de decretação de prisão preventiva fundamentada com base em conceitos vagos, imprecisos e indeterminados.

Um dos quatro pilares que sustenta a prisão preventiva é a garantia da ordem pública: fundamento mais utilizado pelos magistrados para a decretação da referida prisão. Na prática, é inquestionável o fato de que quase tudo serve para prender em nome da ordem pública, menos a ocorrência de uma situação de fato cautelanda.

Essa medida cautelar, quando utilizada sob o fundamento da garantia da “ordem pública”, acaba antecipando os efeitos da pena e tal ato é, por si só, inconstitucional, visto que toda prisão cujo objetivo transcenda a ordem processual padece de inconstitucionalidade. Diante dessa indeterminação semântica do termo “ordem pública”, verifica-se certa insegurança jurídica, considerando as ilimitadas hipóteses de incidência e de fundamentação, já que, em razão da imprecisão da expressão, o julgador possui grande margem de discricionariedade. Assim, é possível ampliar ou restringir garantias conforme os interesses ideológicos que estão sendo disputados.

A possibilidade de fundamentação da prisão preventiva em elementos ilimitados permite que o acusado seja segregado preventivamente e conforme a visão subjetiva do julgador, o qual pode adotar o termo vago para satisfazer entendimento próprio. Nessa senda, ocorre a violação da segurança jurídica, uma vez que a imprecisão do termo citado possibilita o arbítrio nos decretos de prisão preventiva.

Diante do uso desmedido da medida cautelar em comento, verificou-se que a prisão preventiva decretada para a tutela da ordem pública, considerando a imprecisão de tal expressão, em inúmeros casos é utilizada em desconformidade com os princípios constitucionais e, consequentemente, transforma-se em medida de caráter penal: representa uma antecipação de pena durante a persecução penal.

Nesse contexto de banalização da referida medida cautelar, há a necessidade – urgente – de promover o debate acerca da realidade do Direito Processual Penal brasileiro no que tange aos inúmeros casos de prisões preventivas inconstitucionais: tal medida cautelar se encontra vulgarizada e banalizada e, diante disso, buscou-se analisar criticamente o tema para que, no meio social, seja possível a reflexão construtiva e dialética com o propósito de evidenciar a arbitrariedade que permeia a aplicação da prisão preventiva e as consequências irretratáveis a ela inerentes.

REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. 8. ed. São Paulo: Método, 2016. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito processual penal. Tomo II. São Paulo: Campus Jurídico, 2007.

BALDEZ KATO, Maria Ignez Lanzellotti. A (des) razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

BATISTI, Leonir. Presunção de inocência. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e da penas. 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2004. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 22 mai. 2017.

CÂMARA, Luiz Antônio. Medidas Cautelares Pessoais: prisão e liberdade

provisória. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2011.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed. Lisboa: Almedina, 2003.

CARVALHO, João Paulo Gavazza de Mello. Princípio Constitucional Penal da

Dignidade da Pessoa Humana. IN: SCHMITT, Ricardo Augusto (Org.), Princípios

Penais Constitucionais: Direito e Processo Penal à Luz da Constituição Federal. Salvador: Edições JusPODIVM, 2007.

DALABRIDA, Sidney Eloy. Prisão preventiva: Uma análise à luz do garantismo

penal. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009.

DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2014.

DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo

de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

GEMAQUE, Sílvio César Arouck. Dignidade da Pessoa Humana e Prisão Cautelar. São Paulo: RCS, 2006.

GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2014. GRINOVER, Ada Pellegrini. E outros. As nulidades no Processo Penal. 11. Ed. São Paulo: RT, 2009.

HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. Buenos Aires: AdHoc, 2003. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2006. Coleção A Obra- Prima de Cada Autor, 2006

KATO, Maria Ignez Lanzellotti Baldez. A (des)razão da prisão provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. (Trad. Rita Dostal Zanini). In: Sarlet, Ingo Wolfgang. Dimensões da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. _______. Prisões Cautelares. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais. Crise de identidade da “ordem

<https://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica- fundamento-prisao-preventiva>. Acesso em: 14 out. 2017.

MARQUES, Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 2ª Edição. São Paulo. Millennium, 2003.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed., São Paulo: Atlas, 2005. NICOLITT, André. Processo Penal Cautelar: Prisão e demais medidas cautelares. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6ª ed. São Paulo: RT, 2006.

_____. Prisão e Liberdade: as reformas processuais penais introduzidas pela

Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de; STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – As garantias

processuais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso

de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos

paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte:

Del Rey, 2001.

SOUZA NUCCI, Guilherme de. Código de processo penal comentado. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual

Penal. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2012.

TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1989.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

TUCCI, Rogério Lauria. Princípios e Regras orientadoras do Novo Código de

Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. O “Anjo da História” e o expansionismo

penal: rumo a um modelo totalitário? Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol.

WEDY, Miguel Tedesco. Eficiência e prisões cautelares. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

WUNDERLICH, Alexandre. Por um sistema de impugnações no Processo Penal

Constitucional Brasileiro: Fundamentos para (Re)Discussão. In: Escritos de Direito

e Processo Penal em Homenagem ao Professor Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2002.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume - teoria

geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

Documentos relacionados